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Uma Escola Pode e Muito Mais, Senhor!

ROTONDO. M. A., S. O que pode uma escola? Cartografias de uma escola do interior brasileiro. 2010. 158 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) -. Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro: 2010. Tese orientada por Antonio Carlos Carrera de Souza

Uma escola é, necessariamente, um empreendimento coletivo permeado de encontros. Nesses encontros, potencializamos nossos modos de pensar e agir, de estar no mundo, de compreendê-lo, de significá-lo. No entanto, o que acontece quando esses encontros são afetados por modificações de um projeto político-pedagógico? Que novas subjetividades podem se constituir nesse movimento? Como a escola cria mecanismos de subversão e sujeição às novas constituições desse espaço? Que estilos de vida a escola insiste/resiste em constituir?... Enfim, o que pode uma escola?

Aproximando-se dessas inquietações e dos modos de pensar da Filosofia da Diferença, Margareth Rotondo pretende "fazer um exercício de pensamento acerca de como são potencializados os processos de produção de subjetividade em uma escola que passa por alterações em seu projeto político-pedagógico" (ROTONDO, 2010, p. 6). A autora destaca que seu objetivo não é o de responder a uma questão bem delimitada a partir de uma estruturação teórico-metodológica previamente estabelecida, mas de deixar emergir na escrita modos de "prender o que aconteceu usando palavras" (p. 10), buscando um texto que, mesmo assumindo todas as armadilhas e perdas próprias da linguagem, sustente a problematização constante que se dá no movimento-pesquisa.

Consideremos que o problema construído por tal questão seja o como organizar uma escrita que possa dar conta do que chamaremos de movimento-pesquisa desta tese, que vai desde o encontro com o campo de pesquisa, passando pelo encontro com a Filosofia da Diferença, pela opção metodológica, pela opção por uma política cognitiva como também a de narratividade, porém considerando que tais momentos não se deram sequencialmente e, sim, que cada um deles se misturava aos outros, comprometendo-os intensamente. (p. 9)

No início do trabalho - que se configura em textos articulados e não designados em capítulos numerados - a autora esboça os caminhos do movimento-pesquisa em alguns de seus aspectos.

No primeiro deles, Encontro com o campo, Rotondo tece uma narrativa na qual elucida ao leitor a escolha pela escola em que a pesquisa foi realizada: durante um Seminário de Educação Matemática, uma palestrante contava que, ao receber o convite para assumir a Secretaria de Educação de uma cidade nas redondezas de Juiz de Fora, colocou em prática um projeto-pedagógico diferenciado na única escola municipal da cidade. Rotondo conta que se indagava em "como os professores que atuavam na escola que recebia a anunciada alteração no projeto político-pedagógico eram afetados por tais mudanças em suas vidas e em seus mundos" (p. 10). Inicialmente, a pesquisadora conta que seu interesse era o de investigar os modos de existir dos professores de Matemática nesse ambiente de mudança, porém, ao vivenciar o campo, Rotondo percebeu a impossibilidade de não levar em consideração os modos de existir dos alunos, dos professores de outras disciplinas, dos pais, dos gestores, ou seja, dos mais diversos personagens que vivenciam o espaço escolar. Nesse turbilhar, a pesquisadora destaca que "nessa violência sofrida através das afetações nas idas a campo ou até quando me distanciava dele, como também durante as leituras que fazia, que me impunham a indagar sempre que estilo de vida, ou seja, que modos de existir a escola pode gerar e gerir" (p. 11).

No segundo aspecto, Encontro com a Filosofia da Diferença, a autora traz algumas apreensões filosóficas que a auxiliaram na constituição de sua proposta de investigação. "Fui agenciada" (p. 13) - essas são as palavras por ela usadas para anunciar como essa Filosofia abalou a dureza de pesquisadora que trazia. Segundo Rotondo, esse movimento não se deu por meio de uma compreensão direta dos conceitos dessa Filosofia, mas junto a modos outros de pensar que potencializavam e problematizavam, a todo instante, sua questão de investigação. Era, portanto, a incompreensão que a guiava. São tratados nesse texto conceitos como encontro, conhecimento, pensamento, aprendizagem, cognição... Contudo, o que mais chama a atenção nesse momento é a decisão tomada pela autora de "ir compondo a questão à medida que acontecia o movimento-pesquisa" (p. 22). Isso quer dizer que a escrita da questão, bem como a da tese, foi tomando várias formas; mas sempre educando a atenção para os processos de subjetivação potencializados pela escola junto a esse processo de mudança.

