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O Estudo de Aula como Processo de Desenvolvimento Profissional de Professores de Matemática

Lesson Study as a Professional Development Process of Mathematics Teachers

Resumo

Este artigo descreve um estudo de aula realizado com cinco professoras do 5.° e 6.° ano numa escola de Lisboa, analisando episódios especialmente relevantes. O nosso objetivo é compreender as potencialidades do estudo de aula como processo de desenvolvimento profissional e os desafios que se colocam à sua realização. Os resultados mostram que as professoras, depois de alguma estranheza inicial com o formato da formação, envolveram-se fortemente na resolução de tarefas matemáticas e na exploração de questões como a natureza das tarefas e os processos de raciocínio dos alunos. As professoras evidenciam diversas aprendizagens profissionais por si realizadas, valorizando em especial as discussões coletivas na sala de aula, e destacam o trabalho colaborativo e a oportunidade para se constituírem num grupo de trabalho na escola.

Palavras-chave:
Estudo de Aula; Desenvolvimento Profissional; Tarefas; Raciocínio; Discussões Coletivas

Abstract

This paper describes a lesson study carried out with five teachers of grades 5 and 6 in a school in Lisbon, analyzing especially relevant episodes. We aim to understand the potential of the lesson study as a professional development process and the challenges posed by its undertaking. The results show that the teachers, after some initial resistance regarding the kind of professional development activity proposed, highly involved themselves in solving mathematical tasks and in exploring issues such as the nature of tasks and the students' reasoning processes. The teachers indicated that they learn in professional terms, especially regarding the value whole class discussions, and they highlighted the collaborative work and the opportunity to constitute themselves as a working group in the school.

Keywords:
Lesson Study; Professional Development; Tasks; Reasoning; Whole Class Discussions

1 Introdução

O estudo de aula é um processo de desenvolvimento profissional de professores que se centra na prática letiva dos mesmos, assumindo uma natureza eminentemente reflexiva e colaborativa, que tem vindo a ser posto em prática em muitos países (FERNÁNDEZ; CANNON; CHOKSHI, 2003FERNANDEZ, C.; CANNON, J.; CHOKSHI, S. A US–Japan lesson study collaboration reveals critical lenses for examining practice. Teaching and Teacher Education, Cardiff, n. 19, p. 171-185, 2003.; PERRY; LEWIS, 2009PERRY, R.; LEWIS, C. What is Successful Adaptation of Lesson Study in the U.S.? Journal of Educational Change, Netherlands, v. 10, n. 4, p. 365-391, 2009.). Num estudo de aula, os professores trabalham em conjunto, procurando identificar dificuldades dos alunos, e preparam em detalhe uma aula que depois observam e analisam em profundidade. No fundo, realizam uma pequena investigação sobre a sua própria prática profissional, em contexto colaborativo, informada pelas orientações curriculares e pelos resultados da investigação relevante.

Neste artigo descrevemos um estudo de aula realizado no ano letivo de 2013/14 com professoras do 5.° e 6.° ano numa escola de Lisboa. Analisamos diversos episódios especialmente relevantes, tendo por objetivo compreender a potencialidade do estudo de aula como processo de desenvolvimento profissional e os desafios que se colocam à sua realização.

2 Estudo de aula

O estudo de aula é um processo de desenvolvimento profissional de professores cada vez mais utilizado em diferentes níveis de ensino. Os estudos de aula decorrem dentro do ambiente escolar e neles os professores desempenham um papel central. Normalmente, um estudo de aula começa com a identificação pelos professores de um problema relevante na aprendizagem dos alunos. Depois, os participantes planeiam uma aula, considerando as orientações curriculares, os resultados de investigação sobre a aprendizagem do tópico e a sua experiência anterior. Preveem dificuldades dos alunos, antecipam possíveis questões que possam surgir na aula, constroem tarefas, formulam estratégias de ensino e preparam instrumentos para a observação. A aula é lecionada por um professor enquanto os restantes observam e tiram notas, dando especial atenção à aprendizagem dos alunos. Em seguida, os professores reúnem-se para analisar e refletir sobre o que observaram. A análise pode levar à reformulação do plano de aula, com alterações nas tarefas propostas, nas estratégias e materiais utilizados, nas perguntas feitas aos alunos, etc… Muitas vezes, a aula reformulada é lecionada novamente a outra turma por outro professor, em ciclos que podem ser repetidos várias vezes (LEWIS; PERRY; HURD, 2009LEWIS, C. C.; PERRY, R. R.; HURD, J. Improving mathematics instruction through lesson study: A theoretical model and North American case. Journal of Mathematics Teacher Education, Netherlands, v. 12, n. 4, p. 263-283, 2009.; MURATA, 2011MURATA, A. Introduction: conceptual overview of lesson study. In: HART, L. C.; ALSTON, A.; MURATA, A. (Ed.). Lesson study research and practice in mathematics education. New York, NY: Springer, 2011. p. 1-12.).

Um aspeto fundamental dos estudos de aula é que eles centram-se nas aprendizagens dos alunos e não no trabalho dos professores. Isto distingue-os de outros processos formativos que envolvem observação de aulas, mas que se centram, principalmente, na atuação dos professores. A participação num estudo de aula constitui uma oportunidade para os professores aprenderem questões importantes em relação aos conteúdos que ensinam, às orientações curriculares, aos processos de raciocínio e às dificuldades dos alunos e à própria dinâmica da sala de aula. Os estudos de aula são desenvolvidos em ambientes colaborativos, levando os participantes a criar um relacionamento próximo, partilhar ideias e apoiar-se mutuamente. Desta forma, constituem um contexto não só para refletir, mas também para promover a autoconfiança, fundamental para o seu desenvolvimento profissional.

Um estudo de aula constitui assim um processo formativo fortemente ligado à prática, que possibilita aprofundamentos teóricos em diversos domínios – matemático, didático, curricular, educacional e organizacional. Além disso, proporciona múltiplas situações para os professores envolvidos realizarem eles próprios um trabalho de cunho exploratório em questões de Matemática e Didática. Trata-se, por consequência, de um processo formativo cujas potencialidades e condições de realização importa aprofundar.

3 Metodologia de investigação

Uma escola de Lisboa solicitou a colaboração do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa para a formação dos professores, pelo que propusemos a realização de diversos estudos de aula, um deles com professoras lecionando no 5.° e no 6.° ano. Participaram neste estudo cinco professoras que designamos pelos nomes fictícios de Francisca, Luísa e Maria (5.° ano) e Inês e Tânia (6.° ano). Maria, Francisca e Inês já estão na escola há cerca de 10 anos e Luísa e Tânia tinham entrado naquele ano como professoras contratadas. As professoras foram indicadas pela direção da escola, que designou Maria como coordenadora do grupo. Numa reunião prévia, onde esta professora participou em conjunto com elementos da direção e outros professores, decidiu-se que o estudo de aula a realizar incidiria sobre um tópico do 5.° ano, em que estava sendo aplicado um novo currículo. A equipe que conduziu este trabalho era formada por quatro elementos – Marisa e Joana dinamizaram as sessões de trabalho, Mónica (auxiliada por uma bolsista) assumiu o papel de observadora e João Pedro coordenou a formação e participou na dinamização de algumas sessões.

