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Um Design Metodológico para Analisar as Concepções dos Docentes em Relação à Produção Discente a partir de Representação Semiótica e Dimensões do Conhecimento Docente

A Methodological Design for Teacher Conceptions about Students Production by Using Semiotic Representation and Dimensions of Teacher's Knowledge

Resumo

Nosso objetivo neste trabalho é apresentar um design metodológico para a análise de dados empíricos em uma pesquisa qualitativa. Para esse fim, usamos resultados de uma pesquisa anterior envolvendo resolução de problemas em Matemática, na qual foi solicitado a alunos do Ensino Médio que resolvessem um problema de trigonometria formado por dois itens. No presente trabalho questionários foram respondidos por vinte professores do Ensino Médio, aos quais foi solicitado que caracterizassem os erros mais representativos observados naquela pesquisa; aos docentes também foi solicitado que propusessem meios de intervenção no ensino de Matemática que estimulassem os alunos a refletirem criticamente sobre seus erros, visando a sua superação. As respostas dos professores foram analisadas à luz de dois referenciais teóricos: o primeiro deles trata do aprendizado da Matemática usando a análise semiótica, conforme proposto por Duval, e o segundo refere-se aos conhecimentos docentes, de acordo com Shulman. A partir dessa análise propusemos um design metodológico para a análise qualitativa das atividades docentes no contexto da metodologia de solução de problemas em Matemática.

Palavras-chave:
Design metodológico; Semiótica e aprendizagem matemática; Funções discursivas da linguagem; Formação docente

Abstract

Our goal in this study is to present a methodological design for the analysis of empirical data in a qualitative research. To achieve that purpose, we used results of a previous research about mathematics problem solving, in which high school students were asked to solve a trigonometry question with two items. In the present work, questionnaires were answered by twenty high school teachers, who were asked to characterize the kind of the most representative errors found in that research, as well as to propose ways of intervention in mathematics teaching that could stimulate the students to critically think about their errors, in order to overcome them. The teachers’ answers were analysed upon the light of two theoretical frameworks: the first deals with mathematical learning by using semiotic analysis, as proposed by Duval, and the second one is related to the teacher's knowledge, according to Shulman. From this analysis, we proposed a methodological design to the qualitative analysis of teaching activities in the pedagogical approach of problem solving in mathematics.

Keywords:
Methodological design; Semiotics and mathematical learning; Discursive functions of language; Teacher's training

1 Introdução

Para verificar a compreensão dos professores sobre determinado conteúdo de Matemática e, igualmente, suas concepções a respeito do ensino e aprendizagem desse conteúdo propusemos um procedimento metodológico para organização e análise de dados empíricos. Para expor esse design metodológico utilizamos os dados empíricos de uma pesquisa que buscou investigar os conhecimentos de professores sobre trigonometria1 1 Essa pesquisa foi desenvolvida durante a realização do Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa – Paraná, por uma das autoras do artigo. Os resultados da pesquisa foram apresentados na dissertação de mestrado da autora. . Esses dados são relativos às análises dos professores sobre erros de alunos numa prova de trigonometria. Na pesquisa mencionada os dados foram analisados tendo por subsídios teóricos os Registros de Representações Semióticas de Duval (1995)DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995., no que se refere à função de expansão discursiva e suas operações de Narração/Descrição (N/D), Explicação (E) e Raciocinamento2 2 Usamos o termo “raciocinamento”, em desuso na língua portuguesa, no lugar de “raciocinar” para designar o termo “raisonnement”, ato de raciocinar, da língua francesa. (R) e também aos conhecimentos docentes de Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986., Conhecimento do Conteúdo da Matéria a ser ensinada (CCM), Conhecimento Curricular do Conteúdo (CCC) e Conhecimento Pedagógico do Conteúdo (CPC). Com esses subsídios foi possível a criação de categorias para uma descrição analítica dos dados empíricos.

A escolha do quadro teórico para análise do discurso apresentado pelos professores em relação aos erros apresentados pelos alunos se deu em virtude das funções que o sistema semiótico da língua natural cumpre: a função referencial de designação com suas operações de designação pura, designação simples, descrição e determinação; a função apofântica para a formulação de enunciados completos e suas operações de predicação e ato ilocutório (presente no diálogo que se estabelece entre duas pessoas e no valor lógico de verdade ou falsidade, social ou epistêmico de certeza); a função de expansão discursiva que permite inferências em virtude de suas operações descritivas de narração, explicação, descrição e raciocinamento.

O quadro teórico sobre os conhecimentos docentes propostos por Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986. foi escolhido para permitir inferências sobre os diferentes conhecimentos manifestados nas explicações dadas pelos professores em relação aos erros dos alunos e aos procedimentos a serem utilizados para levá-los à superação desses erros. O discurso utilizado revelará diferentes tipos de conhecimentos: conhecimento de conteúdo da matéria a ser ensinada, conhecimento pedagógico de conteúdo e conhecimento curricular de conteúdo. Esses conhecimentos são considerados por Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986. como essenciais para a docência e por essa razão subsidiaram as análises dos dados empíricos no momento da realização da pesquisa.

