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Discutindo a clínica e o tratamento da toxicomania: dos discursos à constituição subjetiva1 1 1Este trabalho é dedicado à memória do caro e querido mestre, Abílio da Costa-Rosa, que tanto nos inspira com sua história de vida, de lutas, ética e desejo. Deixa-nos o legado, para uma Ciência que inclua a Psicanálise, de que todo conhecimento produzido na universidade deve ter uma Causa de transformações subjetivas e sociais. Com ele aprendemos que não há transmissão que não passe pela experiência, e que este saber singular, produzido no exercício de uma práxis, é o único que interessa ao homem enquanto homem.

Discussion sur la pratique clinique et le traitement de la toxicomanie : du discours à la constitution subjective

Discutiendo la clínica y el tratamiento de la adicción: de los discursos a la constitución subjetiva

Resumo

A toxicomania como estilo subjetivo é uma denegação do laço social fálico em que o tóxico serve para mais-gozar numa unidade eu-Outro. Numa cultura marcada pelo mais-além do princípio de prazer, a felicidade está no consumo de objetos feitos para gozar, assim, o uso de drogas tornou-se um sintoma social do Discurso do Capitalista. Dada a complexidade do assunto, este artigo fundamentado na psicanálise de Freud e Lacan objetiva abordar a toxicomania sob algumas perspectivas preliminares de compreensão do fenômeno e seu tratamento. Se o toxicômano cede do seu desejo, como ele fará frente a esse gozo aniquilador encontrado na droga? O que lhe prenderá à vida? Procuramos responder essas perguntas. Um tratamento possível consiste em oferecer ao sujeito, por meio da fala, novos registros de gozo intermediados pela linguagem, capazes de competir com o gozo do corpo, não visando interditar o consumo, mas diversificar a demanda.

Palavras-chave:
toxicomania; psicanálise; modo capitalista de produção

Resumé

La toxicomanie en tant que style subjectif est un moyen de nier le lien social phallique, dans lequel la drogue sert à créer un excès de jouissance dans une unité moi-l’Autre. Dans une culture qui est déjà dépassée du principe du plaisir, le bonheur est dans la consommation d’objets de jouissance, des objets à jouir. Ainsi, l’usage de drogues est un symptôme social du discours capitaliste. Compte tenu de la complexité de ce sujet, cet article, basé sur la psychanalyse de Freud et de Lacan, vise à aborder la toxicomanie avec quelques perspectives préliminaires de la compréhension du phénomène et de son traitement. Si le toxicomane cède à son désir, comment pourrait-il résister à cette jouissance annihilant de la drogue? Qu’est-ce que le maintenera lié à la vie? Nous cherchons à répondre ces questions. Un traitement possible consiste à offrir au sujet, en parlant, de nouveaux enregistrements de jouissance médié par le langage, capables de rivaliser avec la jouissance du corp, dans le but non pas d’interdire la consommation de drogue, mais de diversifier sa demande.

Mots-clés:
toxicomanie; physichanalyse; mode capitaliste de production

Resumen

La drogadicción es un estilo subjetivo que tiene sus especificidades, porque es una denegación del lazo social fálico en que el tóxico sirve para soportar el dolor de existir, pero, sobre todo, sirve para el plus de gozar en la unidad yo-Otro. En una cultura marcada por más allá del principio de placer, la felicidad se encuentra en el consumo de los gadgets, objetos hechos para el goce, siendo, por lo tanto, el uso de drogas un síntoma social del discurso capitalista. Considerando la complejidad del tema respecto de la teoría y la técnica, este artículo, basándose en el psicoanálisis de Freud y de Lacan, tiene como objetivo hacer frente a la Clínica del abuso de sustancias a partir de algunos puntos de vista preliminares de comprensión del fenómeno y de su tratamiento. Si el adicto a las drogas abandona su deseo, ¿cómo podía resistir al goce aniquilador de la droga? ¿En qué se sostiene su vida de adicto? Pretendemos responder a estas preguntas a lo largo del texto. Un posible tratamiento mediante el psicoanálisis es ofrecer al sujeto, por medio de la oportunidad de la habla, nuevos reconocimientos del goce, que son mediados por el lenguaje, no con el objetivo de prohibir el consumo, sino de hacer la diversificación de la demanda.

Palabras clave:
drogadicción; psicoanálisis; modo de producción capitalista

Abstract

Drug addiction as a subjective style is a way to denying the phallic social bond, in which the drug serves to surplus-jouissance in a unity made by I-Other. In a culture that is already beyond the pleasure principle, happiness is in the consumption of jouissance objects, thus, the use of drugs is a social symptom of the Capitalist Discourse. Given the complexity of this topic, this article, based on Freudian and Lacanian Psychoanalysis, aims to address some preliminary prospects for understanding this phenomenon and its treatment. If drug addicts give up of their desire, how can they resist the drug’s annihilating jouissance? What will hold the drug addict’s on life? We seek to answer these questions. One possible treatment is offering the subject, by the opportunity of speaking, new records of jouissance mediated by language, able to compete with the body’s jouissance, not aiming to prohibit the drug consumption, but diversify the demand.

Keywords:
drug addiction; psychoanalysis; capitalist mode of production

Introdução

Numa cultura marcada pelo mais-além do princípio de prazer, a felicidade está no consumo de gadgets, objetos feitos para gozar, assim, o uso de drogas pode ser considerado um sintoma social do Discurso do Capitalista. No entanto, a toxicomania como estilo subjetivo tem especificidades, pois é uma denegação do laço social fálico em que o tóxico serve para suportar a dor de existir, mas, sobretudo, para mais-gozar numa unidade eu-Outro. No consumo de drogas, não se trata de uma tentativa de barrar o gozo, mas de uma precipitação a esse gozo do Outro.

