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A prática de atenção à saúde nos estabelecimentos psicossociais: efeitos do modo capitalista de produção

Les pratiques d’attention à santé dans les établissements psychosociaux: les effets du mode de production capitaliste

La práctica de la atención a la salud en los establecimientos psicosociales: efectos del modo de producción capitalista

Resumo

O modo de produção de bens materiais é correlato ao modo de produção de saúde e indica as formas de subjetivação possíveis em uma sociedade, portanto, está relacionado às maneiras como impasses sociais e psíquicos se materializam. Os conflitos da luta de classes produzem contradições, de maneira que é crucial observar que os sintomas desencadeadores das crises vêm enunciar objeção ao contexto social no qual emergiram. Partindo da análise organizacional, constatamos que os estabelecimentos institucionais de saúde mental no contexto do modo capitalista de produção têm servido para agenciar essas crises no sentido de dissuadi-las. Observa-se que, apesar dos avanços da reforma psiquiátrica brasileira, os estabelecimentos psicossociais ainda servem à adaptação social, produzindo subjetividades alienadas e reproduzindo formas históricas de dominação-subordinação, como a internação psiquiátrica e a medicalização da vida e do sofrimento.

Palavras-chave:
modo capitalista de produção; reforma psiquiátrica; atenção psicossocial

Résumé

Le mode de production des biens matériels est corrélatif au mode de production de santé et indique les façons de subjectivation possibles dans une société, donc, soit lié à la manière comme les impasses sociales et psychique se matérialisent. Les conflits de lutte de classes produisent contradictions, de manière qu’est cruciale regarder que les symptômes que déclenchent des crises viennent à énoncer une objectivation au contexte socioculturel dans lequel ils ont émergé. À partir de l’analyse institutionnelle, on a constaté que les practices de santé mentale au sein du mode capitaliste de production ont servi pour traiter ces crises afin de les dissuader. On observe que, malgré les progrès de la réforme psychiatrique brésilienne, l‘établissement psychosocial sert encore à l’adaptation sociale, en créant des subjectivités aliénées et en reproduisant formes historiques de domination-subordination, comme l’hospitalisation psychiatrique et la médicalisation de la vie e de la souffrance.

Mots-clés:
mode capitaliste de production; réforme psychiatrique; attention psychosocial

Resumen

El modo de producción de bienes materiales se correlaciona con el modo de producción de salud e indica las posibles formas de subjetivación en la sociedad, por tanto, se refiere a la manera en que los puntos muertos sociales y psíquicos se materializan. Los conflictos de la lucha de clases producen contradicciones, por lo que es fundamental señalar que los síntomas desencadenantes de las crisis vienen a declarar una objeción al contexto en que surgieron. Con base en el análisis organizacional, constatamos que los establecimientos institucionales de salud mental han servido para administrar esas crisis en el sentido de disuadirlas. Se observa que, pese a los avances de la reforma psiquiátrica brasileña, los establecimientos psicosociales todavía sirven a la adaptación social, producen subjetividad alienada y reproducen formas históricas de dominación-subordinación, como la internación psiquiátrica y la medicalización de la vida y del sufrimiento.

Palabras claves:
modo de producción capitalista; reforma psiquiátrica; atención sociopsicológica

Abstract

The mode of production of material goods is correlated to the mode of production of health and indicates the possible forms of subjectivation in a society, thus, the mode of production is related to the ways in which the social and psychic impasses materialize. Conflicts of the class struggle produce contradictions, so it is crucial to note that the symptoms that trigger the crises come to enounce an objection to the social context in which they emerged. Based on institutional analysis, we find that mental health institutions in the context of the capitalist mode of production have served to manage these crises in order to dissuade them. It is observed that despite the advances of Brazilian psychiatric reform, psychosocial establishments still serve social adaptation, producing alienated subjectivities and reproducing historical forms of domination-subordination, such as psychiatric hospitalization and medicalization of life and suffering.

Keywords:
capitalist mode of production; psychiatric reform; psychosocial care.

Introdução

No âmbito da Saúde Mental Coletiva (SMC) há diversas representações sociais e modos de compreender o sofrimento psíquico e o processo de produção de saúde. Segundo Costa-Rosa (2000Costa-Rosa, A. (2000). O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In P. Amarante (Org.), Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade (p. 141-168). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz., 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp.), dessas representações sociais derivam diferentes modalidades de estabelecimentos de saúde mental, entre eles os Centro de Atenção Psicossocial, Residências Terapêuticas etc.; e variados ‘meios’ de trabalho, dispositivos que se ramificam numa multiplicidade de terapêuticas. As combinações entre estabelecimentos institucionais e meios de trabalho são inúmeras e configuram modos de produzir saúde divergentes entre si.