2 Subsídios teóricos para análise dos dados empíricos

Duval (1995)DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995. afirma que um sistema semiótico deve cumprir quatro funções discursivas para que seja possível um discurso: referencial para designar objetos; apofântica para dizer alguma coisa sobre os objetos que designa, na forma de uma proposição enunciada; expansão discursiva para vincular a proposição enunciada com outras em um todo coerente (por meio de descrição, narração, explicação ou raciocinamento); reflexividade discursiva para assinalar o valor, o modo ou o status combinado para uma expressão por parte de quem a anuncia.

Também é importante destacar que é preciso levar em consideração não só as funções discursivas que o discurso cumpre, mas também as operações que mobiliza para poder cumpri-las para que a análise do discurso se embase em uma análise funcional. Dentre as quatro funções discursivas o autor coloca que a de expansão discursiva é considerada a mais importante por ser possível “articular diversos enunciados completos na unidade coerente de uma narração, de uma descrição, de uma explicação ou de um raciocinamento” (DUVAL, 1995DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995., p. 87) para enfrentar o problema relacionado ao que não está explícito no discurso.

Para inferências possibilitadas pelos discursos dos professores de Matemática (isto é, suas análises em relação aos erros dos alunos e às propostas para superação) optou-se por trabalhar com a função de expansão discursiva. É por meio desta função que poderemos realizar as análises das respostas dos professores às questões propostas no questionário de coleta de dados, referente aos erros cometidos pelos alunos, e o que eles fariam para a superação desse erro.

Como esses discursos serão apresentados em língua natural estaremos na presença de expansões discursivas naturais (oportunizada pelas argumentações retóricas) ou cognitivas (oportunizada pelos discursos que exigem conhecimento de definições, regras e leis para um domínio de objetos) possibilitadas pelas respostas descritivas, narrativas, explicativas ou de raciocinamento, respectivamente. Os discursos dos professores, relativos às análises dos erros e às propostas de superação desses erros do tipo descritivas e narrativas, foram considerados em uma mesma categorização no momento das análises (N/D), por serem caracterizados por Duval (1995)DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995. como formas de expansão natural. Mas é importante destacar que se trata de discursos distintos.

Descrever é apresentar os detalhes de determinado objeto ou situação indiferente de seu contexto e narrar é expor as sequências de um fato, considerando também o contexto da situação narrada. Já os discursos do tipo explicação, categorizados como E, foram considerados como forma de expansão cognitiva por exigir o conhecimento de leis, regras, propriedades, relações válidas para determinados objetos matemáticos. Os discursos do tipo raciocinamento foram considerados como forma de expansão formal por exigir utilização exclusiva de símbolos, que podem ser notações, escrita algébrica etc. Esse tipo de expansão foi categorizado como R.

Essas formas de expansão discursivas, assim caracterizadas, permitiram a identificação dos conhecimentos docentes de conteúdo, pedagógicos de conteúdo ou curriculares de conteúdo que foram mobilizados pelos professores para enfrentar as dificuldades da prática educativa relacionada à aprendizagem da trigonometria. Esta forma de análise deixou evidente os elementos das categorias de conhecimentos, propostas por Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986., que não se manifestavam em um primeiro momento.

Benveniste3 3 Benveniste, E. (1974). Problèmes de linguistique génerale, 2. Paris: Gallimard. , citado por Duval (1995)DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995., trata de um aspecto também importante na análise do discurso, que é o do sentido intencionado. Esse aspecto é relativo aos modos de compreender o que os professores estão dizendo em relação à prática pedagógica relacionada aos processos de ensino e aprendizagem. Com isso é possível identificar as expressões referenciais, as expressões de atitudes proposicionais, os passos do raciocinamento, os episódios de uma narração etc. Para responder às questões A (qual foi o erro cometido pelo aluno?) e B (que intervenções poderiam ser feitas para oportunizar a superação do erro pelo aluno?) do instrumento, o professor organiza seu discurso e utiliza unidades de sentidos intencionais (pois ele quer responder à pergunta).

Com relação aos conhecimentos docentes, Shulman (2001SHULMAN, L. S. Conocimiento y enseñanza. Estudios públicos. Santiago de Chile, n. 83, p. 163-196, 2001., p. 168) entende a base de conhecimentos para o ensino como “um conjunto codificado ou codificável de conhecimentos, habilidades, compreensão e tecnologia, de ética e disposição, de responsabilidade coletiva”.

Shulman (2001)SHULMAN, L. S. Conocimiento y enseñanza. Estudios públicos. Santiago de Chile, n. 83, p. 163-196, 2001. entende que existe uma base elaborada de conhecimentos para o ensino. O autor afirma que o professor pode transformar a compreensão dos alunos sobre algo que eles não conhecem e também suas atitudes e representações por meio de ações pedagógicas. Referindo-se aos processos de raciocínio e ação pedagógica, Shulman (2001)SHULMAN, L. S. Conocimiento y enseñanza. Estudios públicos. Santiago de Chile, n. 83, p. 163-196, 2001. concebe o ensino como um ato iniciado pela razão, sendo continuado por um processo de raciocínio e que culmina com a ação de conferir, provocando, envolvendo ou seduzindo até chegar às reflexões sobre o objeto, a partir do qual o processo pode reiniciar-se. Ele ainda coloca que, para raciocinar bem, é preciso tanto um processo de reflexão sobre o que se está fazendo, quanto ter uma adequada base de dados, princípios e experiências, isto porque os professores precisam “aprender a usar sua base de conhecimentos para fundamentar suas decisões e iniciativas” (SHULMAN, 2001SHULMAN, L. S. Conocimiento y enseñanza. Estudios públicos. Santiago de Chile, n. 83, p. 163-196, 2001., p. 182).

