Acessibilidade / Reportar erro

Apropriação como Produção Coletiva na Atividade e Internalização como Resultado desta Atividade: um exemplo de álgebra elementar na sala de aula

Appropriation as a Collective Production into Activity and Internalization as a Result of this Activity: an Example of Elementary Algebra in the Classroom

Resumos

Este artigo tem como objetivo discutir uma possível distinção entre o termo apropriação e internalização. O primeiro termo tem por base as contribuições de Bakhtin e o segundo as contribuições de Vigotski. O primeiro termo é defendido como o processo no qual o conhecimento é produzido a partir de uma perspectiva dialógico-argumentativa; o segundo é defendido como o resultado das problematizações correntes no discurso. Para tanto, fizemos uso de um modelo argumentativo a fim de consubstanciar nossa análise, de cunho predominantemente qualitativa. O conteúdo alvo do discurso se constituiu de um fragmento sobre álgebra elementar em sala de aula. Os resultados mostraram que essa distinção é pertinente e pode encontrar eco no trabalho dos dois autores citados.

Apropriação; Internalização; Dialogismo; Argumentação; Álgebra Elementar


This article aims to discuss a possible distinction between the term appropriation and internalization. The first term is based on the contributions of Bakhtin and the second on Vigotski's contributions. The first term is advocated as the process in which knowledge is produced from a dialogical perspective; the second is defended as the result of problematization of the current discourse. To this end, we used an argumentative model of predominantly analytical nature. The target content of the speech consisted of a fragment on elementary algebra in the classroom. The results showed that this distinction is relevant and can find an echo in the work of two authors.

Appropriation; Internalization; Dialogism; Argumentation; Elementary Algebra


1 Introdução

O termo apropriação é usado na literatura científica (BAKHTIN, 1981BAKHTIN, M. N. The dialogic imagination: four essays by M. M. BAHTIN. M. Holquist, (Org.).. Austin: University of Texas Press. 1981. p. 1–422., 1995BAKHTIN, M. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de M. Lahud.; Y. F. Vieira, 7.ed. São Paulo: Hucitec. 1995., 2000BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de M. E. G. G. Pereira. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes. 2000., 2002BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética. Tradução de A. F. Bernardini; J. Pereira Júnior; A. Góes Júnior; H. S. Nazário; H. F. Andrade.5. ed. São Paulo: Hucitec. 2002.) por envolver questões que dizem respeito ao processo de construção do conhecimento. O termo, nas discussões, gira em torno do papel do que vem de fora (ROGOFF, 1990ROGOFF, B. Apprenticeship in thinking. New York: Oxford. 1990., 1987ROGOFF, B. Social interactions as apprenticeship in thinking: Guided participation in spatial planning. In: RESNICK, L.B.; LEVINE, J.M.;TEASLEY, S.D. (Org.). Perspectives on socially shared cognition. Washington, DC: American Psychological Association, 1987. p. 349–364., 1995ROGOFF, B. Observing sociocultural activity on three planes: Participatory appropriation, guided participation, and apprenticeship. In: WERTSCH, J.V.;DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind. Cambridge, UK: Cambridge Universtity Press, 1995. p. 139–163., 1998ROGOFF, B. Cognition as a collaborative process. In:DAMON, W.; KUHN, D.;SIEGLER, R. S. (Org.). Handbook of child psychology: Cognition, perception and language, New York: Wiley, v.2, 1998. p. 679–744.) nessas produções. O que vem de fora pode ser compreendido e/ou referido de várias maneiras: como uma informação; a ajuda de um parceiro; a escuta de um ouvinte, ou um coprodutor da mensagem; uma ferramenta instrucional etc.

Na literatura soviética, outro conceito, o de internalização, é discutido por Vigotski(1984VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. Tradução: J. Cipolla Neto; L. S. M. Barreto; S. C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes. 1984., 1987VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução de J. L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes.1987., 2001VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de P. Bezerra, São Paulo, SP: Martins Fontes. 2001.) como a pedra angular do processo de elaboração das funções psíquicas superiores, desde que estas aparecem, justamente, como resultado do processo que permite a inserção da criança como copartícipe da cultura. Para Vigotski (1984VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. Tradução: J. Cipolla Neto; L. S. M. Barreto; S. C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes. 1984., 1987VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução de J. L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes.1987., 2001VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de P. Bezerra, São Paulo, SP: Martins Fontes. 2001.), a criança, primeiramente, internaliza o legado cultural, passando a ser um agente de modificação dessa cultura, podendo intervir nela por meio de sua ação.

O conceito de internalização aparece em meio às discussões da criação das funções psíquicas na criança, posto pelo autor nas seguintes palavras: “chamamos de internalização a reconstrução interna de uma operação externa” (VIGOTSKI, 1984VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. Tradução: J. Cipolla Neto; L. S. M. Barreto; S. C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes. 1984., p.74). E mais:

[…] o processo de internalização consiste numa série de transformações […] Uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente […]Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológico), e, depois, no interior da criança (intrapsicológico) (VIGOTSKI, 1984VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. Tradução: J. Cipolla Neto; L. S. M. Barreto; S. C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes. 1984., p. 75).

Obviamente, esse conceito de internalização não remete a alguma experiência passiva, que remonte ao início do desenvolvimento, como se a criança apreendesse o necessário para agir por conta própria e independente num momento posterior ao recebimento do material advindo da intervenção. Ao contrário, o conceito de internalização remete, invariavelmente, ao conceito de externalização, vindo de dentro, que desde cedo aponta para uma ação interativa, pois mesmo o bebê influi na sua atitude relacional no meio onde se encontra. Portanto, a ideia de internalização resulta em um nível superior de desenvolvimento. Daí concebermos tal termo como indicando um resultado.

A partir dessas duas visões: da apropriação como construção de conhecimento e internalização como resultado desse processo, este estudo tem o objetivo de mostrar como é possível operacionalizar os termos propostos a partir de um exemplo que é dado sobre questões ligadas à álgebra em sala de aula. No entanto, a priori fazemos uma digressão a partir da qual chegamos a essa conceituação.

A questão entre a apropriação e a internalização é investigada em Rogoff (1990ROGOFF, B. Apprenticeship in thinking. New York: Oxford. 1990., 1987ROGOFF, B. Social interactions as apprenticeship in thinking: Guided participation in spatial planning. In: RESNICK, L.B.; LEVINE, J.M.;TEASLEY, S.D. (Org.). Perspectives on socially shared cognition. Washington, DC: American Psychological Association, 1987. p. 349–364., 1995ROGOFF, B. Observing sociocultural activity on three planes: Participatory appropriation, guided participation, and apprenticeship. In: WERTSCH, J.V.;DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind. Cambridge, UK: Cambridge Universtity Press, 1995. p. 139–163., 1998ROGOFF, B. Cognition as a collaborative process. In:DAMON, W.; KUHN, D.;SIEGLER, R. S. (Org.). Handbook of child psychology: Cognition, perception and language, New York: Wiley, v.2, 1998. p. 679–744.) que, em seus escritos, aponta como diferença entre os termos o fato de que a internalização remonta a Vigotski (1984VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. Tradução: J. Cipolla Neto; L. S. M. Barreto; S. C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes. 1984., 1987VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução de J. L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes.1987., 2001VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de P. Bezerra, São Paulo, SP: Martins Fontes. 2001.) que deixa em seus escritos uma falta de explicação satisfatória em relação ao que, de fato, esse conceito significa. Como, na verdade, ele ocorre? O que está em jogo na seleção dos fatores que são absorvidos e/ou relegados no processo? Ele seria um processo continuado, ou o seu resultado? Ele implica numa certa estabilidade do fator externo que passa a ser um fator interno? E quando passa? Ou o fator internalizado continua em movimento contínuo, mesmo diante do fato de estar internalizado?

