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Os Vieses Cognitivos e suas Implicações para Educação Financeira: o caso do “efeito Brumadinho” na construção de gráficos

Cognitive biases and their implications for financial education: the “Brumadinho effect” case in graphs construction

Resumo

Este trabalho discute os vieses cognitivos identificados a partir da análise de 21 registros gráficos e textuais produzidos individualmente por 47 estudantes universitários durante uma aula de Economia. Os registros resultaram de uma atividade na qual os estudantes deveriam completar gráficos cartesianos nos quais parte da trajetória do preço das ações de algumas empresas eram apresentados, parte estava encoberta (oculta). Os estudantes deveriam desenhar a trajetória que o preço da ação teria assumido em um período passado, sendo, portanto, uma atividade de “projeção retrospectiva”. Mais de 80% dos 21 registros gráficos e textuais analisados foram pautados por distorções cronológicas que exemplificam os desafios cognitivos envolvidos no ensino e na aprendizagem de temas financeiros. O fenômeno abordado consistiu numa síntese de vieses cognitivos que comprometeram a percepção da cronologia de eventos que fazem parte do conhecimento prévio dos estudantes, sendo um exemplo dos desafios a serem considerados nas iniciativas de promoção de Educação Financeira no âmbito da Educação Matemática.

Palavras-chave:
Educação Financeira; Psicologia da Educação Matemática; Viés Cognitivo

Abstract

This paper discusses the cognitive biases identified from the analysis of 21 graphic and textual records produced individually by 47 university students during an Economics class. The records were the result of an activity in which students were required to complete Cartesian charts in which part of the stock price trajectory of some companies was present, and part was hidden. Students should draw the trajectory that the stock price would have taken in a past period. In this sense, it was a “retrospective projection” activity. More than 80% of the 21 graphical and textual records included chronological distortions that exemplified the cognitive challenges involved in teaching and learning financial topics. The identified phenomenon consisted of a synthesis of cognitive biases that jeopardized the perception of event chronology that are part of the students' prior knowledge, being an example of the challenges to be considered in the initiatives for the promotion of Financial Education in Mathematical Education.

Keywords:
Financial Education; Psychology of Mathematical Education; Cognitive Bias

1 Introdução

A preocupação com processos cognitivos subjacentes à aprendizagem de Matemática tem inspirado inúmeros trabalhos acadêmicos dedicados à promoção da melhoria do ensino da Matemática escolar. Explorando a solução de problemas, interpretando a psicogênese de conceitos específicos, identificado desafios na aprendizagem de conceitos quantitativos e analisando as atitudes em relação à Matemática, a Psicologia da Educação Matemática se consolidou como rico e profícuo campo de investigação (OBERSTEINER; REISS; HEINZE, 2018OBERSTEINER, A.; REISS, K.; HEINZE, A. Psychological Theories in Mathematics Education. Journal für Mathematik-Didaktik, Switzerland, v. 39, n. 1, p. 1-6, 2018.; BRITO, 2011BRITO, M. R. F. Psicologia da educação matemática: um ponto de vista. Educar em Revista, Curitiba, número Especial 1, p. 29-45, 2011.; MORO, 2002MORO, M. L. F. Psicologia da educação matemática: por quê? Para quê? In: ENCONTRO PARANAENSE DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 12, 2002, Campo Mourão. Anais do XII EPREM, 2002, Campo Mourão, 2002, s. n.; BRITO, 2001BRITO, M. R. F. Contribuições da psicologia educacional à educação matemática. In: BRITO, M. R. F. (org.). Psicologia da educação matemática: teoria e pesquisa. Florianópolis: Editora Insular, 2001. p. 49- 84.; MEIRA; IGLIORI, 2013MEIRA, G. D.; IGLIORY, S. B. C. Psicologia e educação matemática: uma relação dialógica, necessária e contínua. In: CONGRESSO IBEROAMERICANO DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 7, 2013, Montevideo. Anais do VII CIBEM, 2013. Montevideo: 2013, p. 7765-7772.; FALCÃO, 2008FALCÃO, J. Psicologia da educação matemática: uma introdução. Belo Horizonte: Autêntica: 2008.).

A proficuidade da Psicologia da Educação Matemática tem gerado contribuições que se estendem à compreensão de processos cognitivos de conceitos econômicos e financeiros, temas que recentemente passaram a figurar na Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Educação – MEC. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 12 jun. 2019.
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). A título de exemplo, pode-se mencionar a análise da psicogênese de conceitos como dinheiro, preço e valor econômico no âmbito das discussões tecidas na Educação Matemática (HOFMANN, 2008HOFMANN, R. M. Psicogênese da noção de valor econômico na educação matemática. 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008.).

Compreender processos cognitivos subjacentes à construção de conceitos econômicos pode ser uma tarefa particularmente relevante considerando que, dentre as implicações da BNCC, tem-se que noções econômicas e financeiras passem a ser abordadas na Educação Básica. A BNCC menciona temas como inflação, aplicações financeiras, rentabilidade e liquidez de investimentos, temas que podem se revelar complexos, mesmo para estudantes universitários. Note-se que são conceitos recorrentemente abordados em cursos de graduação – de Contabilidade à Engenharia – e que devem agora ser objeto de ensino para crianças e adolescentes no ambiente escolar.