Em um de seus trabalhos, Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986. elenca três categorias para o desenvolvimento cognitivo do professor. A primeira categoria é o Conhecimento do Conteúdo da Matéria ensinada (CCM), que está ligado à compreensão dos processos de sua produção, representação e validação epistemológica, e, por essa razão o entendimento da estrutura da disciplina. Nas palavras de Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986., o professor não somente precisa entender que algo é assim, mas também por que é assim.

A segunda categoria apontada por Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986. é o Conhecimento Pedagógico de Conteúdo (CPC), que está relacionado aos modos de formular e apresentar o conteúdo para torná-lo compreensível aos alunos, o que inclui as analogias de maior impacto e as maneiras de se representar e reformular o conteúdo. O autor coloca que esta categoria está relacionada à compreensão docente do que facilita ou dificulta o aprendizado do aluno, em um determinado conteúdo e que ela vai além do conhecimento da disciplina por si mesma, abrangendo o conhecimento da disciplina para o ensino.

A terceira categoria apontada por Shulman (1986SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986., p. 10) é o Conhecimento Curricular do Conteúdo (CCC), que busca conhecer o currículo como “o conjunto de programas elaborados para o ensino de assuntos e tópicos específicos em um dado nível, bem como a variedade de materiais instrucionais disponíveis relacionados àqueles programas”. Buscando uma correlação para explicar essa categoria, Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986. destaca que os professores precisam dominar o conhecimento curricular para poder ensinar aos seus alunos.

Sendo assim, nos procedimentos de organização dos dados, o entendimento de que uma resposta se incluía na categoria de CCM (Conhecimento de Conteúdo da Matéria a ser ensinada) foi devido à identificação de elementos específicos da disciplina, em que os argumentos do professor, isto é, suas análises relativas ao erro cometido pelo aluno na resolução do problema e às suas propostas de intervenção para superação dos erros são fundamentadas em aspectos relativos à sua validação, enquanto campo de conhecimento.

No que se refere à categorização CPC (Conhecimento Pedagógico de Conteúdo), sua identificação se fundamentou na resposta dada pelo professor na qual ele apresentou aspectos relativos à forma como conduziria uma prática de ensino. Essa categoria está relacionada ao conhecimento do professor, não apenas sobre o conteúdo, mas sobre como esse conteúdo pode ser ensinado para os alunos (SHULMAN, 1986SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986.).

Para a categoria CCC (Conhecimento Curricular do Conteúdo), as análises dos professores respondentes, relativas ao erro cometido pelo aluno na resolução do problema e às suas propostas de intervenção para superação dos erros pelos alunos, foram identificadas com base nos elementos relativos à organização da disciplina como um todo. Inclui-se aí o conhecimento do professor sobre os conteúdos que podem ser trabalhados nos diferentes níveis de ensino e o conhecimento sobre os materiais instrucionais que podem ser utilizados (SHULMAN, 1986SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986.).

O trabalho conjunto com os quadros teóricos de Duval (1995)DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995. e Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986. se mostrou pertinente para desvelar a natureza dos conhecimentos de professores de Matemática em relação a questões sobre o ensino e a aprendizagem da Trigonometria na pesquisa que originou este artigo, pois em diversos momentos estes conhecimentos só puderam ser constatados a partir da função de expansão discursiva, que tornou explícitos os conhecimentos mobilizados pelos professores. Conforme Duval (1995)DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995., a expansão do discurso só ocorrerá se forem feitas inferências e explicitação do que está implícito e entendemos que só desta forma o pesquisador poderá deixar clara sua compreensão sobre o posicionamento do professor tanto sobre os erros apresentados pelos alunos, quanto sobre as formas de organização da prática educativa para sua superação.

3 A produção discente para análise pelos docentes: procedimentos metodológicos para coleta, organização e análise de dados

Propõe-se, este artigo, a apresentar o referido procedimento metodológico utilizado para organizar dados empíricos da pesquisa, já mencionada, que se voltou para a investigação da compreensão dos professores sobre o conteúdo de trigonometria e suas concepções sobre o ensino desse conteúdo. Esses dados empíricos foram coletados por meio da aplicação de um questionário a um grupo de 20 professores de Matemática que atuam na Educação Básica (DIONIZIO, 2013DIONIZIO, F. A. Q. Conhecimentos docentes: uma análise dos discursos de professores que ensinam matemática. 2013. 113f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2013.).

Esse questionário continha questões que solicitavam aos professores apontar a natureza dos erros apresentados por alunos em um problema de trigonometria e, ao mesmo tempo, argumentar sobre formas de encaminhamento em sala de aula para superação de suas dificuldades. Esse problema, Figura 1, encontrava-se presente em uma prova aplicada para alunos de uma turma de 2° ano do Ensino Médio (DIONIZIO, BRANDT, 2011DIONIZIO, F. A. Q.; C. F. BRANDT. Análise das dificuldades apresentadas pelos alunos do ensino médio em trigonometria. In: Anais do X Congresso Nacional de Educação, EDUCERE. Curitiba: PUC, p. 4408-4421, 2011.). As respostas dos alunos a esse problema foram categorizadas em relação aos tipos de erros cometidos e apresentadas para análise pelos professores. Por meio dessa análise foi possível recolher informações sobre seus conhecimentos docentes em relação à trigonometria e aos processos de ensino e aprendizagem.