Num estabelecimento institucional sempre há, explícito ou não, um referencial teórico-técnico e ético-político que direciona as práticas de tratamento, o que chamamos de paradigma. “Nós aprendemos dos campos da Saúde e da Saúde Mental Coletiva ainda outra concepção de paradigma: conjuntos articulados de valores e interesses que se estratificam, criam dispositivos (leves e pesados) e podem chegar à polarização” (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp., p. 76).

São elementos-chave de um paradigma a concepção sobre o referente de ação (objeto) das práticas em saúde mental e os meios de seu manuseio, decisivos para as consistências de subjetividades produzidas, ou melhor de “subjetividadessaúde”, por entendermos que saúde e subjetividade são necessariamente indissociáveis.

Diferentes formas de conceber impasses psíquicos e, consequentemente, de tratá-los, implicam em diferentes resultados produtivos, que deverão ser analisados segundo seu estatuto ético-político (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp.), ou seja, segundo o tipo de subjetividade-saúde produzida, quer seja alienada ou singularizada.

De acordo com Costa-Rosa (2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp.), no campo da atenção psicossocial operam o Paradigma Psiquiátrico “Hospitalocêntrico” Medicalizador (PPHM) e seu antípoda, o Paradigma Psicossocial (PPS). No PPHM, o objeto de ação em saúde mental é a doença-cura, as ferramentas de trabalho são disciplinares e medicalizadoras, portanto, a modalidade de subjetividadessaúde produzida é similar ao “assujeitamento” e à alienação subjetiva e sociocultural.

Por outro lado, no PPS, o referente de ação em saúde mental é o sujeito, considerado na sua dimensão subjetiva, que diz respeito à forma singular como vivencia o sofrimento psíquico, e na sua dimensão social, que diz respeito às respostas coletivas para o processo saúde-adoecimento-atenção. Nessa perspectiva, a concepção de sujeito bem como de saúde é dialética e não recai no movimento de produzir objetos do PPHM.

A reforma psiquiátrica (Fleming, 1976Fleming, M. (1976). Ideologias e práticas psiquiátricas. Porto, Portugal: Afrontamento.) inaugurou uma série de questionamentos quanto às práticas do PPHM, sobretudo, trouxe à baila uma compreensão ampliada acerca do sofrimento psíquico, criticando internação e medicalização, além de inspirar a criação dos estabelecimentos psicossociais inseridos nas comunidades.

Entretanto, apesar dos avanços conquistados, conforme descritos por Amarante (1995Amarante, P. (Org.). (1995). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz.): transformações teórico-conceituais, técnico-assistenciais, jurídico-políticas e culturais, é possível dizer que, na verdade, após três décadas de luta, e mesmo com a implantação dos estabelecimentos psicossociais, o PPHM mantém sua hegemonia no campo da saúde mental.

O modo de produzir saúde é correlato ao modo de produção dos bens materiais diversos e indica formas de existência, de relacionamento social e de subjetivação possíveis numa sociedade, portanto, estão diretamente relacionados às maneiras como as questões sociais se materializam e são vivenciadas no plano do sofrimento psíquico e mesmo das patologias orgânicas (Shimoguiri, 2016Shimoguiri, A. F. D. T. (2016). Contribuições da psicanálise de Freud e Lacan e do materialismo histórico para a terapia ocupacional: uma clínica do desejo e do carecimento na saúde coletiva. (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Assis, SP. Recuperado de https://goo.gl/q8WToX.
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; Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp.). O PPHM está em sintonia com o modo capitalista de produção (MCP), e quanto às suas práticas, temos que:

no caso do PPHM o resultado da produção é a realização indireta da mais-valia - ou seja, a mais-valia de outros setores produtivos; primordialmente, o da indústria químico-farmacêutica - e a subjetividadessaúde alienada (produção sob a forma de reprodução das relações sociais dominantes); ou, no caso do PPS, a produção de novas formas de relacionamento social e intersubjetivo, que é produção de “subjetividadessaúde” singularizada. (Shimoguiri & Périco, 2014Shimoguiri, A. F. D. T. & Périco, W. (2014). O centro de atenção psicossocial como dispositivo social de produção de subjetividade. Revista de Psicologia da Unesp, 13(1), 33-51. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-90442014000100004.
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, p. 43)

Até o surgimento do capitalismo, o trabalho humano não tinha o objetivo reducionista de produzir mercadorias, porquanto era tido como dispositivo de subjetivação, de hominização/humanização (Marx, 1844/2004Marx, K. (2004). Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo. (Trabalho original publicado em 1844).) em que, ao fazê-lo, o homem fazia a si mesmo. Pelo seu ofício o indivíduo se constituía como ser genérico, ou seja, o trabalho não era apenas para subsistência, mas, fundamentalmente, trazia implicações sociais.

