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A Matemática Como Discurso: uma análise da relação mulher- matemática na obra O Homem Que Calculava, de Malba Tahan

Mathematics As Discourse: an analysis of the relation between the woman and mathematics in the book The Man Who Counted, by Malba Tahan

Resumo

O presente trabalho é parte de uma dissertação de mestrado e tem o objetivo de mostrar como a Matemática está inserida em um contexto discursivo que constitui sujeitos. Para isso, escolhemos a obra O Homem que Calculava, de Malba Tahan, delimitando seu contexto para um aspecto que vai além da Matemática por si só: a relação mulher-matemática. O referencial utilizado para o entendimento do que é mulher foi da pesquisadora Judith Butler, a qual compreende que é uma categoria produzida. À luz da análise do discurso de Michel Foucault, trazemos nas análises elementos a fim de compreender quais relações de gênero são estabelecidas a partir da Matemática como discurso ao longo da obra e como a mulher torna-se mulher em um jogo discursivo. Os resultados dessa análise explanam as “práticas de si” da categoria mulher diante da Matemática e sugerem que Telassim (personagem mulher da obra de Tahan) representa, independentemente do contexto histórico ou cultural, muitas mulheres que são silenciadas frente ao campo científico.

Palavras-chave:
O Homem que Calculava; Malba Tahan; Educação Matemática; Análise do Discurso; Gênero

Abstract

The present paper is part of a Master’s degree thesis and it aims to show how mathematics is inserted in a discursive context that constitutes subjects. For this purpose, we chose the book The Man Who Counted by Malba Tahan, delimiting its context in an aspect that goes beyond Mathematics: the relation between the woman and mathematics. The referential used to understand what woman means was the researcher Judith Butler, who understands that it is a produced category. According to the discourse analysis by Michel Foucault, we bring in the analysis elements in order to understand which gender relations are established from mathematics as a discourse throughout the work and how the woman becomes the woman in a discursive set. The results of this analysis explain “self-practices” in the woman category in the face of mathematics and suggests that Telassim (Tahan's woman character) represents, regardless of the historical or cultural context, many women who are silenced in front of the scientific field.

Keywords:
The Man Who Counted; Malba Tahan; Mathematics Education; Discourse Analysis; Gender

1 Estabelecendo uma relação

A Matemática se forja nas práticas discursivas, disse Valerie Walkerdine (2007)WALKERDINE, V. Ciência, razão e a mente feminina. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 32, n. 2, p. 7-24, jan/jun. 2007.. Desde já, deixamos isso como central nos argumentos que apresentaremos a seguir. Em meio ao seu desenvolvimento e representação para a ciência e para o coletivo, nosso argumento leva em consideração as contemporâneas teorizações culturais acerca do discurso, principalmente a noção de que sujeito e Matemática constituem-se simultaneamente (NELSON; TREICHLER; GROSSBERG, 2009NELSON, C.; TREICHLER, P. A.; GROSSBERG, L. Estudos Culturais: uma introdução. In: SILVA, T. T. (Org.) Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.). Nesse sentido, o presente artigo tem o objetivo de mostrar como a Matemática atua em um contexto discursivo, ou seja, como Matemática e sujeitos se categorizam, se dividem, se decifram e se fazem atores culturais.

Para isso, optamos por realizar uma análise do discurso da obra O Homem Que Calculava, de Malba Tahan1 1 Por tratar-se de uma obra de 1938, aqui trabalhamos com a 75a edição (2009). . Com inspiração principalmente nos escritos de Michel Foucault, tomamos como discurso o que o filósofo descreve: “um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p. 132).

O livro O Homem Que Calculava é conhecido mundialmente por tratar-se de um romance em que são explorados diversos problemas matemáticos de modo recreativo. No contexto do ensino da Matemática, é uma obra de grande relevância, pois “Tahan contribuiu para o ensino da matemática apresentando suas propostas inovadoras e mostrando uma grande inquietação com o ensino vigente na época” (OLIVEIRA, 2001OLIVEIRA, C. C. Do menino “Julinho” à “Malba Tahan”: uma viagem pelo oásis do ensino da matemática. 2001. 192 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) - UNESP, Rio Claro. 2001., p. 91-92).

Apesar da relação direta com o ensino da Matemática, voltamos o olhar para outros aspectos da obra que são postos paralelamente à Matemática: buscamos os discursos tahanianos em que se estabelece uma ligação entre Matemática e sujeito, um sujeito que está inserido na categoria mulher. Assim, nomeamos aqui essa associação como relação mulher-matemática. “Categoria mulher” é um conceito empregado pela pesquisadora Judith Butler, que o utiliza para mostrar a representação de um conjunto de indivíduos (no caso mulheres) que são constituídos no jogo da “limitação, proibição, regulamentação e controle” (BUTLER, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 18).

Com base em como Simone de Beauvoir (1980BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980., p. 9) problematizou a questão da mulher, em 1949, com a célebre frase “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, objetivamos, então, compreender como o “tonar-se mulher” se faz presente frente a um discurso em que a mulher é colocada em xeque em relação à Matemática.

Evidenciamos também como são atribuídas, por meio do discurso, determinadas desigualdades de gênero no âmbito intelectual. Dessa forma, “assumimos que não existe uma ‘essência’ nos termos ‘mulheres’ e ‘homens’, e mesmo ‘matemática’, e que tais termos se encontram implicados em toda uma produção discursiva sobre relações de gênero e matemática” (SOUZA; FONSECA, 2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso: enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autentica Editora (Edição do Kindle), 2010., p. 32).

Ao longo da obra de Malba Tahan, observamos quais relações são feitas acerca do aprendizado de Matemática em relação à mulher, procurando responder aos seguintes questionamentos: quais relações de gênero são estabelecidas a partir da Matemática como discurso ao longo da obra? Nas relações discursivas da obra de Malba Tahan, como a mulher torna-se a mulher? E que mulher?

Ao interseccionarmos literatura e Matemática com a temática da representação da mulher, não podemos omitir as particularidades da obra em questão. Ainda que Malba Tahan, pseudónimo do autor Júlio César de Mello e Sousa, seja de nacionalidade brasileira, não podemos desconsiderar sua íntima relação literária com a cultura árabe. Em uma entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro na década de 702 2 Nos baseamos na transcrição da entrevista que encontramos, na íntegra, na dissertação de Oliveira (2001). , o autor diz que escolheu a Arábia por esta ser representada por um povo que ganhou notoriedade com suas histórias, exemplificando a obra “As Mil e Uma Noites”.