Figura 1
Problema relativo à trigonometria no triângulo retângulo

Três tipos de erros, cometidos pelos alunos na resolução desse problema, foram submetidos à análise pelos professores. Esses erros foram nominados, nas figuras a seguir, de acordo com suas características:

Para análise desses erros o questionário aplicado aos 20 professores contou com as questões:

  1. Qual o tipo de erro apresentado pelos alunos em cada uma das situações?

  2. Que tipo de intervenção pode realizar o professor para que os alunos reflitam sobre o erro cometido e superem tal dificuldade em cada uma das situações?

Os erros para determinar a intervenção didática pelo professor são aqueles apresentados nas Figuras 2, 3 e 4.

Figura 2
Erro por utilizar a relação trigonométrica errada (RTE)
Figura 3
Erro por utilizar relações matemáticas inválidas (RMI)
Figura 4
Erro de matemática básica (EMB)

Para organizar as respostas dos professores, em um primeiro momento, foi elaborado um quadro que está estruturado da seguinte forma: suas linhas representam as questões A e B do questionário, coletadas com os professores e suas colunas representam o tipo de erro apresentado pelos alunos: RTE – (utilização da relação trigonométrica errada); EMB (erro cometido em virtude de Matemática básica) e RMI (utilização de relações matemáticas inválidas).

Podemos definir as células do Quadro 1 da seguinte forma:

Quadro 1
Organização das respostas dos professores para análise dos dados empíricos

Antes de fazermos a inserção dos dados empíricos relativos às questões A e B, criamos uma codificação para os professores respondentes e, ao mesmo tempo, preservamos suas identidades. Por essa razão elaborou-se um código específico que permitisse identificá- -los em relação aos dados empíricos. Esse código contou com a letra P seguida de um número de 1 a 20 para cada professor (P1, P2, …, P20).

Quadro 2
Descrição das células apresentadas no Quadro 1

Para exemplificar, com o objetivo de tornar mais claro para o leitor apresentamos no Quadro 3 um exemplo de organização dos dados empíricos dos professores P5, P17 e P20, coletados via questionários (2012), escolhidos aleatoriamente.

Quadro 3
Dados empíricos de P5, P11 e P20 relativos às questões A e B

As análises dos professores aos diferentes erros e as propostas para superação dos erros dos alunos, apresentadas no questionário, foram inseridas nas células do Quadro 1 e, para serem analisadas, foi necessário elencar um quadro teórico que permitisse, ao investigador, identificar as formas de organização da prática educativa relativa ao ensino e aprendizagem da trigonometria pelo professor (permitido pela questão: Que tipo de intervenção pode realizar o professor para que os alunos reflitam sobre o erro cometido e superem tal dificuldade?) e o conhecimento do conteúdo pelo professor (permitido pela questão: que tipo de erro o aluno cometeu?).

Esses dados foram então categorizados como sendo uma Narração/Descrição (ND) ou Explicação (E) ou de Raciocinamento (R) e os conhecimentos explicitados ou inferidos, segundo Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986.: CCM, CPC ou CCC. Isso significa que um professor (Px) pode apresentar uma descrição/narração ou uma explicação de um procedimento de intervenção para a superação de um erro com foco no Conhecimento do Conteúdo da Matéria a ser ensinada (CCM), outro professor (Py) com foco no Conhecimento Pedagógico do Conteúdo (CPC) e um outro com foco no Conhecimento Curricular de Conteúdo (CCC) (para qualquer tipo de erro: RTE, BEM ou RMI).

A categorização destes dados a partir dos quadros teóricos evidenciados possibilitou a elaboração do instrumento para a análise da concepção docente sobre o tipo de erro da produção discente e as suas propostas de intervenções para superação do erro. O instrumento será apresentado na sequência.

4 Descrição analítica: dados obtidos por meio do instrumento para coleta de informações

A partir do modelo de um instrumento criado por Arruda, Lima e Passos (2011)ARRUDA, S. M.; LIMA, J. P. C.; PASSOS, M. M. Um novo instrumento para a análise da ação do professor em sala de aula. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 11, n. 2, p. 139-160, 2011., elaborado em uma matriz 3x3, para a análise da ação do professor em sala de aula, também elaboramos uma matriz 3x3 como um instrumento para a análise da concepção docente sobre o tipo de erro da produção discente. Pensando então num quadro analítico que viesse ao encontro da nossa demanda, escolhemos as categorias de função de expansão discursiva de Duval (1995)DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995., que foram cruzadas com as categorias criadas a partir do referencial de Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986., elaborando assim o Instrumento para análise das respostas dos professores em relação aos tipos de erros dos alunos apresentado no Quadro 4. Assim como em uma matriz, em que cada elemento é identificado a partir de uma linha com uma respectiva coluna, no presente instrumento podemos identificar os elementos ou setores (constituídos por células resultantes do cruzamento de uma linha com uma coluna), conforme o Quadro 4.