A complexidade inerente à compreensão de noções financeiras do cotidiano econômico pode ter reflexos nos resultados pedagógicos de iniciativas de promoção da Educação Financeira no Ensino Fundamental e Médio. As interfaces didáticas entre a Educação Financeira e a Educação Matemática, nesse sentido, apresentam-se como desafios e oportunidades para o estreitamento de relações entre a aprendizagem escolar e a aprendizagem extraescolar (HOFMANN; MORO, 2009HOFMANN, R.; MORO, M. L. F. Pensamento Matemático e psicogênese de conceitos econômicos: interfaces e implicações para a educação matemática. Bolema, Rio Claro, v. 22, n. 32, p. 189-210, 2009.; 2013HOFMANN, R. M.; MORO, M. L. F. Educação matemática e Educação Financeira: perspectivas para a ENEF. Zetetiké, Campinas, v. 20, n. 2, p. 37-54, 2013.). Com as recomendações da BNCC, não apenas conceitos aparentemente triviais do cotidiano econômico serão contemplados na Educação Básica, mas conceitos financeiros relativamente complexos que são objeto do Ensino Superior. Nesse contexto, tem-se um desafio no sentido de que não se trata de replicar, conceitual e pedagogicamente, temas do Ensino Superior na Educação Básica.

A inserção de conceitos econômicos e financeiros em aulas de Matemática requer que sua complexidade conceitual, epistemológica e cognitiva seja considerada durante as práticas pedagógicas implementadas na escola. No Ensino Superior, a Educação Econômica e Financeira contempla, dentre outros elementos, a apresentação do instrumental algébrico e gráfico de análise de investimentos. É nesse contexto que o presente trabalho se insere. Tendo em vista que o instrumental de análise econômico-financeira inclui recorrentemente a construção de gráficos, convém que se compreendam os desafios subjacentes às tarefas de construção de representações gráficas vinculadas ao universo econômico-financeiro. A compreensão de tais desafios pode auxiliar no processo de adequação pedagógica dos temas econômicos e financeiros a serem lecionados na Educação Básica, tal como prevê a BNCC.

Este trabalho tem por objetivo apresentar alguns dos desafios – expressos como vieses cognitivos – que permeiam a construção de gráficos financeiros no Ensino Superior. Os resultados aqui descritos decorrem de uma atividade realizada durante uma aula de Economia para Engenharia. Os alunos foram instigados a realizar “projeções retrospectivas” do preço de ações de diferentes empresas (qual seria a trajetória que o preço teria assumido). Além dos registros gráficos, os alunos deveriam justificar as projeções realizadas. A análise dos registros gráficos produzidos pelos estudantes se alinha às discussões sobre a natureza dos “erros” cometidos durante o processo de construção de conceitos econômicos e financeiros.

O artigo está estruturado em quatro seções, além desta introdução. A seção 2 apresenta a revisão de literatura, pautada exclusivamente por vieses cognitivos analisados em diferentes áreas do conhecimento. A seção 3 descreve os procedimentos metodológicos adotados. À seção 4 cabe a apresentação e a discussão dos resultados, ao que se seguem as considerações finais do trabalho.

2 Os vieses cognitivos

A complexidade inerente ao comportamento humano se faz acompanhar de peculiaridades analisadas e interpretadas em profundidade pela literatura científica. Parte dessa complexidade se expressa nos vieses cognitivos. Vieses cognitivos são “equívocos” cometidos em decisões, julgamentos e avaliações individuais. Eles podem assumir várias formas, sendo a Psicologia e as Finanças Comportamentais áreas que têm lhes dedicado atenção especial (TVERSKY; KAHNEMAN, 1974TVERSKY, A.; KAHNEMAN, D. Judgment under uncertainty: heuristics and biases. Science, Nova Iorque, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, 1974.; THALER, 2000THALER, R. From homo economicus to homo sapiens. Journal of Economic Perspectives, Nashville, v. 14, n. 1, p. 133-141, 2000.). Esta seção se dedica àapresentação de alguns “erros” sistemáticos – ou comportamentos desviantes – abordados na literatura acadêmica em geral como vieses cognitivos, incluindo os que contemplam a dimensão econômica.

Dentre os vieses cognitivos que mais receberam atenção das análises sobre o comportamento econômico talvez o viés de negatividade (ou efeito negatividade) seja um dos que mais tenha se difundido com o desenvolvimento da Psicologia Econômica e das Finanças Comportamentais. Estudos sobre aversão ao risco (TVERSKY; KAHNEMAN, 1974TVERSKY, A.; KAHNEMAN, D. Judgment under uncertainty: heuristics and biases. Science, Nova Iorque, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, 1974.) exemplificam numa dimensão financeira o viés de negatividade, sendo este caracterizado pelo fato de que eventos negativos tendem a resultar em alterações maiores do que efeitos positivos ou neutros têm nos estados psicológicos do indivíduo, ainda que a intensidade dos eventos seja a mesma (KANOUSE; HANSON, 1972KANOUSE, D. E.; HANSON, L. Negativity in evaluations. In: JONES, E. E.; KANOUSE, D. E. et al. (ed.). Attribution: perceiving the causes of behavior. Morristown: General Learning Press, 1972. p. 617-618.). Em contextos financeiros, perdas são sentidas com mais intensidade do que ganhos quantitativamente idênticos ou, em outros termos, o sofrimento causado pela perda monetária não é igual em intensidade à alegria proporcionada por um ganho financeiramente idêntico.

Ainda que a aversão ao risco, expressão do viés de negatividade, seja um dos vieses mais abordados no âmbito da análise do comportamento econômico, outros vieses cognitivos são contemplados na literatura, incluindo vieses que afetam previsões realizadas por indivíduos. Dolan e Metcalfe (2010)DOLAN, P.; METCALFE, R. 'Oops…I did it again': repeated focusing effects in reports of happiness. Journal of Economic Psychology, Washington, v. 31, n. 4, p. 732-737, aug. 2010., por exemplo, utilizam a expressão “previsão defeituosa” (defective forecasting) para analisar a previsão do impacto de determinados eventos sobe a felicidade das pessoas. Para tanto, aplicaram o conceito de “efeito foco” (focusing effect) relacionado à previsão afetiva.