As sessões tiveram uma periodicidade aproximadamente quinzenal, seguindo o plano geral mostrado no Anexo 1. A sessão 1 serviu para apresentar o estudo de aula às professoras e programar o trabalho, as sessões 2 a 6 foram destinadas a aprofundar o seu conhecimento sobre um tópico e preparar uma aula sobre esse tópico, a sessão 7 consistiu na observação da aula e a sessão 8 foi dedicada a refletir sobre essa aula. Com base no trabalho anterior, nas sessões 9 a 12 as professoras planificaram e refletiram sobre duas aulas. Na sessão 12 fez-se ainda o balanço final de todo o trabalho em entrevista focal. Os dados aqui analisados foram recolhidos por observação participante com elaboração de um diário de bordo (por um membro da equipe), gravação de áudio das sessões e de vídeo da aula de investigação, sendo sempre feitas as transcrições integrais.

4 Negociação do processo de formação

Na sessão 1 foi feita a apresentação do estudo de aula às cinco professoras e programou-se, em linhas gerais, o trabalho a realizar, incluindo a definição do tópico a lecionar. As professoras mostraram-se pouco entusiasmadas com este processo de formação que desconheciam por completo. Maria questionou, por exemplo, se se justifica “tanto tempo para abordar só um tópico.” Levantou também a questão da reação dos alunos ao fato de haver tantos observadores na sala de aula. Finalmente, referiu-se ao fato deste processo formativo colocar em situação de avaliação o professor que leciona a aula. As restantes professoras acompanharam as suas preocupações. Em resposta, justificamos que poderia ser mais útil estudar de forma aprofundada o ensino de um tópico do que estudar de modo superficial numerosas questões, referimos que a experiência anterior mostra que os alunos não se perturbam com a presença dos observadores e enfatizamos que, no estudo de aula, o foco da atenção são os alunos e não o professor. Por fim, ainda relutantes, as professoras anuiram a que se continuasse o processo, na expectativa de ver o que iria acontecer.

Já no final da sessão, a escolha do tópico a trabalhar foi bastante participada, principalmente por Maria e Luísa, que indicaram que, de acordo com a sua experiência, os alunos têm muitas dificuldades na aprendizagem dos números racionais não negativos. Com a concordância das restantes professoras, definiu-se que este seria o tópico a trabalhar. Mostramos a nossa proposta de planejamento geral (correspondente às duas primeiras colunas do Anexo 1), que foi aceite, e calendarizamos as sessões a realizar.

Atendendo aos objetivos da sessão, o trabalho foi marcado por um forte protagonismo da equipa formadora. Para além das questões que colocaram, as professoras mostraram uma certa reserva não só connosco, mas também umas com as outras. Este grupo foi apenas constituído para a realização do estudo de aula, notando-se que as professoras não partilhavam a vontade as suas ideias e dificuldades. Assim, passou também a fazer parte dos nossos objetivos criar um clima de confiança no grupo e um ambiente de trabalho colaborativo.

5 Trabalho em tarefas matemáticas

Discussão de tarefas.

Na sessão 2, com o objetivo de aprofundar o conhecimento das professoras sobre o ensino-aprendizagem dos números racionais, fez-se um reconhecimento geral do tópico (no currículo e em manuais) e a análise do planejamento da escola e dedicouse a maior parte do tempo à resolução de tarefas e à identificação de possíveis dificuldades dos alunos. As professoras envolveram-se muito neste trabalho. Assim, a tarefa indicada na Figura 1, que não conheciam, suscitou uma discussão muito participada:

Figura 1
Tarefa analisada pelas professoras na sessão 2 (Documentos escritos analisados na formação, 2013).

Maria: Como é que abordavam isto? Isto é ¾ e agora como é que lhes pediam ½? Como é que eles vão…? (Gravação de áudio da Sessão 2, 2013).

Esta questão, colocada por Maria ao grupo, gerou uma interessante discussão sobre a resolução da tarefa:

Tânia: Primeiro tentar acrescentar…

Inês: Divide-se esta parte…

Marisa: Primeiro eles perceberem o que é que é então a…

Professoras: [Ao mesmo tempo] A unidade!

Tânia: Que isto não é uma unidade (Gravação de áudio da Sessão 2, 2013).

As professoras procuraram, elas próprias, perceber como se poderia resolver a tarefa. Consideraram que a tarefa era difícil, pois requeria uma resolução com vários passos, o primeiro dos quais era a reconstrução da unidade. Depois de resolverem a tarefa, imaginando o que poderia ser uma resolução dos seus alunos, discutiram as possíveis dificuldades que estes poderiam ter, indicando o que seria o erro mais comum: “dividem logo em quatro!” (Maria, Gravação de áudio da Sessão 2, 2013).

Outras tarefas deram também origem a discussões interessantes. Por exemplo, numa tarefa de partilha equitativa em que era pedido que determinassem a quantidade de 3 pizzas que era dada, primeiro, a cada um de 4 amigos e depois, numa segunda fase, a 8 amigos, as professoras referiram que a estratégia mais usada pelos alunos seria usar a representação pictórica. Também para a comparação entre ¾ e ⅜ as professoras consideraram que a representação pictórica era aquela que permitia aos alunos uma maior compreensão da situação. A esse respeito, Maria afirmou: “é que eles na fração, eles não conseguem ver o que aquilo é. Não têm noção se é grande se é pequeno. See ¾ é a mesma coisa […] Mas com o desenho eles veem isso com muita facilidade” (Gravação de áudio da Sessão 2, 2013).

Outra tarefa também muito discutida requeria uma estratégia de resolução baseada numa justificação por contraexemplo. As professoras, de imediato, consideraram que os seus alunos não conseguiriam resolvê-la. Elas próprias demoraram algum tempo até perceberem o que os alunos teriam de fazer (encontrar um “contraposto”, como referiu Luísa). A análise de respostas dadas por alunos a esta tarefa entusiasmou as professoras que começaram a desenvolver uma outra perspectiva sobre as capacidades dos alunos.

A natureza das tarefas.

Durante a resolução das tarefas, as professoras começaram a sentir que estas eram demasiado difíceis para apresentar aos seus alunos. Isso levou-nos a fazer uma distinção entre diversos tipos de tarefa: Exercício, se os alunos sabem os procedimentos necessários para resolvê-la, problema ou exploração no caso contrário. Esta terminologia foi bem aceita pelas professoras:

Maria: Quando eles têm os dados todos significa que é um exercício…

Marisa: Quando eles já adquiriram as ferramentas para resolver… […]

Maria: É uma aplicação, é uma aplicação do conhecimento em vez de […] Enquanto problemas é um bocadinho mais do que isso, eles têm de descobrir qualquer coisa… (Gravação de áudio da Sessão 2, 2013).