Quadro 4
Instrumento para a análise da concepção docente sobre o tipo de erro da produção discente

Após organizarmos os dados empíricos no Quadro 1, que nos permitiu identificar e analisar as respostas dos professores em relação aos tipos de erros dos alunos e os tipos de procedimentos para superação dos erros, distribuímos essa frequência encontrada em cada célula do instrumento no Quadro 4 para caracterizarmos esse perfil para cada professor participante da pesquisa.

Propõe-se que o instrumento apresentado no Quadro 4 seja aplicado na análise das respostas de cada professor participante da pesquisa. Porém, como no presente artigo, por questão de espaço, não temos condição de apresentar os dados dos 20 professores individualmente, apresentamos no Quadro 5 a organização do enquadramento das respostas dos professores para análise dos dados empíricos e, mais à frente, três exemplos aplicados aos professores P1, P6 e P13 para que leitor possa compreender como realizamos a análise dos mesmos.

Quadro 5
Organização das respostas dos professores para análise dos dados empíricos

Cada célula, com fundo em branco, do Quadro 5, contém a quantidade e o código dos professores (P1, P2, P3, …, P20) que tiveram suas respostas categorizadas de acordo com o tipo de conhecimento mobilizado (CCM, CPC ou CCC) e a expansão discursiva possibilitada (N/D, E ou R), para cada item da questão (A ou B) e cada tipo de erro (RTE, RMI ou EMB). Como destacamos acima, esse quadro poderá ser utilizado para apresentar quantitativamente o número de respostas relativas a cada uma das categorias em cada questão do instrumento. Vejamos:

No Quadro 5 podemos verificar, na coluna ARTE, que somente em uma única célula todos os 20 professores foram enquadrados, em relação à questão A (Qual o tipo de erro apresentado pelos alunos em cada uma das situações?), para o tipo RTE (Relação Trigonométrica Errada) como CCM (Conhecimento de Conteúdo da Matéria a ser ensinada) e E (função de expansão discursiva de Explicação).

Este quadro contempla todas as possibilidades para a montagem de novos quadros para o aprofundamento das análises das respostas dos professores. Ele não apresenta, evidentemente, as falas dos professores, mas contempla o cruzamento das categorias de função de expansão discursiva de Duval (1995)DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995. com as categorias criadas a partir do referencial de Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986., indicadas no Instrumento para a análise da concepção docente sobre o tipo de erro da produção discente, do Quadro 4.

Devido à impossibilidade de indicar todos os dados empíricos analisados para a organização do Quadro 5, elencamos como exemplo apenas as respostas apresentadas pelos professores para o item ARTE, que podem ser observadas na Figura 5.

Figura 5
Respostas dos professores (dados empíricos) para o item ARTE

A título de exemplo, também elencamos os dados empíricos de apenas três dos vinte professores participantes da pesquisa, para serem inseridos, individualmente, para realização das interpretações e inferências em células obtidas pelo cruzamento das categorizações criadas, tendo por base Shulman e Duval: Quadro 6 com dados empíricos de P1, Quadro 7 com dados empíricos de P6 e Quadro 8 com dados empíricos de P13.

Quadro 6
Caracterização dos conhecimentos docentes do professor P1
Quadro 7
Caracterização dos conhecimentos docentes do professor P6
Quadro 8
Caracterização dos conhecimentos docentes do professor P13

Por meio desses procedimentos será possível apreender o perfil desses professores que poderá ser interpretado em relação aos processos de ensino e aprendizagem da trigonometria. As interpretações e inferências realizadas são apresentadas na sequência de cada quadro.

Podemos caracterizar os conhecimentos docentes de P1 como, predominantemente, referentes ao conteúdo da matéria, entretanto, esperava-se que suas respostas para os itens BRTE, BEBM, BRMI fossem predominantemente relativas ao conhecimento do professor para a organização da prática pedagógica, já que a questão era: Que tipo de intervenção pode realizar o professor para que os alunos reflitam sobre o erro cometido e superem tal dificuldade? Para essas análises e propostas de intervenção o professor P1 utiliza uma linguagem específica da trigonometria para se referir a esse conhecimento, o que configura esses discursos como operação de expansão discursiva de explicação. Duval (1995)DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995. denomina essa forma de expansão como “Cognitiva”, cuja característica é o emprego especializado da língua natural. Os itens ARTE, AEBM, ARMI, são referentes aos tipos de erros dos alunos que são justificados com argumentos referentes à falta de compreensão de conteúdos específicos da disciplina que, de acordo com P1, os alunos não conseguiram compreender. O Conhecimento de Conteúdo da Matéria a ser ensinada, que se apresenta de forma notável nas respostas do professor P1, envolve aspectos da produção (conhecimento formalizado), representação e validação epistemológica do conteúdo em questão, conforme aponta Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986.. Ainda em relação a esse conhecimento, Shulman (2001)SHULMAN, L. S. Conocimiento y enseñanza. Estudios públicos. Santiago de Chile, n. 83, p. 163-196, 2001. afirma que o professor precisa saber os motivos pelos quais o conteúdo se apresenta de determinada forma e não de outra. Esse aspecto pode ser observado no discurso de P1 no momento em que ele afirma para a questão BRTE: “Retomar com o aluno o que significa cateto oposto e cateto adjacente de um triângulo (Questionário, 2012)” e para a questão ARMI: “Aluno escreve uma relação que não existe, talvez pensando em Pitágoras, mas usa valor do ângulo, operando com unidades diferentes (comprimento e grau)” (Questionário, 2012).