Rogoff (1990ROGOFF, B. Apprenticeship in thinking. New York: Oxford. 1990., 1987ROGOFF, B. Social interactions as apprenticeship in thinking: Guided participation in spatial planning. In: RESNICK, L.B.; LEVINE, J.M.;TEASLEY, S.D. (Org.). Perspectives on socially shared cognition. Washington, DC: American Psychological Association, 1987. p. 349–364., 1995ROGOFF, B. Observing sociocultural activity on three planes: Participatory appropriation, guided participation, and apprenticeship. In: WERTSCH, J.V.;DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind. Cambridge, UK: Cambridge Universtity Press, 1995. p. 139–163., 1998ROGOFF, B. Cognition as a collaborative process. In:DAMON, W.; KUHN, D.;SIEGLER, R. S. (Org.). Handbook of child psychology: Cognition, perception and language, New York: Wiley, v.2, 1998. p. 679–744.), baseada nos trabalhos vigotskianos, argumenta que a internalização, como é pensada pelo autor, implica num certo movimento de transformação onde, primeiro, ocorre um momento social e coletivo, e posteriormente, um momento individual como ponto de chegada. Dito de outro modo,é pensada como o resultado de uma atividade, envolvendo uma passagem do coletivo para o individual.

A autora explora, também, o termo apropriação de Bakhtin (1981)BAKHTIN, M. N. The dialogic imagination: four essays by M. M. BAHTIN. M. Holquist, (Org.).. Austin: University of Texas Press. 1981. p. 1–422. para significar um processo no qual não existe uma passagem de algo externo para dentro, mas um movimento de forma contínua, mesmo porque não se pode delimitar exatamente o que está fora e dentro da mente, i.e., o individual e/ou coletivo. Resumindo, a apropriação ocorre na atividade.

Em meio a essa problemática, entendemos que os estudos bakhtinianos vêm dar à questão da produção de sentido um caráter de existência baseado na autoria do discurso, quando este é apropriado e, de alguma forma, tornado público. A indefinição entre o individual e o coletivo torna-se inadequada, dada sua incapacidade de resolver o problema da originalidade de algo a ser dito. O que importa é que algo é assumido como a voz do sujeito em um processo de apropriação que traz em si a novidade intencional de seu autor.

Essa concepção resulta em outro aspecto muito importante que é o fato de que só se pode dizer que algo é apropriado quando é externalizado, ou seja, aparece como uma enunciação. Dentro do referencial bakhtiniano, a diferença entre enunciado e enunciação consiste no fato de que o primeiro representa o produto, e a segunda, o processo. Como afirma Bakhtin (1995BAKHTIN, M. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de M. Lahud.; Y. F. Vieira, 7.ed. São Paulo: Hucitec. 1995., p.98): “Toda enunciação, […] é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal […] prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as”. Este trabalho se coloca nessa perspectiva, em que a questão passa a ser como o sujeito toma posse de um enunciado, ou seja, se apropria dele. O problema da apropriação como autoria, ou de tomar posse da palavra alheia, obviamente não permite uma análise do que está dentro da mente, mas do que ocorre como diálogo com a palavra do outro. Dentro dessa perspectiva, o termo apropriação é utilizado como um processo de retroalimentação das explicitações e problematizações próprias da argumentação no discurso, visível no diálogo. A produção de sentido como expressão dialógica é explicada nas próprias palavras de Bakhtin, mais adiante, quando explorarmos o conceito de apropriação, no próximo tópico.

Por enquanto, queremos dizer que, sem compreender a internalização como um termo que limita as inter-relações no diálogo, julgamos fazer sentido concebê-lo como o resultado de algo anteriormente problematizado e que se encontra em fase de assentamento, ou seja, já foi assimilado internamente, estabelecendo uma relativa estabilidade no processo de construção de conhecimento. Essa concepção endossa a ideia de Vigotski(1984VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. Tradução: J. Cipolla Neto; L. S. M. Barreto; S. C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes. 1984., 1987VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução de J. L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes.1987., 2001VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de P. Bezerra, São Paulo, SP: Martins Fontes. 2001.) desse processo como o resultado de interações sociais e, ao mesmo tempo, torna irrelevante a questão de saber de onde parte o processo se de fora, se de dentro.

2 O conceito de apropriação

O conceito de apropriação remonta a Bakhtin (1981)BAKHTIN, M. N. The dialogic imagination: four essays by M. M. BAHTIN. M. Holquist, (Org.).. Austin: University of Texas Press. 1981. p. 1–422. que o aborda da seguinte forma:

A palavra na linguagem pertence parcialmente a outra pessoa. Ela se torna “palavra própria” quando o falante a povoa com a sua própria intenção, seu próprio sotaque, quando se apropria da palavra, adaptando-a a sua própria intenção semântica e expressiva. Antes deste momento de apropriação, a palavra não existe em uma linguagem impessoal e neutra (afinal, não é de um dicionário que o falante tira suas palavras), mas existe na boca de outras pessoas, nos contextos concretos de outras pessoas, servindo às intenções de outras pessoas: é daí que se pode apreender uma palavra e fazer dela sua própria palavra (BAKHTIN, 1981BAKHTIN, M. N. The dialogic imagination: four essays by M. M. BAHTIN. M. Holquist, (Org.).. Austin: University of Texas Press. 1981. p. 1–422., apud WERTSCH; SMOLKA, 1995WERTSCH, J. V.; SMOLKA, A. L. B. Continuando o diálogo: Vygotsky, Bakhtin e Lotman. In Daniels, H. (Org.). Vygotsky em foco: pressupostos e desdobramentos. Campinas: Papirus. 1995. p. 50–121., p. 129-130, aspas e parênteses dos autores).

Entendemos, com base nos estudos bakhtinianos, que a translinguística requer a consideração de uma linguagem que se utiliza de um aparato reiterável, estrutural e, ao mesmo tempo, requer a consideração da intenção do sujeito que povoa o discurso e, dessa forma, torna-se o autor, emergindo em singularidade e também em diferenciações progressivas (COSTA; LYRA, 2002COSTA, E. V.; LYRA, M. C. D. P. Como a mente se torna social para Barbara Rogoff? A questão da centralidade do sujeito. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.15, n. 3, p. 637–647. Setembro. 2002.). O que queremos ressaltar, dada a abordagem de Rogoff (1990ROGOFF, B. Apprenticeship in thinking. New York: Oxford. 1990., 1987ROGOFF, B. Social interactions as apprenticeship in thinking: Guided participation in spatial planning. In: RESNICK, L.B.; LEVINE, J.M.;TEASLEY, S.D. (Org.). Perspectives on socially shared cognition. Washington, DC: American Psychological Association, 1987. p. 349–364., 1995ROGOFF, B. Observing sociocultural activity on three planes: Participatory appropriation, guided participation, and apprenticeship. In: WERTSCH, J.V.;DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind. Cambridge, UK: Cambridge Universtity Press, 1995. p. 139–163., 1998ROGOFF, B. Cognition as a collaborative process. In:DAMON, W.; KUHN, D.;SIEGLER, R. S. (Org.). Handbook of child psychology: Cognition, perception and language, New York: Wiley, v.2, 1998. p. 679–744.) se circunscreve ao fato de que, na indiferenciação rogoffiana, o autor do enunciado aparentemente se perde em uma concordância não problemática. A ideia de um diálogo baseado em diferenciações argumentativas leva à noção de um limite, ainda que tênue, entre externo e interno, ou seja, a uma autoria relacional do sujeito que subsiste às relações estabelecidas e, ao contrário, tem por base o caráter temporal do enunciado.