Assim sendo, em O Homem que Calculava, como também em outras obras, Tahan carrega consigo características literárias, culturais e religiosas advindas do Oriente. No entanto, compreendemos essa característica oriental da literatura tahaniana como uma invenção ocidental. Said (2007) evidencia:

O Orientalismo é um estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre o “Oriente” e (a maior parte do tempo) o “Ocidente”. Assim, um grande número de escritores, entre os quais estão poetas, romancistas, filósofos, teóricos políticos, economistas e administradores imperiais, aceitou a distinção básica entre o Leste e o Oeste como o ponto de partida para teorias elaboradas, epopeias, romances, descrições sociais e relatos políticos a respeito do Oriente, seus povos, costumes, “mentalidade”, destino e assim por diante (SAID, 2007, p. 29).

Pensemos então na seguinte reflexão: será que a representação da mulher que Tahan coloca em sua obra trata especificamente da condição da mulher oriental, árabe, islã? Precipitamo-nos em responder, tal qual como Said (2007) propõe, que o contexto oriental no imaginário de Tahan é que delimita pontos de partida para a representação da categoria mulher na obra. Assim, não faz sentido olhar para a relação mulher-matemática especificando que se trata de um imaginário árabe ou buscando compreender as intencionalidades do autor na época, mas, sim, atentar para discursos postos na obra como propulsores de devires.

Por nossa escolha teórica, entendemos que sujeitos não são delimitados por características fixas, mas que existe uma multiplicidade de relações de poder que discursivamente possibilitam outros modos de ser e de vir a ser. Todavia, esse “‘devir’ não é história; hoje ainda a história designa somente o conjunto das condições, por mais recentes que sejam, das quais nos desviamos para um devir, isto é, para criarmos algo de novo” (DELEUZE; GUATARRI, 1992DELEUZE, G.; GUATARRI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992., p. 125).

Embasado nos estudos feministas para trazer uma breve explanação do que entendemos pela categoria mulher, este trabalho visa também trazer alguns apontamentos acerca da problemática sexo/gênero. Em outra seção, evidenciamos a compreensão da análise do discurso em Foucault, procurando nos desvencilhar de amarras estruturadas da linguagem. Por fim, abordamos as análises do livro de Malba Tahan pela perspectiva que Foucault apresenta de análise do discurso, principalmente o conceito de práticas discursivas e práticas não discursivas, interdição, disciplinarização e modos de subjetivação.

2 A categoria mulher

Por que assumimos “mulher” como uma categoria? Ao estudar os problemas de gênero, a pesquisadora feminista Judith Butler busca romper com o binarismo compulsório de que a nossa sociedade é formada apenas por homens ou mulheres. Para Butler (2003)BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., a constituição do par sexo-gênero, em que um reflete o outro, é restrita.

Resulta daí que o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é um meio discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura (BUTLER, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 25).

Por outro lado, Joan Scott (1995)SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. discute a nomenclatura gênero e relata que o vocábulo passou a ser utilizado pelas feministas como uma maneira de se referir à organização social da relação entre os sexos. Entretanto, na perspectiva cultural, não é pertinente dicotomizar o significado dessa palavra referindo-se ao gênero masculino ou feminino, ou ainda dizer que o sexo está para a natureza assim como o gênero está para a cultura, pois “se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo” (BUTLER, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 25).

Quando afirmamos que o gênero é uma construção cultural compreendida em um conjunto de leis, fixamos e limitamos o seu significado, tanto quanto a biologia o faz com o sexo. Nessa delimitação, o corpo aparece como um dispositivo no qual significados culturais são inscritos, ou, ainda, como uma vontade de apoderação de normas que determinam significados culturais relacionados a este ou àquele corpo (seguindo o binarismo homem/mulher).

Tendo que o próprio corpo é em si mesmo construído, o gênero aparece como uma construção da construção do corpo. Portanto, não podemos afirmar que o sexo e o gênero apresentam significados fixos, tampouco livres; cabe analisarmos discursos que sugerem limitações hegemônicas em relação a essa problemática.

Nesse sentido, trataremos a mulher como uma categoria, não relacionada ao fator biológico, mas aos discursos evocados de sua própria historicidade, ressaltando vozes silenciadas em suas dimensões repressivas que produzem a categoria mulher. Através de uma linguagem de cunho falocêntrico, Terry Eagleaton (1983EAGLETON, T Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983., p. 143) refere-se à mulher como o “não-homem, o homem a que falta algo”, constatando a mulher como o não representável. Na tentativa de explanar representações referentes à mulher, as primeiras feministas teorizaram tal problemática como inserida em uma constituição hegemônica preestabelecida.

A ideia doméstica de mulher cuidadora (da casa, da família, do marido, dos filhos) gerou certa inquietação nas mulheres, que iniciaram a luta por seus direitos de igualdade na relação homem/mulher. Tal diferença, porém, estabeleceu-se de acordo com as transformações sociais e nas relações de poder que caracterizavam cada época. Essa intervenção feminina na sociedade masculina (não doméstica) possibilitou o aparecimento da mulher na sociedade como um todo, inclusive na Matemática.

Quando Beauvoir (1980BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980., p. 9) afirma que a mulher não nasce mulher, mas torna-se, levamos em consideração que há uma compulsão cultural em torná-la sujeito. Os estudos feministas permitem a representação política da mulher, que até então “era mal representada ou simplesmente não representada” (BUTLER, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 18).

Perguntemos: será que, em algum momento, Malba Tahan, em O Homem que Calculava, tinha intenção de dar visibilidade à mulher frente à Matemática? Na perspectiva dos estudos feministas, essa visibilidade tem de ser dada politicamente por ela mesma, pois, quando ocorre por meio da figura masculina, damos continuidade à dominação do homem.

3 Caminhos metodológicos - a análise do discurso em Foucault

O “usar Foucault” vai muito além de uma escolha metodológica, pois, ao pensar/produzir Foucault como perspectiva de análise, não faz sentido impor ou acreditar na permanência e na durabilidade, uma vez que, para o filósofo, a própria linguagem é modificável.

A linguagem, entendida por Foucault (2001FOUCAULT, M. Linguagem e literatura. In: MACHADO, R. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001., p. 140) como “o murmúrio de tudo o que é pronunciado”, permite a construção e a transmissão de verdades. Logo, a aproximação com as ideias foucaultianas nos impõe um desapego da preocupação da procura por “chegar a conceitos estáveis e seguros” (VEIGA-NETO, 2007VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 19). É conveniente tratar o discurso como contingente, todavia é preciso considerar os poderes instituídos que colocam acontecimentos em trânsito.

Sermos fidedignos aos conceitos e ideias de Foucault, que, ao longo dos seus escritos, modificam-se, é contraditório. Foucault não trabalha com metanarrativas e não faz das suas ideias um método cartesiano, além disso, reconhece que ideias “não representam nem uma teoria nem uma metodologia” (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995., p. 231). Foucault nunca teve como objetivo elaborar regras para analisar algo.

Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu trabalho nos últimos 20 anos. Não foi analisar o fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos para tal análise. Meu objetivo, ao contrário, foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos (…) Assim, não é o poder, mas o sujeito que constitui o tema geral de minha pesquisa (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995., p. 231).