O Imaginário é invadido por um Real avassalador, tanto que o gozo não passa pelo significante, mas incide diretamente no corpo. Um tratamento possível pela psicanálise consiste em oferecer ao sujeito, pela oportunidade da fala, novos registros de gozo, mas intermediados pela linguagem e capazes de competir com o gozo do corpo, não visando interditar o consumo, mas diversificar a demanda.

No atual campo da saúde mental coletiva há diversas representações sociais e modos de conceber o uso de drogas. Neste artigo, pretendemos abordar a clínica da toxicomania, considerando que a toxicomania, enquanto fenômeno social, tem sido debatida por discursos escandalizados e moralistas, sensacionalistas e espetacularizantes, médicos e eugenistas (Costa-Rosa, 2009Costa-Rosa, A. (2009). Algumas notas sobre subjetividade e uso de drogas. Revista de Psicologia da UNESP, 8(2), 88-97. Recuperado em 25 de janeiro de 2016, de Recuperado em 25 de janeiro de 2016, de https://bit.ly/2DtjHvh
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), mas, embora não seja evidente, podemos considerá-la como um dos efeitos das formas de organização da sociedade de consumo, no contexto do modo capitalista de produção, além de ser experimentada pelos sujeitos, muitas vezes, ao modo de um impasse em seus processos de constituição subjetiva.

Baseamo-nos na psicanálise de Freud e Lacan para tecer algumas considerações preliminares a respeito de uma clínica possível aos sujeitos em um impasse toxicômano. Nosso raciocínio segue dois vieses: o primeiro mote consiste em abordarmos a toxicomania enquanto sintoma social dominante (Melman, 1992Melman, C. (1992). Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo, SP: Escuta.) inscrito no modo capitalista de produção, e, portanto, enquanto um dos efeitos do Discurso do Capitalista (DC); e o segundo caminho que propomos é pensar o lugar e a dinâmica do objeto droga no plano da realidade psíquica e das estruturas subjetivas, discutindo suas formas diversas de subjetivar a angústia, já que o uso de drogas apresenta diferenças essenciais no recalcamento, na renegação, ou na foraclusão.

Consideramos a toxicomania como uma modalidade subjetiva derivada do modo de produção hegemônico na formação social capitalista e, por meio de Souza (2008Souza, A. (2008). Os discursos na psicanálise (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Cia. de Freud.) e Melman (1992Melman, C. (1992). Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo, SP: Escuta.), apresentamos o discurso do a-viciado e os discursos do toxicômano como tipos específicos de laço social. Em seguida, ensaiamos uma reflexão acerca do que seria uma constituição do sujeito toxicômano em termos de estrutura psíquica. E, para finalizar, expomos nossas considerações sobre a clínica e o tratamento à toxicomania.

Dada a complexidade de se manejar a escuta e lidar com este impasse peculiar, destacamos a importância de se compreender os aspectos fundamentais da clínica da toxicomania, tanto para pensarmos a atuação dos trabalhadores paramentados pela psicanálise no campo de atenção à população no âmbito das políticas públicas, quanto na atuação dos psicanalistas nos consultórios particulares.

Algumas considerações sobre a formação social capitalista e o uso de drogas

Haja vista os altos índices de consumo de substâncias psicoativas, fundamentalmente as ilícitas, o uso de drogas tem despontado como uma problemática de saúde pública (Shimoguiri & Périco, 2014Shimoguiri, A. F. D. T., & Périco, W. (2014). O Centro de Atenção Psicossocial como dispositivo social de produção de subjetividade. Revista de Psicologia da UNESP, 13(1), 33-51. Recuperado em 12 de janeiro de 2016, de Recuperado em 12 de janeiro de 2016, de https://bit.ly/2R6sre5
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; Santos & Costa-Rosa, 2007Santos, C. E., & Costa-Rosa, A. (2007). A experiência da toxicomania e da reincidência a partir da fala dos toxicômanos. Estudos de Psicologia (Campinas), 24(4), 487-502. Recuperado em 10 de janeiro de 2016, de Recuperado em 10 de janeiro de 2016, de https://bit.ly/2FRPzLo
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; Costa-Rosa, 2009, 2013). O Ministério da Saúde e a Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas trazem como prioridade a criação de dispositivos institucionais voltados especificamente para a atenção às problemáticas relacionadas ao alcoolismo e à toxicomania, por exemplo, os Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (Caps AD) (Shimoguiri & Périco, 2014; Santos & Costa-Rosa, 2007).

Teceremos algumas considerações sobre os enlaces intersubjetivos nas sociedades neoliberais para compreendermos como a toxicomania se constituiu como um sintoma social dominante. O DC é uma modalidade de laço social, ou, para sermos mais precisos, um laço louco, definido por Lacan (1969-1970/1992Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970)) como uma forma discursiva que inverte a relação do sujeito ($) com o objeto (a).


Discurso do Capitalista

Há uma mudança no lugar da verdade: o $ é quem representa um S1 de função estática. Esse S1 mobilizará o sujeito a querer o objeto a todo o custo para mais-gozar, então, o sujeito se suprime ao confundir o desejo com a necessidade de tragar o objeto para dar conta da sua sede de consumir. O S 2 não é meio de gozo, mas meio de se chegar à conquista de um gozo que promete o paraíso dos prazeres indissolúveis e, com isso, é também um meio de trabalho para a manutenção do mestre como verdade de sujeito, extasiado com o ilimitado poder de se apropriar do objeto para si.