De uma perspectiva pessoal, quando se pensa sobre quanto um evento pode afetar um indivíduo, há uma tendência de que o próprio indivíduo superestime o efeito que o evento teria (supõe-se que o evento seja mais importante para a vida do indivíduo do que efetivamente vem a ser). Trata-se de um tipo de viés cognitivo que mantém correspondência com outro, a negligência de duração (duration neglect), viés que se expressa numa distorção da avaliação da duração de eventos vivenciados (FREDRICKSON; KAHNEMAN, 1993FREDRICKSON, B. L.; KAHNEMAN, D. Duration neglect in retrospective evaluations of affective episodes. Journal of Personality and Social Psychology, Washington, v. 65, n. 1, p. 45-55, 1993.; SCHKADE; KAHNEMAN, 1998SCHKADE, D. A.; KAHNEMAN, D. Does living in California make people happy? A Focusing illusion in judgments of life satisfaction. Psychological Science, Washington, v. 9, n. 5, p. 340-346, Sep. 1998.; WILSON et al., 2000WILSON, T. D. et al. Focalism: a source of durability bias in affective forecasting. Journal of Personality and Social Psychology Washington, v. 78, n. 5, may. 2000.). As previsões defeituosas podem exercer influência significativa no comportamento humano (DOLAN; METCALFE, 2010DOLAN, P.; METCALFE, R. 'Oops…I did it again': repeated focusing effects in reports of happiness. Journal of Economic Psychology, Washington, v. 31, n. 4, p. 732-737, aug. 2010.).

Mudanças sistemáticas na organização da memória estão associadas à literatura que descreve dois vieses psicológicos específicos: o nivelamento (leveling) e o afilamento (sharpening). O nivelamento consiste na omissão de inconsistências, em condensação de elementos e simplificações gerais que ocorrem quando histórias são lembradas. O afilamento, por sua vez, consiste na tendência de que um detalhe da estrutura organizacional de uma história domine a organização da memória (HOLZMAN; GARDNER, 1960HOLZMAN, P. S.; GARDNER, R. W. Leveling-sharpening and memory organization. The Journal of Abnormal and Social Psychology, Washington, v. 61, n. 2, p. 176-180, 1960.).

O efeito ancoragem (anchoring effect) refere-se à influência desproporcional que valores inicias apresentados têm sobre os tomadores de decisão no processo de fazer julgamentos. Os tomadores de decisão ficam viesados pelo valor inicialmente apresentado (TVERSKY; KAHNEMAN, 1974TVERSKY, A.; KAHNEMAN, D. Judgment under uncertainty: heuristics and biases. Science, Nova Iorque, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, 1974.). Valores âncora funcionam como ponto de referência para que as pessoas ajustem os limites do intervalo de valores plausíveis para determinada questão, presumindo que a âncora dada é mais extrema do que o valor limite para o intervalo de respostas plausíveis (STRACK; MUSSWIELER, 1997STRACK, F.; MUSSWEILER, T. 1997. Explaining the enigmatic anchoring effect: mechanisms of selective accessibility. Journal of Personality and Social Psychology, Washington, v. 73, n. 3, p. 437-446, 1997.).

A cascata de disponibilidade (availability cascade) é um processo de auto-reforço da formação de crenças coletivas por meio do qual uma percepção expressada leva a uma reação em cadeia que dá à percepção uma plausibilidade crescente devido a sua crescente disponibilidade no discurso público (KURAN; SUNSTEIN, 1999KURAN, T.; SUNSTEIN, C. Availability cascades and risk regulation. Stanford Law Review, Stanford, v. 51, p. 68-768, 1999.). As cascatas de disponibilidade decorrem da prevalência de informações que são de fácil identificação e de fácil utilização, uma vez que tais informações se tornam amplamente disponíveis e, consequentemente, são reforçadas e (ou presume-se que sejam) verificadas (KURAN; SUNSTEIN, 1999KURAN, T.; SUNSTEIN, C. Availability cascades and risk regulation. Stanford Law Review, Stanford, v. 51, p. 68-768, 1999.).

No mercado financeiro, a cobertura concedida cumulativamente pela mídia às empresas pode ser considerada um indicador da atenção que a mídia dedica à empresa. Para empresas sobre as quais as informações se tornam amplamente disponíveis, informações recentes têm um grande impacto na tomada de decisão dos investidores devido ao fato de que tais empresas são monitoradas mais ativamente (POLLOCK; RINDOVA; MAGITTI, 2008POLLOCK, T. G.; RINDOVA, V. P.; MAGGITTI, P. G. Market watch: information and availability cascades among the media and investors in the U.S. IPO market. Academy of Management Journal, Briarcliff Manor, v. 51, n. 2, p. 335–358, 2008.). O efeito cascata de disponibilidade pode potencializar outro viés cognitivo, o viés de confirmação, sendo este definido como uma tendência a buscar ou reunir evidências que deem suporte a hipóteses, expectativas ou crenças preexistentes (NICKERSON, 1998NICKERSON, R. S. Confirmation bias: a ubiquitous phenomenon in many guises. Review of General Psychology, Washington, v. 2, n. 2, p. 175-220, 1998.).