Se o tema geral da pesquisa de Foucault foi analisar o sujeito, figura incerta, transitória e efêmera, deve-se levar em consideração a contingência do que é dito. As diferentes posições que o sujeito ocupa em meio às coexistências culturais são posições momentâneas. Entretanto, as consequências desses intervalos de tempo em que o discurso é posto faz da sociedade um fluxo que desliza em meio às redes de poder. Nas malhas dessa rede, os sujeitos estão sempre em posição de exercer poder ou de sofrer sua ação.

A ressignificação do discurso ocorre o tempo todo interseccionando tantos outros. O discurso é apenas uma microparte de um discurso dentre tantos que existem na sociedade. Para fazer a análise de um discurso valendo-se das ideias de Foucault, não desvendaremos uma ideia criptografada, pois, para o autor, não há nada “por trás” do discurso, visto que o discurso está na superfície acompanhado de outras ideias que o sustentam (FISHER, 2001FISCHER, R. M. B. Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 114, p.197-223, 2001., p. 198).

Em meio a não linearidade do pensamento de Foucault, nas obras Arqueologia do Saber (2008) e As Palavras e as Coisas (2000)FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000., o autor refere-se ao discurso de várias maneiras, sobretudo ressaltando sua descontinuidade. Conforme abordado pela epistemología, o discurso é tomado quase sempre como um conjunto de fatos contínuos, sendo o sujeito tratado como um produtor de saberes. Foucault fez o avesso: colocou o sujeito como “um produto dos saberes” (VEIGA-NETO, 2007VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 44) e buscou compreender fatos históricos que levaram o sujeito a ser o que é, “renunciando a todos os temas que têm por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre conduzida” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p. 28).

Uma vez que podemos entender o discurso como “um conjunto de enunciados” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p. 132), não há como analisar na obra de Malba Tahan o que realmente foi dito, mas, sim, parafraseando Fischer (2001FISCHER, R. M. B. Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 114, p.197-223, 2001., p. 221), “quais as condições de existência de um conjunto de enunciados”. Dessa forma, valer-nos-emos da articulação das práticas discursivas e não discursivas coexistentes em um conjunto de enunciados que representam o discurso. Para Foucault (2008FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p. 182), as práticas não discursivas são aquelas relacionadas às instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos econômicos.

No processo de análise também evidenciaremos as relações de poder, as quais demarcam e capturam os indivíduos. “É o poder enquanto elemento de explicar como se produzem os saberes e como nos constituímos na articulação entre ambos” (VEIGA-NETO, 2007VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 66). Foucault trata dessa gênese na obra Vigiar e Punir (2014), em que relata mecanismos de poder que possibilitam a disciplinarização dos corpos. Por meio do discurso, voltaremos nosso olhar à compreensão de como ocorre o adestramento dos corpos para a criação de corpos dóceis e capazes.

Não cabe à análise do discurso a pretensão de “desvendar” palavras ditas situando coisas que não foram ditas. Antes disso, é preciso levar em consideração que, em nossa sociedade e na repercussão de seus discursos, nem tudo pode ser falado, nem tudo pode ser dito. Há um jogo de poder que “exclui”, “anula” e “confina” aquilo que pode ser falado, principalmente, no campo da sexualidade em Foucault, questão que está presente neste trabalho. Foucault (1996)FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. chama esse processo de interdição e relaciona as interdições com o desejo e o poder. Para o autor, o discurso

não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que - isto a história não cessa de nos ensinar - o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996., p. 10).

De fato, há “vontade de verdade”, uma vontade de praticar o que é moral3 3 Entende-se “por moral um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos a aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas, etc. Acontece dessas regras e valores serem bem explícitamente formulados numa doutrina coerente e num ensinamento explícito. Mas acontece também delas serem transmitidas de maneira difusa e, longe de formarem um conjunto sistemático, constituem um jogo complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo assim, compromissos ou escapatórias” (FOUCAULT, 1998, p. 26). , uma busca por aquilo que é ideal. Procurando compreender mecanismos de poder que capturam, dividem e classificam os indivíduos, bem como os motivos pelos quais se construiu o ideal, na obra O Homem que Calculava aparecem, constantemente, enunciados que reforçam e repetem a verdade instituída acerca do gênero, constituindo determinadas normalidades4 4 Veiga-Neto (2007) relata que a normalidade salientada em Foucault é o comportamento em relação à maioria. Portanto, é chamado de anormal “aquele cuja diferença em relação à maioria se convencionou ser excessivo, insuportável. Tal diferença passa a ser considerada como um desvio, isso é, algo indesejável porque des-via, tira do rumo, leva à perdição.” (VEIGA-NETO, 2007, p. 90). em relação à mulher e determinadas normalidades em relação ao homem.

Essa compulsão pela normalidade permite uma comparação entre os sujeitos mulher/homem, criando representações que parecem “naturais” de cada gênero em uma perspectiva binária e polarizada, tornando, então, essa, uma obra de interesse para a análise da contemporânea produção de gênero. Para a compreensão discursiva das representações de gênero, não iremos “partir de pontos de apoio para explicar acontecimentos provenientes do discurso, mas, sim, partir de acontecimentos para explicar como se inventaram pontos de apoio” (VEIGA-NETO, 2007VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 69).

4 Quem calculava?

O título da obra, O Homem que Calculava, é representado por uma figura masculina - homem - que pratica o ato de calcular. Mas, afinal, quem calculava? Uma mulher? Um homem? E por que isso importa? No transcorrer da obra, uma personagem, inserida na categoria mulher, dialoga diversas vezes com a personagem central, porém percebemos que no título não há a sua representação. Relacionar determinado sujeito a características sexuais ou de gênero é uma questão muito mais política do que de representação. Butler trata a

representação como termo operacional de um processo político que busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos políticos. Porém, por outro lado, representação é a função normativa de uma linguagem que revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres (BUTLER, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 18).

Butler (2003)BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. critica a constituição dos sujeitos. Há uma vontade de constituir sujeitos fixos, com características fixas, sujeitos a serem representados, dando-lhes visibilidade como sujeitos políticos. Como esses sujeitos são constituídos? Foucault (1999)FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. relata que os sistemas jurídicos de poder produzem sujeitos que ulteriormente passam a representar. Portanto, a necessidade de determinar sujeitos de acordo com o seu sexo, a necessidade de diferenciá-los na categoria homem ou mulher, é algo discursivamente constituído. Trata-se da busca por “verdade” do sexo que “se produz por práticas reguladoras, que geram identidades coerentes por via de uma matriz de normas de gênero coerentes” (BUTLER, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 38).