Na sessão 3, voltou-se a discutir a natureza das tarefas. Talvez por influência do currículo de Matemática anterior, as professoras destacaram a realização de explorações. Assim, a propósito da soma da amplitude dos ângulos internos de um triângulo, Luísa recordou: “cortaram e colaram no caderno e depois começaram a dizer: ‘Ah! Professora, isto dá um ângulo raso.” (Gravação de áudio da Sessão 3, 2013). Francisca acrescentou: “e não se esquecem! Isso é muito engraçado, fica lá” (Gravação de áudio da Sessão 3, 2013). Tanto Luísa como Francisca valorizaram a exploração realizada com materiais concretos e salientaram que essa manipulação e a descoberta foram marcantes para os seus alunos.

Análise das dificuldades dos alunos.

A discussão das tarefas nestas duas sessões permitiu às professoras refletir em profundidade sobre as dificuldades dos alunos no trabalho com números racionais. Fizeram uma síntese destas dificuldades, destacando: (i) compreender o conceito de unidade, construir o todo e as partes; (ii) compreender uma fração como representação de um quociente; e (iii) marcar na reta numérica frações com denominador diferente do número de divisões da reta. A reflexão sobre as dificuldades dos alunos revelou-se um aspecto novo para as professoras, que as surpreendeu de forma positiva. A partir de contribuições articuladas entre as professoras e os formadores, decidiu-se que o conteúdo específico da aula de investigação seria a comparação e ordenação de números racionais, por ser um dos tópicos que mais dificuldade levanta aos alunos e por servir de base à compreensão de número racional.

Este trabalho levou a uma alteração muito significativa na atitude das professoras. Mostraram-se muito interessadas nas propostas que lhes apresentamos, partilhavam ideias e discutiam em conjunto, de forma entusiasmada, a resolução das tarefas. Ainda não estava completamente constituído um grupo colaborativo, mas principalmente Maria, Luísa e Tânia deram contributos muito positivos e começava a criar-se uma relação de confiança que favorecia a discussão de ideias.

6 Realização de um diagnóstico dos conhecimentos dos alunos

Planejamento.

A fase seguinte do estudo de aula foi marcada pela realização de um diagnóstico para informar a concepção da aula de investigação, a partir de tarefas que levassem a determinar os conhecimentos dos alunos. Na sessão 3, considerando o tópico selecionado, propusemos às professoras que definissem os objetivos para o diagnóstico, tendo por base o que os alunos já estudaram em anos anteriores e o que se pretendia que aprendessem no 5.° ano. As professoras discutiram um por um os diferentes objetivos de aprendizagem, selecionando os que acharam pertinentes. Esta análise proporcionou-lhes um contato com os documentos curriculares, o que foi muito valorizado por Maria: “é bom que a gente saiba estas coisas… Às vezes não temos é tempo para ler os programas” (Gravação de áudio da Sessão 3, 2013).

As professoras tinham trazido propostas de tarefas que identificaram como potencialmente úteis, tendo acabado por escolher algumas tarefas propostas por Luísa e por Tânia. Discutiram ativamente como adaptar as tarefas para se ajustarem aos objetivos definidos para o diagnóstico e aos conhecimentos dos alunos. A sessão centrou-se sobretudo no trabalho colaborativo entre as professoras, num ambiente de animada troca de ideias e com uma menor intervenção da equipa formadora. Nesta fase parecia ter-se já criado uma relação de confiança entre professoras e formadores.

Discussão dos resultados do diagnóstico.

Na sessão seguinte, analisaram-se os resultados do diagnóstico, entretanto aplicado pelas professoras do 5.° ano nas suas turmas. Procurando contrariar a tendência dos professores atenderem sobretudo às dificuldades dos alunos, começamos por lhes pedir que indicassem situações em que tivessem ficado positivamente surpreendidas com o desempenho dos alunos. Marisa tinha ido assistir à aplicação do diagnóstico nas duas turmas de Maria e, por isso, ofereceu-se para iniciar a discussão indicando aspectos que achou interessantes das resoluções dos alunos. No entanto, quando chegou a sua vez de intervir, as professoras deram muito mais relevo às dificuldades do que aos aspectos positivos do trabalho dos alunos:

Os meninos pintaram com facilidade as frações, mas a representação em fração muitas vezes não a fizeram. Só leem metade, pronto. Depois, nesta da ligação [questão 3], onde eles tiveram mais dificuldade foi exatamente no ¼ e noFoi muito difícil para eles (Francisca, Gravação de áudio da Sessão 4, 2013).

Perante as dificuldades enunciadas por Francisca, Marisa reorientou a discussão para as “surpresas”:

Marisa: Se calhar, façamos as surpresas primeiro e depois as dificuldades.

Francisca: Surpresas, surpresa, foi no exercício 4, eles conseguiram facilmente chegar a ¼ do chocolate. Eu achei giríssimo, porque já sabem fazer a conta. Não estava à espera.Pronto, fizeram isto, eu achei… Depois onde é que eu achei que tiveram mais dificuldades?… (Gravação de áudio da Sessão 4, 2013)..

Como se vê, Francisca referiu alguns aspectos positivos, mas, logo a seguir, retomou o tema das dificuldades. Perante nova insistência de Marisa, Francisca salientou outra surpresa na resolução dos alunos, desta vez destacando o conhecimento que estes já tinham sobre as diversas representações de número racional:

As minhas surpresas foram realmente aqui no grupo 4, eu achei isto fantástico. Esta representação de fração, numeral e percentagem, que eu achava que a maior parte deles não ia conseguir fazer, e a maior parte conseguiu fazer. Tanto numa turma como noutra (Francisca, Gravação de áudio da Sessão 4, 2013).

Progressivamente, todas as professoras começaram a destacar elementos interessantes do trabalho dos alunos. Além disso, ficaram surpreendidas com o conhecimento que estes já tinham sobre frações equivalentes, que associaram às alterações curriculares anteriormente introduzidas no 1.° ciclo, e que, como indicou Tânia, deviam ser tidas em conta pelos professores do 2.° ciclo.

No final desta discussão foram sistematizadas as principais dificuldades dos alunos e os conhecimentos que podiam servir de base ao trabalho a realizar na aula de investigação. Verificou-se que os alunos tinham dificuldade: (i) na leitura e escrita de números na representação decimal; (ii) na comparação de frações e de numerais decimais; (iii) na ordenação de números representados na forma de fração, numeral decimal e número natural; e (iv) na representação de frações e numerais decimais na reta numérica. Em contrapartida, concluiu-se que os alunos já compreendiam bastante bem: (i) a representação pictórica e a conversão entre representação pictórica, fração e percentagem em casos simples; (ii) frações equivalentes, a partir da representação pictórica; e (iii) o que era a unidade, conseguindo completá-la com facilidade.

Aspectos positivos do trabalho dos alunos.