O efeito telescópio (telescoping effect) é a tendência para atribuir uma data mais recente a um evento efetivamente mais antigo. Metodologicamente deve-se considerar que utilizar eventos públicos para mensurar o efeito telescópio traz como desvantagem a “despersonalização” da percepção, ou, em outros termos, o fato de eventos públicos em geral serem “não pessoais” (eventos pessoais afetam o indivíduo de forma distinta). À medida que o quadro de referência temporal de um indivíduo se torna mais elaborado, esse indivíduo geralmente passa a ter mais pontos de referência temporais aos quais muitos eventos podem ser relacionados, o que pode reduzir o efeito telescópio. (THOMPSON; SKOWRONSKI; LEE, 1988THOMPSON, C. P.; SKOWRONSKI, J. J.; LEE, D. J. Telescoping in dating naturally occurring events. Memory de Cognition, Switzerland, v. 16, n. 5, p. 461-468, 1988.).

O efeito default consiste na tendência de se escolher alternativas pré-selecionadas (default) quando elas aparecem dentre outras alternativas não selecionadas (DINNER et al., 2011DINNER, I. et al. Partitioning default effects: why people choose not to choose. Journal of Experimental Psychology, Washington, v. 17, n. 4, p. 332-341, 2011.). A preferência pela opção default é explicada por três fatores: o esforço cognitivo subjacente ao processo de escolha; o endosso (as pessoas pressupõem que a alternativa já está pré-selecionada por ter mérito próprio, por exemplo); e o ponto de referência proporcionado pela opção pré-selecionada (as outras opções são percebidas como melhores ou piores do que a alternativa default) (JOHNSON; GOLDSTEIN, 2003JOHNSON, E. J.; GOLDSTEIN, D. G. Do defaults save lives? Science, Nova Iorque, v. 302, p. 1338–1339, nov. 2003.; MCKENZIE; LIERSCH; FINKELSTEIN, 2006MCKENZIE, C. R. M.; LIERSCH, M. J., FINKELSTEIN, S. R. Recommendations implicit in policy defaults. Psychological Science, Washington, v. 17, n. 5, p. 414-420, 2006.).

Juntamente com os vieses anteriormente expostos, o efeito default pode exercer influência inclusive em decisões ou atividades que envolvem atividades de predição. Os vieses cognitivos aqui elencados são utilizados para interpretar registros gráficos e textuais obtidos conforme descrito na seção seguinte.

3 Procedimentos metodológicos

O material que é objeto de análise do presente artigo resulta da realização de uma atividade da disciplina de Economia para a Graduação. O objetivo da atividade consistia, incialmente, na identificação de conhecimentos econômico-financeiros prévios de estudantes de Engenharia. As respostas dos 47 estudantes participantes auxiliariam no direcionamento da disciplina ao longo do semestre, incluindo a seleção de material de apoio e a realização de outras atividades em sala. Os registros analisados foram produzidos por estudantes no início do primeiro semestre de 2019. Cada estudante presente em sala recebeu material impresso com as seguintes instruções:

Considerando que:

  • Empresas de capital aberto são empresas que têm ações comercializadas em bolsa de valores.

  • Os gráficos a seguir apresentam a evolução dos preços de empresas que têm ações na bolsa de valores.

  • O nome da empresa e o código da ação constam no canto superior esquerdo do gráfico.

  • A linha com a área sombreada abaixo representa o preço da ação.

  • Abaixo da linha estão indicadas as datas às quais os preços se referem.

  • A escala com os preços (em reais R$) está indicada verticalmente àesquerda do gráfico.

  • A área em branco destina-se à atividade proposta.

Proposta:

  • Na área em branco no gráfico, complete (desenhe) a trajetória dos preços de acordo com o que você imagina que tenha ocorrido com a ação da empresa.

  • Abaixo do gráfico, explique os motivos pelos quais você desenhou a trajetória que você acredita que o preço da ação tenha assumido.

  • A atividade tem duração prevista de 7 minutos.

  • Utilize caneta para completar a trajetória de preços.

  • Desenhe a trajetória até o final do gráfico (até a linha vertical pontilhada àdireita do gráfico).

O arquivo impresso apresentava, então, gráficos da evolução do preço de ações de diferentes empresas de capital aberto, cada gráfico ocultando parte da trajetória dos preços. A parte encoberta destinava-se às projeções dos alunos. As projeções discutidas neste artigo foram realizadas para o gráfico que consta na Figura 1, referente à mineradora Vale S.A. (código de ação VALE3).

Figura 1
Gráfico utilizado na atividade de projeção do preço das ações da empresa Vale S.A.

O gráfico parcialmente encoberto contemplava o período de maio de 2017 a maio de 2018, ou seja, o gráfico se encerrava no primeiro semestre do ano anterior à realização da atividade (que ocorreu no início do primeiro semestre de 2019, mais precisamente em 18 de fevereiro). Convém destacar que o material impresso que os estudantes receberam para realizar a atividade contava com nitidez que permitia identificar as datas indicadas nos gráficos.

4 Resultados e discussão

Os registros produzidos pelos estudantes não tiveram impacto na avaliação da disciplina, tendo caráter essencialmente exploratório e visando à identificação de conhecimentos prévios de economia e finanças. Mapear conhecimentos prévios, nesse contexto, implica em identificar termos, palavras ou expressões que fizessem alusão a variáveis micro e macroeconômicas, a exemplo de custos de produção, oferta, demanda, taxa de câmbio ou exportações. Tais variáveis econômicas poderiam ser mencionadas para justificar aumentos ou reduções no preço das ações de empresas. Cabe antecipar que termos correlatos foram utilizados em gráficos não analisados no presente trabalho. Esse esclarecimento se faz necessário para contextualizar a interpretação dos registros textuais apresentados pelos estudantes.