Apesar de a obra ter sido concebida em meados do século XX, tempo em que a condição cultural atribuía à mulher representações domésticas e subordinadas ao macho da espécie, tal livro atualmente circula vigorosamente nas livrarias5 5 Segundo Oliveira (2001), a primeira edição de O Homem que Calculava foi lançada em 1938 e está traduzida em vários idiomas, tais como o inglês, o espanhol, o italiano e o alemão. Atualmente já foram lançadas mais de 70 edições pela editora Record. de todo o país e do mundo, suscitando algum tipo de representação para diferentes públicos. Os vestígios de uma mulher doméstica, predestinada ao matrimônio, herdados do século XIX, são perceptíveis ao longo da obra tahaniana. Apesar do contexto da obra ser carregado do imaginário oriental de um autor brasileiro, que a escreveu nos anos 30 do século passado, o que pretendemos é problematizar as representações de mulher que são ou já foram aceitas naturalmente.

Nos tópicos seguintes, destacaremos alguns fragmentos da obra O Homem que Calculava, que relacionam determinada personagem mulher com a Matemática. Para iniciar, é relevante para o leitor ou leitora a compreensão de alguns detalhes da obra em questão. Beremiz Samir, personagem central da obra, é um viajante persa que desvenda situações matemáticas aparentemente insolúveis. Nos primeiros capítulos, Tahan descreve como Beremiz aprendeu a lidar com os números e como resolve alguns problemas com ferramentas matemáticas de modo a causar admiração em todos a sua volta. Neste artigo, porém, a análise do livro inicia-se no capítulo IX, momento em que uma personagem mulher - cujo nome é Telassim - entra em cena na ficção de Malba Tahan.

4.1 A mulher e a Matemática

No qual recebemos a visita do xeique Iezid, o poeta. Estranha consequência das previsões de um astrólogo. A mulher e a Matemática. Beremiz é convidado a ensinar Matemática a uma jovem. Situação singular da misteriosa aluna. Beremiz fala de seu amigo e mestre, o sábio Nô-Elin (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 62).

Esse excerto trata do título do capítulo IX e é particularmente interessante para os propósitos deste trabalho, especificamente porque a mulher é nele colocada como tema central. Nesse capítulo, Beremiz é convidado a ensinar Matemática para a filha de um xeique, pois as previsões de um astrólogo relatavam que Telassim (filha do xeique) seria feliz até os 18 anos e, após essa idade, se não aprendesse Matemática, “seria ameaçada por um cortejo de lamentáveis desgraças” (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 63).

No título do capitulo IX, composto por seis frases, a segunda e a terceira dizem: “Estranha consequência das previsões de um astrólogo. A mulher e a matemática” (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 62). Como dito, um astrólogo previa que uma jovem teria de aprender Matemática. Por que tal previsão seria estranha? Até então, na obra de Malba Tahan, a figura mulher estava condenada ao silêncio. Agora, quando ela aparece, vinculada à Matemática, a obra nos adianta, já no título do capítulo, fortes adjetivações à figura feminina, tais como estranheza e singularidade, palavras que nos remetem a algo externo, bizarro e incomum.

Esse discurso dominante, em que a mulher aparece desprovida de saber-poder (nesse caso em relação à Matemática), enquanto o homem é detentor do saber-poder, produz uma cultura centralizada nas relações da soberania masculina. Podemos “compreender a matemática como um sistema cultural”, como “um sistema de significados constituídos por relações de poder” (KNIJNIK, 1996KNIJNIK, G. Exclusão e resistência: Educação Matemática e legitimidade cultural. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996., p. 95). Nas palavras de Knijnik, para entender a Matemática como um sistema cultural, temos que

pensá-la não de forma abstrata, imune às lutas no campo simbólico que buscam manutenção ou ascensão nas posições do espaço social onde ela é produzida e reproduzida. Ao contrário busca-se entendê-la, enquanto uma das manifestações simbólicas em um determinado grupo social, relacionada com sua posição social, relacionada com sua posição de dominação ou subordinação no espaço social onde está inserido (KNIJNIK, 1996KNIJNIK, G. Exclusão e resistência: Educação Matemática e legitimidade cultural. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996., p. 95-96).

Knijnik (1996)KNIJNIK, G. Exclusão e resistência: Educação Matemática e legitimidade cultural. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. alerta quanto ao contexto social em que a Matemática é reproduzida, descaracterizando-a enquanto algo puro ou algo complexo que “sempre esteve aí”, prestes a ser descoberto. O alerta vale igualmente para as relações de poder e lutas. Foucault (1995)FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. sugere que, no jogo da normalização, há sujeitos que são produzidos e reproduzidos. Nesse sentido, entendemos que a Matemática não se faz por si só, mas por meio de ações de sujeitos que a produzem e a reproduzem em determinado grupo social. Assim, no contexto literário de O Homem que Calculava em que a Matemática é reproduzida, também se produzem sujeitos e se produz a relação - estranha - mulher-matemática.

A condição em que a mulher é colocada no título do capítulo IX mostra discursos que remetem a um sistema de significados que implica destrezas relacionadas à mulher, ou melhor, à falta delas. Quando voltamos nossa atenção para a frase “Situação singular da misteriosa aluna” (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 62), percebemos que tal singularidade está em uma mulher aprender Matemática, algo que não seria comum nas condições históricas da obra. O espanto causado por uma mulher aprender Matemática advém de práticas discursivas e não discursivas, do acometimento dos corpos por meio de mecanismos sociais.

Beauvoir discorre quanto à condição de segregação em que moças são colocadas desde a infância: “Da moça exigem que fiquem em casa, fiscalizam-lhe as saídas: não as encorajam em absoluto a escolher seus divertimentos, seus prazeres” (BEAUVOIR, 1980BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980., p. 72). Isso ocorre por muitas razões. Além das exigências sociais que sujeitam a mulher, o constructo epistemológico da fisiologia do corpo feminino é delineado em torno de um falocentrismo compulsório: o corpo da mulher é inexistente, justamente porque é tido como a falta de algo, o negativo do corpo masculino (BUTLER, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 29). Nesse sentido, podemos entender a questão do corpo no campo intelectual: é a representação intelectual masculina que preencheria a intelectualidade feminina.

Dando continuidade ao capítulo em questão, Beremiz é desafiado a ensinar Matemática para a jovem sem que haja contato visual, suscitando a ideia de que a não segregação da jovem mulher despertaria desejos no personagem. Na sociedade descrita pelo autor, é possível identificar, quando diz que uma mulher irá aprender Matemática, uma posição de diferença em relação às demais personagens, sobretudo quando o ensinar algo para uma mulher é descrito como um desafio. Ao citar a incompatibilidade do cérebro feminino com as noções mais simples da Matemática, o sentido de determinada não-aptidão é atribuído à categoria mulher.