Na sessão 6, fez-se uma previsão de estratégias e dificuldades dos alunos na aula de investigação. A turma onde ia ser aplicada a tarefa era composta por alunos com muitas dificuldades, como Luísa foi salientando várias vezes ao longo das sessões. Contudo, perante as dúvidas e incertezas das restantes colegas e sugestões para simplificar a tarefa, indicou que também existem alunos que conseguiam fazer raciocínios interessantes e que não se devia diminuir demasiado o nível de exigência da tarefa. A propósito, Luísa referiu uma situação ocorrida na aula daquele dia em que tinha ficado positivamente surpreendida com a resolução apresentada por uma aluna:

Tenho alguns alunos que me surpreendem muito pela positiva. São aqueles alunos mais interessados. Hoje perguntei o que erade qualquer coisa e ela automaticamente fez… Eramde 40, não, não era 40 era um número mais pequeno,de 12 e ela disse: “ó Professora, fiz dois vezes doze e depois dividi por três (Luísa, Gravação de áudio da Sessão 6, 2014).

Deste modo, nesta fase, nota-se uma perspectiva das professoras já bem mais positiva relativamente às capacidades dos seus alunos. As questões colocadas pela equipa formadora sobre o que mais as surpreendeu no trabalho dos alunos levou-as a compreender que é importante olharem de forma positiva para as resoluções dos alunos. Para isso parece ter sido fundamental a realização do diagnóstico.

7 Análise dos processos de raciocínio

Generalização e justificação.

Um outro tema trabalhado no estudo de aula, em especial a partir da sessão 4, foram os processos de raciocínio, analisados a partir de exemplos de resoluções de alunos. A equipe formadora começou por fazer uma breve apresentação dos conceitos de generalização e justificação, dos quais as professoras se apropriaram com facilidade. Ao observar as resoluções dos alunos, Tânia e Inês identificaram facilmente generalizações e justificações. Assim, no caso da Figura 2, Tânia reconheceu que o aluno usou um contraexemplo para refutar uma afirmação e, por isso, estava a fazer uma justificação: “é mais uma justificação, ele vai arranjar um exemplo” (Tânia, Gravação de áudio da Sessão 4, 2013).

Figura 2
Justificação por contraexemplo (Documentos escritos analisados na formação, 2013).

Ao analisar a resolução apresentada na Figura 3, Inês identificou a justificação na alínea a): “isto aqui é uma justificação” (Inês, Gravação de áudio da Sessão 4, 2013).

Figura 3
Justificação por mudança de representação e generalização (Documentos escritos analisados na formação, 2013).

Inês reconheceu que, para verificar a igualdade, o aluno usou uma justificação válida ao mudar de representação. Em seguida, Tânia analisou a resolução da alínea b) e identificou a generalização:

Tânia: Mas depois na outra já têm aqui uma generalizaçãozinha.

Joana: Na outra tem uma generalizaçãozinha, sim. Que não é “zinha”

Tânia: Já não é para todos (Gravação de áudio da Sessão 4, 2013).

Perante a forma como Tânia enunciou a generalização, a equipe formadora decidiu valorizar, não só a sua afirmação, mas também o trabalho dos alunos, destacando a importância de o promoverem nas suas salas de aula. Na análise de outras tarefas, as professoras não tiveram dificuldades em analisar as resoluções de alunos e identificar as generalizações e justificações. Este trabalho ajudou a despertá-las para a importância de estarem atentas aos raciocínios dos seus alunos.

Oportunidades de generalização.

Na sessão 5, retomou-se a discussão sobre os processos de raciocínio dos alunos com uma síntese do que já tinha sido analisado. De seguida, Marisa desafiou as professoras a refletirem sobre possíveis generalizações no tópico da comparação e ordenação de números racionais. Luísa e Tânia deram várias sugestões mostrando que a ideia tinha sido bem compreendida:

Luísa: Por exemplo, entre frações com o mesmo denominador em que aquela que representa o número maior é aquela que tem maior numerador […]

Marisa: Então uma das coisas que podemos fazer com que eles generalizem é a regra para…

Tânia: Para comparar frações com denominadores iguais e com numeradores iguais já são logo duas das que eles têm, e depois as frações unitárias eles também [dão] (Gravação de áudio da Sessão 5, 2014).

Durante esta sessão, o ambiente foi bastante animado e percebeu-se que as professoras não se sentiam inibidas para partilhar e discutir ideias, quer entre si, quer com a equipe formadora.

Tarefas para a aula de investigação.

Na sessão 6, por sua própria iniciativa, as professoras selecionaram para a aula de investigação uma tarefa que revela preocupação com o desenvolvimento do raciocínio dos alunos. Assim, numa questão pretendiam que estes generalizassem a regra para comparar frações com o mesmo denominador e noutra questão que generalizassem a regra para comparar frações com o mesmo numerador. Como os alunos não estavam habituados a fazer generalizações, optaram por deixar a primeira questão mais dirigida, deixando a questão seguinte mais aberta. Uma terceira questão tinha como objetivo promover o uso de justificações. Para além das questões da tarefa, Luísa sugeriu ainda novas questões para desafiar os alunos na discussão oral.

8 Discussões coletivas na sala de aula

Pontos de partida para a discussão.

Tendo em vista preparar a aula de investigação, promovemos na sessão 5 uma reflexão sobre os momentos de discussão coletiva. Desafiamos as professoras a analisarem diversas resoluções de alunos e a sugerirem uma ordem pela qual podiam ser discutidas coletivamente. Inês começou por salientar o aspecto “atrativo” de uma resolução. Por sua vez, Luísa referiu que escolhia a mesma resolução para começar, pelo fato de conter erros: “Eu acho que aquela que apresenta mais erros […] É aquela que eu escolhia” (Luísa, Gravação de áudio da Sessão 5, 2014). Francisca manifestou idêntica opinião. Depois de ouvir estes argumentos, Inês mudou de posição e tanto ela como Tânia afirmaram escolher a resolução que tinha menos erros. Marisa desafiou as professoras a justificarem as escolhas feitas, uma vez que tinham fundamentos completamente opostos:

Tânia: Escolheria o […] que está mais correto, matematicamente é o que está mais correto.

Inês: Portanto é o que está melhor a nível de apresentação e a nível da escrita também (Gravação de áudio da Sessão 5, 2014).

Pelo seu lado, Francisca e Luísa alertaram para a necessidade de dar atenção às resoluções que têm erros. Diz Francisca:

Mas depois também se tem de chamar à atenção destas. Pegar pelos erros, na minha perspectiva, não é dizer que isto está errado, não é inferiorizar as crianças, não é nada disso. É tentar ver os erros e tentar esclarecer o maior número de alunos para aqueles erros, porque não são só estes que vão fazer este tipo de leitura, há muitos mais na turma que vão fazer exatamente o mesmo tipo de coisa (Gravação de áudio da Sessão 5, 2014).