Os registros gráficos e textuais produzidos pelos estudantes para o caso da empresa Vale S.A. revelaram-se particularmente surpreendentes pela presença de certos tipos de equívoco que foram cometidos, em especial um equívoco de caráter cronológico. A título de contexto, o gráfico representado pela Figura 2 contempla um período estendido com a evolução do preço das ações da empresa antes e depois do intervalo utilizado para a atividade. Note-se que o colapso da barragem de Brumadinho ocorreu em janeiro de 2019, mês anterior à realização da atividade.

Figura 2
Gráfico original compreendendo período ampliado

Nota: O gráfico utilizado na atividade contemplava o intervalo assinalado de 1 a 3, sendo o segmento de 2 a 3 encoberto para a proposta. A data de colapso da barragem em Brumadinho é assinala pela seta 4 (janeiro de 2019).


Do total de 47 estudantes que participaram da atividade, 10 citaram nominalmente o município mineiro de Brumadinho em seus registros textuais, e um citou o município de Mariana numa aparente confusão com Brumadinho (o termo aparente se justifica pelo registro gráfico realizado: o estudante projetou uma queda no preço das ações da Vale S.A. para o mês de janeiro representado no gráfico). Esse registro está sendo analisado como se tivesse se referido efetivamente ao evento em Brumadinho. Outros 10 estudantes fizeram alusão indireta ao evento, utilizando termos como acidente, barragem ou tragédia, por exemplo. Somando-se as referências diretas e indiretas tem-se que os acontecimentos entre a Vale e a cidade de Brumadinho foram citados por 21 estudantes. São os registros produzidos por esses 21 estudantes que recebem atenção neste trabalho.

Dentre os 21 estudantes que fizeram referências diretas ou indiretas ao colapso da barragem em Brumadinho, mais de 80% produziram registros gráficos e textuais que denotaram confusão em relação à cronologia dos eventos, um equívoco expresso na negligência de leitura dos rótulos do eixo das abscissas (o período a que o gráfico se referia). Tendo em vista que os preços das ações da Vale S.A. deveriam ser projetados até maio de 2018, projetar eventuais efeitos negativos sobre o preço das ações da empresa em razão do colapso da barragem em Brumadinho denotaria um quadro de referência temporal equivocado (THOMPSON; SKOWRONSKI; LEE, 1988THOMPSON, C. P.; SKOWRONSKI, J. J.; LEE, D. J. Telescoping in dating naturally occurring events. Memory de Cognition, Switzerland, v. 16, n. 5, p. 461-468, 1988.), fato verificado neste estudo.

Apenas 4 estudantes dentre os 21 atentaram para o período, sendo que um deles só se deu conta das datas depois de ter realizado o registro gráfico. A relação entre estudantes que se equivocaram e que não se equivocaram em relação à cronologia dos eventos é apresentada na Tabela 1. Considerando-se o total de alunos que participaram da atividade, 36% dos estudantes confundiram a cronologia dos eventos. Inclui-se, nesse percentual, um estudante que afirmou não recordar do evento em Mariana (“Ñ [Não] lembro quando ocorreu a tragédia em Mariana, mas agora está baixa, por conta de Brumadinho” (inserir fonte. Ex: Registros da atividade, ano), Quadro 3).

Tabela 1
Relação entre estudantes que se equivocaram e que não se equivocaram em relação à cronologia dos eventos

O Quadro 1 apresenta os registros de estudantes que atentaram para os rótulos das abscissas e para a cronologia dos eventos, tendo um deles percebido depois de realizar a projeção gráfica (gráfico 4 do Quadro 1). Cabe destacar que os outros 3 estudantes que acertaram a cronologia dos eventos projetaram tendência de alta para o preço das ações da Vale S.A. (gráficos 1, 2 e 3 do Quadro 1), enquanto o estudante que percebeu depois de realizar o registro gráfico projetou tendência de baixa¸ com uma aparente retificação no registro gráfico (um segmento da projeção denota queda mais acentuada, sendo sobreposto por uma tendência de queda mais atenuada, conforme consta no gráfico 4 do Quadro 1).

Quadro 1
Gráficos elaborados por alunos que atentaram para a cronologia tendo lido corretamente as datas no eixo das abscissas

O Quadro 2 contém registros dos estudantes que fizeram referência indireta ao evento. O gráfico 4 do Quadro 1 foi excluído desse agrupamento pelo fato de denotar ciência em relação ao período, ainda que não tenha sido feita referência direta a Brumadinho. Apenas um estudante que fez referência direta ao evento (gráfico 1 do Quadro 2) registrou textualmente uma tendência de aumento para o preço da ação. Note-se que o gráfico 3 do mesmo quadro representa, graficamente, queda seguida de aumento. Esse registro foi computado como representando apenas uma tendência de baixa diante do que consta no registro textual do aluno. Assim, excetuando-se o gráfico 1 do Quadro 2, todos os estudantes que fizeram referência indireta ao colapso da barragem em Brumadinho projetaram queda de preços ou uma manutenção em patamares aparentemente considerados baixos.

Quadro 2
Exemplos de gráficos elaborados por alunos que não atentaram para a cronologia e fizeram alusão indireta ao colapso da barragem (supostamente1 1 O termo supostamente se deve ao fato de que em 2015 ocorreu o colapso de outra barragem, em Mariana – MG. Os registros nos quais Mariana constava textualmente como justificativa para o comportamento dos preços das ações da Vale S. A. foram analisados em outro artigo. A rigor, deve-se considerar, nesse sentido, que os estudantes possam, de fato, ter confundido os dois eventos, como parece ter sido o caso do estudante que produziu o gráfico 1 do Quadro 4. ) de Brumadinho.