Sobre o capítulo IX, destacamos quatro momentos/situações da mulher em face da Matemática. Primeiro, o momento em que há resistência em ensinar Matemática a uma mulher; segundo, o momento em que Beremiz aceita o “desafio” de ensinar Matemática à jovem Telassim; terceiro, o momento em que Beremiz é avisado do recato necessário da jovem nas aulas que lhe serão ministradas; quarto, o momento em que Beremiz assente com o pai da jovem em ensinar-lhe Matemática mesmo que oculta por uma cortina e com o corpo coberto.

No primeiro momento, o da resistência, são feitas comparações entre o fato de uma mulher aprender Matemática e situações aparentemente impossíveis:

Procurei vários ulemás da corte, mas não logrei encontrar um só que se sentisse capaz de ensinar Geometria a uma jovem de 17 anos. Um deles, dotado, aliás, de grande talento, tentou mesmo dissuadir-me de tal propósito. Quem quisesse ensinar canto a uma girafa, cujas cordas vocais não podem produzir o menor ruído, perderia o tempo e teria trabalho inútil. A girafa, por sua própria natureza não poderá cantar. Assim, o cérebro feminino, explicou esse daroês, é incompatível com as noções mais simples do Cálculo e da Geometria. Baseia-se essa incomparável ciência do raciocínio, no emprego de fórmulas na aplicação de princípios demonstráveis com os poderosos recursos da lógica e das Proporções. Como poderá uma menina, fechada no harém de seu pai, aprender fórmulas de Álgebra e teoremas de Geometria? Nunca! É mais fácil uma baleia ir a Meca, em peregrinação, do que uma mulher aprender Matemática. Para que lutar contra o impossível? Maktub! Se a desgraça deve cair sobre nós, faça-se à vontade de Allah! (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 63, grifo nosso).

A intencionalidade de Tahan em produzir comparações hiperbólicas com aquilo que é considerado “não natural” aos animais, como ensinar canto a uma girafa ou a possibilidade de uma baleia dirigir-se a Meca, com o fato de ensinar Matemática a uma mulher, leva-nos a (re) pensar o próprio conceito de natureza. Latour (2000LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: editora UNESP, 2000., p. 156) ressalta que, no campo científico, “quem tem a natureza vence, não importando suas desvantagens”. Essa crítica latouriana de que a natureza “vence” é comparável com a crítica da verdade absoluta de Foucault (2014)FOUCAULT, M. Vigiar e punir: História das violências nas prisões. 42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014., herdada de Nietzsche (que só existe enquanto vontade de verdade).

Nesse cenário, o trecho da obra reafirma a ideia latouriana da natureza como algo puramente externo aos constructos sociais, como algo incólume que sempre existiu, pois a natureza é colocada em uma posição elevada e indiscutivelmente intacta, tornando indiscutível também o argumento de quem a utiliza como premissa. Valer-se de um discurso em que a natureza serve como um mecanismo sustentador do argumento, como comparar a “incompatibilidade do cérebro feminino com as noções de cálculo e geometria” a algo dissociado da “natureza” racional - de um animal dito irracional - atribui contiguamente um déficit natural, externo às relações sociais e de poder, da mulher com a Matemática.

Ao utilizar a natureza como premissa de um argumento, sustenta-se uma verdade instituída acerca da mulher com a Matemática. Esse discurso está ali, fortalecido no mantra do já dito, e passa a ser representado enquanto busca por atribuir destrezas na relação dicotômica sexo/gênero. Como citado anteriormente, a linguagem do texto põe em movimento uma multiplicidade de correlações de forças que, ao mesmo tempo, reforçam e transformam vontades numa cadeia de significados que (re) produzem, por normalização, características a sujeitos que passam a representar, no caso, a mulher.

Mais adiante, no segundo momento, percebemos a atitude de Beremiz Samir diante do “desafio” de ensinar Matemática a uma jovem mulher:

- Xeique generoso! - retorquiu prontamente Beremiz. - Não vejo motivo para deixar de atender ao vosso honroso convite. Em poucos meses poderei ensinar à vossa filha todas as operações algébricas e os segredos da geometria. Erram duplamente os filósofos quando julgam medir com unidades negativas a capacidade intelectual da mulher. A inteligência feminina quando bem orientada, pode acolher, com incomparável perfeição as belezas e os segredos da ciência! (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 63, grifo nosso).

Beremiz critica filósofos que julgam a capacidade intelectual da mulher e, sustentando o seu argumento, evidencia que a inteligência feminina necessita ser bem orientada. Tal frase, longe da redenção, nos remete à ideia de que a mulher, para aprender, necessita de uma boa orientação, confrontando com a ideia masculina do saber nato e autodidata do homem.

O eufemismo de Beremiz não ameniza o preconceito demonstrado. Ao contrário, dá mais ênfase à distância, produz ainda mais efeitos de comparações entre a mulher e coisas ditas impossíveis a determinados animais. Tal condição - a da menina que é bem orientada para aprender a Matemática - é tratada com arguta propriedade por Walkerdine (1995)WALKERDINE, V. O raciocínio em tempos pós-modernos. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 207-226, jul./dez. 1995., ao trazer à cena as relações de poder nesse sistema no qual somente a menina/mulher, obediente em relação à Matemática, obtém sucesso nessa disciplina:

Em suma, as garotas eram acusadas de irem bem porque trabalhavam muito, seguiam regras, comportavam-se bem. Indicadores disso eram sua atitude de obediência e o comportamento em sala de aula (…) Os garotos, por outro lado, podiam se sair mal, mas seu comportamento era lido como ativo, lúdico, tudo estava bem com o mundo (…) Estou tentando mostrar, assim, porque esta explicação tem sido infligida às mulheres (assim como a designação “esforçada” foi infligida a mim) e como acabamos aceitando isso, acreditando que nós podemos ser boas operárias, boas secretárias, assistentes de pesquisa, mas nunca grandes pensadoras ou gênios. Estou afirmando, portanto, que o problema não está na essência da feminilidade, mas na forma pela qual estas ficções, medos e fantasias foram introduzidas nas estórias contadas sobre garotas e mulheres e na forma pela qual elas foram utilizadas para nos regular (WALKERDINE, 1995WALKERDINE, V. O raciocínio em tempos pós-modernos. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 207-226, jul./dez. 1995., p. 214-215).

Assim, Tahan traz à tona, por meio de Beremiz, um contraponto em relação à categoria mulher quando diz: “citam historiadores vários exemplos de mulheres que se notabilizaram por sua cultura matemática” (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 64). Para isso, exemplifica Hipátia de Alexandria “que lecionou a ciência do Cálculo a centenas de pessoas, comentou as obras de Diofante, analisou trabalhos de Apolônio e retificou todas as tabelas astronômicas então usadas” (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 64-65).

Com isso, a figura da mulher-matemática é associada ao ato de “lecionar”, “comentar”, “analisar” e “retificar”. Tais verbos não fazem alusão à mulher criativa ou à mulher gênio, mas sim à mulher que “ensina”, “explica”, “examina” e “alinha”. Essas representações para a relação mulher-matemática reafirmam a condição de cuidadora atribuída à mulher ao longo da história, compatibilizando com a profissão de professora, por exemplo.