A produção não seguia a ética do “a serviço dos bens” (Lacan, 1988 citado por Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp.); visava-se a construção de valores de uso nos horizontes do carecimento, sobre isso, Costa-Rosa destaca que: “Os modos pré-capitalistas conservam a imanência do trabalho e dos outros meios de produção e a relação direta desses com a criação da subjetividade concebida como transformação de si em um movimento absoluto devir” (2003, p. 31).

Em linhas gerais destacamos algumas consequências do MCP: o trabalhador não é mais dono dos meios de trabalho e da sua produção; com a industrialização e a tecnicização, ocorreu brutal separação entre saber e fazer; surgiu a figura do não trabalhador, aquele que detém capital necessário para comprar a mão-de-obra de outrem, e, por último, a invenção da mais-valia. Por efeito dessas mudanças, no plano da subjetividade, temos o estranhamento e a alienação, a objetificação do fazer como perda e a apropriação como estranhamento e alienação.

Ainda sobre o estranhamento e a alienação no MCP, constatamos que o homem baixou à condição de objeto, sendo ele próprio um trabalhador-mercadoria. Em outros termos, de senhor/proprietário, baixou à condição de servo, sem ter alternativa de sobreviver sem precisar vender-se. Essa miséria humana põe-se em relação inversa à potência produtiva e criativa. . . . Observa-se que as mercadorias levam as pessoas até o mercado, e não o contrário: mais do que um discurso sem palavras, Marx enuncia um discurso sem sujeitos. Essa objetificação do homem compromete o processo de hominização/humanização decorrente do fazer humano, assim a genericidade humana deixa de ser prioridade. (Shimoguiri, 2016Shimoguiri, A. F. D. T. (2016). Contribuições da psicanálise de Freud e Lacan e do materialismo histórico para a terapia ocupacional: uma clínica do desejo e do carecimento na saúde coletiva. (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Assis, SP. Recuperado de https://goo.gl/q8WToX.
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, p. 32)

No capitalismo o trabalho deixou de ter valor de uso para tornar-se valor de troca, outrossim, em razão desta mercantilização, passou-se a buscar o maior volume de produção possível, a qualquer preço. “O trabalho é externo ao trabalhador, não pertence ao seu ser, ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, não se sente bem, mas infeliz” (Marx, 1844/2004Marx, K. (2004). Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, SP: Boitempo. (Trabalho original publicado em 1844)., p. 83). Tem-se um laço social alimentado pelos circuitos de produtividade e consumo - laço de expropriação econômica e subjetiva.

Não é por acaso que, no auge do neoliberalismo, tantas pessoas sofram de “transtornos compulsivos” havendo ainda sujeitos que, no seu estilo subjetivo fazem objeções à economia de mercado, por exemplo, vivendo em situação de rua e excluídos do mercado de trabalho; são sujeitos que romperam com o imperativo da produtividade.

Muitos são os sujeitos em sofrimento psíquico intenso que não conseguem se enquadrar no capitalismo financeiro, e, portanto, lhe são inúteis e não desejáveis na “sociedade do trabalho” (Arendt, 1995Arendt, H. (1995). A condição humana (7a ed.) São Paulo, SP: Forense Universitária.), especialmente porque denunciam fracassos e indicam a ineficácia das políticas públicas, no que diz respeito a atender o polo social subordinado e o modo excludente como são tratados os que não podem produzir e consumir em larga escala.

O modo capitalista de produção despreza aqueles que por certa conjuntura psíquica, orgânica e/ou social não conseguem se ajustar a sua lógica, mas, ao mesmo tempo, não tem como ignorá-los por completo, assim, as políticas de saúde e de assistência social historicamente têm se encarregado dessa população, com a finalidade geralmente não enunciada de inseri-los no mercado de trabalho. De acordo com Shimoguiri (2016Shimoguiri, A. F. D. T. (2016). Contribuições da psicanálise de Freud e Lacan e do materialismo histórico para a terapia ocupacional: uma clínica do desejo e do carecimento na saúde coletiva. (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Assis, SP. Recuperado de https://goo.gl/q8WToX.
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), a maioria dos referenciais teórico-técnicos da reforma psiquiátrica brasileira (RPB) destaca a inserção social e no mercado de trabalho como indicadores importantes de saúde, trazendo a ideia intimamente conectada à capacidade de desenvolver funções (economicamente) produtivas, logo, ligada ao capitalismo.