Ao enfatizar que é preciso retomar com o aluno as significações dos termos utilizados para representar as medidas dos lados dos triângulos e ao focar que o aluno opera com medidas de unidades diferentes, P1 expressa que esse aluno ainda não consegue atribuir significação para esses termos e, como consequência, não tem condições de resolver o problema.

Esse professor demonstra uma maior preocupação com a formalização do conhecimento matemático pelo aluno e acaba não recorrendo aos conhecimentos de outra natureza para interpretar o erro cometido por ele e para buscar formas de superação desse erro. É interessante notar que, embora esse professor atue no magistério há mais de 15 anos e que possua mestrado, ele não coloca em evidência o Conhecimento Pedagógico de Conteúdo, quando questionado sobre o tipo de intervenção que poderia ser realizada para que os alunos refletissem sobre o erro cometido e superassem tal dificuldade.

Os únicos termos que se relacionam ao CPC, e que por isso suas respostas para os itens B foram incluídas em mais de uma célula, são retomar e rever, que indicam a necessidade de trabalhar novamente com estes conhecimentos junto aos alunos, mas sem especificar de que forma isso poderia ser feito. Isso leva a inferir que esses fatores (formação e tempo de magistério) podem não estar diretamente relacionados aos conhecimentos mobilizados pelos professores, mas no caso de P1 está relacionada à linguagem que ele utiliza para se referir aos conhecimentos da matéria, pois na maior parte de seu discurso ele fez uso de termos específicos da trigonometria.

Os conhecimentos docentes que prevalecem nas análises e propostas de intervenção de P6, assim como P1, são os Conhecimentos de Conteúdo da Matéria a ser ensinada. Esse professor também parece estar mais preocupado com a formalização dos conhecimentos matemáticos e acaba deixando de lado os Conhecimentos Pedagógicos e Curriculares. O discurso utilizado pelo professor P6 para se referir aos Conhecimentos de Conteúdo da Matéria, também se configuram como operação de expansão discursiva de explicação, ou seja, a forma de expansão cognitiva em que a língua natural é empregada de forma especializada e com termos específicos da área de conhecimento em questão (DUVAL, 1995DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995.).

Nas análises e propostas de intervenção fica evidente a importância atribuída aos conteúdos específicos da trigonometria pelo professor. Em suas respostas não parece que sua principal preocupação seja com a forma como o ensino seria conduzido e sim com o que seria trabalhado, com o domínio conceitual e procedimental do conteúdo, conforme aponta Shulman (1986)SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher. Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986. ao se referir à categoria de Conhecimentos de Conteúdo da Matéria a ser ensinada.

Nas análises e propostas de intervenção de P6 para a questão B (Que tipo de intervenção pode realizar o professor para que os alunos reflitam sobre o erro cometido e superem tal dificuldade em cada uma das situações?), acreditava-se que apareceriam respostas mais direcionadas aos Conhecimentos Pedagógicos de Conteúdo. Porém, no caso de P6, também foram configuradas como Conhecimentos de Conteúdo da Matéria a ser ensinada: para o erro RTE “O que temos é o valor do cateto oposto e do cateto adjacente em relação ao ângulo de 30°”; para o erro RMI “Pelo teorema de Pitágoras fica difícil, e ainda considerando o ângulo como distância”; e, para o erro EMB “Quase tudo certo, mas não se pode ignorar a raiz, temos que calcular3=1,73” (Questionário, 2012).

Nesse caso o professor limita-se a apontar o que o aluno fez, mas não expressa possíveis formas de superar a dificuldade apontada por ele. P6 possui graduação e especialização na área de Matemática, possui mais de 15 anos de atuação no magistério e trabalha em uma escola que oferta exclusivamente Educação de Jovens e Adultos. Os alunos com os quais o professor trabalha podem favorecer essa forma de encarar a matéria como um conhecimento voltado para as próprias questões do conteúdo de trigonometria. Podemos inferir que isso acontece porque esse professor pode não sentir a necessidade de elaborar diferentes formas de ensino para conseguir a disciplina da turma ou para fazer com que os alunos aprendam, uma vez que normalmente se trabalha com adultos que se esforçam para compreender o que está sendo ensinado.

O professor P13 apresenta a mesma característica presente nos conhecimentos docentes dos demais professores. As respostas desse professor para os itens A e B foram categorizadas como Conhecimentos de Conteúdo da Matéria (CCM) a ser ensinada, pelo privilégio que esse professor atribui a aspectos específicos da disciplina. As mesmas respostas para os itens BRTE e BEBM também foram incluídas na categoria de Conhecimento Pedagógico de Conteúdo (CPC) e expansão discursiva de Narração/Descrição (N/D), pelo fato do professor evidenciar a necessidade de retomar e explicar os conteúdos, o que por meio de uma expansão discursiva de Narração/Descrição (N/D), que é aquela em que apenas o conhecimento da linguagem natural se faz necessário para o entendimento do discurso, o professor reconhece que há necessidade de realizar uma intervenção pedagógica.