Louro (2001)LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. aborda a questão do “gênero da docência” atribuído à categoria mulher, colocando que o “magistério toma de empréstimo atributos que são tradicionalmente associados às mulheres, como o amor, a sensibilidade, o cuidado etc., para que possa ser reconhecido como uma profissão conveniente” (LOURO, 2001LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2001., p. 96). Entendemos que, discursivamente, a figura feminina provida de saberes matemáticos - Hipátia - está mais associada ao papel do cuidado e do zelo do que à inteligência nata. Para Souza & Fonseca (2010)SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso: enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autentica Editora (Edição do Kindle), 2010.,

A adoção do conceito de gênero como categoria de análise no campo da Educação passa, então, a problematizar desde a feminilização do magistério às complexas e sutis engenharias escolares que legitimam determinados modos de viver a sexualidade, estabelecem hierarquias entre os sexos, naturalizam as práticas e os processos pedagógicos como masculinos e femininos e instituem desigualdades de gênero (SOUZA; FONSECA, 2010SOUZA, M. C. R. F.; FONSECA, M. C. F. R. Relações de gênero, Educação Matemática e discurso: enunciados sobre mulheres, homens e matemática. Belo Horizonte: Autentica Editora (Edição do Kindle), 2010., p. 24).

Já no terceiro momento, Beremiz é avisado sobre o recato da jovem mulher:

Devo, desde já, advertir-te de uma particularidade que não deixa de ter importância no caso. Minha filha vive encerrada no harém e jamais foi vista por homem algum estranho à nossa família. Só poderá, portanto, ouvir as tuas aulas de Matemática oculta por um espesso reposteiro com o rosto coberto por um haic e vigiada por duas escravas de confiança. Aceitas, ainda assim, minha proposta? (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 64, grifo nosso).

Tal segregação delineia uma relação de apoderamento, de interdições, de resto, de poder sobre o corpo da mulher. Quanto ao recato do corpo da mulher, é possível uma analogia com o que Foucault retratou na história da violência nas prisões, na qual o autor refere-se ao aprisionamento do corpo, que este “é colocado num sistema de coação e privação, de obrigações e interdições” (FOUCAULT, 2014FOUCAULT, M. Vigiar e punir: História das violências nas prisões. 42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014., p. 16). Percebe-se, portanto, que o corpo da mulher é posto em uma mesma situação, mas, ao invés de o recato estar relacionado à punição, está relacionado ao pudor vinculado à disciplina, aos comportamentos delimitados à categoria.

Se entendermos a relação de dominação homem-mulher como uma maquinaria que subjuga, sujeita, reprime e domina a condição de mulher, podemos compreender a segregação feminina como um forte dispositivo de poder que impulsiona e permite a continuidade de tal domínio. No caso de Telassim, o “reposteiro” pode ser entendido como um dispositivo de poder que age sobre seu corpo, segregando-a e reprimindo-a. O seu corpo passa a ser entendido como “errado” por ser um instrumento com um potencial desviador de atenção do macho da espécie.

Desse modo, a liberdade e o respeito, que deveriam ser considerados “ao mesmo tempo como um direito e como um bem” (FOUCAULT, 2014FOUCAULT, M. Vigiar e punir: História das violências nas prisões. 42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014., p. 16) para todos os indivíduos, são disponibilizados apenas à figura masculina, estipulando, com isso, que, se a figura mulher almeja por liberdade e respeito, esta precisa estar vestida pelos dispositivos que segregam seu corpo. Tais práticas não discursivas e interditas cooperam para o discurso dominante de que, para a mulher ser respeitada, antes necessita dar-se o respeito. Nesse caso, a partir de tal discurso, conjecturamos que, se Telassim não se utilizasse do dispositivo “reposteiro”, além das escravas vigilantes, e Beremiz faltasse com respeito ao ensinar Matemática à jovem moça, o personagem seria isento da responsabilidade.

No quarto momento, Beremiz assente com o pai da jovem em ensiná-la Matemática mesmo que oculta por um reposteiro e com o corpo coberto:

- Aceito-a com viva satisfação - respondeu Beremiz. - É evidente que o recato e o pudor de uma jovem valem mais que os cálculos e as fórmulas algébricas. Platão, filósofo, mandou colocar à porta de sua escola a seguinte legenda: “Não entre, se não é geômetra.” Apresentou-se um dia um jovem de costumes libertinos e mostrou desejo de frequentar a Academia. O Mestre, porém, não o admitiu, dizendo: “A Geometria é toda pureza e simplicidade” (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 64, grifo nosso).

Notamos que a personagem alega prontamente que “o recato e o pudor de uma jovem valem mais que os cálculos e as fórmulas algébricas” (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 64). Até então, a Matemática fora enaltecida na obra. Ao ler o romance por completo, percebemos que o fato de Beremiz desvendar qualquer problema por meio da Matemática o coloca em uma posição de poder sobre as demais personagens. Entendemos que a posição de poder de Beremiz não é devida à produção de saberes, mas porque a própria personagem se produz a partir dos saberes, estabelecendo a relação foucaultiana de saber-poder (VEIGA-NETO, 2007VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p.44).

No momento em que a personagem central da obra coloca a moralidade de uma jovem mulher acima da Matemática, percebemos uma relação valorativa entre a Matemática e as verdades instituídas como adequadas para a mulher, como sentimentos de pudor e recato. Para Foucault,

Não existe ação moral particular que não se refira à unidade de uma conduta moral; nem conduta moral que não implique a constituição de si mesmo como sujeito moral; nem tampouco constituição do sujeito moral sem “modos de subjetivação”, sem uma “ascética” ou sem “práticas de si” que as apoiem. A ação moral é indissociável dessas formas de atividades sobre si, formas essas que não são menos diferentes de uma moral a outra do que os sistemas de valores, de regras e de interdições (FOUCAULT, 1998FOUCAULT, M. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1998., p. 27-28).

Destarte, nas condutas de pudor e recato agenciadas para a mulher, percebemos que não há fatores biológicos, sexuais ou sociológicos que justificam o porquê da personagem de Malba Tahan ser moralmente representada como é. Entretanto, há um jogo discursivo, abarcado de práticas de si e modos de subjetivação, que faz a mulher vir a ser o que é.