Por isso mesmo, no discurso do capitalista, quando o sujeito [$] passa a ocupar esse lugar de dominância [à esquerda e acima], ele não só adquire essa condição de “semblante de amo” como se torna o centro das atenções. Ele se crê capaz de comandar através do Saber, que está no lugar do outro [à direita e acima], o próprio objeto mais-de-gozar (a), tornando-se ignorante do efeito que o objeto lhe causa, consumindo-o. (Souza, 2008Souza, A. (2008). Os discursos na psicanálise (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Cia. de Freud., p. 160)

Convém explicar o conceito de modo de produção como “o modo do conjunto das formas de produzir bens materiais diversos, como modo de ser de um processo produtivo; mas também como conceito teórico que abrange a totalidade social” (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da Reforma Psiquiátrica: contribuições a uma Clínica Crítica dos processos de subjetivação na Saúde Coletiva. São Paulo, SP: Unesp., p. 24). Outrossim, o modo de produção serve como um instrumento para interpretação de uma realidade, na medida em que engloba tanto a estrutura econômica quanto os níveis jurídico político, ideológico e cultural da formação social (Fioravante, 1978Fioravante, E. (1978). Modo de produção, formação social e processo de trabalho. In Gebran, P. Conceito de modo de produção (pp. 31-45). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.).

Nessa perspectiva, nossa hipótese é a de que o modo de produção dos bens materiais diversos está intimamente conectado à constituição psíquica dos sujeitos, pois, embora as formas da sociabilidade se deem de modo multifatorial, o modo de produção dá condições para certos laços, influenciando as características do relacionamento social e, consequentemente, das formas de subjetivação possíveis numa sociedade. A realidade psíquica é de consistência moebiana: é social e histórica, subjetiva e inconsciente, estrutural e singular. É necessário considerar que as formações sociais têm como função primordial regular a produção e a reprodução da vida humana (Baremblitt, 1992/2002Baremblitt, G. F. (2002). Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática (5a ed.). Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari. (Trabalho original publicado em 1992)).

Destarte, o sintoma social vem enunciar uma objeção ao contexto no qual emergiu e do qual não deixa de ser um (d)efeito: “O sofrimento expressa sempre, em boa dose, aquilo que fracassa em alcançar a direção das pulsações instituintes” (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da Reforma Psiquiátrica: contribuições a uma Clínica Crítica dos processos de subjetivação na Saúde Coletiva. São Paulo, SP: Unesp., p. 108). Dada a indissociabilidade entre realidade psíquica e realidade social, nota-se que a estrutura discursiva na toxicomania é homóloga ao discurso dominante e seus imperativos na sociedade de consumo.

Goze! Compre! Coma! Beba! Não sofra! Curta! Desfrute! Essa característica dá ensejo para associá-la aos traços que são mais proeminentes no neoliberalismo. A concepção de bem-estar está intrincada no consumo dos gadgets, objetos da demanda travestidos de objetos do desejo, que prometem a sensação de realização e de felicidade, que, no entanto, logo acaba, porque rapidamente a demanda se desloca para outros objetos. Busca-se a qualquer preço o evitamento da angústia de se estar separado e/ou distante do objeto.

É neste cenário que o objeto droga adquire destaque, na medida em que pode proporcionar ao sujeito algum remédio para o mal-estar (Freud, 1930[1929]/1996Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 67-150). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1930 [1929])), para a insatisfação fundamental (Lacan, 1957-1958/1999Lacan, J. (1999). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-1958)); um meio do sujeito (re)ver-se completo, de não se deparar com a falta-a-ser. Qualquer princípio de realidade e de finitude tende a ser refutado com rapidez e veemência. Nas palavras de Costa-Rosa (2009Costa-Rosa, A. (2009). Algumas notas sobre subjetividade e uso de drogas. Revista de Psicologia da UNESP, 8(2), 88-97. Recuperado em 25 de janeiro de 2016, de Recuperado em 25 de janeiro de 2016, de https://bit.ly/2DtjHvh
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, p. 90):

A ciência produz gadgets (objeto engenhoso, divertido, sem utilidade): toda espécie de instrumentos utilitários, no que pese sua definição geral. Na produção desse utilitarismo, conta muito a ajuda dos enunciados publicitários. Os gadgets são sempre apresentados como a promessa de recuperação dos meios da satisfação pulsional, nostálgica e miticamente perdida para o sujeito; solução para o desejo pela via dos objetos da demanda. Essa promessa é essencial para que eles se prestem a ser suportes de “valor-de-troca”, na esfera da Economia Política. “A característica mais singular dos gadgets é que o sujeito se liga a eles; até mesmo agarra-se e fixa-se neles”. (Santiago, 2001Santiago, J. (2001). A droga do toxicômano: uma parceria cínica na era da ciência. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 151). . . . na sociedade dita neoliberal globalizada de consumo, ter-se-ia chegado a uma era sinistra dos puros objetos da tecnociência; gadgets, latusas (Santos, 2006; Lacan, 1982), feitos apenas para o uso do gozo do corpo, capazes de funcionar como veículos de realização de valor (de troca). Ou seja, o corpo aparece transmutado, de força de trabalho, em pura força de consumo, inclusive compulsivo.

Marx (1982/2011Marx, K. (2011). Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo. (Trabalho original publicado em 1982)), na sua análise política realizada por meio do materialismo histórico, também alude a essa inversão como uma consequência do modo capitalista de produção. Nas formações econômicas pré-capitalistas, a produção humana, o fazer do homem, se engendrava para produzir valores de uso e visava ao usufruto coletivo nos horizontes do carecimento. Se os animais produzem apenas para satisfazer carências físicas imediatas, reduzidas à biologia e à existência no plano fisiológico, o homem se diferenciou, porque pode direcionar seu fazer para além das necessidades, numa dimensão simbólica-criativa-desejante (Shimoguiri, 2016Shimoguiri, A. F. D. T. (2016). Contribuições da Psicanálise de Freud e Lacan e do Materialismo Histórico para a Terapia Ocupacional: uma clínica do desejo e do carecimento na Saúde Coletiva (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Assis, SP. Recuperado em 3 de agosto de 2016, de Recuperado em 3 de agosto de 2016, de https://bit.ly/2FW5jNM
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). De acordo com Marx (1982/2011), esta é a característica marcante do ser humano, sua atividade vital que lhe confere a genericidade humana.