Rogoff (1990ROGOFF, B. Apprenticeship in thinking. New York: Oxford. 1990., 1987ROGOFF, B. Social interactions as apprenticeship in thinking: Guided participation in spatial planning. In: RESNICK, L.B.; LEVINE, J.M.;TEASLEY, S.D. (Org.). Perspectives on socially shared cognition. Washington, DC: American Psychological Association, 1987. p. 349–364., 1995ROGOFF, B. Observing sociocultural activity on three planes: Participatory appropriation, guided participation, and apprenticeship. In: WERTSCH, J.V.;DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind. Cambridge, UK: Cambridge Universtity Press, 1995. p. 139–163., 1998ROGOFF, B. Cognition as a collaborative process. In:DAMON, W.; KUHN, D.;SIEGLER, R. S. (Org.). Handbook of child psychology: Cognition, perception and language, New York: Wiley, v.2, 1998. p. 679–744.) consagrou o termo apropriação baseada na sua perspectiva fusionista (COSTA; LYRA, 2002COSTA, E. V.; LYRA, M. C. D. P. Como a mente se torna social para Barbara Rogoff? A questão da centralidade do sujeito. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.15, n. 3, p. 637–647. Setembro. 2002.; LYRA, 1998LYRA, M. C.D.P. Reflections on the dynamics of meaning making: communication process at the beginning of life. In: LYRA, M. C. D. P.; VALSINER J. (Org.). Construction of psychological processes in interpersonal communication. London: Ablex Publishing Corporation. 1998. p. 225–241.; VALSINER, 2000VALSINER, J. Culture and human development: An introduction. London: Sage Publications. 2000.), para contrastar com o termo internalização. Para a autora, o termo apropriação deve diferenciar-se de duas concepções errôneas, batizadas com o mesmo termo: a transmissão de uma informação intocável do exterior para o interior, e a transformação do que está fora quando da passagem para o interior. Nem uma, nem outra parece ser o que a autora quer exatamente realçar com o termo apropriação. Para ela, não significa uma transformação como resultado da passagem (impossível de caracterizar) entre o externo e o interno, mas implica, pelo contrário, numa produção coletiva na atividade que tornaria impossível caracterizar o autor da mensagem.

A autora (ROGOFF, 1990ROGOFF, B. Apprenticeship in thinking. New York: Oxford. 1990., 1987ROGOFF, B. Social interactions as apprenticeship in thinking: Guided participation in spatial planning. In: RESNICK, L.B.; LEVINE, J.M.;TEASLEY, S.D. (Org.). Perspectives on socially shared cognition. Washington, DC: American Psychological Association, 1987. p. 349–364., 1995ROGOFF, B. Observing sociocultural activity on three planes: Participatory appropriation, guided participation, and apprenticeship. In: WERTSCH, J.V.;DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind. Cambridge, UK: Cambridge Universtity Press, 1995. p. 139–163., 1998ROGOFF, B. Cognition as a collaborative process. In:DAMON, W.; KUHN, D.;SIEGLER, R. S. (Org.). Handbook of child psychology: Cognition, perception and language, New York: Wiley, v.2, 1998. p. 679–744.) também faz outra crítica em que se fundamenta sua teoria, sobre a delimitação temporal entre o antes e o depois. A apropriação refere-se a um processo contínuo, a uma produção continuada. A delimitação temporal (da informação antes e depois) implica numa identidade da informação, ou seja, entre a informação tal qual se apresenta no exterior e tal como se apresenta como resultado da interiorização. Como o limite dentro/fora não existe em sua teoria fusionista, é impossível caracterizar a origem da ideia. Ao se basear em Bakhtin para utilizar o termo apropriação, Rogoff (1990ROGOFF, B. Apprenticeship in thinking. New York: Oxford. 1990., 1987ROGOFF, B. Social interactions as apprenticeship in thinking: Guided participation in spatial planning. In: RESNICK, L.B.; LEVINE, J.M.;TEASLEY, S.D. (Org.). Perspectives on socially shared cognition. Washington, DC: American Psychological Association, 1987. p. 349–364., 1995ROGOFF, B. Observing sociocultural activity on three planes: Participatory appropriation, guided participation, and apprenticeship. In: WERTSCH, J.V.;DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind. Cambridge, UK: Cambridge Universtity Press, 1995. p. 139–163., 1998ROGOFF, B. Cognition as a collaborative process. In:DAMON, W.; KUHN, D.;SIEGLER, R. S. (Org.). Handbook of child psychology: Cognition, perception and language, New York: Wiley, v.2, 1998. p. 679–744.) salienta o sentido dado ao termo pelo citado autor, significando o processo de tornar minhas as palavras do outro, que permite o diálogo e o processo de apropriação como contínuo e complexo.

Tal complexidade é vista, aqui, como um processo dialógico-argumentativo, ou seja, como algo que não possui existência a priori, mas se desenvolve no decurso das negociações significativas entre o sujeito e os diferentes outros/vozes sociais. A apropriação trata-se, portanto, de um processo cuja existência só é possível a partir de um discurso interior imbricado em relações sociais. Assim, admitindo o tempo como uma característica indissociável do processo analítico, discordamos do caráter fusional dado ao termo por Rogoff (1990ROGOFF, B. Apprenticeship in thinking. New York: Oxford. 1990., 1987ROGOFF, B. Social interactions as apprenticeship in thinking: Guided participation in spatial planning. In: RESNICK, L.B.; LEVINE, J.M.;TEASLEY, S.D. (Org.). Perspectives on socially shared cognition. Washington, DC: American Psychological Association, 1987. p. 349–364., 1995ROGOFF, B. Observing sociocultural activity on three planes: Participatory appropriation, guided participation, and apprenticeship. In: WERTSCH, J.V.;DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind. Cambridge, UK: Cambridge Universtity Press, 1995. p. 139–163., 1998ROGOFF, B. Cognition as a collaborative process. In:DAMON, W.; KUHN, D.;SIEGLER, R. S. (Org.). Handbook of child psychology: Cognition, perception and language, New York: Wiley, v.2, 1998. p. 679–744.).

Admitimos uma diferenciação entre o externo e o interno, nesse processo, embora assumindo a interação indispensável desses aspectos a fim de ser fiel ao caráter dialógico da perspectiva bakhtiniana. Consequentemente, aproximamo-nos da abordagem de Valsiner (1997VALSINER, J. Culture and the development of children's action. New York: John Wiley & Sons. 1997., 2000VALSINER, J. Culture and human development: An introduction. London: Sage Publications. 2000.) e Valsiner e Van Der Veer (2000)VALSINER, J.; VAN DER VEER, R. The social mind: Construction of the idea. Cambridge, UK: Cambridge University Press. 2000. da separação inclusiva, que vê o sujeito, ao mesmo tempo, imerso de forma irremediável na cultura, mas de alguma forma separado dela.

Essa imersão/separação pode ser compreendida a partir da diferença entre o discurso externo e o discurso interno. Vigotski (2001)VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de P. Bezerra, São Paulo, SP: Martins Fontes. 2001. explica que o discurso interior possui um caráter quase-social, mas é Bakhtin quem chega a especificar mais claramente esse construto. O discurso interior é um pensamento obscuro e inacabado, assemelhado a réplicas de um diálogo(BAKHTIN, 1995BAKHTIN, M. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de M. Lahud.; Y. F. Vieira, 7.ed. São Paulo: Hucitec. 1995., p. 63). Ele afirma que:

Essas unidades prestam-se muito pouco a uma análise sob a forma de constituintes gramaticais (a rigor, em certos casos, isso é possível, mas com grandes precauções) e não existe entre elas, assim como entre as réplicas de um diálogo, laços gramaticais; são laços de uma outra ordem que as regem. Essas unidades do discurso interior, que poderiam ser chamadas impressões globais de enunciações, estão ligadas uma à outra, e sucedem-se uma à outra, não segundo as regras da lógica ou da gramática, mas segundo leis de convergência apreciativa (emocional), de concatenação de diálogos, etc […] e numa estreita dependência das condições históricas da situação social e de todo o curso pragmático da existência. (BAKHTIN, 1995BAKHTIN, M. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de M. Lahud.; Y. F. Vieira, 7.ed. São Paulo: Hucitec. 1995., p. 63-64).

Assim, para Bakhtin, o discurso interior é dialógico, visto que, para ele, a mente é dialógica por natureza. A diferença entre o discurso interno e externo não é, portanto, a direcionalidade da palavra pensada ou proferida, e, sim, a forma estrutural como ela se apresenta. Resta saber qual o limite entre o individual e o social, entre o interior e o exterior, entre o intrapessoal e o interpessoal.