4.2 A prodigiosa matemática

Na primeira aula que Beremiz ministra à jovem Telassim, ele explica a importância dos números e das propriedades matemáticas como um todo. Dado o contexto literário de Tahan, ao iniciar a aula, Beremiz faz uma prece e cita frases de filósofos afirmando a importância da Matemática e a sua base para toda ciência. Para ilustrar, Beremiz cita a história de um rei que sonhou com sete jovens caminhando pelo deserto. Acometidas pela sede e pelo calor, as jovens param no meio do caminho e são surpreendidas por uma princesa que lhes traz água. A sede das jovens é saciada e elas prosseguem. Para a explicação desse sonho, o rei solicita a interpretação de um astrólogo:

Ao despertar, impressionado com esse inexplicável sonho, determinou Asad-Abu-Carib viesse à sua presença um astrólogo famoso, chamado Sanib, e consultou-o sobre a significação daquela cena a que ele - rei poderoso e justo - assistira no mundo das Visões e Fantasias. Disse Sanib, o astrólogo: “Senhor! As sete jovens que caminhavam pela estrada eram as artes divinas e ciências humanas: a Pintura, a Música, a Escultura, a Arquitetura, a Retórica, a Dialética e a Filosofia. A princesa prestativa que as socorreu simbolizava a grande e Prodigiosa matemática.” “Sem o auxílio da Matemática - prosseguiu o sábio - as artes não podem progredir e todas as outras ciências perecem” (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 83, grifo nosso).

Posteriormente, o rei instala vários centros de estudo de Matemática em seu país e, como consequência disso, a prosperidade e a riqueza aumentam drasticamente. Novamente, encontramos aí, do ponto de vista foucaultiano, a produção de sujeitos por meio da relação saber-poder. Colocando o poder na posição de “um elemento capaz de explicar como se produzem saberes e como nos construímos na articulação entre ambos” (VEIGA-NETO, 2007VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 66), voltemos nosso olhar para as sete jovens sedentas e a colocação da princesa em relação às demais.

O autor representa a pintura, a música, a escultura, a arquitetura, a retórica, a dialética e a filosofia por sete jovens sedentas que caminhavam num deserto. Em seu discurso, é notável o doloroso fardo que essas jovens carregam ao viajar. Em seguida, representa a Matemática como uma princesa que alivia a tensão dessas jovens. O fato de a Matemática ser representada por uma princesa, mulher diferenciada em uma sociedade, já enaltece o aprendizado da Matemática, enfatizando o seu acesso restrito.

As ciências humanas, por sua vez, representadas por jovens sofridas, são colocadas como algo comum e compatível às mulheres. Por que justo a Matemática é personificada como uma princesa, enquanto as artes e as ciências humanas por mulheres desfavorecidas socialmente? Uma hipótese é de que a Matemática, colocada pelo autor como a ciência que impulsiona outras ciências, seja representada por uma princesa por esta ser almejada no universo masculino. Então, assim como a Matemática é colocada em posição de saber-poder, a figura da princesa é colocada na posição de poder-desejo. Por outro lado, em relação à Matemática, Foucault (2008)FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. coloca que:

a matemática foi seguramente modelo para a maioria dos discursos científicos em seu esforço de alcançar o rigor formal e a demonstratividade; mas, para o historiador que interroga o devir efetivo das ciências, ela é um mau exemplo - um exemplo que não se poderia, de forma alguma, generalizar (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., p. 216).

Mais adiante, no capítulo XVII, a fama de Beremiz é exposta na história. Por desvendar tantos mistérios numéricos, as crendices e superstições populares o compreendem como um mago, alguém que possui talentos divinos, como a adivinhação. Contudo, entre as inúmeras pessoas “que se consultavam” com Beremiz, algumas eram mulheres.

Esbarrei, muitas vezes, com mulheres - ocultas por espessos véus - que vinham, tímidas, consultar o matemático sobre os números que deviam escrever no antebraço esquerdo para obter boa sorte, alegria e riqueza! Queriam conhecer os segredos que asseguram a baraka6 6 No livro, o autor dá o significado de algumas palavras em notas de rodapé. Também organiza um glossário com palavras de origem islâmica ao final do livro. Malba Tahan coloca que “Bakara” significa “Boa sorte. Qualquer sortilégio aplicado no sentido de evitar a desgraça ” para uma esposa feliz (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 126).

A representação do feminino é formada por meio da linguagem e da interação social. O autor, no trecho acima, menciona três fatores que carregam consigo características de mulheres, ou ainda símbolos que constituem a mulher, que se intensificam em decorrência do contexto cultural enunciado na obra: primeiro, a segregação da mulher esboçada pelos espessos véus; depois, a timidez das mulheres diante do homem que calculava por quererem tratar de assuntos íntimos; e, por último, a busca pela felicidade matrimonial.

Não há a possibilidade de separar esses três fatores, pois a segregação, o pudor e o matrimónio estão entrelaçados e - por mais que o discurso da obra tenha características de costumes antigos - são típicos da sociedade burguesa, conforme aponta Foucault em A História da Sexualidade: a vontade de saber (1999). As mulheres descritas por Malba Tahan são portadoras da beleza e da pureza, enquanto os homens são portadores da inteligência e exercem determinada dominação sobre as mulheres.

Esse jogo entre homem e mulher, dominação e submissão, é marcado pelo pensamento moderno, representando a superioridade do primeiro elemento. Por que as mulheres do imaginário de Tahan estão na posição de pedir conselhos a um homem místico como Beremiz? O discurso da salvação feminina por meio da dependência masculina se (re)afirma nesse contexto. Beauvoir (1980BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980., p. 73) destaca que, “longe de se dedicar ao homem porque se sente inferior a ele, é porque ela se acha destinada que, aceitando a ideia de sua inferioridade, ela a constitui”.

O poder exercido sobre a mulher não pode ser entendido apenas como uma tradução das lutas e sistemas de dominação, mas há uma vontade de querer que sustenta a relação discursiva (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996., p. 10). As relações de poder sobre a mulher não se encontram em posição de exterioridade em comparação a outras relações, como a económica e a política, mas estão interligadas (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999., p. 90).

4.3 A mulher-matemática e a sua relação com o romance

A jovem “invisível”, como o próprio autor a coloca, invisível em decorrência de seu corpo oculto, é exposta nos capítulos finais como um alvo de desejo do calculista protagonista da obra. A mulher invisível, omitida em face das demais personagens, sobretudo da Matemática, finalmente aparece, ganha o seu destaque na obra. Como? Sendo o alvo de desejo de um homem dito “detentor” do saber, o que ocorre quando é pedida em casamento. Beremiz rejeita riquezas materiais oferecidas por um rei depois de tantas situações-problema resolvidas, sugerindo que o pagamento seja casar com a jovem Telassim.

Se é vosso desejo tornar-me, como disseste, invejado por todos os muçulmanos, o meu pedido é o seguinte. Desejo casar-me com a jovem Telassim, filha do xeique Iezid Abul-Hamid (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 191).

Reforçarmos que não pretendemos levar em consideração o aspecto religioso-oriental, aos olhos de um ocidental, presente na obra, mas sim mostrar como o discurso sustentado pela Matemática estabelece relações de gênero em relação à categoria mulher. Voltando ao contexto da obra, destacamos duas situações: 1) a mulher como um alvo de desejo; 2) o ego de Beremiz ao desejar ser invejado por “ter” de “casar-se” com uma jovem mulher filha de um xeique.