O terceiro aspecto refere-se à Decisão acerca de uma política cognitiva. A partir dos estudos de Virgínia Kastrup, diferenciam-se no texto dois tipos de política da cognição: a recognição e a invenção. A autora assume que o seu exercício de pensamento não se dará por meio da recognição, isto é, do movimento de buscar respostas, passando de uma situação na qual não se sabe para outra na qual se sabe; mas, sim,por meio de uma política cognitiva de invenção que se pauta na problematização das práticas cotidianas que vão se constituindo na escola durante as alterações do espaço político-pedagógico.

A Decisão Metodológica compreende o quarto aspecto do movimento-pesquisa. Agenciada por uma disposição à política cognitiva de invenção e à noção de experiência de Jorge Larrosa - que afirma que a experiência não é o que acontece, mas aquilo que nos acontece -, a autora opta por uma abordagem que está além e aquém das dimensões teórico-metodológicas e epistemológicas de um trabalho científico, mas que pretende também abrir uma dimensão ontológica para o mesmo. De tal modo, destaca que o movimento metodológico assumido pretende sustentar as problematizações da pesquisa, não se esgotando no objetivo de encontrar respostas e soluções para as questões.

Nesse momento, a Cartografia, método de pesquisa que encontra no pensamento de Gilles Deleuze e Felix Guattari seu suporte, toma lugar. Nesse movimento, é fundamental estar atento aos agenciamentos no campo de pesquisa, buscando acessar as forças em constituição, a processualidade: a cartografia pretende acompanhar processos. O método cartográfico não possui, então, um conjunto de regras a serem seguidas ou um arcabouço teórico-metodológico que o sustenta: a cartografia se constitui na práticade pesquisa, na constituição do pesquisador/cartógrafo. No entanto, a cartografia exige dispositivos: é necessário "um disparador, um propulsor, que faz com que o indizível e o invisível, o que está na virtualidade do campo se atualize, ou seja, ele produz efeitos e transformação na realidade" (p. 35). Rotondo, em sua prática cartográfica de pesquisa, aponta os quatro dispositivos que foram por ela utilizados: as observações em campo, que permitiam à pesquisadora vivenciá-lo, em seus múltiplos agenciamentos; as notas de campo, que eram redigidas após as observações e revelavam a frustração/euforia em conseguir materializar na escrita o experienciado no campo; as entrevistas, com a função de explicitação, buscavam evidenciar na fala dos entrevistados aspectos do cotidiano da escola que potencializavam seus processos de subjetivação; e os desenhos, que se constituíram enquanto um dispositivo dentro do dispositivo entrevista, permitindo que as falas se atualizem no/através do ato de desenhar. A autora conta, porém, que esses dispositivos não foram usados de forma linear: eram as aflições e problematizações do movimento-pesquisa que evidenciavam sua necessidade em um determinado momento.

O último aspecto apontado pela autora é a Decisão por uma política de narratividade. Pautada em suas decisões pela Filosofia da Diferença e pela cartografia como metodologia de pesquisa, a autora discute a necessidade de uma escrita que seja encarnada do vivido/experienciado, revelando a processualidade e a intensidade do campo investigativo. No texto, essa escrita se desenvolve por meio do entrecruzamento das notas de campo, das notas das entrevistas, dos recortes de trechos delas textualizados, das fotos, dos atravessamentos da literatura, da música, do cinema, e das alianças teóricas estabelecidas com pensadores da Filosofia da Diferença. O objetivo principal dessa escrita, acordada com uma política cognitiva de invenção, é promover agenciamentos no leitor por meio de um mergulho na intensidade da experiência, permitindo interrogações, inquietações, enfrentamentos, formulações: um exercício de pensamento sobre os processos de subjetivação que são potencializados na escola mediante tais mudanças.

A partir desses aspectos, a escrita do texto recorre ao Abrigo vida-escola. Esse abrigo, um conceito, permitirá ao leitor acompanhar a pesquisadora em uma caminhada pelo movimento-pesquisa. Por vezes, esse abrigo possui camadas finas em que é possível abrir fendas para entrever linhas de subjetivação e de fuga,dando acesso aos processos de constituição da vida-escola que não estão associados a modelos identitários ou ideias. No entanto, ao mesmo tempo, esse abrigo também possui camadas mais espessas, protegidas por guardiões, e que nos permitem perceber os processos de sujeição, os assujeitamentos que vencem a resistência e que não permitem a constituição de novos modos de existir para a vida-escola.