Porém não explicita como isso poderia ocorrer, dando mais ênfase sobre o conteúdo que deveria ser abordado. A resposta para o item BRMI também apresenta elementos que permitem incluí-la na categoria CPC, mas como o professor faz uso de termos que requerem um conhecimento mais específico do campo de conhecimento para que a informação possa ser compreendida, assim como ocorreu em todas as demais respostas, foi incluída como expansão discursiva de Explicação (E), com base em Duval (1995)DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995..

Este professor demonstra preocupação sobre o motivo pelo qual o conteúdo de trigonometria se apresenta dessa maneira e não de outra (SHULMAN, 2001SHULMAN, L. S. Conocimiento y enseñanza. Estudios públicos. Santiago de Chile, n. 83, p. 163-196, 2001.), conforme é possível observar em todas as suas respostas para os itens A e B. Podemos inferir que, no entendimento do professor P13, o erro do aluno se deve à falta de compreensão de aspectos específicos do conteúdo, que precisam ser retomados e apresentados pelo professor para que os alunos compreendam. Esse professor também não explora os Conhecimentos Pedagógicos de Conteúdo para apresentar uma proposta de reorganização da prática pedagógica.

Essas análises não esgotam as possibilidades de interpretação que poderiam surgir em relação aos conhecimentos dos professores e essa também não foi a intenção. Assim como não tivemos a intenção de julgar ou classificar o conhecimento de cada professor aqui pesquisado, mas apenas refletir sobre o conhecimento docente de cada um destes diante das situações propostas.

5 Considerações finais

Buscamos evidenciar nesse artigo um procedimento metodológico para análise de dados empíricos de pesquisas qualitativas. Esse procedimento incluiu a definição de um quadro teórico para análise desses dados. Incluiu, também, a elaboração de quadros de dupla entrada tanto para inserção dos dados, segundo suas características específicas, como para identificação do conteúdo dos dados empíricos, segundo categorias criadas a partir do referencial teórico escolhido.

Esse procedimento contribui para uma vigilância epistemetodológica (TELLO, 2012TELLO, C. G. Las epistemologías de la política educativa: vigilancia y posicionamiento epistemológico del investigador en política educativa. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 7, n. 1, p. 53-68, 2012.), necessária para garantir a coerência e a consistência de seus resultados, o que incidirá diretamente sobre a validação dos mesmos. Por essa razão é necessário exercer uma vigilância epistemológica em relação aos polos epistemológico, teórico, morfológico e técnico de uma pesquisa, segundo Bruyne et al. (1982)BRUYNE, P. et al. Dinâmica da Pesquisa em Ciências Sociais: os polos da prática metodológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1982..

De maneira sintética podemos dizer que o polo epistemológico exerce uma função de vigilância crítica. Neste campo são colocadas questões que orientam a resolução das questões de pesquisa, bem como a elaboração de soluções teóricas válidas. Já o polo teórico norteia a elaboração das hipóteses e a construção dos conceitos. É o lugar da formulação sistemática dos objetos científicos. No polo morfológico articulam-se os conceitos, os elementos e as variáveis descritas nos polos epistemológico e teórico, dando determinada configuração ao estudo. Finalmente, o polo técnico orienta a coleta e (ou) produção de dados. As ações neste polo são direcionadas a coletar ou produzir dados que possam ser confrontados com a teoria que suscitou a pesquisa, por isso Bruyne et al. (1982BRUYNE, P. et al. Dinâmica da Pesquisa em Ciências Sociais: os polos da prática metodológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1982., p. 65) concebe esses polos como “complementares e interacionais, enquanto eixos de uma mesma prática metodológica”.

Tratar da perspectiva epistemológica de uma pesquisa, de forma sintética, é explicitar a cosmovisão que o investigador assume para guiar a sua investigação. Não se trata do modo de ler a realidade, mas sim do modo de construí-la, em termos de reflexividade epistemológica.

Por sua vez, o posicionamento epistemológico, num trabalho de pesquisa coerente e consistente, depreende-se da própria perspectiva epistemológica. Trata-se da escolha da teoria que abordará as especificidades do objeto de pesquisa.

Finalmente, o enfoque epistemetodológico (TELLO, 2012TELLO, C. G. Las epistemologías de la política educativa: vigilancia y posicionamiento epistemológico del investigador en política educativa. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 7, n. 1, p. 53-68, 2012.) é determinado quando o investigador opta por uma ou outra abordagem metodológica que utilizará em sua pesquisa. Porém, ao usar o termo epistemetodologia (TELLO, 2012TELLO, C. G. Las epistemologías de la política educativa: vigilancia y posicionamiento epistemológico del investigador en política educativa. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 7, n. 1, p. 53-68, 2012.) deve-se destacar que o mesmo não se restringe apenas à escolha de procedimentos de coleta e análise de dados, mas à lógica da produção do conhecimento. É nesta direção que o presente estudo foi conduzido.

Segundo Tello (2012)TELLO, C. G. Las epistemologías de la política educativa: vigilancia y posicionamiento epistemológico del investigador en política educativa. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 7, n. 1, p. 53-68, 2012., essa vigilância não é somente um modo de ler a realidade, mas de construí-la em termos de reflexividade epistemológica.