Nessa perspectiva, (re)produzir saúde, ou em outras palavras, promover reabilitação, é o mesmo que buscar funcionalidade e adaptação, (re)inserir os indivíduos na lógica do capitalismo: produção e consumo. Ignora-se a perspectiva do homem para-além da objetificação, e em decorrência disso temos a massificação das subjetividades, pois a existência humana resume-se a ser mais um produtor/consumidor/mercadoria. (Shimoguiri, 2016Shimoguiri, A. F. D. T. (2016). Contribuições da psicanálise de Freud e Lacan e do materialismo histórico para a terapia ocupacional: uma clínica do desejo e do carecimento na saúde coletiva. (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Assis, SP. Recuperado de https://goo.gl/q8WToX.
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, p. 46)

Todavia, as definições do que seja saúde podem ser problematizadas, e mesmo modificadas, a depender do paradigma em questão, do que se busca como efeito terapêutico e ético, por isso, neste estudo, interessa-nos refletir sobre a função dos estabelecimentos institucionais da atenção psicossocial quanto à produção de subjetividadessaúde e discutir os efeitos de uma perspectiva ontológica e funcionalista da condição humana moldada no modo capitalista de produção.

A função dos estabelecimentos de saúde no agenciamento da demanda social

Toda formação econômica e social abarca interesses divergentes, de maneira que os conflitos entre polo dominante e polo subordinado compõem um jogo de forças opostas que produzem atravessamentos e impasses, comumente traduzidos em sofrimento psíquico.

Dessa forma, a demanda social está relacionada às pulsações resultantes dos conflitos da luta de classe que se dão no território (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp.), entendendo-o além do espaço físico e geográfico, mas como espaço atravessado por fatores econômicos, políticos, socioculturais, ideológicos e subjetivos. Para o agenciamento da luta de classes, cada instituição recorta da demanda social seu referente de ação.

A sociedade é como uma rede de instituições que “se interpenetram e se articulam entre si para regular a produção e a reprodução da vida humana” (Baremblitt, 1992Baremblitt, G. F. (1992). Sociedade e instituições. In G. Baremblitt, Compêndio de análise institucional e outras correntes: teorias e prática (2a ed., p. 25-36). Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos., p. 27). Um estabelecimento institucional define-se por sua função (oferecer tratamentos médicos, psicológicos, educar etc.), por sua área de atuação (saúde, educação, assistência social etc.), e também por sua finalidade produtiva.

É crucial atentar para o fato de que os sintomas psíquicos desencadeadores de crises e rupturas vêm enunciar uma objeção ao contexto no qual emergiram e do qual são consequências diretas: “O sofrimento expressa sempre, em boa dose, aquilo que fracassa em alcançar a direção das pulsações instituintes” (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp., p. 108).

Com efeito, dada a indissociabilidade entre constituição subjetiva e realidade social, o trabalho em saúde coletiva ultrapassa o psiquismo dos indivíduos. É preciso considerar os fatores subjetivos, econômicos, sociais, culturais e políticos que fizeram com que os sujeitos da experiência dos sintomas e do sofrimento buscassem tratamento (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp.).

Antes de se traduzir nas buscas por tratamentos, a demanda passa por mediação imaginária e ideológica para vir a expressar-se em encomendas (Lourau, 1975Lourau, R. (1975). Introdução. In R. Lourau, Análise institucional. Petrópolis, RJ: Vozes.), geralmente pedidos de ajuda, que é como chega aos estabelecimentos institucionais. O processo de transformação da demanda em encomenda depende dos impasses de subjetivação com os quais lida e da maneira como o estabelecimento ao qual a encomenda é direcionada se posiciona no território.

Considerando que a demanda gera a oferta e a oferta também gera a demanda (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp.), se o modo de produção do estabelecimento estiver em sintonia com o modo capitalista de produção, as encomendas aparecerão como solicitações de resolutividade a serem obtidas por meio dos fármacos, das internações, entre outros. Serão pedidos de cura, de soluções rápidas, de suprimentos.

Partindo da hipótese de que os impasses sociais e psíquicos que desencadeiam as rupturas e as crises trazem consigo um questionamento, uma objeção ao instituído familiar e social dominante (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp.), é preciso explicitar que os estabelecimentos institucionais cumprem uma função específica de agenciamento dessas crises, no sentido de minimizá-las com seus paradigmas, eles (re)produzem formas históricas de dominação-subordinação que asseguram as relações de poder exercidas pela classe social dominante sobre a subordinada (Baremblitt, 1992Baremblitt, G. F. (1992). Sociedade e instituições. In G. Baremblitt, Compêndio de análise institucional e outras correntes: teorias e prática (2a ed., p. 25-36). Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.).

Numa instituição há dois movimentos importantes: o instituído e o instituinte. O instituído corresponde às relações sociais hegemônicas e o instituinte é o conjunto de forças capaz de imprimir transformações sociais. Esses movimentos estão compreendidos no processo estratégico de hegemonia (Gramsci, citado por Costa-Rosa, 1987Costa-Rosa, A. (1987). Saúde mental comunitária: análise dialética das práticas alternativas (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.).