Três gráficos do Quadro 2 merecem destaque. O gráfico 2 destaca-se por dois motivos: por contar com uma aparente retificação da trajetória inicialmente projetada (o estudante parece ter “cancelado” um eventual aumento do preço das ações da empresa, optando por uma projeção “mais baixa”); e por estar associado a um registro textual que explicita que o rompimento da barragem teria ocorrido em janeiro de 2018 (um ano antes do que ocorreu efetivamente).

O gráfico 3 do Quadro 2 merece destaque porque parece violar convenções básicas da construção de gráficos. Ainda que o eixo das ordenadas não representasse um preço igual a zero, cogitar a representação abaixo da linha representativa dos períodos foi uma estratégia curiosa, considerando-se o padrão de gráficos tradicionalmente utilizado para representar a evolução dos preços de ações. Considerando-se a proposta e as instruções apresentadas, o estudante parece ter suposto que a imagem tenha sido editada com mais complexidade do que efetivamente foi, ou, a despeito da configuração apresentada, o estudante supôs que tenha havido uma queda maior do que a permitida pela configuração do gráfico apresentado. O estudante pode ter assumido que o preço deveria cair muito, justificando a “violação” do padrão gráfico apresentado.

O gráfico 4 do Quadro 2 guarda semelhança com o gráfico 3 por utilizar mecanismos pouco convencionais, por assim dizer, para representar uma queda no preço das ações da empresa. Não cogitando adotar a estratégia implementada pelo estudante que construiu o gráfico 3, o estudante que desenhou o gráfico 4 optou pela inclusão de uma seta, apontada para baixo, sugerindo que uma queda maior de preços teria ocorrido num período posterior ao término do gráfico.

Dentre os 11 estudantes que citaram explicitamente o termo Brumadinho, um estudante (Quadro 3) registrou textualmente não se lembrar da data de ocorrência do evento em Mariana (ocorrido em 2015), mas afirmou que “agora está baixa”, sugerindo que suas projeções possam ter assumido que agora se refere ao período do gráfico. Para efeito de análise, este caso foi computado como equívoco na cronologia dos eventos.

Quadro 3
Gráfico elaborado por estudante que explicitou desconhecer a cronologia

O Quadro 4 apresenta exemplos de registros de estudantes que mencionaram explicitamente o termo Brumadinho sem ter atentado para o período contemplado no gráfico. O gráfico 1 foi incluído nesse agrupamento por sugerir que tenha havido uma confusão (troca) entre os eventos de Mariana e Brumadinho, a julgar pela data na qual se inicia a queda projetada pelo aluno (janeiro). Apenas 2 estudantes (dentre todos que não atentaram para as datas expressas) registraram textualmente que, apesar do evento em Brumadinho, o preço das ações da empresa voltaria a aumentar.

Quadro 4
Exemplos de gráficos elaborados por alunos que não atentaram para a cronologia e fizeram alusão direta ao colapso da barragem (supostamente2 2 O termo supostamente se deve ao fato de que em 2015 ocorreu o colapso de outra barragem, em Mariana – MG. Os registros nos quais Mariana constava textualmente como justificativa para o comportamento dos preços das ações da Vale S. A. foram analisados em outro artigo. A rigor, deve-se considerar, nesse sentido, que os estudantes possam, de fato, ter confundido os dois eventos, como parece ter sido o caso do estudante que produziu o gráfico 2 do Quadro 4. ) de Brumadinho.

Considerando-se a direção das projeções de preço (alta, baixa e manutenção de patamar), a maioria dos estudantes projetou tendência de queda ou de manutenção num patamar aparentemente considerado baixo (71% dentre os 21 que fizeram referência direta ou indireta ao colapso da barragem em Brumadinho). Conforme constante na Tabela 2, 14% dos estudantes projetaram aumento do preço das ações no período apresentado, tendo todos eles percebido o fato de que o gráfico se referia a um período anterior ao evento em Brumadinho. Note-se que a tendência efetivamente assumida pelo preço das ações da Vale S.A. foi de alta (vide Figura 2). Note-se ainda que os outros 3 estudantes que registraram textualmente que os preços viriam a subir haviam registrado, antes, quedas de preço (gráfico 1 do Quadro 2 e gráficos 2 e 3 do Quadro 4).

Tabela 2
Tipo de projeção realizada pelos estudantes

Em termos gerais, os resultados obtidos foram sintetizados como refletindo um efeito Brumadinho, cabendo como exemplo de viés cognitivo limitante da atenção e da percepção que pode afetar projeções e estimativas. O efeito Brumadinho identificado na amostra se caracteriza, diante do exposto, numa previsão retrospectiva falha em função da confluência de vieses cognitivos como:

  1. O efeito foco, em razão da dominância que o colapso da barragem em Brumadinho exerceu na memória dos estudantes, fato que prevaleceu diante de qualquer outra notícia que tivesse sido publicada sobre a empresa no período anterior à realização da atividade. Nesse sentido, os resultados parecem guardar certa similaridade com os resultados de Dolan e Metcalf (2010)DOLAN, P.; METCALFE, R. 'Oops…I did it again': repeated focusing effects in reports of happiness. Journal of Economic Psychology, Washington, v. 31, n. 4, p. 732-737, aug. 2010., segundo os quais os indivíduos podem superestimar o impacto de eventos negativos ao realizarem previsões, o que pode resultar, nos termos dos autores, em uma “previsão defeituosa” (defective forecasting). Note-se que no presente trabalho, diferentemente do objeto de análise de Dolan e Metcalf (2010)DOLAN, P.; METCALFE, R. 'Oops…I did it again': repeated focusing effects in reports of happiness. Journal of Economic Psychology, Washington, v. 31, n. 4, p. 732-737, aug. 2010., não foram solicitadas previsões afetivas aos estudantes. Contudo, o componente trágico do evento não pode ser negligenciado em termos dos potenciais efeitos sobre as projeções dos estudantes.