Com o advento do capitalismo, o fazer humano deixou de ser animado pelo desejo, deixou de ser pensado como valor de uso, para ter importância, sobremaneira, como valor de troca com a finalidade de acúmulo, de realização da mais-valia. Ao invés da mercadoria existir em razão do homem, o homem passou a existir em razão da mercadoria: “Não foi Marx, obviamente, que inventou a mais-valia, só que antes dele, ninguém sabia o seu lugar” (Lacan, 1960-1970/1992, p. 18).

É possível considerar que as condições socioculturais na modernidade nas quais se dão o processo de hominização (Marx, 1982/2011), ou seja, a constituição do homem enquanto ser social, e sua entrada na cultura e na linguagem (Lacan, 1960-1970/1992), conduz-nos a problematizar a relação do sujeito com o objeto. Não por acaso, o modo de agenciamento do gozo na toxicomania, mais-gozar, é homólogo ao agenciamento da produção, à realização da mais-valia (Marx, 1982/2011) no modelo societário capitalista: no primeiro vê-se como produto final a extração subjetiva, e, no segundo, a extração econômica.

O sinal da verdade está agora em outro lugar. Ele deve ser produzido pelos que substituem o antigo escravo, isto é, pelos que são eles próprios produtos, como se diz, consumíveis tanto quanto os outros. Sociedade de consumo, dizem por aí. Material humano, como se enunciou um tempo - sob os aplausos de alguns que ali viram ternura. (Lacan, 1960-1970/1992, p. 33)

Qual o preço que se paga como condição para entrada na vida em civilização, qual renúncia o sujeito precisa, necessariamente, fazer? Ele deve abdicar do gozo todo, da completude na satisfação, para trocá-los pelos objetos representativos da unidade perdida no Outro ([seu] tesouro dos significantes). Isso é o que caracteriza o Sujeito dividido ($), ele abre mão do Todo para se instalar na Lei simbólica, a lei que regula a castração e permite a entrada no laço social.

Discurso do a-viciado e discurso no toxicômano

Vamos falar do toxicômano, mas antes precisamos apresentar brevemente o discurso do a-viciado, segundo o proposto por Souza (2008Souza, A. (2008). Os discursos na psicanálise (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Cia. de Freud.). Nesta tipificação de discurso temos um objeto no lugar de agente e o sujeito se localiza na posição da verdade. A consequência desse discurso é produzir um sujeito que se faça de objeto de gozo [alienado] do Outro. O saber do objeto tem um único propósito: criar significantes tautológicos que sejam capazes de manter o sujeito numa posição objetalizante, fixa e única na relação que constitui com os semelhantes, ou seja, os semelhantes também podem se tornar meios não-simbólicos dos quais o sujeito pode gozar, negando impreterivelmente o caráter cessível e segmentado das condições cabais da realidade (Souza, 2008).

No discurso do a-viciado ocorre algo de outra natureza. A presença invariante dessa “substancialidade” do objeto, que se escreve na díade objeto (a) sobre o sujeito dividido [a / $], ao contrário, realiza-se uma injunção de gozo. Trata-se, portanto, de um dispositivo de discurso que exclui o sujeito da economia do desejo e o convoca a gozar, talvez com esse impulso que se poderia creditar à voz obscena e feroz do supereu: “goza”! É preciso gozar cada vez mais. (Souza, 2008Souza, A. (2008). Os discursos na psicanálise (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Cia. de Freud., p. 194)

No lugar da verdade, há um sujeito ($) que se representa por um objeto (a), conduzindo o outro (S 2 ) a produzir significantes (S1) de sentidos estáticos, relacionados ao uso do objeto de consumo que está no lugar de agente. O a liga-se ao S 1 sob pena de um gozo paroxístico e sem mediações, nesta feita, o S 2 que trabalha para o $ é um saber de objeto, que está preso a uma forma de consumir(-se).


Discurso do a-viciado

Podemos considerar o discurso do a-viciado uma das variações do DC, nas inúmeras relações que os sujeitos podem constituir com os muitos objetos (gadgets) amplamente disponíveis na sociedade de consumo. E no que se diferencia o discurso do a-viciado daquele que o toxicômano toma para se mover na sua demanda? Observa-se que o toxicômano se mantém fixado [fissurado] na droga, a-dicto, preenchendo a sua fissura fundamental com o objeto droga a tal ponto que a relação do sujeito com o objeto é subvertida, ocasionando uma situação de dependência radical.


Cumpre dizer que a questão da toxicomania não consiste meramente no consumo de substâncias psicoativas, isto é, não será o tipo de droga utilizada ou a frequência e intensidade do uso que definirão as condições para dizermos se existe ou não um sujeito toxicômano. É imprescindível ter em mente que, a depender da realidade sociocultural em tela, o objeto droga poderá assumir diversas representações e significações. Por exemplo, na cultura indígena, o uso de drogas ocorre num contexto de religiosidade, de rituais que são gestos simbólicos bem delimitados, e que não excluem um sentido, ainda que místico.

Embora seja necessário considerar os analisadores socioculturais, a estrutura sociossimbólica da formação social por si só não é suficiente para delimitar o fenômeno da toxicomania, até porque podemos falar em tipos variados de uso de drogas, que assumem formas diferentes a depender do processo primário de constituição subjetiva, da maneira como ocorreram os processos de alienação e separação, quais sejam, segundo os referenciais psicanalíticos do campo de Freud e Lacan: constituição por recalcamento, ou por renegação, ou ainda por foraclusão.