O processo estratégico de hegemonia é o mecanismo no qual se busca assegurar a manutenção da formação social vigente, manter em equilíbrio interesses dominantes e subordinados, naturalmente divergentes. Devido à preponderância ideológica e material do polo social dominante, geralmente mantém assegurados seus interesses em detrimento dos interesses do polo subordinado (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp.).

Então, é evidente que o instituído cumpre um papel histórico importante, porque as leis criadas, as normas constituídas ou os hábitos, os padrões, vigoram para regular as atividades sociais. . . . Então, é importante saber que a vida social - entendida como o processo em permanente transformação que deve tender ao aperfeiçoamento e visar a maior felicidade, maior realização, maior saúde e maior criatividade de todos os membros - só é possível quando . . . a relação e a dialética existentes entre o instituinte e o instituído, entre o organizante e o organizado (processo de institucionalização-organização) se mantêm permanentemente permeáveis, fluidas, elásticas. (Baremblitt, 1992Baremblitt, G. F. (1992). Sociedade e instituições. In G. Baremblitt, Compêndio de análise institucional e outras correntes: teorias e prática (2a ed., p. 25-36). Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos., pp. 30-31)

Nenhuma instituição opera sozinha, a interpenetração e o entrelaçamento existem entre todas as organizações, estabelecimentos, agentes, entre outros (Baremblitt, 1992Baremblitt, G. F. (1992). Sociedade e instituições. In G. Baremblitt, Compêndio de análise institucional e outras correntes: teorias e prática (2a ed., p. 25-36). Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.). São incontáveis ferramentas para (re)produzir adaptação, correção e normalização, ou, em outras palavras, para manter o instituído social dominante.

Nesse plano de análise, inferimos que os estabelecimentos da saúde e da assistência são criados para metabolizar e escamotear as tensões oriundas das pulsações instituintes que não alcançaram êxito; eles existem em virtude das encomendas sociais de atenuação do sofrimento, de reinserção do indivíduo na produção, na família e na sociedade.

Os estabelecimentos institucionais da saúde operam como Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) (Althusser, 1983Althusser, L. (1983). Aparelhos ideológicos do Estado. Rio de Janeiro, RJ: Graal.), dado que existem para administrar as misérias humanas e tamponar problemáticas orgânicas, psíquicas e sociais que surgem como (d)efeitos do modo capitalista de produção e do seu corolário, o Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador.

Está claro que o intuito do Estado é reabilitar os que sofrem, reinseri-los socialmente para fazê-los retornar à sociedade, sobretudo como trabalhadores, mão de obra para o capitalismo. O discurso ideológico de reabilitação psicossocial vela as tensões sociais da luta de classes.

sua função de Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) também se realiza através da suavização dos conflitos sociais via medicalização, distribuindo diagnósticos e medicamentos sob um modo específico de relação social e intersubjetiva, o Discurso Médico. . . . corresponde ao deslocamento desses conflitos, originários da produção, para tentar desfazê-los na esfera do consumo. (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp., pp. 138-139)

Para ampliar seus poderes político-econômicos e ao mesmo tempo manter interesses divergentes em homeostase, o modo capitalista de produção atende algumas reivindicações fora da sua ideologia, por exemplo, aquelas feitas pela reforma psiquiátrica brasileira. Mas não podemos ser ingênuos, pois tratam-se de concessões táticas facilmente recuperadas, na medida em que sua existência é apenas para diluir tensões e minar os movimentos instituintes, sem jamais disparar críticas radicalmente contrárias ao PPHM.

Está explicado o porquê na elaboração das políticas públicas, o sofrimento psíquico, a pobreza e a miséria são classificados como causas de “situações de vulnerabilidade e risco pessoal e social” (Brasil, 2005Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. (2005). Norma Operacional Básica NOB/SUAS. Brasília, DF: Secretaria Nacional de Assistência Social., 2009aBrasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. (2009a). Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009. Brasília, DF., 2009bBrasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. (2009b). LOAS anotada. Brasília, DF: Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome.), não como consequências de um sistema econômico selvagem e adoecedor tal qual é o capitalismo. Sob este viés, podemos compreender os motivos pelos quais no modo capitalista de produção é possível e almejado conjugar harmoniosamente saúde e alienação, como se uma não fosse excludente à outra.

Considerações sobre o panorama da reforma psiquiátrica brasileira e da atenção psicossocial

Partindo dos movimentos de reforma psiquiátrica, as práticas em saúde mental foram ampliadas, buscando-se formas de resistência ao princípio cartesiano “doença-cura”, propondo-se a agregação de fatores sociais como constituintes do sofrimento. De acordo com as diretrizes do Ministério da Saúde (Brasil, 2002a, 2002b) as proposições de tratamento advindas da RPB devem ser substitutivas e não complementares ao hospital psiquiátrico.