Na primeira colocação, podemos questionar o porquê de uma mulher oculta em um reposteiro ser alvo do desejo de um homem. No início, quando Beremiz “aceita” ensinar Matemática a uma jovem, mesmo sem poder vê-la, ele afirma que o recato e o pudor da jovem valem mais do que cálculos e fórmulas. A posição de inocência e pureza em que Telassim é colocada na obra incita a erotização de uma mulher pura. Tal fenômeno é complexo, pois o aspecto da sexualidade feminina e da sexualidade de uma jovem que transmite pureza é um corruptor de um estado de inocência (WALKERDINE, 1999WALKERDINE, V. A cultura popular e a erotização das garotinhas. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 24, n. 2, p. 75-88, jul./dez. 1999., p. 79).

Na segunda colocação, o fato de ter, querer exibir, ser invejado, remete-nos não necessariamente à intenção do macho de querer exibir a fêmea, uma vez que desse modo estaríamos afirmando uma ideia de submissão feminina, mas, sim, ao comportamento sexual que Foucault coloca como um papel “intrinsecamente honroso e que é valorizado de pleno direito: é o que consiste em ser ativo, em dominar, em penetrar e exercer, assim, a sua superioridade” (FOUCAULT, 1998FOUCAULT, M. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1998., p.190).

Depois de Beremiz valer-se de seu saber pela derradeira vez na história de Malba Tahan, desvendando o último problema, a cor dos olhos das escravas, é compensado com o poder, o poder de casar-se com sua aluna. O autor encerra esse episódio com a frase: “Louvado seja Alá, que criou a Mulher, o Amor e a Matemática” (TAHAN, 2009TAHAN, M. O homem que calculava. 75. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 238)

Ao analisar essas articulações entre saber e poder aos olhos de Foucault, percebemos que os saberes se engendram e se organizam para atender uma vontade de poder (VEIGA-NETO, 2007VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.). Quando o autor relaciona uma crença religiosa a um alvo de desejo - a mulher - e a um mecanismo de saber - a Matemática -, é tecida uma personalidade acatada por valores morais religiosos vinculados ao desejo e ao saber. A aparição da mulher na obra de Malba Tahan, com suas diversas representações, torna a obra, sobretudo, um romance.

5 Considerações

Nesta pesquisa, buscamos demonstrar como a Matemática está inserida em um contexto discursivo que constitui sujeitos. Ao evidenciar a relação mulher-matemática, foi possível perceber como somos assujeitados ao conhecimento. Para isso, tivemos de abdicar da linearidade metodológica de análise para problematizar questões que, muitas vezes, passam despercebidas e são aceitas como algo natural do ser.

Sabemos que a questão da mulher diante do campo científico sempre esteve imersa em um campo de lutas, devido à sua conjuntura de invisibilidade. Em razão da ascensão dos estudos feministas, desenvolvidos principalmente no século XX, a mulher e outras categorias minoritárias de gênero têm conquistado espaço. Embora a temática seja abordada por meio de uma obra de ficção, sabemos o quanto tais formações discursivas agem sobre a cultura, (re)afirmando muitas vezes a condição minoritária, não somente da mulher frente à Matemática, mas de tantas outras minorias, sejam elas raciais, sociais, religiosas ou de gênero.

Com esta análise, visamos apresentar algumas reflexões e compreensões sobre como os comportamentos e exigências sociais esperados da categoria mulher se configuram nos discursos. Sabemos que O Homem que Calculava é uma importante obra para a Educação Matemática, por isso nos incumbimos da tarefa de problematizar questões tantas vezes naturalizadas.

A nossa intenção não foi condenar o discurso de Malba Tahan, uma vez que se trata de uma obra de outro tempo e que, consequentemente, estavam em funcionamento outras intencionalidades no período em que foi escrita, mas mostrar como o discurso tem o potencial de sugerir estratégias de dominação que possibilitam modos de devir.

Telassim, independentemente do contexto histórico ou cultural do imaginário criado por Malba Tahan, representa muitas mulheres que são silenciadas frente ao campo científico. Os elementos que apresentamos nas análises, como a roupa que a mulher veste, a segregação que lhe é imposta, a ingenuidade que lhe é cobrada, os modos em que é silenciada, a romantização do feminino, a dúvida sobre a capacidade intelectual da mulher, o discurso de que mulher “não é de exatas, mas sim de humanas” e a feminilização do magistério, aparecem constantemente em nossa sociedade, seja no meio acadêmico, escolar, científico ou nas relações de trabalho.

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    Por tratar-se de uma obra de 1938, aqui trabalhamos com a 75a edição (2009).
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    Nos baseamos na transcrição da entrevista que encontramos, na íntegra, na dissertação de Oliveira (2001)OLIVEIRA, C. C. Do menino “Julinho” à “Malba Tahan”: uma viagem pelo oásis do ensino da matemática. 2001. 192 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) - UNESP, Rio Claro. 2001..
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    Entende-se “por moral um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos a aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas, etc. Acontece dessas regras e valores serem bem explícitamente formulados numa doutrina coerente e num ensinamento explícito. Mas acontece também delas serem transmitidas de maneira difusa e, longe de formarem um conjunto sistemático, constituem um jogo complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo assim, compromissos ou escapatórias” (FOUCAULT, 1998FOUCAULT, M. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1998., p. 26).
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    Veiga-Neto (2007)VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. relata que a normalidade salientada em Foucault é o comportamento em relação à maioria. Portanto, é chamado de anormal “aquele cuja diferença em relação à maioria se convencionou ser excessivo, insuportável. Tal diferença passa a ser considerada como um desvio, isso é, algo indesejável porque des-via, tira do rumo, leva à perdição.” (VEIGA-NETO, 2007VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007., p. 90).
  • 5
    Segundo Oliveira (2001)OLIVEIRA, C. C. Do menino “Julinho” à “Malba Tahan”: uma viagem pelo oásis do ensino da matemática. 2001. 192 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) - UNESP, Rio Claro. 2001., a primeira edição de O Homem que Calculava foi lançada em 1938 e está traduzida em vários idiomas, tais como o inglês, o espanhol, o italiano e o alemão. Atualmente já foram lançadas mais de 70 edições pela editora Record.
  • 6
    No livro, o autor dá o significado de algumas palavras em notas de rodapé. Também organiza um glossário com palavras de origem islâmica ao final do livro. Malba Tahan coloca que “Bakara” significa “Boa sorte. Qualquer sortilégio aplicado no sentido de evitar a desgraça ”

Referências

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  • FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
  • FOUCAULT, M. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    13 Mar 2018
  • Aceito
    06 Dez 2018
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