Na sequência, Tânia mostrou aceitar os argumentos dados pelas colegas. Referiu que também se podem apresentar várias resoluções, incluindo algumas totalmente corretas, sem as avaliar, o que leva os alunos a considerar as resoluções dos colegas, proporcionando momentos de discussão entre eles: “colocamos isso no quadro (faço isso muitas vezes) e se não dissermos nem que está correto, ou não está, e perguntarmos quem é que tem igual e quem é que fez de maneira diferente, então vamos ver…” (Gravação de áudio da Sessão 5, 2014). Por fim, o grupo aceitou as duas possibilidades, assumindo o interesse de discutir as várias resoluções e que os alunos compreendam porque é que uma dada resolução está correta ou incorreta. Apesar de terem posições muito diferentes, as professoras argumentaram de forma clara e fundamentada as suas opiniões acabando por chegar a um consenso que valorizou todas as perspectivas.

Preparação da aula de investigação.

Tânia sugeriu que fossem colocadas várias resoluções dos alunos no quadro, algumas certas e outras erradas, para provocar a discussão e o aparecimento de desacordos entre os alunos: “pois, estando lá a certa somente, ali acaba porque os outros [pensam] ‘pronto fiz errado'. Nem percebem porque é que está errado” (Gravação de áudio da Sessão 5, 2014). Maria pareceu achar a ideia bastante complicada:

Maria: Então a ideia era a Luísa pôr no quadro as respostas…

Marisa: Algumas.

Luísa e Marisa: Duas ou três.

Maria: E depois põe à discussão da turma […] Isso é muito trabalho para uma professora em sala de aula (Gravação de áudio da Sessão 5, 2014).

Maria mostrou reservas em relação à ideia, mas Luísa concordou com a sugestão de Tânia e apontou como poderia ser a condução da discussão:

Luísa: Podíamos analisar uma e dizermos: “o que é que aqui se passa? Quem é que concorda?” Não é? […]

Maria: Quem é que acha que esta está certa, no fundo […]

Tânia: Dar a palavra a quem está no quadro, porque ele depois acaba por argumentar: “Eu fiz assim porque eu pensei que…”

Luísa: Normalmente quando eles vão ao quadro eles explicam e depois eu peço: “então e tu concordaste? Ah! Não? Então porquê?” Pronto, aquele que está no quadro explica e depois se existir algum que não concorde… (Gravação de áudio da Sessão 5, 2014).

Desta forma, o grupo optou por dinamizar uma discussão coletiva em que os alunos seriam chamados a argumentar e a justificar as suas estratégias. Notou-se que as professoras já não falavam em “corrigir”, mas sim em “discutir” as tarefas e procuravam definir uma dinâmica de comunicação dialógica entre alunos e professora.

9 A aula de investigação

Planejamento.

Na escolha da tarefa (ver Anexo 2) e no planejamento da aula notou-se que as professoras procuravam aplicar as ideias discutidas nas sessões anteriores. Assim, como acabamos de ver, selecionaram tarefas com o objetivo de promover o desenvolvimento do raciocínio dos alunos, procuraram dar atenção aos aspectos positivos do seu trabalho e organizaram uma discussão coletiva para promover o aparecimento de desacordos e fomentar a participação ativa dos alunos.

A aula.

A aula foi lecionada por Luísa e observada pelas restantes professoras, pela equipe formadora e por uma professora da direção da escola, num total de oito observadores. Como os alunos trabalharam individualmente, cada observador seguiu o trabalho de um aluno. Luísa começou por explicar o que se iria passar na aula e o papel dos observadores. Depois, entregou a tarefa aos alunos e introduziu a questão 1. Os alunos trabalharam individualmente durante cerca de 10 minutos e, em seguida, realizou-se a discussão coletiva desta questão que demorou cerca de 35 minutos, bastante mais que o previsto. Os alunos identificaram frações equivalentes e frações que representam a unidade e Luísa aproveitou essas “descobertas” para abordar esses conceitos. Na sequência, a professora introduziu a questão 2 com uma breve leitura do enunciado. Em seguida, os alunos trabalharam individualmente nessa questão e já não houve tempo para a discutir nem para realizar a questão 3. Inicialmente, os alunos ficaram admirados com a quantidade de pessoas na sala, mas no decorrer da aula não se mostraram constrangidos, tendo feito o seu trabalho individual naturalmente e participado ativamente na discussão coletiva. De acordo com Luísa, tiveram um comportamento muito melhor do que nas outras aulas.

Reflexão.

Na tarde do mesmo dia fez-se a reflexão sobre a aula de investigação. Marisa começou por pedir às professoras que apresentassem os aspectos que consideravam positivos e as dificuldades dos alunos. Relativamente à questão 1, verificou-se que diversos aspectos da interpretação do enunciado representaram dificuldades imprevistas para os alunos. Na reflexão sobre a discussão coletiva desta questão, como aspectos positivos, Luísa salientou o fato de ter discutido com os alunos conceitos que não estavam planejados, como a noção de fração equivalente: “uma das coisas (mais interessantes) foi mesmo eles terem dado conta das frações equivalentes, pegarem nas representações e conseguirem encontrar frações equivalentes sem ainda saberem o nome, não é? […] Foi positivo” (Gravação de vídeo da Sessão 8, 2014). Na sequência, Marisa referiu que foi a aluna que ela observou (Berta) quem introduziu esta noção na discussão, apesar de não o ter feito na resolução individual. Para além da representação ⅔ (a figura estava dividida em 3 partes, estando assinaladas 2), que a generalidade dos alunos registrou, esta aluna indicou . Fez-se então o visionamento do seguinte diálogo registado no vídeo:

Berta: No a) eu sei outra.

Professora: Sabes? Diz lá.

Berta: Quatro sextos.

Professora: Quatro sextos […] A unidade dividida em três partes e temos duas dessas partes pintadas. A Berta diz que esta figura pode ser representada por quatro sextos. Explica lá porquê quatro sextos.

Berta: Porque se dividirmos a figura ao meio…

Professora: Ao meio como?

Berta: Na horizontal… [figura 4] Ficamos com quatro partes pintadas que é o numerador e seis partes onde a figura está dividida (Gravação de vídeo da Sessão 8, 2014).

Figura 4
Justificação de Berta para a representação (Documentos escritos analisados na formação).

Inês salientou a forma como Berta justificou o seu raciocínio: “a Berta representou os taisdepassou paraeu acho que ela explicou realmente de uma maneira muito simples, pondo um traço ao meio e os outros viram que realmente… Muito bem…” (Gravação de vídeo da Sessão 8, 2014)., ,

Os alunos tiveram muito pouco tempo para resolver a questão 2, mas discutiu-se o trabalho que realizaram. Um aspecto muito valorizado no planejamento é que se devia saber que os jardins referidos no enunciado tinham as mesmas dimensões, pois só assim se podiam comparar as frações apresentadas. Esta questão acabou por gerar grandes dificuldades aos alunos, que fizeram representações pictóricas sem respeitar esta condição e perguntavam: “os jardins são iguais? Mas como, se os denominadores não são iguais?” (Gravação de vídeo da Sessão 8, 2014). Luísa viu-se assim obrigada a desdobrar-se em explicações junto dos alunos indicando que os jardins eram iguais. Este episódio levou as professoras a refletir sobre os cuidados a ter no enunciado das questões.