A atenção psicossocial tem despontado como política pública de atenção em saúde mental. Pela Portaria nº 3.088 (Brasil, 2011Brasil. (2011). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Brasília, DF: Diário Oficial da União, n. 251, de 26 de dezembro de 2013.), foi instituída a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), sua proposição se deu em virtude da necessidade de que o Sistema Único de Saúde (SUS) ofereça uma rede de serviços integrada, articulada e efetiva, no intuito de atender as pessoas em sofrimento psíquico.

A Raps visa garantir o acesso da população à atenção psicossocial, e, especialmente, supõe a construção de espaços de convívio e sustentação das diferenças na comunidade. Para tanto, foram necessárias ampliações na clínica tradicional de modo que temos estabelecimentos de diversos tipos e níveis de atenção à saúde.

A rede conta com Unidades Básica de Saúde (UBS); Centros de Convivência (Ceco); Centros de Atenção Psicossocial (Caps); serviços de urgência e emergência; Unidade de Pronto Atendimento 24 horas (UPA); enfermaria especializada em Hospital Geral; Residências Terapêuticas (RT), entre outros. Os dispositivos psicossociais, devido a seu caráter não hospitalar e recusa do modelo biomédico e sintomatológico (Brasil, 2011Brasil. (2011). Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Brasília, DF: Diário Oficial da União, n. 251, de 26 de dezembro de 2013.) devem zelar para que o agenciamento da demanda na SMC caminhe no sentido contrário à institucionalização asilar (Amarante, 1995Amarante, P. (Org.). (1995). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz.).

Para nossa discussão sobre o panorama da RPB, quanto às práticas dos estabelecimentos psicossociais e ao tipo de subjetividadessaúde neles produzida, tomaremos como analisadores os dados do censo psicossocial no estado de São Paulo realizado em 2008 (Barros & Bichaff, 2008Barros, S. & Bichaff, R. (Orgs.). (2008). Desafios para a desinstitucionalização: censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo. São Paulo, SP: Secretaria da Saúde de São Paulo.) e, posteriormente, em 2014 (Cayres, Ribeiro, Elias & Coutinho, 2015Cayres, A. Z. F., Ribeiro, M. C., Elias, R. & Coutinho, R. A. (Orgs.). (2015). Caminhos para a desinstitucionalização no estado de São Paulo: censo psicossocial 2014. São Paulo, SP: Fundap.), também utilizaremos nossas experiências de trabalho em Centros de Atenção Psicossocial na região oeste do interior paulista.

Como primeira característica da rede de atenção à saúde mental, contrariando os objetivos da Raps, pudemos constatar o elevado número de hospitais psiquiátricos e a grande procura/oferta para o tratamento em regime de internação. Além do hospital regional, que dispunha de leitos e pronto-socorro psiquiátricos, na região havia mais quatro hospitais psiquiátricos em pleno funcionamento.

Na ocasião do primeiro censo, os dados indicaram que o oeste do interior paulista concentrava cerca de 7% dos hospitais psiquiátricos de todo o estado de São Paulo, onde apenas a população de moradores dos hospitais somava 253 pessoas (Barros & Bichaff, 2008Barros, S. & Bichaff, R. (Orgs.). (2008). Desafios para a desinstitucionalização: censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo. São Paulo, SP: Secretaria da Saúde de São Paulo.). Em 2014 estimou-se que esse conjunto era de aproximadamente 202 pessoas (Cayres et al., 2015Cayres, A. Z. F., Ribeiro, M. C., Elias, R. & Coutinho, R. A. (Orgs.). (2015). Caminhos para a desinstitucionalização no estado de São Paulo: censo psicossocial 2014. São Paulo, SP: Fundap.). Dessa redução ínfima, pressupomos a ineficácia das estratégias de (des)hospitalização e desinstitucionalização, uma vez que a redução na quantidade de moradores se deu principalmente em virtude de óbitos.

Chamou-nos atenção o fato de que atividade e número dos hospitais psiquiátricos, em vez de ter diminuído, seguindo os caminhos da RPB, aumentou, com a inauguração, em 2010, do polo de atenção intensiva em saúde mental. Esse é o único serviço desse tipo (ambulatório para internação) no interior paulista e o terceiro do estado; sua implantação se deu mediante a justificativa nada plausível de que não havia leitos suficientes nos hospitais psiquiátricos.

O censo psicossocial do estado de São Paulo 2014 na região foi coordenado por um dos autores deste artigo, em que pôde-se constatar que mesmo as primazias da RPB têm se mostrado praticamente inalcançáveis. No decorrer dos seis anos entre um censo e outro, nenhum morador dos hospitais psiquiátricos recebeu alta por melhoras, ademais outros sujeitos que chegaram para uma internação breve se tornaram moradores das instituições.