  2. O viés de negatividade, pela preponderância dos eventos negativos na memória dos estudantes. Assim como há tempos constataram Tversky e Kahneman (1974)TVERSKY, A.; KAHNEMAN, D. Judgment under uncertainty: heuristics and biases. Science, Nova Iorque, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, 1974., eventos negativos tendem a produzir alterações relativamente maiores que eventos positivos causam no estado psicológico dos indivíduos. No caso do presente trabalho, os estudantes parecem ter projetado esse viés na empresa a que se referia a projeção de preços de ações, supondo que os efeitos negativos seriam substancialmente maiores do que efetivamente foram.

  3. O efeito nivelamento, diante das simplificações gerais aplicadas pelos estudantes e o efeito afilamento, manifestado pela preponderância do colapso da barragem na construção dos registros textuais. Definidos nos termos de Holzman e Gardner (1960)HOLZMAN, P. S.; GARDNER, R. W. Leveling-sharpening and memory organization. The Journal of Abnormal and Social Psychology, Washington, v. 61, n. 2, p. 176-180, 1960., o nivelamento é caracterizado pela omissão de inconsistências, em condensação de elementos e em simplificações gerais, enquanto o afilamento se caracteriza pela tendência de que um detalhe domine a organização da memória. Note-se que eventuais inconsistências podem ter se manifestado, por exemplo, pela escala do gráfico ou por seus próprios atributos visuais que impediriam uma projeção de queda ainda maior. A condensação de elementos, por sua vez, pode ter se expressado no esforço de representar a queda, sendo justamente a queda a manifestação emblemática do efeito afilamento (a tragédia em si se reverteria em prejuízo financeiro para a empresa).

  4. O efeito cascata de disponibilidade decorrente da divulgação de notícias sobre a ligação entre a empresa e o colapso da barragem, sobretudo considerando-se a cumulatividade da cobertura realizada pela mídia. O monitoramento ativo por parte da imprensa parece ter potencializado substancialmente o processo de auto-reforço da crença coletiva de que os preços das ações da empresa permaneceriam baixos e/ou cairiam “muito”. As crenças coletivas dos estudantes, segundo as quais os preços das ações cairiam, parecem ter sido reforçadas pela percepção de plausibilidade crescente (KURAN; SUNSTEIN, 1999KURAN, T.; SUNSTEIN, C. Availability cascades and risk regulation. Stanford Law Review, Stanford, v. 51, p. 68-768, 1999.) proporcionada pela mídia e pelas redes sociais (POLLOCK; RINDOVA; MAGITTI, 2008POLLOCK, T. G.; RINDOVA, V. P.; MAGGITTI, P. G. Market watch: information and availability cascades among the media and investors in the U.S. IPO market. Academy of Management Journal, Briarcliff Manor, v. 51, n. 2, p. 335–358, 2008.; NICKERSON, 1998NICKERSON, R. S. Confirmation bias: a ubiquitous phenomenon in many guises. Review of General Psychology, Washington, v. 2, n. 2, p. 175-220, 1998.).

  5. Efeito oposto ao efeito telescópio, considerando que alguns estudantes assumiram, numa distorção cronológica, que o evento era “mais antigo” do que efetivamente foi. Em não se tratando de um evento pessoal, o equívoco também encontra respaldo na literatura (THOMPSON; SKOWRONSKI; LEE, 1988THOMPSON, C. P.; SKOWRONSKI, J. J.; LEE, D. J. Telescoping in dating naturally occurring events. Memory de Cognition, Switzerland, v. 16, n. 5, p. 461-468, 1988.). Deve-se considerar, neste particular, que a ressalva metodológica de Thompson, Skowronski e Lee (1988)THOMPSON, C. P.; SKOWRONSKI, J. J.; LEE, D. J. Telescoping in dating naturally occurring events. Memory de Cognition, Switzerland, v. 16, n. 5, p. 461-468, 1988. merece ser discutida: quando se utilizam eventos públicos para mensurar o efeito telescópio corre-se o risco de incorrer numa “despersonalização” da percepção e das memórias de eventos. Indivíduos diretamente afetados por tragédias podem ter memórias distintas (mais precisas ou menos precisas) do que indivíduos que não foram diretamente afetados. Nenhum dos alunos foi questionado sobre sua relação pessoal (ou de familiares e conhecidos) com o evento, o que poderia ter causado impacto nos resultados das projeções.