Qualquer um pode ser usuário de drogas, no entanto, a teoria e a clínica acentuam diferenças essenciais quanto aos estilos subjetivos. Na toxicomania propriamente dita, o tóxico é desprovido de estatuto imaginário ou simbólico, ocorre um silenciamento das simbolizações (Santiago, 2001Santiago, J. (2001). A droga do toxicômano: uma parceria cínica na era da ciência. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) e o uso da droga é um ato pelo qual o sujeito pretende denegar a condição de estar subsumido ao gozo fálico e à castração, isso porque a castração implica uma recusa ao gozo [Todo], sendo que o falo é o significante que faz a interdição de um gozo que se pretenda absoluto.

Em outras palavras, o sujeito não reconhece limites para o gozo, por isso recusa os ideais plasmados em valores morais e consolidados pelas instituições tais como a família, o trabalho e a religião. Diferente dos impasses no recalcamento, em que o significante fálico está presente na dimensão simbólica e o objeto é o sintoma, ou dos impasses na renegação em que o significante fálico existe na dimensão imaginária e o objeto é o fetiche, na toxicomania o objeto é real, não há a dimensão da fantasia tal como ela se apresenta para um sujeito constituído por recalcamento.

Como se constitui um sujeito toxicômano?

O significante nome-do-pai é o responsável por inscrever a Lei simbólica, estruturante, e o significante da falta no Outro, e o falo como baliza do gozo (Lacan, 1957-1958/1999), abrindo os caminhos possíveis para articulação do sujeito em constituição com o desejo. Desejo que, desde sempre, não pode ser todo satisfeito, dado que o objeto está perdido, e, consequentemente, não se pode alcançar das Ding, a Coisa.

Dos processos de alienação e de separação, resta no sujeito uma falta estrutural, em torno da qual se construirá o desejo. “Ser desejante é o mesmo que dizer movido pela falta, pois, efetivamente, só há movimento e vida quando o sujeito é atravessado pela falta, isto é, quando algo lhe falta” (Leite, 2011Leite, S. (2011). Angústia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.). Mas essa falta não é defeito, falha ou incapacidade, é abertura para o diferir, permitindo a inscrição e o ciframento criativo do novo.

É possível pensarmos uma toxicomania como parte de um estilo subjetivo, um impasse vivido por alguns sujeitos, atualizando experiências singulares ocorridas durante o processo de estruturação do aparelho psíquico, entre o infans e o Outro materno. No momento da constituição do sujeito, alguns acontecimentos teriam obrigado o infans a se fixar em certos pontos do processo de subjetivação nos quais se daria a passagem dos traços de gozo para traços sígnicos. Ou seja, a tradução de alguns desses traços não passou pela via do significante, do Um como barramento de gozo, produzindo uma fixação do sujeito na relação com o objeto, enquanto propósito de autoerotismo. Noutras palavras, o sujeito é o próprio objeto do seu gozo (Costa-Rosa, 2016Costa-Rosa, A. (2016). Toxicomania e outros usos. Trabalho não publicado, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, SP.).

Se a tradução dos traços de gozo aos traços sígnicos não tem no seu percurso essa fixa[a]ção, a inscrição do S1, o UM da unificação, cria condições para que a posteriori o significante nome-do-pai se instale, deslocando o infans deste lugar de objeto do desejo do Outro. Será a inscrição de um significante potencialmente simbolizante frente ao encontro com o Real, o que possibilitará ao infans, primeiramente, alienar-se para, em seguida, separar-se do desejo do Outro e seguir em sua empreitada de ascender, tal como o Outro da maternagem, ao desejo de Outra coisa no laço social.

Em vez disso, o sujeito fixado num traço Coisa [de gozo], está na presença de das Ding. Não de outro modo, com o impasse neste tempo de estruturação primária, a fantasia enquanto recurso para lidar simbolicamente com o Real é driblada e o que ocorre é uma passagem clandestina, um ponto de renegação no encontro com o objeto, que terá mais dimensão de mais-gozar do que de causa de desejo (Costa-Rosa, 2016Costa-Rosa, A. (2016). Toxicomania e outros usos. Trabalho não publicado, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, SP.).

Com efeito, não se inscreveu a regulação ou separação entre o eu e o objeto; e pela supressão do sujeito, formou-se a unidade eu-Outro em busca de um gozo infinito. O sujeito se vê irremediavelmente alienado, porque se fez objeto do gozo do Outro. Ademais, a droga lhe permite não só suportar a dor de existir, mas também lhe dá acesso ao mais-de-gozar. O tóxico opera suturando a divisão subjetiva, de maneira que o sujeito não consegue advir como falta-a-ser, como sujeito do desejo.

Se o toxicômano cede do seu desejo, como ele poderá fazer frente a esse gozo aniquilador que encontra na droga? O que lhe prenderá à vida? Percebamos a especificidade dessa amarração subjetiva: o uso de drogas não pode ser tomado como como um sintoma. O sintoma apresenta-se como um significante, na medida em que surge como disparador de questionamentos, com a possibilidade de ser decifrado: “ele ocorre na hora exata de nos interrogar” (Nasio, 2010Nasio, J. D. (2010). Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 19). Mas o toxicômano parece não ter muito a dizer, ele nada sabe sobre sua falta, não consegue ver-se como um sujeito dividido.

O uso do tóxico não é uma formação do inconsciente, uma vez que não há desejo como metonímia de falta-a-ser. Busca-se o próprio apagamento de si enquanto sujeito, pois o toxicômano visa à morte, tentando enganá-la. Se o jovem Werther do romance de Goethe (2001Goethe, J. W. (2001). Os sofrimentos do jovem Werther. Porto Alegre, RS: L&PM.) talvez desejasse morrer como um último ato para registrar a marca de um amor fantasmático por Charlotte, para o toxicômano, morrer [pelo uso] da droga é conquistar a marca de um fantástico encontro fusional com o objeto.

Melman (1992Melman, C. (1992). Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo, SP: Escuta.) alude a um par mortífero que remete a um gozo autístico. É isso mesmo, pois assegurar o gozo do Outro na toxicomania significa suprimir o $ e se evadir da realidade para ser objeto de seu próprio regozijo. Por causa disso, também podemos dizer que o gozo do toxicômano é um gozo autoerótico, que pode ser comparado à erotomania vivenciada por alguns sujeitos constituídos pela modalidade da foraclusão.