3 A questão do limite entre o externo e o interno

Na vertente fusionista, esse limite é não problemático, visto que é inexistente (COSTA; LYRA, 2002COSTA, E. V.; LYRA, M. C. D. P. Como a mente se torna social para Barbara Rogoff? A questão da centralidade do sujeito. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.15, n. 3, p. 637–647. Setembro. 2002.). Valsiner (1997VALSINER, J. Culture and the development of children's action. New York: John Wiley & Sons. 1997., 2000VALSINER, J. Culture and human development: An introduction. London: Sage Publications. 2000.) e Valsiner e Van Der Veer (2000)VALSINER, J.; VAN DER VEER, R. The social mind: Construction of the idea. Cambridge, UK: Cambridge University Press. 2000. falam de um sujeito que pode ajudar a criar o limite, um sujeito ativo e não passivo. Tal limite, no entanto, não é fixo, mas problemático, podendo trazer, ao plano semiótico, diferenciações, distanciamentos ou semelhanças e aproximações entre qualquer conteúdo possível na comunicação.

Nessa visão de delimitação problemática e dinâmica entre interno e externo, a tensão entre o antes e o depois, quanto à identidade da informação, aparece como possibilidade de estabelecer momentos de ilusão de estabilidade (VALSINER, 2000VALSINER, J. Culture and human development: An introduction. London: Sage Publications. 2000.).É ela que permite ao sujeito sentir-se seguro quanto às suas ações futuras. Essa ilusão envolve transformação ou (re)produção da informação no plano semiótico; permite o vínculo com o externo, e, a partir daí, o ato criativo de comunicação, aqui entendido como a posse da palavra do outro, ou a autoria de enunciado. Ressalta-se, mais uma vez, que essa autoria, a apropriação da palavra do outro, é complexa e problemática devido à diferenciação eu-outro; interno-externo.

3.1 O interno e o externo, o antes e o depois do ponto de vista de Bakhtin

Para que possamos argumentar do ponto de vista bakhtininano sobre o antes e o depois é preciso reconhecer a possibilidade de relações dialógicas entre o sujeito e o outro; entre perspectivas/posições que o sujeito, e somente ele, ocupa em um dado momento.

Por outro lado, como essa perspectivasó pode ser estudada em relação aoutras (seja dele próprio ou de outro sujeito), ele (o sujeito)não implica numa essência absoluta, mas relativa (HOLQUIST, 1990HOLQUIST, M. Dialogism: Bakhtin and his world. London: Routledge. 1990.). Significando que ele não está no centro, mas abrange: i) o centro, que é o ponto de vista de onde parte; ii) o não centro, que também possui um ponto de vista próprio que diz respeito a outro(s) da relação; iii) a relação entre o centro e o não-centro, que permite o diálogo, podendo criar um ponto de vista comum expresso na negociação. Essa é a condição possível do diálogo entre o interior e o exterior. Dessa forma, o centro não deve ser confundido com o sujeito, como um “privilégio ontológico,” ou como uma “ilusão de presença,” mas entendido como um termo relativo e não absoluto. Neste sentido, não o compreendemos como um “privilégio absoluto,” mas constituindo-se em relações (HOLQUIST, 1990HOLQUIST, M. Dialogism: Bakhtin and his world. London: Routledge. 1990., p. 18).

Isso não significa que o sujeito não possua uma existência que vá além das relações que ele estabelece, e também não significa que ele é a soma dessas relações. Ele possui um lugar no mundo como realidade inexorável (BAKHTIN, 1981BAKHTIN, M. N. The dialogic imagination: four essays by M. M. BAHTIN. M. Holquist, (Org.).. Austin: University of Texas Press. 1981. p. 1–422.) e axiomática (VALSINER, 1997VALSINER, J. Culture and the development of children's action. New York: John Wiley & Sons. 1997., 2000VALSINER, J. Culture and human development: An introduction. London: Sage Publications. 2000.; VALSINER; VAN DER VEER, 2000VALSINER, J.; VAN DER VEER, R. The social mind: Construction of the idea. Cambridge, UK: Cambridge University Press. 2000.), mas a maneira como ele se apresenta depende das relações que mantém com o(s) outro(s), e com a cultura de forma geral, na qual ele mesmo se inclui em um momento dado.

Assim, o limite entre o interior e o exterior confunde-se com o conceito de Bakhtin de translinguística, pois circunscreve a enunciação ao sujeito que fala; que responde a outro partindo do seu ponto de vista, com base na sua intenção, dentro de um contexto dado. Bakhtin rejeita como verdade única, tanto o caráter estrutural da língua que é o foco no objetivismo abstrato, quanto o sentido do discurso que é o foco nosubjetivismo individualista, baseado na perspectiva literária romântica. A translinguística faz uso da significação, caráter estrutural reiterável toda vez que é enunciada, e do sentido, caráter circunstancial que se apresenta compreensível diante de uma situação que possui um sentido de acabamento, permitindo a compreensão da intenção individual do falante. O limite entre o interno e o externo, entre o meu ponto de vista e o ponto de vista de outrem, tem de ser analisado com base no diálogo dentro de uma atividade prática, local e específica, ou seja, uma atividade situada (LAVE, 1988).

O limite entre o antes e o depois (quanto à identidade da informação) é algo que acompanha essa ideia do caráter circunstancial da enunciação, pois se há uma tensão entre o meu ponto de vista e o ponto de vista do outro, ela permanece durante todo o processo de transformação e produção da informação. Existe, por sua vez, uma negociação entre os pontos de vista, relativa ao sentido que se deseja compartilhar dentro de um diálogo. E essa tensão é fruto da intenção dos falantes. As semelhanças e aproximações, diferenças e distanciamentos entre os pontos de vista é a dinâmica pela qual ocorre o processo de argumentação. Tal processo se dá no tempo irreversível (VALSINER, 1997VALSINER, J. Culture and the development of children's action. New York: John Wiley & Sons. 1997.), que, por sua vez, redunda na novidade na comunicação. Logo, o antes e o depois ocorrem como momentos únicos da apropriação do discurso, como veremos adiante no nosso exemplo em uma sala de aula de matemática. Assim, diremos que para Bakhtin (1981)BAKHTIN, M. N. The dialogic imagination: four essays by M. M. BAHTIN. M. Holquist, (Org.).. Austin: University of Texas Press. 1981. p. 1–422., apesar de não existir uma essência do sujeito, pronto e acabado, existe um limite entre o interior e o exterior (que permite o diálogo); e um limite entre o antes e o depois quanto à identidade da informação (baseado no conceito de temporalidade) que traz a novidade ao discurso (COSTA; LYRA, 2002COSTA, E. V.; LYRA, M. C. D. P. Como a mente se torna social para Barbara Rogoff? A questão da centralidade do sujeito. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.15, n. 3, p. 637–647. Setembro. 2002.). Sobre isso o autor (BAKHTIN, 2000BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de M. E. G. G. Pereira. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes. 2000.)teoriza quando trata a linguagem como ação pública e privada, presa à cultura, mas possível de expressar a intenção individual do falante.

4 Pesquisas em argumentação

Atualmente, algumas vertentes das pesquisas na área da argumentação encontram nos estudos do discurso, da conversação e do dialogismo, um aparato epistemológico propício para o seu desenvolvimento teórico. O estudo da argumentação em contextos naturais, auxiliado pelos estudos da comunicação, apesar de salientar aspectos relevantes para a compreensão dessa comunicação, como a importância da orientação dirigida da fala ao interlocutor na sequência do texto falado – requer, ainda, um aprofundamento no tocante ao papel transformador de significados, em negociação, que permite aos interlocutores a sua emergência, ou seja, a emergência da transformação de significados.