Modificações a fazer na aula.

Apesar de achar muito positiva a forma como Luísa aproveitou as intervenções dos alunos para abordar a equivalência de frações e o conceito de unidade, Tânia considerou que o objetivo da aula, a aprendizagem da comparação de frações, não tinha sido alcançado: “acho que aquilo que acabamos por pensar para a […] Comparação de frações […] Esta [tarefa] não dá […] Portanto, temos de fazer outra ficha ou outro trabalho completamente diferente para a comparação de frações” (Gravação de vídeo da Sessão 8, 2014). Concordando com esta análise, Luísa e Maria sugeriram alterações a fazer a algumas questões para uma eventual nova aplicação da tarefa.

Assim, nesta discussão, as professoras mostraram capacidade de apreciar tanto as dificuldades como os desempenhos positivos dos alunos, no trabalho autônomo e na discussão. Valorizaram também o partido que se tirou das oportunidades de aprendizagem que surgiram no decorrer da aula, ao mesmo tempo que revelaram espírito crítico em relação à tarefa usada, assumindo a necessidade da sua reformulação.

10 Sessões de seguimento

Na sequência da aula de investigação, programamos mais quatro sessões em que as professoras iriam elaborar novas tarefas, no mesmo ou noutros temas, aplicá-las na sua sala de aula e refletir coletivamente sobre a sua realização pelos alunos. Os temas escolhidos foram operações com números racionais (no 5.° ano), números inteiros relativos (no 6.° ano) e cálculo mental (nos dois anos). A elaboração das tarefas deveria ser acompanhada da antevisão das possíveis estratégias e dificuldades dos alunos.

Indo ao encontro daquilo que havia sido discutido nas sessões anteriores, as professoras seguiram o modelo de planejamento da aula de investigação. Escolheram tarefas exploratórias, dando aos alunos oportunidade para manipular materiais (tiras de papel) e fazer generalizações. Empenharam-se em prever estratégias e dificuldades dos alunos e formas de ultrapassar essas dificuldades. Determinaram os momentos em que poderiam parar para ajudar os alunos a interpretar os enunciados. E, por fim, definiram que os alunos iriam trabalhar a pares e programaram os momentos de discussão coletiva.

Na sua reflexão sobre as aulas que realizaram nesta fase, as professoras valorizaram o surgimento de diferentes estratégias de resolução nas suas aulas e partilharam o que as tinha surpreendido. Verificou-se que continuavam a valorizar tarefas que promovessem o raciocínio dos alunos. Por exemplo, o objetivo principal de uma das tarefas proposta por Francisca, Luísa e Maria era levar os alunos a descobrirem as regras para multiplicar um número inteiro por uma fração e para multiplicar duas frações, tendo estas professoras partilhado de forma entusiasmada o sucesso dos seus alunos na generalização dessas regras e destacado a necessidade de se apoiar este tipo de atividade na sala de aula.

11 Balanço global

Na segunda parte da última sessão fizemos um balanço global do estudo de aula. Começamos por recordar o que foi feito em cada sessão e, relativamente a cada atividade, perguntamos às professoras se achavam que teria de manter ou de mudar num futuro estudo de aula. As professoras falaram da sua experiência, justificando as suas opiniões.

O primeiro ponto abordado foi a estranheza inicial manifestada pelas professoras sobre este modelo de formação. Todas referiram que estavam à espera de outro tipo de formação. Maria indicou não ter conseguido perceber como se iria “perder todo aquele tempo, entre aspas, para preparar uma única aula” (Gravação de vídeo da Sessão 12, 2014). Luísa referiu que esperava que pudessem “trabalhar tópicos diferentes” (Gravação de vídeo da Sessão 12, 2014). Francisca mencionou que teria preferido trabalhar a Geometria. Tânia indicou ter ficado desiludida por sentir necessidade de analisar as novas metas curriculares, ao contrário do que aconteceu.

Questionadas sobre se tinha valido a pena o investimento nesta formação, Luísa referiu que, apesar de não saber como seria de outra forma, “…foi muito positivo” (Gravação de vídeo da Sessão 12, 2014). Para Maria, destacou-se, essencialmente, o potencial do trabalho conjunto: “Eu acho que essencialmente o trabalho colaborativo, o grupo, mais a Marisa e mais o Professor, foi… Essa parte achei que foi muito… Valeu a pena o tempo” (Gravação de vídeo da Sessão 12, 2014). Francisca salientou também a importância do trabalho no grupo:

Ao longo das sessões nós fomos vendo que isto realmente é proveitoso e que aprendemos a trabalhar colaborativamente. Isso para mim foi suficiente. Tanto que eu acho que o nosso grupo de Matemática, neste momento, consegue falar uns para outros sem entraves. Eu acho que isso é uma mais-valia. Este aspecto para mim foi o principal, nós começámos a trabalhar como um grupo (Gravação de vídeo da Sessão 12, 2014).

Por fim, Tânia salientou igualmente que a potencialidade da formação está na “oportunidade de partilha” (Gravação de vídeo da Sessão 12, 2014) com as colegas da escola.

Perguntamos também o que tinham achado da resolução de tarefas de Matemática. Maria salientou que gostava de ser desafiada e de resolver tarefas que a obrigassem a pensar, de modo a não ficar estagnada na Matemática que ensina aos seus alunos:

Nós às vezes também acabamos por ficar muito limitadas e se há uma coisa nova que nos obriga a pensar um pouco mais além, a sair do 2×3, isso motiva-nos, a mim motiva, eu ainda faço os exames no 9.° ano […] Às vezes preciso de um bocadinho mais de Matemática, e acho que estas sessões nos ajudaram [nisso] (Gravação de vídeo da Sessão 12, 2014).

De seguida, discutiu-se a importância da realização do diagnóstico. As professoras referiram que esta fase do estudo de aula permitiu uma importante discussão no grupo sobre o que os alunos já sabiam ou não e sobre as suas surpresas relativamente às expectativas iniciais. Maria salientou ainda que a realização de diagnósticos vai rareando cada vez mais nas suas práticas e que a formação lhes permitiu refletir sobre a sua necessidade.

Questionamos as professoras sobre a importância de analisar a natureza das tarefas e o raciocínio dos alunos. Tânia achou que esta atividade tinha sido importante e justificou a sua opinião:

Eu acho que é [útil], porque, quanto menos… Nós temos que abrir o leque e, é aquilo que nós dizemos, nós temos alunos que vão estar nos exercícios, exercício e mais exercício, mas temos de pensar que há alunos que têm capacidade para muito mais do que isso, e nós não temos de pensar só nos alunos que têm dificuldades, e muitas vezes temos turmas em que há possibilidades de alunos fazerem generalizações e justificações (Gravação de vídeo da Sessão 12, 2014).