Na foraclusão, na sobremodalidade da paranoia, diante do desencadeamento de uma crise psicótica, depois de terem sua realidade desmoronada, os sujeitos procuram reconstruí-la por meio de uma metáfora imaginária com potência simbolizante para amenizar o gozo do Outro. Contudo, o uso do tóxico, em vez de ser uma tentativa de barrar o gozo do Outro, antes disso, na toxicomania, implica uma precipitação a esse gozo do corpo.

Trata-se de um corpo entorpecido no qual um gozo mudo, que não passa pelos significantes, incide diretamente. A fala é curto-circuitada por um Imaginário que se vê invadido por um Real avassalador. E aqui, também sinalizamos a distinção do gozo do toxicômano do gozo do sujeito no recalcamento, pois, no recalcamento, o gozo se liga ao sintoma e é uma manifestação do inconsciente, comportando as dimensões imaginária e simbólica.

Na experiência do mal-estar, para o toxicômano, o sentido é regredido ao corpo, enquanto substância de gozo. A droga opera como uma espécie de prótese psíquica e química, perfeitamente ajustada ao corpo, na medida em que o objeto também é regredido ao nível da necessidade (Costa-Rosa, 2009Costa-Rosa, A. (2009). Algumas notas sobre subjetividade e uso de drogas. Revista de Psicologia da UNESP, 8(2), 88-97. Recuperado em 25 de janeiro de 2016, de Recuperado em 25 de janeiro de 2016, de https://bit.ly/2DtjHvh
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). Ocorre ainda uma inversão nas formas de agenciamento do gozo, ao passo que o sujeito opta pelo gozo do objeto em vez de fazer dele objeto de desejo. A seguir, apresentamos uma vinheta da clínica, ilustrativa da discussão que estamos tecendo, com um depoimento de um dos muitos casos que pudemos atender no Caps AD:

Ser dependente não tem jeito, não tem cura. É como ter uma solitária na barriga, a gente come e nunca está satisfeito; só que sente fome só de droga. E quando a fome vem, quando dá vontade de fumar, e começa a desandar tudo na barriga, quando a gente já tá peidando (risos), não dá pra pensar, não dá pra falar com ninguém, se não usa, a solitária come a gente. Eu fico invernado dias, sem tomar banho, sem dormir, sem comer. Comida é só crack. Eu gosto mais do que lasanha. (Entrevistado 1)

Sobre o discurso no toxicômano, nele há um deslocamento na produção, o objeto está no comando como real e o saber, de outro modo inconsciente, S 2 , é de estatuto mais-de-gozar, um meio para o sujeito continuar a gozar. O S 1 , no lugar do trabalho, trabalha a partir da mestria do objeto, aspirando o sujeito ($), comandando-o, remetendo-o ao lugar de mais-gozar, produto, dejeto, deste modo de produção discursivo (Melman, 1992Melman, C. (1992). Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo, SP: Escuta.).

o que é posto em posição de comando é - a meus olhos de forma clara - o objeto a. Quero dizer que o que parece próprio do que nos é cantado atualmente com a economia liberal significa isto: não há mais ninguém que comanda, todo mundo faz negócios e ali encontra seu ganho. Assim, não se trata mais de responsabilizar qualquer um que comande. Trata-se, agora, de fazer negócios. O que comanda cada um é o gozo, o objeto, na medida em que cada um ali encontra, de uma forma ou de outra, seu ganho. Trata-se de algo deslocante que, colocando no lugar da mestria o objeto a, viria, de forma brutal, tomar função. Constatem que esta seria uma escritura semelhante àquela do discurso psicanalítico, e encontraríamo-nos diante de uma espécie de mau uso deste discurso. . . . Parece-me, todavia, que o que diferencia o discurso com o qual estaríamos lidando do discurso psicanalítico, é o que se produz do lado direito desta escritura. . . . o toxicômano renasce de certo modo como sujeito, se posso dizer, “atroz”, pois, como assinalei antes, não há objeto que lhe seja co-natural, nem objeto que venha lhe traçar a via (Melman, 1992Melman, C. (1992). Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo, SP: Escuta., p. 77-78).

Pode-se notar que no discurso que se agencia no toxicômano, o simbólico se liquefez, foi dissolvido, dando lugar à concretude de um laço, se é que ainda podemos falar em laço nesse caso, de potência alienante. É possível observar o domínio do objeto sobre o sujeito. A relação do toxicômano com a droga pode frequentemente se estender às outras relações que o sujeito constitui (com outros objetos): de forma exacerbadamente fissurada.


Discurso na Toxicomania

Ficaríamos, se quiséssemos, descrevendo essa forma de subjetivar-se no contemporâneo - em resposta à angústia - no entanto, partindo das nossas experiências de trabalho precavidas pela psicanálise de Freud e Lacan, nos deteremos numa breve consideração sobre o possível tratamento da toxicomania.

Tratamento e clínica da toxicomania

Grande parte das propostas de tratamento ainda concebe a toxicomania pelo prisma biomédico-curativo do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders IV (DSM IV), logo, o objetivo terapêutico comumente visa à abstinência da droga. Numa outra direção, precavidos pelos impossíveis freudianos - governar, educar e analisar o outro -, como se fosse um simples objeto, não tentamos impedir o sujeito de gozar, privando-o de consumir a droga a partir de uma ordem baseada no saber/poder da mestria. Já se sabe pela experiência que, no caso do toxicômano em particular, mais até do que noutros sujeitos, interditá-lo no sentido da repressão ao consumo significa corroborar com o ritmo próprio de sua economia psíquica que inclui parar um pouco, dar uma pausa para recuperar o desgaste do corpo e, assim depois, voltar a gozar mais com as drogas (Melman, 1992Melman, C. (1992). Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo, SP: Escuta.).