O modelo de Leitão (2000bLEITÃO, S. The potential of argument in knowledge building. Human Development, v. 43, n. 6.p. 332–360. November-December. 2000., 2001LEITÃO, S. Analyzing changes in view during argumentation: a quest for method. Forum Qualitative Social Research, v. 2, n.3. On line.2001. Acess in: <http://www.qualitative-research.net/index.php/fqs/article/view/907>.
http://www.qualitative-research.net/inde...
) que serve de pano de fundo para a nossa análise neste trabalho, insere-se nesse backgroundteórico e está contextualizado numa situação específica de sala de aula de matemática. Tal modelo tem como ponto de partida o fato de que a mola impulsionadora da argumentação é a divergência de perspectivas. Esse modelo de argumentação se apresenta em forma de argumentos, contra-argumentos e respostas. Segundo a autora, um argumento “consiste em um ponto de vista e uma ideia invocada para justificá-lo” (LEITÃO, 1999, p. 100-101).

É preciso notar, desde já, que um ponto de vista sem uma justificativa não constitui um argumento, conquanto uma justificativa nem sempre se encontre explícita discursivamente. O contra-argumento, a divergência se manifesta sempre que surge mais de uma compreensão em relação a um dado tópico em discussão (LEITÃO, 2011LEITÃO, S. O lugar da argumentação na construção do conhecimento em sala de aula. In: LEITÃO, S.; DAMIANOVIC J. (Orgs.). Argumentação na escola: o conhecimento em construção. Campinas, S.P: Pontes Editores. 2011. p. 13–46.). A resposta, por sua vez, é entendida como a reação à contra-argumentação do oponente (real ou virtual), podendo dar lugar a modificações no ponto de vista inicial.

Apontam-se quatro tipos de respostas ou reações aos contra-argumentos (e graus de ajustes, quando é o caso), sobre o pronto de vista inicial. Tais ajustes iriam desde (1) a rejeição total do contra-argumento e manutenção do ponto de vista inicial; (2) a consideração de partes do contra-argumento, sem, entretanto, haver integração das mesmas ao ponto de vista inicial; (3) a consideração de partes do contra-argumento, com integração das mesmas ao ponto de vista inicial; e (4) a rejeição total do ponto de vista inicial e adoção do contra-argumento. Enfatiza-se que, embora nem toda resposta implique mudança no argumento inicial, em todas elas ocorre revisão (reavaliação) da posição inicial e, portanto, (re)construção de conhecimento (LEITÃO, 1999, 2000bLEITÃO, S. The potential of argument in knowledge building. Human Development, v. 43, n. 6.p. 332–360. November-December. 2000., 2001LEITÃO, S. Analyzing changes in view during argumentation: a quest for method. Forum Qualitative Social Research, v. 2, n.3. On line.2001. Acess in: <http://www.qualitative-research.net/index.php/fqs/article/view/907>.
http://www.qualitative-research.net/inde...
).

Neste estudo, seguimos a concepção de construção de conhecimento de Jãger, 2001JÃGER, S. Discourse and knowledge: theoretical and methodological aspects of a critical discourse and dispositive analysis. In: Wodak, R; Meyer, M. (Ed.). Methods of critical discourse analysis. London: Sage, 2001, p. 32–62., como proposta por Leitão (2011LEITÃO, S. O lugar da argumentação na construção do conhecimento em sala de aula. In: LEITÃO, S.; DAMIANOVIC J. (Orgs.). Argumentação na escola: o conhecimento em construção. Campinas, S.P: Pontes Editores. 2011. p. 13–46., p.17)”[…] quaisquer processos que permitam a indivíduos, social e historicamente situados, construir sentidos com os quais possam dar forma e interpretar o que percebem como realidade circundante”.

O nosso trabalho consiste em analisar esses movimentos dialógico-argumentativos que nortearam a fala dos participantes na apropriação da linguagem algébrica. Para tanto, buscamos observar a presença da internalização dos construtos relacionados aos conceitos algébricos, como produto da confluência de respostas que aparecem como resultado da problematização em sala de aula (COSTA, 2012COSTA, E. V. Dialogando com o saber matemático em sala de aula. Educação: Teoria e Prática, Rio Claro, v. 22, n. 41, p. 124–144. Setembro/Dezembro. 2012.), baseada na apropriação do discurso.

5 A apropriação na sala de aula

Diferente da atividade informal de ensino, em que a criança aprende de forma espontânea, a atividade de sala de aula se caracteriza como uma atividade formal, onde o ensino passa a ter um papel instrucional fundamental que faz parte do arcabouço secular da humanidade.

Enquanto atividade eminentemente pedagógica, o ensino formal se passa em um lugar particular onde existem normas que devem ser seguidas pelos estudantes, uma linguagem própria a ser apropriada, não somente relativa ao conteúdo, mas também à comunicação, (MEIRA; LERMAN, 2001MEIRA, L.; LERMAN, S. The zone of proximal development as a symbolic space. Social Science Research Papers. London.v.1, n.13, p. 1–40. June. 2001.).

Neste trabalho centralizamos nossos esforços na investigação dos processos pelos quais o conteúdo do ato pedagógico encontra sentido no processo de apropriação por parte de alunos da sétima série do ensino fundamental de uma aula de matemática, em uma escola de referência, da região metropolitana do Recife. Desse processo, evidentemente, não vamos destacar o aluno em separado, mas a relação professor-aluno-conteúdo, ou seja, a inter(ação) entre esses três elementos que permite o processo de apropriação emergir. Fazemos isso através da análise argumentativa da construção de conhecimento.

Partimos da concepção de que o sujeito se constitui na relação e não pode ser analisado fora dela. A sua enunciação será, sempre, compreendida como uma resposta a um interlocutor. Essa, por sua vez, só pode ser compreendida como proveniente de um ponto de vista. No entanto, a diferença entre o que se quer dizer e o que realmente se diz, faz com que esse site de negociações, a sala de aula, possua características específicas, em que tem lugar, quase sempre, o sentido de acabamento, salientado por Bakhtin (2000)BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de M. E. G. G. Pereira. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes. 2000., na compreensão dos enunciados, ou seja, uma compreensão baseada mais no contexto do que na estrutura dos enunciados.

A fim de podermos analisar os modos pelos quais o professor de álgebra conduziu o discurso de sala de aula de maneira argumentativa, tomamos por base os estudos de Leitão (2011)LEITÃO, S. O lugar da argumentação na construção do conhecimento em sala de aula. In: LEITÃO, S.; DAMIANOVIC J. (Orgs.). Argumentação na escola: o conhecimento em construção. Campinas, S.P: Pontes Editores. 2011. p. 13–46. e De Chiaro e Leitão (2005)DE CHIARO, S.; LEITÃO, S. O papel do professor na construção discursiva da argumentação em sala de aula. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.18, n. 3, p. 350–357. Sept./Dec. 2005.. Por meio desses estudos, as autoras identificaram ações discursivas pelas quais a argumentação pode ser implementada em sala de aula. Elas identificaram a existência das chamadas ações pragmáticas, ações verbais que criam condições que são cruciais para que o discurso se torne argumentativo, ou seja, que apresentam o tema como passível de discussão (polêmico); legitimam a divergência a respeito do tema em pauta; instituem a argumentação como método para a resolução de divergências existentes e estabelecem o consenso como meta na discussão. Identificaram, também, a existências de ações argumentativas, ações verbais que implementam (e estimulam outros a implementar) operações definidoras da argumentação: definição/justificação de pontos de vista e negociação de divergências. A negociação de diferenças de pontos de vista é possibilitada, no discurso, predominantemente por ações verbais que remetam ao exame de contra-argumentos e à elaboração de resposta a eles. Por fim, as autoras identificaram no discurso as chamadas ações epistêmicas: ações verbais com as quais os participantes trazem para a discussão informações (conceitos, definições etc.) consideradas relevantes ao domínio de conhecimento em questão; implementam procedimentos e modos de raciocínio típicos do campo de conhecimento em pauta e conferem estatuto epistêmico às conclusões estabelecidas.

É importante salientar que esse conjunto de ações discursivas, além do seu papel constitutivo da argumentação, nos servem de balizadores na análise da mediação do professor. Em outras palavras, na forma como ele habilmente tece o discurso de forma a promover e dar suporte à reflexão e à construção do conhecimento da álgebra em sala de aula.