Tânia criticou a atitude dos professores de se prenderem demasiado ao fato de haver alunos com dificuldades, limitando o grau de desafio das questões que lhes colocam.

Quando solicitamos às professoras que refletissem sobre o planejamento, a aula de investigação e a reflexão pós-aula, centraram-se sobretudo na reflexão pós-aula:

Foi proveitosa para todos nós, porque verificamos que quando estamos em situação de sala de aula as coisas às vezes não correm tão bem como estamos à espera. E outras coisas, os miúdos surpreendem-nos com as resoluções que apresentam […] Achei que foi uma aula muito engraçada… Diferente do habitual… (Francisca, Gravação de vídeo da Sessão 12, 2014).

Francisca salientou a imprevisibilidade da aula e destacou a forma como muitas vezes os alunos surpreendem os professores com as suas resoluções. Regista-se a forma positiva como esta professora vê aqui o trabalho dos alunos, e que difere bastante do seu discurso na sessão 4 onde se centrava, essencialmente, nas suas dificuldades e erros.

Francisca e Luísa salientaram como grande aprendizagem ao longo do estudo de aula, o valor da discussão coletiva. Maria também destacou a discussão coletiva como uma das aprendizagens principais feitas no estudo de aula:

Não tivemos tempo de fazer tudo no quadro, mas quando explicavam como é que tinham lá chegado… Acho que é sempre… Aliás, foi uma das coisas que eu aprendi aqui nesta ação que é: chatear os rapazes para explicarem como é que pensaram […] Agora explicam tudo tintim por tintim, e explicam com pormenor. Acho que isso foi esta ação que me trouxe, esta discussão… (Gravação de vídeo da Sessão 12, 2014).

Quanto às quatro sessões que se seguiram à aula de investigação, as professoras começaram por referir que foram importantes para que todas pudessem pôr em prática nas suas aulas aquilo que tinha sido anteriormente trabalhado:

Eu acho que é um caminho lógico. Porque […] Isto não foi só os racionais, nós tivemos como pano de fundo os racionais e estivemos a trabalhar mais coisas, e aquilo que aprendemos na aula observada aplicamos agora. Nós estivemos a ver as possíveis dificuldades, cada uma escolheu as expressões mais adequadas às suas turmas para verificarmos qualquer coisa. Portanto, e aplicamos no final aquilo que eu acho que é essencial e que todas nós aprendemos, que foi a discussão. A discussão com os nossos alunos é o ponto fulcral disto tudo (Francisca, Gravação de vídeo da Sessão 12, 2014).

Para Tânia, nas sessões finais, a preparação das aulas em conjunto com as colegas permitiu-lhe diversificar as tarefas. Por fim, Maria destacou a importância do trabalho em grupo e da partilha:

De qualquer modo, para acabar, só queria dizer uma coisa: acho que todos os professores deviam fazer um Estudo de Aula. Uma vez na vida deviam ter a oportunidade de preparar uma aula desta maneira, porque realmente é uma experiência diferente e deixa muitas coisas pequeninas que a gente vai retirando de uma sessão, de outra sessão, de outra sessão. E depois, outra coisa destas sessões, é ouvir outras pessoas […] Este contato com pessoas eu gosto. Portanto, um estudo de aula para todos os professores!… (Gravação de vídeo da Sessão 12, 2014).

Ao longo desta reflexão, as professoras reconheceram vários fatores que as podem ter levado a envolver-se no trabalho como a resolução de tarefas matemáticas e a exploração de temas como a natureza das tarefas e os processos de raciocínio dos alunos. Valorizaram em especial a importância das discussões coletivas na sala de aula. Destacaram ainda o trabalho colaborativo e a oportunidade para se constituírem num grupo de trabalho onde se integraram as professoras novas na escola.

12 Discussão e conclusão

Vejamos então os aspectos mais salientes do estudo de aula como metodologia de formação. Ao participarem neste estudo de aula, as professoras realizaram atividades que não são muito habituais no seu dia a dia profissional. Em primeiro lugar, realizaram diversas tarefas matemáticas que tinham de apreciar na sua qualidade de professoras, algumas das quais se revestiam para elas de um certo desafio. Em segundo lugar, a reflexão aprofundada sobre as dificuldades e estratégias dos alunos nas tarefas matemáticas representou uma atividade nova, que a princípio as surpreendeu, mas cujo interesse rapidamente reconheceram. A realização de um diagnóstico dos conhecimentos e dificuldades dos alunos constituiu uma pequena investigação inserida na sua prática que foi preparada numa sessão, passou pela sala de aula e pela análise individual dos resultados dos seus alunos e proporcionou um momento de discussão aprofundado na sessão seguinte. As discussões do grupo de formação sobre vários aspectos, incluindo a preparação da aula e a reflexão pós-aula, proporcionaram situações de trabalho conjunto e partilha não só entre as professoras, mas também destas com a equipe formadora. A realização de reflexões aprofundadas, baseadas em material recolhido ou estudado em trabalho anterior, foi um aspecto marcante deste processo formativo. Tudo isto proporcionou o envolvimento das professoras no trabalho proposto.

Em consequência, as professoras, como elas próprias reconheceram, fizeram importantes aprendizagens. Assim, tornaram-se muito mais atentas às dificuldades que os alunos têm na aprendizagem de conceitos e na resolução de problemas matemáticos, passaram a valorizar as capacidades dos alunos, reconhecendo que estes têm muitas vezes estratégias interessantes e surpreendentes. Passaram também a valorizar o raciocínio matemático que se pode fazer na sala de aula, em particular as generalizações (elemento fundamental do raciocínio indutivo e abdutivo) e justificações (elemento fundamental do raciocínio dedutivo) (PONTE; MATA-PEREIRA; HENRIQUES, 2012PONTE, J. P.; MATA-PEREIRA, J.; HENRIQUES, A. O raciocínio matemático nos alunos do ensino básico e do ensino superior. Praxis Educativa, Ponta Grossa, v. 7, n. 2, p. 355-377, 2012.). Outro aspecto importante da prática profissional que mereceu bastante atenção, nomeadamente na preparação da aula, na reflexão pós aula e no trabalho subsequente, foram as discussões coletivas em que os alunos são convidados a apresentar e justificar as suas estratégias de resolução, argumentando uns com os outros, e que algumas professoras reconheceram como a sua aprendizagem fundamental neste estudo de aula.