Acentuamos que, não raramente, os Caps eram mentores dos encaminhamentos para internação, inclusive, as equipes dos hospitais queixavam-se de que os centros solicitavam vagas, mas não acompanhavam os sujeitos durante a internação, sendo assim, as altas eram inviáveis porque não havia propostas de tratamento na comunidade, nem ao menos havia quem fosse buscar os sujeitos no hospital. Dessa maneira, dado o longo período de permanência no local, tornavam-se moradores, sem perspectivas de (re)inserção social.

Shimoguiri e Périco (2014Shimoguiri, A. F. D. T. & Périco, W. (2014). O centro de atenção psicossocial como dispositivo social de produção de subjetividade. Revista de Psicologia da Unesp, 13(1), 33-51. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-90442014000100004.
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) apresentaram uma estatística importante sobre o número de internações direcionadas por um Caps dessa região. No ano de 2011 foram realizadas 86 internações em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas religiosas. Essa estatística corrobora com a conclusão de que o modo de produção de subjetividadessaúde é fortemente marcado pelo uso das tecnologias de disciplina (Foucault, 1972/1997Foucault, M. (1997). História da loucura na Idade Clássica. São Paulo, SP: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1972).) e de controle (Deleuze, 1990/1992Deleuze, G. (1992). Conversações. São Paulo: Editora 34. (Trabalho original publicado em 1990).).

Como características do PPHM, temos vigilância, tratamento moral, punição, custódia e interdição. O sujeito é visto como doente e centro do problema; há pouca ou nenhuma consideração de sua existência enquanto subjetividade desejante, impasses psíquicos e até mesmo sociais são considerados “doenças” para as quais deve ser buscada cura dentro da lógica biomédica sintomatológica e higienista.

Sobre isso, cabe destacar que a permanência da maior parte dos moradores nos hospitais psiquiátricos não necessariamente se justificava por situações de crises decorrentes do sofrimento psíquico intenso. Ao contrário, sob esse viés de análise, todos eram elegíveis às formas de tratamento na comunidade, no máximo, seria preciso a construção de algumas residências terapêuticas para atender às demandas mais complexas.

As condições sociais e familiares ainda eram determinantes cruciais para mantê-los em asilo. Aproximando-se do ápice da contradição, se pensarmos sobre as diferenças fundamentais entre saúde mental e física, a internação e sua longa duração são justificadas pela dependência dos sujeitos em suas atividades de vida diária e necessidades especiais decorrentes de patologias estritamente orgânicas e/ou neurológicas, por exemplo, Síndrome de Down, deficiência física, deficiência visual, entre outras.

Muitas vezes presenciamos internações induzidas pelo ímpeto da higienização social, principalmente quando se tratava de pessoas em situação de rua fazendo uso de crack e outras drogas. A solução um tanto maniqueísta era sua exclusão do espaço público, sem levar em conta suas vontades, as causas das desigualdades e as mazelas econômico-sociais intimamente associadas aos seus modos de subjetivação, ou, pelo menos, às conquistas da RPB e seus esforços em prol da desinstitucionalização.

Comumente, internações de pessoas em uso de álcool e outras drogas trazem implícito o pensamento de que se trata de uma população predisposta à criminalidade. Então, demandas da assistência social e da saúde são conduzidas como casos de segurança pública, sendo que dessa visão policialesca e excludente disseminam-se políticas que induzem às ações repressivas e às violações dos direitos humanos.

Essas ações, se não analisadas detalhadamente, podem ser tidas como práticas eficazes, já que prometem medidas resolutivas. Exemplo claro disso são as parcerias público-privadas entre Governo Federal e comunidades terapêuticas religiosas; anunciado como boa ação, o programa “Crack é Possível Vencer”, que regulamenta o financiamento público de internações para usuários de drogas, além de ser uma ameaça aos ideais da reforma psiquiátrica brasileira e da atenção psicossocial no que se refere à superação das práticas de isolamento, traz consigo a lógica da privatização e terceirização da saúde, eximindo o Estado de suas obrigações sociais.

Neste sentido, propostas de tratamento, veladamente, seguem os moldes da Idade Média mantendo seu caráter de limpeza social. Lembrando que nos antigos hospitais gerais era “reclusa toda a sorte de marginalizados, pervertidos, miseráveis, delinquentes e, dentre eles, os loucos” (Amarante, 1996Amarante, P. (1996). O paradigma psiquiátrico. In P. Amarante, O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria (pp. 39-63). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz., p. 40). Prevalece a ética da tutela como norteadora das relações humanas e possíveis experiências de tratamento. As internações que acompanhamos tiveram como justificativa a vulnerabilidade social em que os sujeitos se encontravam, logo, busca-se amenizar as questões históricas das desigualdades sociais por meio de tratamentos médicos e psiquiátricos.