6 Articulação do nosso discurso a partir de um fragmento videografado

Em Recife, uma escola da rede municipal tem como protagonista um professor de matemática e crianças da sétima série do ensino fundamental. A cena se passa em uma aula sobre os conceitos de paralelismo e ângulo nos polígonos do livro didático (IMENES; LELLIS, 1997IMENES, L. M; LELLIS, M. Matemática. São Paulo: Scipione, 1997.). Foram videografadas, pela primeira autora, três aulas consecutivas, das quais utilizamos para análise um fragmento de uma delas, cujo assunto abordamos em seguida.

O livro estabelece os significados consagrados pela comunidade científica e mostra, através de exemplos, como encontrar ângulos de figuras geométricas a partir do conhecimento do paralelismo de retas e ângulos. Os alunos estudaram em casa o livro didático e a aula se destina a resolver problemas concernentes aos conceitos mencionados. As cenas foram gravadas em vídeo e transcritas, enfatizando-se a interação discursiva entre o professor e os alunos.

A partir da análise do vídeo foi constatada uma constante preocupação do professor em desenvolver uma problematização na comunicação das verdades dos axiomas sobre os objetos matemáticos, à medida que os alunos iam resolvendo os problemas no quadro. Os fragmentos analisados ilustram a forma como os enunciados têm uma característica própria de sala de aula, onde predomina a compreensão baseada no sentido de acabamento descrito por Bakhtin (2000)BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de M. E. G. G. Pereira. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes. 2000.. A linguagem social própria da escola contempla um conhecido gênero de discurso, já consagrado pela literatura, de pergunta/resposta/avaliação.É a partir dessa estratégia que o professor torna a problematização uma constante nos episódios descritos, dando ensejo ao aluno se colocar como um membro legítimo dessa comunidade de prática (LAVE; WENGER, 1987LAVE, J; WENGER, E. Situated learning: Legitimate peripheral participation. New York: Cambridge University Press, 1987.), ou seja, como um sujeito.

A apropriação está sendo usada no sentido bakhtiniano de tornar minhas as palavras de outros. Nessa perspectiva, o que se busca não é apenas o produto da apropriação, como numa recitação em que o aluno repete as palavras do professor, mas o processo mesmo pelo qual ele se apropria do que foi enunciado (a apropriação na atividade), problematizando-a; bem como a novidade que supera uma simples recitação do conteúdo analisado.

Para efeito de operacionalização, julgamos necessário conceituar a problematização como ligada ao processo de transformação da informação, em si,na atividade dialógica, baseado no tipo de discurso empregado na apropriação: a linguagem social (algébrica). Por outro lado, o conceito de internalização está sendo usado para significar o resultado aparente e provisório do processo da apropriação. Essa (a internalização) implica um diálogo entre um conhecimento já problematizado;abreviado em externalizações simplificadas que indicam a posse do conhecimento já ocorrido, servindo de retroalimentações para novas problematizações e apropriações (COSTA, 2012COSTA, E. V. Dialogando com o saber matemático em sala de aula. Educação: Teoria e Prática, Rio Claro, v. 22, n. 41, p. 124–144. Setembro/Dezembro. 2012.). Assim, marcamos o processo de problematização como provisório, entendendo que o ato de lembrar ou simplesmente pensar implica reformulação constante. A internalização é vista, portanto, como indicação abreviada da posse do enunciado já problematizado, ou seja, um ponto de fechamento de um assunto momentâneo em sala de aula: um resultado provisório da construção do conhecimento.

O exemplo a ser analisado é o seguinte: dados valores numéricos como raízes de dois e de oito, pede-se o valor de x, e, por conseguinte, o valor de y, baseado na figura abaixo:

Figura 1
Figura relativa ao problema apresentado

Como discutido em Costa (2010)COSTA, E. V. Um estudo de álgebra elementar com balança de dois pratos. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 23, n. 3, p. 456–465. Dezembro. 2010. o problema ocorre pela não compreensão da equivalência algébrica entre os membros da equação. No exemplo acima escolhido para visualização da análise, o processo encontra uma solução possível pelo estabelecimento da seguinte equação: √2/√8=y/4,6. Com base nessa equação, pode-se encontrar o valor de y, e posteriormente pelo método de substituição, o valor de x a partir da equação x= y/4,6. Esse problema pode ser resolvido pela aplicação do Teorema de Tales, que diz que um feixe de retas paralelas determina sobre duas retas transversais, segmentos proporcionais. A partir do conhecimento do teorema e do problema apresentado, segue-se o seguinte episódio: com base no problema, um aluno questiona a adoção da potencialização de apenas um membro da equação (com os radicais) para a resolução. A problematização que ocorre nesse episódio se refere ao fato de o aluno desejar resolver a racionalização de dois e de oito, elevando os termos ao quadrado a fim de eliminar os radicais. Uma aluna coloca a impossibilidade de proceder de tal forma sem que os outros valores do outro lado da igualdade sejam alterados, a fim de preservar a proporcionalidade deduzida pelo Teorema de Tales.

05 Felipe Minha questão é se poderia elevar ao quadrado raiz de dois sobre raiz de oito. 06 P A questão dele é a seguinte. Será que para resolver este problema ajudaria se eu elevasse ao quadrado a raiz de dois e a raiz de oito para eliminar o radical? 07 Dália Mas aí teria que elevar tudo ao quadrado, né? 08 P Tudo quem? 09 Dalia 4,6, x e y 10 A2 É não 11 P E aí Dália, a questão de Dália. Dália tá dizendo que tem de elevar também este (4,6) ao quadrado 12 Dalia Porque não é uma questão de proporcionalidade? 13 P Proporcionalidade 14 Fred Se elevar os dois, tanto raiz de dois, quanto raiz de oito, a razão entre eles vai ser a mesma, não é? 15 P Será?

Por esse exemplo pode-se perceber que o professor conduz o aluno a pensar sobre as possibilidades que ele mesmo propõe e devolve a questão para a turma, a fim de produzir uma atuação reflexiva sobre sua própria fala. Ele não nega a possibilidade equivocada do aluno, mas permite que outros alunos se coloquem refletindo sobre o enunciado de Felipe, como é o caso de Dália, na linha 07: (Mas aí teria que elevar tudo ao quadrado, né?). Ainda é possível perceber a partir desta fala de Dália que ela entendeu o sentido dado ao enunciado de Felipe que apelava para a resolução do problema apenas pela eliminação dos radicais, a partir do sentido de acabamento (BAKHTIN, 2000BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de M. E. G. G. Pereira. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes. 2000.) estabelecido nesse contexto. Nesse momento, o professor se coloca, oportunamente, de acordo com o que De Chiaroe Leitão (2005)DE CHIARO, S.; LEITÃO, S. O papel do professor na construção discursiva da argumentação em sala de aula. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.18, n. 3, p. 350–357. Sept./Dec. 2005. chamam de ação argumentativa, a fim de instaurar a reflexão de Dália sobre sua própria fala, na linha 11 (E aí Dália, a questão de Dália. Dália tá dizendo que tem de elevar também este (4,6) ao quadrado), permitindo que ela justifique seu argumento, na linha 12: (Porque não é uma questão de proporcionalidade?). A aluna possui um significado de proporcionalidade que Fred não demonstra possuir.

Deixando mais claro o nosso pensamento, podemos dizer que, buscando levar seus alunos à apropriação de certos conceitos algébricos, o professor propõe um problema a ser solucionado em sala de aula. Para tanto, convida seus alunos a darem soluções. Na linha 05, Felipe coloca o seguinte ponto de vista: (Minha questão é se poderia elevar ao quadrado raiz dois sobre raiz de oito.).