Discutindo as internações em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas realizadas durante o ano de 2011 por um Caps AD, referência para 70.000 habitantes no interior paulista, Shimoguiri e Périco (2014Shimoguiri, A. F. D. T., & Périco, W. (2014). O Centro de Atenção Psicossocial como dispositivo social de produção de subjetividade. Revista de Psicologia da UNESP, 13(1), 33-51. Recuperado em 12 de janeiro de 2016, de Recuperado em 12 de janeiro de 2016, de https://bit.ly/2R6sre5
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) relatam que, no período analisado, foram feitas 86 internações, sendo 81 em hospitais psiquiátricos e cinco em comunidades terapêuticas religiosas. Os dados revelam que 67,4% das internações foram indicadas para sujeitos que já estavam sendo acompanhados pelo Caps AD e que não conseguiam diminuir ou cessar o consumo da droga. Os outros 32,6% das internações foram indicadas logo na primeira avaliação, para dar início ao tratamento.

Os autores destacam que, antes dos encaminhamentos para a internação, foi dada orientação aos familiares e aos sujeitos, recomendando que, posteriormente, ele retornasse ao Caps AD para dar continuidade ao tratamento, pois a internação seria apenas a primeira intervenção, visando à desintoxicação e depois se prosseguiria com o tratamento ambulatorial. Contudo, em 93,02% dos casos os sujeitos não retornaram para prosseguir com o tratamento no Caps AD. Esses dados, ao revelarem o fracasso das tentativas de barrar o gozo por meio da internação e da abstinência, reiteram a importância de que outras estratégias que considerem a condição de sujeito do homem - “o sujeito como “entre semelhantes”, ou seja, como sujeito social com todas as implicações e desdobramentos disso; até alcançar a dimensão do sujeito “entre significantes”, isto é, como sujeito de sentido e significância” (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da Reforma Psiquiátrica: contribuições a uma Clínica Crítica dos processos de subjetivação na Saúde Coletiva. São Paulo, SP: Unesp., p. 279) - sejam implementadas, tais como um tratamento fundado na ética do bem-dizer.

Assim, nos inclinamos mais à não-interdição. Não interditamos segundo agenciamentos cristalizados numa mestria, para que, a partir de um manejo adequado da transferência, se possa barrar/cifrar o devastador gozo obtido com o uso da droga. A contribuição da psicanálise é essencial por oferecer ao sujeito a oportunidade de falar sobre a droga, inclusive sobre os prazeres que ela lhe proporciona. Segundo Santos e Costa-Rosa (2007Santos, C. E., & Costa-Rosa, A. (2007). A experiência da toxicomania e da reincidência a partir da fala dos toxicômanos. Estudos de Psicologia (Campinas), 24(4), 487-502. Recuperado em 10 de janeiro de 2016, de Recuperado em 10 de janeiro de 2016, de https://bit.ly/2FRPzLo
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), trata-se de uma possibilidade de o sujeito conduzir-se pela via do desejo, de maneira que, ao fazer uso da palavra, ele possa exercitar novos registros de gozo, intermediados pela linguagem, diferentes do gozo obtido diretamente no corpo, e, portanto, capazes de competir com o gozo da droga.

Essa realocação do sujeito no campo da linguagem e da subjetividade, que parece essencial à possibilidade de mudar a relação de extrema dependência com a droga, só pode ser conseguida com uma oferta compatível de possibilidades de transferência […]. Pode-se acrescentar que nesse modo de relação do sujeito com o significante espera-se uma espécie de cifragem do gozo corporal pela linguagem, que pode permitir lidar com os impulsos de usar drogas, de modo a poder responder a eles atenuando a compulsão (Santos & Costa-Rosa, 2007Santos, C. E., & Costa-Rosa, A. (2007). A experiência da toxicomania e da reincidência a partir da fala dos toxicômanos. Estudos de Psicologia (Campinas), 24(4), 487-502. Recuperado em 10 de janeiro de 2016, de Recuperado em 10 de janeiro de 2016, de https://bit.ly/2FRPzLo
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, p. 490).

Confiamos na capacidade criativa humana de poder dar respostas diversas às formas singulares de angustiar-se na sua ex-sistência. Nessa perspectiva, a oferta de um trabalho pela palavra, seja ele conectado ou não a uma atividade corporal, pode oferecer ao sujeito da toxicomania a oportunidade de fazer uso do significante como trampolim para deslocar-se da alienação, de im-mundo, a outros modos de subjetivar a separação para representar-se de uma maneira Outra em objetos sempre outros (Santos & Costa-Rosa, 2007Santos, C. E., & Costa-Rosa, A. (2007). A experiência da toxicomania e da reincidência a partir da fala dos toxicômanos. Estudos de Psicologia (Campinas), 24(4), 487-502. Recuperado em 10 de janeiro de 2016, de Recuperado em 10 de janeiro de 2016, de https://bit.ly/2FRPzLo
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).

Por isso falamos que ofertar, na especificidade desta clínica, consiste em diversificar a demanda, e diversificar implica dialetizar o gozo. A fala representa a abertura para que o sujeito possa colocar em questão seus impasses e assim, saindo da posição de objeto do gozo do Outro para o encontro com o significante e com a produção de sentidos (simbólicos) para os conflitos que o atravessam e dos quais pode se tornar um atravessador.

Na clínica da toxicomania, a aposta da psicanálise é a mesma empreendida à escuta dos mais variados tipos de sofrimento psíquico: tratar o gozo mediando-o pelo significante, cingindo o Real pelo Simbólico. Operamos com as entrevistas preliminares (Quinet, 2005Quinet, A. (2005). As 4+1 condições da análise (10a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), acreditando que, num dado momento, o sujeito pode vir a questionar os sentidos de se drogar, e, então, a partir daí, articular e formular uma demanda de tratamento. Trata-se de introduzirmos a escuta do sujeito do inconsciente, sendo que tal sujeito não se reduz ao indivíduo, à pessoa, e nem mesmo ao cidadão na ordem da política.