A Senad (1999Secretaria Nacional Anti-Drogas. (1999). Aspectos Básicos do Tratamento da Síndrome de Dependência de Substâncias Psicoativas e Prevenção ao Uso Indevido de Drogas - Diga Sim à Vida. Brasília: SENAD.) elaborou um documento sobre o tratamento da toxicomania, cujo objetivo é a suposta cura da doença, isto é, a cessação do consumo de drogas. O início do tratamento prioriza a promoção da abstinência, então a “internação pode ser aceita como a definição concreta da promoção de abstinência, por afastar o indivíduo de seu habitat, que inclui os ambientes de consumo e a própria droga” (p. 4). O texto ainda defende que “A internação é indicada por se constituir em refúgio mais seguro para pacientes menos capazes de resistir por conta própria às fissuras pelo consumo de drogas” (Senad, 1999Secretaria Nacional Anti-Drogas. (1999). Aspectos Básicos do Tratamento da Síndrome de Dependência de Substâncias Psicoativas e Prevenção ao Uso Indevido de Drogas - Diga Sim à Vida. Brasília: SENAD., p. 5).

Por exemplo, foi feita a internação compulsória de um adolescente de treze anos em uso de maconha, não tanto pelo uso da droga em si, mas partindo-se da convicção de que aquele adolescente não tardaria em cometer atos infracionais. O que mais destoa nesse caso é que esse jovem se encontrava em situação de rua, evadido da escola e sem qualquer direito básico assegurado, contudo, o que se apresentava como prioridade de intervenção era o uso da droga, como se este em nada se referisse ao contexto sociofamiliar.

Algumas conclusões

Apesar de todas as lutas na esfera político-ideológica e também das inovações teórico-técnicas para superar o PPHM (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp.), no contexto do MCP, ele é ainda o paradigma hegemônico, inclusive nos estabelecimentos psicossociais (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp.; Shimoguiri & Périco, 2014Shimoguiri, A. F. D. T. & Périco, W. (2014). O centro de atenção psicossocial como dispositivo social de produção de subjetividade. Revista de Psicologia da Unesp, 13(1), 33-51. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-90442014000100004.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
; Périco, 2014Périco, W. (2014). Contribuições da psicanálise de Freud e Lacan a uma Psicotherapia outra: a clínica do sujeito na saúde coletiva (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, Assis, SP. Recuperado de https://repositorio.unesp.br/handle/11449/110673.
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).

A internação e a medicalização do sofrimento psíquico ainda são bastante aceitas e solicitadas, até nos estabelecimentos institucionais da Raps. Além dos manicômios arquitetônicos, temos na atualidade a figura do manicômio químico como expressão maior dos avanços da indústria químico-farmacêutica e da medicalização e psicopatologização da vida.

Se os estabelecimentos psicossociais trabalham a serviço da adaptação social, destacamos que é preciso uma análise crítica sobre os modos de produção social da saúde e sobre os efeitos do MCP nos processos de subjetivação. Outrossim, é preciso pensar uma clínica crítica na SMC, que esteja avisada sobre seus efeitos ético-políticos.

Luz (1979Luz, M. T. (1979). As instituições médicas no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Graal.) define os estabelecimentos institucionais como “palco de luta social”. Nesta direção, Costa-Rosa (1987Costa-Rosa, A. (1987). Saúde mental comunitária: análise dialética das práticas alternativas (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.) destaca o papel que eles exercem como peças fundamentais do PEH, pois no âmbito de suas práticas, podem tanto garantir a (re)produção das relações sociais dominantes, quanto produzir novas relações intersubjetivas, e assim imprimir um movimento diferente ao PEH, uma transição paradigmática, a favor do polo subordinado.

Ademais, se o capitalismo “produz miséria e para existir precisa dela, pois em sua lógica de funcionamento é imprescindível a existência da pobreza” (Coimbra, 2001Coimbra, C. (2001). Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro, RJ: Oficina do autor., p. 80), consideramos que os estabelecimentos psicossociais são loci privilegiado de atuação, pois neles temos a dimensão que mais nos interessa, as instituições pensadas enquanto dispositivos, “como ato de instituir, ação imediata, verbo, aquilo que é sempre vivo . . . é na dimensão da instituição como verbo que se pode tanto reproduzi-la como lógica estabelecida quanto introduzir transformações nessa lógica” (Costa-Rosa, 2013Costa-Rosa, A. (2013). Atenção psicossocial além da reforma psiquiátrica: contribuição a uma clínica crítica dos processos de subjetivação na saúde coletiva. São Paulo, SP: Unesp., p. 59).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2016
  • Revisado
    15 Dez 2016
  • Aceito
    02 Fev 2017
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