  6. O efeito default parece ter se manifestado nos gráficos em que foi projetada tendência de continuidade do patamar de preços incialmente apresentado, o que parece vincular-se também ao efeito ancoragem, ou seja, a influência exagerada que os valores iniciais podem ter sobre os tomadores de decisão (TVERSKY; KAHNEMAN, 1974TVERSKY, A.; KAHNEMAN, D. Judgment under uncertainty: heuristics and biases. Science, Nova Iorque, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, 1974.; STRACK; MUSSWIELER, 1997STRACK, F.; MUSSWEILER, T. 1997. Explaining the enigmatic anchoring effect: mechanisms of selective accessibility. Journal of Personality and Social Psychology, Washington, v. 73, n. 3, p. 437-446, 1997.). O efeito default também pareceu ser solidário ao viés de confirmação. Os estudantes que consideraram que o preço inicial “estava baixo” por se iniciar num segmento inferior do eixo das ordenadas – sem que o valor numérico (preço) contasse com estimativas consistentes – parecem ter adotado esse critério (preço já está baixo) como evidência de suporte às suas hipóteses de que o colapso da barragem em Brumadinho teria causado queda drástica e/ou prolongada do preço das ações da empresa. Nesse sentido, o efeito default pode ter sido explicado pelo esforço cognitivo envolvido (escolher a projeção de queda seria a alternativa mais “fácil”); pelo endosso (que poderia até mesmo ser “moral”, considerando a gravidade do evento); e pelo ponto de referência proporcionado pela configuração visual do eixo dos preços, o que encontraria respaldo na literatura (JOHNSON; GOLDSTEIN, 2003JOHNSON, E. J.; GOLDSTEIN, D. G. Do defaults save lives? Science, Nova Iorque, v. 302, p. 1338–1339, nov. 2003.; MCKENZIE; LIERSCH; FINKELSTEIN, 2006MCKENZIE, C. R. M.; LIERSCH, M. J., FINKELSTEIN, S. R. Recommendations implicit in policy defaults. Psychological Science, Washington, v. 17, n. 5, p. 414-420, 2006.).

A confluência de tais vieses parece ter comprometido a formação de um quadro de referência temporal cronologicamente adequado por parte dos estudantes. Cabe cogitar que a formação de um quadro aderente à cronologia dos eventos pode ter sido prejudicada pela própria data de realização da atividade em aula. O semestre letivo estava se iniciando e a rotina acadêmica ainda não havia se consolidado como “ano novo” para os estudantes, cuja memória de notação de ano poderia estar ancorada no ano anterior.

5 Considerações finais

As contribuições da Psicologia da Educação Matemática têm se disseminado às mais variadas iniciativas de compreensão de processos cognitivos subjacente à aprendizagem de conceitos matemáticos. Com a introdução de temas econômicos e financeiros no currículo escolar, as interfaces entre a Educação Matemática e a Educação Financeira passam a receber atenção crescente. É nesse contexto que o presente trabalho analisou os desafios cognitivos envolvidos numa atividade de caráter concomitantemente matemático e financeiro: a projeção gráfica de preços de ações. A atividade contou com uma peculiaridade cronológica, a projeção se referia a um período passado. Em outras palavras, o trabalho analisou registros gráficos e textuais decorrentes de uma atividade de “projeção retrospectiva” de preços.

Os registros objetos de discussão foram construídos durante uma aula de Economia para Engenharia. O trabalho se pautou pela análise de um fenômeno aqui definido como efeito Brumadinho, um tipo de viés cognitivo que consiste numa projeção retrospectiva falha em razão da confluência de diversos vieses cognitivos contemplados na literatura, a exemplo do efeito foco, do viés de negatividade, dos efeitos de nivelamento e afilamento.

Os registros gráficos e textuais que tinham como objetivo identificar os conhecimentos prévios que os estudantes traziam sobre economia e finanças se caracterizaram por um equívoco de caráter cronológico: alguns gráficos foram projetados e explicados como se o colapso da Barragem em Brumadinho tivesse ocorrido em 2018, mais de um ano antes da data de realização da atividade. O fenômeno observado inclui a imprecisão do quadro de referência temporal dos estudantes e consiste em um exemplo dos desafios cognitivos subjacentes àEducação Financeira. A relação dos estudantes com o universo econômico, incluindo as notícias veiculadas sobre empresas de capital aberto, pode se apresentar como desafio ou como oportunidade para o estreitamento das interfaces entre a Educação Financeira e a Educação Matemática.

Os vieses cognitivos identificados entre estudantes de Graduação refletem, em alguma medida, os desafios da Educação Financeira que podem se manifestar na sala de aula. Se noções econômicas e financeiras podem impor desafios cognitivos para universitários, devese considerar que a inclusão de temas financeiros no Ensino Fundamental e Médio, tal como recomendado pela BNCC, deve se dar mediante cautelosa adequação didático-pedagógica. Nesse contexto, a compreensão dos desafios cognitivos inerentes à construção de gráficos pode se somar aos esforços de identificação dos desafios do ensino de conceitos matemáticos amplamente abordados no currículo escolar. Por fim, cabe ressaltar que os objetos de ensino – sejam matemáticos, sejam financeiros, sejam uma síntese de ambos – contam com sua própria complexidade conceitual e epistemológica e que a compreensão dos desafios cognitivos que se interpõem no processo pode contribuir para aprimorar a abordagem de tais conceitos em sala de aula.

  • 1
    O termo supostamente se deve ao fato de que em 2015 ocorreu o colapso de outra barragem, em Mariana – MG. Os registros nos quais Mariana constava textualmente como justificativa para o comportamento dos preços das ações da Vale S. A. foram analisados em outro artigo. A rigor, deve-se considerar, nesse sentido, que os estudantes possam, de fato, ter confundido os dois eventos, como parece ter sido o caso do estudante que produziu o gráfico 1 do Quadro 4.
  • 2
    O termo supostamente se deve ao fato de que em 2015 ocorreu o colapso de outra barragem, em Mariana – MG. Os registros nos quais Mariana constava textualmente como justificativa para o comportamento dos preços das ações da Vale S. A. foram analisados em outro artigo. A rigor, deve-se considerar, nesse sentido, que os estudantes possam, de fato, ter confundido os dois eventos, como parece ter sido o caso do estudante que produziu o gráfico 2 do Quadro 4.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Ago 2020

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2019
  • Aceito
    03 Fev 2020
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