Conforme Melman (1992Melman, C. (1992). Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo, SP: Escuta.), ao pensarmos no manejo da transferência, é imprescindível considerar uma particularidade dos sujeitos toxicômanos: eles não costumam ser predispostos à relação transferencial. Aqui, para ilustração, lançamos mão de mais um recorte de atendimento, em que um dos sujeitos dirige-se à terapeuta dizendo: “Você já fumou pedra? Já cheirou pó? Não, né? O que você sabe pra poder ensinar como parar? Esse grupo aqui, tá de chapéu atolado. . .” (Entrevistado 2).

É possível observar que, diferentemente da clínica do recalcamento, a suposição de saber no Outro surge de outra forma. Esta é mais uma razão para pensarmos a especificidade do trabalho clínico a que visamos quando se trata de um sujeito toxicômano, o que também não diferiria, em certa medida, de um trabalho com um sujeito numa análise propriamente dita: a oferta de uma escuta analítica, “de modo que o sujeito possa aliviar ou se proteger da carga pulsional, transferindo-a para uma cadeia significante” (Santos & Costa-Rosa, 2007Santos, C. E., & Costa-Rosa, A. (2007). A experiência da toxicomania e da reincidência a partir da fala dos toxicômanos. Estudos de Psicologia (Campinas), 24(4), 487-502. Recuperado em 10 de janeiro de 2016, de Recuperado em 10 de janeiro de 2016, de https://bit.ly/2FRPzLo
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, p. 493).

No exercício da psicanálise somos sempre desafiados a construir alternativas singulares a depender da relação transferencial, e não apenas quando nos deparamos com a toxicomania, mas também com os impasses autísticos ou da foraclusão, em que, igualmente, não ocupamos o lugar de suposto saber, mas, certamente, temos muito a contribuir.

Os sujeitos que atendemos no Caps AD inicialmente eram bastante resistentes aos grupos que propunham uma atividade estética, por conseguinte, organizamos atendimentos nos quais estavam incluídas atividades artísticas, musicais e corporais, tais como grupos de música, dança e pintura; esses atendimentos possibilitaram a construção da transferência. Com o passar do tempo, os próprios sujeitos expressaram que não precisavam mais dessas atividades como suportes intermediários, porque já poderiam falar livremente, indicador de que havia se instalado a transferência.

Quanto aos formatos dos atendimentos, por meio de grupos, de oficinas, ou de sessões individuais etc, nossas práticas de atuação apontam para o fato de que é extremamente válido pensarmos um alargamento das possibilidades do campo comum da psicanálise em intenção (Rinaldi, 1997Rinaldi, D. (1997). Ética e desejo: da psicanálise em intensão à psicanálise em extensão. Atas da Reunião Lacanoamericana de psicanálise da Bahia. Salvador, BA: Elba. Recuperado em 23 de agosto de 2015, de Recuperado em 23 de agosto de 2015, de https://bit.ly/2B9AUs7
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; Alberti & Elia, 2000Alberti, S., & Elia, L. (Orgs.). (2000). Clínica e pesquisa em Psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Rios Ambiciosos.; Elia, 2010Elia, L. (2010). O conceito de sujeito (3a ed.) Rio de Janeiro, RJ: Zahar.; Costa-Rosa, 2015Costa-Rosa, A. (2015). Por que a Atenção Psicossocial exige uma clínica fundada na Psicanálise do Campo Freud-Lacan? Trabalho não publicado, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, SP.). Salientamos a necessidade de exercitar uma prática rigorosamente clínica, mas que ouse ir além do lócus originário, tal como é o tradicional setting psicanalítico.

Considerações finais

O dinamismo do inconsciente está para-além de quaisquer prognósticos instituídos, por isso, embora o toxicômano não coloque a priori o analista no lugar de suposto saber, acreditamos que a transferência pode ser construída. Cabe ao analista o trabalho de sustentar a proposição de que o uso de drogas tem um sentido, e que ele se entrelaça num discurso e pode ser, assim, um significante. Ao analista, a despeito de não ser convocado para tal, inicialmente, está reservada a tarefa de ofertar a escuta, pois sabemos que a oferta gera a demanda.

Por último, consideramos que, em termos terapêuticos e éticos, como disse Melman (1992Melman, C. (1992). Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo, SP: Escuta.) sobre as formas de gozo, quem somos nós para dizer: “este é o bom, aquele lá não é” (p. 82). Freud em “O mal-estar na civilização”, igualmente, destacou que: “Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem que descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo” (Freud, 1930[1929]/1996, p. 91).

Cada sujeito construirá singularmente suas respostas para lidar com o mal-estar e com a dor de existir. Certamente, o dispositivo analítico, no tratamento pela palavra, que visa mediar o gozo pelo significante, poderá ser um importante artifício para lidar com o paroxismo de um gozo em franca deriva, não sem antes apostarmos no sujeito em suas infinitas possibilidades de (re)inventar os caminhos do desejo, quando na oportunidade de se inscrever n[Um] uso da palavra.

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  • 1
    1Este trabalho é dedicado à memória do caro e querido mestre, Abílio da Costa-Rosa, que tanto nos inspira com sua história de vida, de lutas, ética e desejo. Deixa-nos o legado, para uma Ciência que inclua a Psicanálise, de que todo conhecimento produzido na universidade deve ter uma Causa de transformações subjetivas e sociais. Com ele aprendemos que não há transmissão que não passe pela experiência, e que este saber singular, produzido no exercício de uma práxis, é o único que interessa ao homem enquanto homem.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2016
  • Aceito
    19 Jun 2017
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