O componente que temos denominado Enfoque Epistemetodológico, com o qual nos referiu ao momento metodológico de onde o investigador, opta por uma ou outra metodologia. Não consideramos os ‘enfoques metodológicos’ como meros instrumentos seja de recopilação, seja de análise da informação, mas como o “método dos logos”, isto é, o modo de pensar os logos. Por tal razão preferimos falar de epistemetodologia, categoria na qual confluem a apresentação de método e a posição epistemológica do pesquisador (TELLO, 2012TELLO, C. G. Las epistemologías de la política educativa: vigilancia y posicionamiento epistemológico del investigador en política educativa. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 7, n. 1, p. 53-68, 2012., p. 15).

A reflexão epistemológica, de acordo com Bruyne et al. (1982)BRUYNE, P. et al. Dinâmica da Pesquisa em Ciências Sociais: os polos da prática metodológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1982., pode contribuir para iluminar a pesquisa e se torna uma autoconstituição de normas do processo pelo qual se edificam progressivamente os mecanismos de autorregulação que governam o progresso da ciência. O que importa, segundo o autor, é a transformação qualitativa do saber e o aperfeiçoamento dos mecanismos, graças aos quais o saber se constitui. Queremos evidenciar a tomada de consciência metodológica e a busca da complementaridade existente entre a investigação, que se aplica ao objeto e a preocupação metodológica que se preocupa com a natureza e com a validade dos procedimentos.

Aponta-nos Bruyne et al. (1982)BRUYNE, P. et al. Dinâmica da Pesquisa em Ciências Sociais: os polos da prática metodológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1982. que a epistemologia funciona como uma vigilância interna sobre os procedimentos e os resultados da pesquisa, estabelecendo as condições de objetividade dos conhecimentos científicos, dos modos de observação e de experimentação. De acordo com o autor, a reflexão epistemológica presta-se para uma reflexão dos instrumentos e dos métodos diante das problemáticas que são objeto de investigação. Esta função de vigilância torna-se instrumento de progresso científico. Essa reflexão, por sua vez, enriquece com a colaboração das diversas disciplinas. Assim concebida, a epistemologia situa-se tanto numa lógica de descoberta como numa lógica da prova, isto é, os modos de produção de conhecimentos interessam tanto quanto os procedimentos de validação.

Queremos com o resultado da investigação argumentar que os pesquisadores encontrarão na reflexão epistemológica os fundamentos para se assegurarem do rigor, da exatidão, da precisão de seu procedimento e das indicações que guiarão a indispensável imaginação da qual deverão dar provas para evitar os obstáculos epistemológicos e para fazer progredir o conhecimento dos objetos que investigam.

Como questão final acrescentamos que o procedimento metodológico apresentado, e sugerido, caracteriza essa vigilância epistemológica, necessária para a validação e reconhecimento por pares do conhecimento científico educacional construído tanto no campo da Educação Matemática como em outras áreas de conhecimento.

  • 1
    Essa pesquisa foi desenvolvida durante a realização do Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa – Paraná, por uma das autoras do artigo. Os resultados da pesquisa foram apresentados na dissertação de mestrado da autora.
  • 2
    Usamos o termo “raciocinamento”, em desuso na língua portuguesa, no lugar de “raciocinar” para designar o termo “raisonnement”, ato de raciocinar, da língua francesa.
  • 3
    Benveniste, E. (1974). Problèmes de linguistique génerale, 2. Paris: Gallimard.

Agradecimentos

Fátima Aparecida Queiroz Dionizio agradece o suporte da CAPES, Brasil.

Ana Lúcia Pereira agradece o suporte parcial da CAPES, Brasil (Grant n. 99999.000403/2016-04).

Referências

  • ARRUDA, S. M.; LIMA, J. P. C.; PASSOS, M. M. Um novo instrumento para a análise da ação do professor em sala de aula. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 11, n. 2, p. 139-160, 2011.
  • BRUYNE, P. et al. Dinâmica da Pesquisa em Ciências Sociais: os polos da prática metodológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1982.
  • DIONIZIO, F. A. Q.; C. F. BRANDT. Análise das dificuldades apresentadas pelos alunos do ensino médio em trigonometria. In: Anais do X Congresso Nacional de Educação, EDUCERE. Curitiba: PUC, p. 4408-4421, 2011.
  • DIONIZIO, F. A. Q. Conhecimentos docentes: uma análise dos discursos de professores que ensinam matemática. 2013. 113f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2013.
  • DUVAL, R. Sémiósis et pensée humaine: registres sémiotiques et apprentissages intellectuels. 1. ed. Suisse: Peter Lang. 1995.
  • GIOVANNI, J. R.; BONJORNO, J. R. Matemática completa: 2ª série, matemática ensino médio. 2. ed. São Paulo: FTD, 2005.
  • SHULMAN, L. S. Conocimiento y enseñanza. Estudios públicos Santiago de Chile, n. 83, p. 163-196, 2001.
  • SHULMAN, L. S. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational Researcher Thousand Oaks, CA, v. 15, n. 2, p. 4-14. 1986.
  • TELLO, C. G. Las epistemologías de la política educativa: vigilancia y posicionamiento epistemológico del investigador en política educativa. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 7, n. 1, p. 53-68, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2017
  • Aceito
    06 Fev 2018
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