Na linha 06: (A questão dele é a seguinte: será que pra resolver este problema ajudaria se eu elevasse ao quadrado a raiz de dois e a raiz de oito para eliminar o/ radical?), observa-se o esforço do professor em explicitar para a turma, o sentido do enunciado de Felipe. Trata-se de uma ação mediadora, coerente com a sua posição enquanto professor. É também uma ação epistêmica, ou seja, uma ação que fornece modos de raciocínios típicos do campo de conhecimento em questão (DE CHIARO; LEITÃO, 2005DE CHIARO, S.; LEITÃO, S. O papel do professor na construção discursiva da argumentação em sala de aula. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.18, n. 3, p. 350–357. Sept./Dec. 2005.). Isso foi observado na medida em que o professor não apenas explicitou o raciocínio de Felipe, exposto na linha 05, como também o expandiu (linha 6: [..]para eliminar o/ radical?).

Surge, então, o contra argumento de Dália na linha 07: (Mas aí teria que elevar tudo ao quadrado, né?). Nesse ponto, mais uma vez, a mediação do professor é de fundamental importância, como se vê logo em seguida, na linha 08: (Tudo quem?). Tem-se aí mais uma ação epistêmica (DE CHIARO; LEITÃO, 2005DE CHIARO, S.; LEITÃO, S. O papel do professor na construção discursiva da argumentação em sala de aula. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.18, n. 3, p. 350–357. Sept./Dec. 2005.), na medida em que impele o aluno a explicitar, discursivamente, que elementos da equação devem ser elevados ao quadrado. E Dália, de fato, o faz, na linha 09: (4,6, x e y).

Buscando avançar no processo de apropriação dos alunos, o professor insiste, na linha 11: (Dália tá dizendo que tem de elevar também este (4,6) ao quadrado. Por que Dália?). Isso é feito por meio de uma ação argumentativa (DE CHIARO; LEITÃO, 2005DE CHIARO, S.; LEITÃO, S. O papel do professor na construção discursiva da argumentação em sala de aula. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.18, n. 3, p. 350–357. Sept./Dec. 2005.), propondo que Dália justifique porque tem de elevar também esse (4,6) ao quadrado.

A justificativa de Dália surge na linha 12: (Porque, não é uma questão de proporcionalidade?), em forma de pergunta. Naturalmente, almejando certificação do professor. Esta ocorre na linha 13: (Proporcionalidade.), pois a repetição do conceito é uma das formas comumente observadas em sala de aula pelos professores para legitimação de respostas corretas enunciadas pelos estudantes. Trata-se, pois, mais uma vez, de uma ação epistêmica (DE CHIARO; LEITÃO, 2005DE CHIARO, S.; LEITÃO, S. O papel do professor na construção discursiva da argumentação em sala de aula. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.18, n. 3, p. 350–357. Sept./Dec. 2005.), realizada pelo professor.

Fred traz uma nova questão na linha 14 (Se elevar os dois, tanto raiz de dois, quanto raiz de oito, a razão entre eles vai ser a mesma, não é?). Nesse ponto, o professor lança um contra argumento na linha 15 (Será?). Na linha 18 ele continua questionando Fred: (Fred, qual é a razão aqui? Qual a razão que você teria para encontrar o valor de x? E qual é a proporção que você iria… é…), requerendo uma justificativa.

Na linha 20, Fred justifica (x sobre 4,6 é igual a raiz de dois mais raiz de oito sobre raiz de oito). Nas linhas 21 e 23 o professor, de certa forma, legitima a partir de uma ação epistêmica, a fala errônea de Fred, juntamente com o mesmo, julgamos que para problematizar a questão em sala de aula:

21 P Raiz de dois mais raiz de oito sobre…. Escreve falando ao mesmo tempo: x/4,6 = √2 + √8/√8 22 Fred Sobre raiz de oito 23 P Sobre raiz de oito

Essa estratégia, provavelmente, foi usada como uma possibilidade de Fred se deparar com o seu ponto de vista de maneira a checar a veracidade do mesmo. Mas só em um momento posterior ele o corrige, mostrando que a estratégia usada pelo professor produziu o resultado esperado. Antes disso, Felipe, que no começo havia manifestado o mesmo ponto de vista equivocado, embora de forma interrogativa, na linha 05 (Minha questão é se poderia elevar ao quadrado raiz de dois sobre raiz de oito) muda seu ponto de vista. E o faz com um enunciado que toca o cerne da questão da eliminação dos radicais, sem desfazer a noção de equivalência da equação estabelecida. A sua fala demonstra uma apropriação da noção de equivalência que, no entanto, ainda parece precisar da ação epistêmica de legitimação do professor, desde que é formulada como uma pergunta:

37 Felipe Aí eu pensei, eu lhe pergunto uma coisa se eu elevasse ao quadrado o lado de cá, eu poderia também elevar ao quadrado o lado de lá?

Diante da ação discursiva de Felipe, que indica uma interrogação quanto ao significado do que seja a proporcionalidade, a postura do professor é a de proporcionar uma reflexão colocando a pergunta feita por Felipe:

38 P E aí como é que faz? Ele tá dizendo que se elevasse ao quadrado aqui poderia também elevar ao quadrado aqui

Ao fazê-lo, dada a sua posição assimétrica na ecologia da sala de aula (como alguém que detém maior conhecimento sobre álgebra, portanto maior poder), o professor exibe uma ação discursiva epistêmica (DE CHIARO; LEITÃO, 2005DE CHIARO, S.; LEITÃO, S. O papel do professor na construção discursiva da argumentação em sala de aula. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.18, n. 3, p. 350–357. Sept./Dec. 2005.), visto que traz para o foco, raciocínios típicos do domínio em questão. Nesse momento, Fred, que havia manifestado a falta de compreensão da noção de proporcionalidade, começa a esboçar a visão do sinal de = da expressão algébrica como uma igualdade de relações da seguinte forma:

39 Fred É porque a igualdade…

Desta forma, podemos concluir que Felipe e Fred se apropriaram da noção de equivalência algébrica produzindo respostas, fruto da argumentação provocada pelo professor em sala de aula. O professor segue, fazendo um resumo do problema apresentado e devolvendo a pergunta para a classe mais uma vez, a fim de que outros alunos (no caso, A5, A6 e A7)se manifestem:

42 P Antes eu tinha essa igualdade aqui né? Ou seja, o teorema de Tales me diz que essa igualdade aqui, essa igualdade aqui é válida, né isso? E a pergunta é será que eu posso elevar os dois lados da igualdade? √2/√8=y/4,6 O professor escreve no quadro:(√2)2/(√8)2=(y)2/ (4,6)2 43 A5 Pode 44 A6 Pode 45 P Certo? Continua sendo igualdade? 46 A7 Continua

Essse exemplo é ilustrativo porque traz uma passagem em que o professor atua como um mediador das interações discursivas entre os alunos, problematizando as questões, dando ensejo a dúvidas e fazendo emergir argumentos que justificam a noção desejada. Ele também mostra como a apropriação da noção em pauta ocorre de forma eminentemente coletiva na atividade, causando uma instabilidade provisória advinda de dúvidas e contra-argumentos. Ao mesmo tempo, esse episódio final transcrito aponta para uma estabilidade como fechamento da questão, ou seja, a internalização como resultado da atividade, ao contrário da apropriação mostrada como processo.

7 Considerações finais

Este trabalho tratou de questões referentes à apropriação como processo e internalização como resultado da construção de conhecimento em uma sala de aula de álgebra. Nele passamos pela análise da delimitação do que vem de fora e do que vem de dentro; do interno e do externo; da delimitação do antes e do depois;e chegamos a compreender que esses desdobramentos semânticos referem-se à análise da autoria do enunciado.

Seguindo a trilha de Bakhtin (2000)BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de M. E. G. G. Pereira. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes. 2000., na apropriação o autor do discurso é aquele que profere o enunciado, e esse nunca pode ser proferido desacompanhado da novidade que advém da intenção do falante. Por outro lado, seguindo Vigotski (1984VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. Tradução: J. Cipolla Neto; L. S. M. Barreto; S. C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes. 1984., 1987VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução de J. L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes.1987., 2001VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de P. Bezerra, São Paulo, SP: Martins Fontes. 2001.), a internalização é o resultado de um discurso social que se torna individual, ou seja, passa a fazer parte das funções mentais internas do sujeito.