Outro aspecto muito valorizado pelas professoras foi o ambiente de colaboração (BOAVIDA; PONTE, 2002BOAVIDA, A. M.; PONTE, J. P. Investigação colaborativa: potencialidades e problemas. In: Grupo de Trabalho sobre Investigação (GTI) em Educação Matemática (Org.). Reflectir e investigar sobre a prática profissional. Lisboa: APM, 2002. p. 43-55.) que teve lugar e que juntou as cinco professoras, que tinham boas relações pessoais, mas não trabalhavam em conjunto, estando até duas delas (as professoras contratadas) pouco integradas na escola. Este espírito de colaboração marcou também a relação das professoras com os elementos da equipe formadora, dada a proximidade que se criou e o fato de todos contribuírem para um empreendimento comum numa lógica de valorização da experiência e do conhecimento dos demais participantes. Verificamos assim que num estudo de aula os professores podem realizar importantes aprendizagens de cunho profissional, tanto diretamente ligadas ao ensino da Matemática como relacionadas com aspectos mais gerais da atividade docente (PONTE; BAPTISTA; VELEZ; COSTA, 2012PONTE, J. P.; BAPTISTA, M.; VELEZ, I.; COSTA, E. Aprendizagens profissionais dos professores através dos estudos de aula. Perspectivas da Educação Matemática, Campo Grande, n. 5, p. 7-24, 2012.).

Este tipo de formação era completamente desconhecido das professoras e começou por lhes causar grande estranheza. O fato de se centrar toda a atenção na preparação de um tópico para uma aula pareceu-lhes à partida um desperdício de tempo que poderia ser usado no estudo de muitos outros tópicos, em relação aos quais tinham grandes inseguranças, até porque estavam a viver um momento de mudança curricular. Além disso, aspectos como a presença de grande número de observadores na sala de aula e o fato de um professor ser observado (e, consequentemente, sujeito a um processo pelo menos implícito de avaliação) também contribuíram para que tivessem uma atitude de grande desconfiança inicial em relação ao estudo de aula. A natureza das atividades propostas e a forma cuidadosa como as sessões de trabalho foram preparadas levaram a que rapidamente as professoras se envolvessem no trabalho, em relação ao qual evidenciaram no final uma apreciação francamente positiva.

Nas primeiras sessões, o protagonismo foi assumido essencialmente pela equipe formadora, através das suas propostas de trabalho e da condução das discussões. As tarefas propostas e, principalmente, o pedido para que trouxessem sugestões e elementos recolhidos da sua prática, permitiram que grande parte das sessões tivesse sido realizada tendo por base os seus materiais. Isto levou a que, a partir de certa altura, as professoras se sentissem nas sessões perfeitamente à vontade para intervir, fazer propostas e comentários, assumindo igualmente um forte protagonismo no processo formativo. Deste modo, o estudo de aula integra diversos elementos fundamentais de uma investigação realizada no campo da prática profissional dos professores envolvidos (PONTE, 2002PONTE, J. P. Investigar a nossa própria prática. In: Grupo de Trabalho sobre Investigação (GTI) em Educação Matemática (Org.). Reflectir e investigar sobre a prática profissional. Lisboa: APM, 2002. p. 5-28.), nomeadamente o fato de se debruçar sobre aspectos fundamentais dessa prática (as dificuldades de aprendizagem dos alunos), recolhendo diretamente elementos de trabalho dessa mesma prática e intervindo sobre ela (na realização do diagnóstico, na aula de investigação, na análise de resoluções de alunos, e na preparação e reflexão das aulas da fase final). O estudo de aula permite integrar contributos da teoria e de investigações anteriores (introduzidos principalmente nas sessões através das tarefas propostas e das discussões conduzidas pela equipe formadora), ao mesmo tempo que valoriza a experiência e os conhecimentos profissionais dos professores envolvidos.

Esta experiência mostra claramente as grandes potencialidades dos estudos de aula como processo de formação, que se tornarão muito mais efetivas ao se tornarem prática corrente no sistema educativo como já acontece presentemente no Japão (TAKAHASHI; MCDOUGAL, 2014TAKAHASHI, A.; MCDOUGAL, T. Implementing a new national curriculum: a Japanese public school's two year lesson-study project. In: KARP, K.; MCDUFFIE, A. R. (Ed.). Using research to improve instruction. Reston, VA: NCTM, 2014. p. 13-22.). É preciso ter em conta, no entanto, que a realização de um estudo de aula com sucesso requer uma efetiva disponibilidade dos professores participantes e um planejamento e condução cuidadosos por parte da equipe formadora.

Agradecimento

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia por meio de bolsas atribuídas a Marisa Quaresma (SFRH/BD/97702/2013) e a Joana Mata-Pereira (SFRH/BD/94928/2013).

Referências

  • BOAVIDA, A. M.; PONTE, J. P. Investigação colaborativa: potencialidades e problemas. In: Grupo de Trabalho sobre Investigação (GTI) em Educação Matemática (Org.). Reflectir e investigar sobre a prática profissional Lisboa: APM, 2002. p. 43-55.
  • FERNANDEZ, C.; CANNON, J.; CHOKSHI, S. A US–Japan lesson study collaboration reveals critical lenses for examining practice. Teaching and Teacher Education, Cardiff, n. 19, p. 171-185, 2003.
  • LEWIS, C. C.; PERRY, R. R.; HURD, J. Improving mathematics instruction through lesson study: A theoretical model and North American case. Journal of Mathematics Teacher Education, Netherlands, v. 12, n. 4, p. 263-283, 2009.
  • MURATA, A. Introduction: conceptual overview of lesson study. In: HART, L. C.; ALSTON, A.; MURATA, A. (Ed.). Lesson study research and practice in mathematics education New York, NY: Springer, 2011. p. 1-12.
  • PERRY, R.; LEWIS, C. What is Successful Adaptation of Lesson Study in the U.S.? Journal of Educational Change, Netherlands, v. 10, n. 4, p. 365-391, 2009.
  • PONTE, J. P. Investigar a nossa própria prática. In: Grupo de Trabalho sobre Investigação (GTI) em Educação Matemática (Org.). Reflectir e investigar sobre a prática profissional Lisboa: APM, 2002. p. 5-28.
  • PONTE, J. P.; BAPTISTA, M.; VELEZ, I.; COSTA, E. Aprendizagens profissionais dos professores através dos estudos de aula. Perspectivas da Educação Matemática, Campo Grande, n. 5, p. 7-24, 2012.
  • PONTE, J. P.; MATA-PEREIRA, J.; HENRIQUES, A. O raciocínio matemático nos alunos do ensino básico e do ensino superior. Praxis Educativa, Ponta Grossa, v. 7, n. 2, p. 355-377, 2012.
  • TAKAHASHI, A.; MCDOUGAL, T. Implementing a new national curriculum: a Japanese public school's two year lesson-study project. In: KARP, K.; MCDUFFIE, A. R. (Ed.). Using research to improve instruction. Reston, VA: NCTM, 2014. p. 13-22.

Anexo 1

Quadro 1
Temas e atividades do Estudo de Aula (Documento produzido pela equipe de formadores, 2013).

Anexo 2

Figura 5
A tarefa da aula de investigação, organizada em três questões (Documento produzido durante a formação, 2014).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    Abr 2015
  • Aceito
    Mar 2016
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