No abrigo O Pai Nosso, as questões "Através de que práticas, através de que saberes ou de que poderes, nos tornamos o que somos hoje? Como entramos em certos jogos de verdade e de poder?" (p. 60) são levantadas pela autora e promovem uma discussão acerca da disciplinarização e do controle que a escola exerce. São apontadas no texto várias situações em que se experienciam modos pelos quais a escola mantém à margem O Fora, buscando guardar sua função teleológica baseada em currículos,normas, calendários, previsões - aquilo que impede a invenção em nome dos discursos idealizados.

Outro abrigo, O Possível, discute essencialmente a questão "Que escola é essa, que deixa a vida lá fora?" (p. 77). Aqui, vivenciamos situações em que a caminhada pelo abrigo vida-escola se deu em suas camadas mais finas. Desprendendo-se da semelhança, do possível e da identidade como princípio, a multiplicidade ganha centralidade, sendo o abrigo vida-escola experienciado em camadas mais porosas em que modos outros de pensar e cultivar a existência vão sendo produzidos.

O abrigo Um dentro, baseado nas questões "Como somos capazes de dobrar as forças, dobrar a linha, ou as relações de poder, e de fazê-las converter a nós mesmos? Como passar por esse poder? Como atravessá-lo? Como conquistar a coragem de curvar a força sobre si mesmo?" (p. 92), discute as relações de poder presentes no cotidiano da escola, revelando resistências às formas de subjetividade impostas no espaço escolar. Assim, emergem no abrigo vida-escola dobras na experienciação sobre si: a libertação do poder e a possibilidade de potencializar processos de subjetivação, sempre inventivos e nunca antecipáveis.

No último abrigo apresentado, Uma conversa, a autora reúne seus entrevistados numa trama narrativa que pretende discutir "Que escola é essa que está acontecendo?" (p. 116). O texto, que se constitui como uma conversa entre seus entrevistados e a pesquisadora em uma intensa trama narrativa, permite experienciar, junto às falas e aos desenhos que vão se constituindo, modos de compreender a escola e os processos de subjetivação daqueles que vivenciam o processo de mudança do projeto político-pedagógico.

No último texto da tese, Uma parada na caminhada no abrigo da vida-escola: um ponto final?, a autora faz o exercício de terminar seu trabalho de doutoramento mantendo a pesquisa ainda viva e encarnada nela, pesquisadora. Esse último exercício é, ainda, compartilhado por nós, leitores, na medida em que continuamos a problematizar as questões por ela levantadas e nos angustiamos ao perceber que, mesmo finalizado o texto, ele abre-se em potencialidades de problematização: busca promover um modo de pensarmos as práticas discutidas ao longo da tese em nossas vidas, em nossos exercícios cotidianos de existência. No decorrer da leitura, as inquietações sobre nossos modos de existir são acentuadas, principalmente àquelas ligadas às práticas escolares. Assim, finalmente, percebemos esse sentido do exercício de pensamento ao qual a autora se referia no início da tese: abrir-se em imanência, levantar questões que nos possibilitem ir além do texto escrito, do narrado e do experienciado.

Muitos poderiam, ao ler o trabalho, questionar a relevância e pertencimento desta pesquisa à Educação Matemática. Em contrário, argumenta-se nesta resenha em favor de que, ao pensar a Matemática como metanarrativa da modernidade, articulando-se com conceitos como ciência, verdade, método e conhecimento, esta tese pertence, sim, a esse campo de pesquisa, que não só problematiza os modos como o conhecimento matemático é aprendido ou ensinado, mas também problematiza como vão se compondo cosmologias e antropologias no seio das sociedades e grupos culturais junto à Matemática e às práticas escolares. No trabalho de Rotondo, esses modos de conceber a Matemática são evidenciados nas reuniões de pais e mestres, no controle sobre o cotidiano escolar dos alunos, nas práticas religiosas na escola, nas resistências às modificações curriculares e, principalmente, nos modos como os entrevistados discutem suas compreensões de mundo ligadas à escola, revelando questões concernentes às práticas cotidianas gestadas e mantidas por essa instituição.

Apesar de ser um texto de rica contribuição para aqueles que desejam se aproximar da Filosofia da Diferença no campo da Educação Matemática, a densidade teórica do trabalho pode afastar o leitor. Sugere-se que a leitura seja acompanhada de uma constante busca pela compreensão dos termos apresentados (seja em dicionários de Filosofia ou outros textos), pois esses muitas vezes se diferenciam das significações convencionais. Rotondo não define conceitos: opera com eles. Apesar disso, a tese é notoriamente de grande importância para o estudo de certos vieses das práticas escolares

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015
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