Na apropriação, o falante nunca fala sem direcionar o discurso a um ouvinte, do que resulta uma análise do diálogo na comunicação, no qual a temporalidade se mantém como condição de podermos estabelecer o como o processo de apropriação ocorre. Dessa forma, podemos concluir que a apropriação ocorre naatividade, em que o sujeito se dirige sempre a Outro(s), e como resultados pontuais da atividade, do ponto de vista analítico. No entanto, em se tratando de aprendizagem, no sentido tradicional do termo relacionado à memória; à cópia; à reprodução, não podemos falar de resultado, dado que a própria memória reproduz qualquer material em forma de atividades outras, também situadas (LAVE, 1988).

Diante de um tema tão complexo algumas questões mereceram ser abordadas como esclarecimentos sobre ao que este trabalho se refere, ou seja, sobre o que ele é. Em primeiro lugar, surgiu a questão do sentido individual que tem para um sujeito algo que é produzido coletivamente. A internalização como um processo no qual o sujeito passa a dominar, de modo pessoal, um conhecimento, no nosso caso, acadêmico, assim como coloca Vigotski(1984VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. Tradução: J. Cipolla Neto; L. S. M. Barreto; S. C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes. 1984., 1987VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução de J. L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes.1987., 2001VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de P. Bezerra, São Paulo, SP: Martins Fontes. 2001.), é o resultado de um processo pessoal que emerge em um relacionamento interpessoal; é um momento singular (do próprio sujeito) e único, interatuando em um momento coletivo e, portanto, compartilhado intersubjetivamente.

Este trabalho chegou a propor mecanismos argumentativos como uma possibilidade pela qual a apropriação ocorre como processo em que o conhecimento é construído e a internalização é vista como um momento pontual de finalização desse processo, portanto, como o resultado dele. O trabalho se prestou a conceber o termo apropriação como mais apropriado ao processo; e internalização, entendido como um momento de estabilidade comunicacional no processo de construção de conhecimento. Sabemos, no entanto, que essa estabilidade (resultado) é provisória e engendra uma instabilidade que redunda no surgimento de novos processos de apropriação.

Isso nos permitiu falar de um movimento de instabilidade/estabilidade/instabilidade equivalentes ao processo/resultado/processo como um sistema dinâmico que nunca tem fim. Obviamente, isso está sendo pensado como o oposto da memorização mecânica. A diferença entre uma e outra é que entre elas ocorrem, ou não, momentos argumentativos que permitem a mudança de perspectivas (LEITÃO, 2000LEITÃO, S. The potential of argument in knowledge building. Human Development, v. 43, n. 6.p. 332–360. November-December. 2000.). O que diferencia a construção de conhecimento de uma memorização mecânica é, exatamente, a emergência desses momentos anteriormente detalhados. Sendo assim, poder-se-ia dizer, a partir dos dados apresentados, que a construção de conhecimento ocorreu. Em outras palavras, é possível dizer com base neles que houve mudanças de perspectivas como já foram apontadas. Podemos citar a noção de equivalência algébrica entre os membros da equação, que só foi entendida tardiamente a partir de dúvidas;processos argumentativos, envolvendo argumentos, contra-argumentos e respostas. Além disso, o excerto final apresentado mostrou que os alunos compreenderam esse conceito matemático de equivalência, desde que se apresentaram internalizados em forma de acordos externalizados, ou seja, breves concordâncias, não mais problemáticas.

O processo de mudança de ponto de vista não ocorre na cabeça do sujeito em isolado, mas estando este em um processo dialógico com seus pares, ou em diálogos internos. Isso porque, a forma de atividade mental, segundo Bakhtin (2000)BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de M. E. G. G. Pereira. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes. 2000., é fundamentalmente dialógica, e o discurso interno é feito, sobretudo, de réplicas com o outro imaginário.

Isolar, portanto, o sujeito da teia das relações dialógicas com o outro presencial ou virtual é incorrer em um erro grave de análise dos dados, visto que a atividade do cientista social encontra-se, eminentemente, ligada à palavra do Outro. Dessa forma, a partir de diálogos como esses apresentados, a única conclusão cabível é que a sala de aula também pode ter como objetivo primordial fazer com que o aluno assuma, ele mesmo, o papel de interlocutor e saiba estabelecer o processo de apropriação de forma autônoma e independente. A apropriação é, portanto, um ponto de chegada e de partida para mudanças de pontos de vista que serão necessários a fim de dar prosseguimento às atividades escolares do aluno no desenvolvimento do conhecimento que será internalizado, e, posteriormente, externalizado, ensejando futuras apropriações.

Referências

  • BAKHTIN, M. N. The dialogic imagination: four essays by M. M. BAHTIN M. Holquist, (Org.).. Austin: University of Texas Press. 1981. p. 1–422.
  • BAKHTIN, M. N. Marxismo e filosofia da linguagem Tradução de M. Lahud.; Y. F. Vieira, 7.ed. São Paulo: Hucitec. 1995.
  • BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Tradução de M. E. G. G. Pereira. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes. 2000.
  • BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética Tradução de A. F. Bernardini; J. Pereira Júnior; A. Góes Júnior; H. S. Nazário; H. F. Andrade.5. ed. São Paulo: Hucitec. 2002.
  • COSTA, E. V.; LYRA, M. C. D. P. Como a mente se torna social para Barbara Rogoff? A questão da centralidade do sujeito. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.15, n. 3, p. 637–647. Setembro. 2002.
  • COSTA, E. V. Um estudo de álgebra elementar com balança de dois pratos. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 23, n. 3, p. 456–465. Dezembro. 2010.
  • COSTA, E. V. Dialogando com o saber matemático em sala de aula Educação: Teoria e Prática, Rio Claro, v. 22, n. 41, p. 124–144. Setembro/Dezembro. 2012.
  • DE CHIARO, S.; LEITÃO, S. O papel do professor na construção discursiva da argumentação em sala de aula Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v.18, n. 3, p. 350–357. Sept./Dec. 2005.
  • HOLQUIST, M. Dialogism: Bakhtin and his world. London: Routledge. 1990.
  • IMENES, L. M; LELLIS, M. Matemática São Paulo: Scipione, 1997.
  • JÃGER, S. Discourse and knowledge: theoretical and methodological aspects of a critical discourse and dispositive analysis. In: Wodak, R; Meyer, M. (Ed.). Methods of critical discourse analysis London: Sage, 2001, p. 32–62.
  • LEITÃO, S. The potential of argument in knowledge building. Human Development, v. 43, n. 6.p. 332–360. November-December. 2000.
  • LEITÃO, S. Analyzing changes in view during argumentation: a quest for method. Forum Qualitative Social Research, v. 2, n.3. On line.2001. Acess in: <http://www.qualitative-research.net/index.php/fqs/article/view/907>.
    » http://www.qualitative-research.net/index.php/fqs/article/view/907
  • LEITÃO, S. O lugar da argumentação na construção do conhecimento em sala de aula. In: LEITÃO, S.; DAMIANOVIC J. (Orgs.). Argumentação na escola: o conhecimento em construção Campinas, S.P: Pontes Editores. 2011. p. 13–46.
  • LYRA, M. C.D.P. Reflections on the dynamics of meaning making: communication process at the beginning of life. In: LYRA, M. C. D. P.; VALSINER J. (Org.). Construction of psychological processes in interpersonal communication London: Ablex Publishing Corporation. 1998. p. 225–241.
  • LAVE, J. Cognition in practice: mind, mathematics and culture in everyday life Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
  • LAVE, J; WENGER, E. Situated learning: Legitimate peripheral participation New York: Cambridge University Press, 1987.
  • MEIRA, L.; LERMAN, S. The zone of proximal development as a symbolic space Social Science Research Papers. London.v.1, n.13, p. 1–40. June. 2001.
  • ROGOFF, B. Apprenticeship in thinking New York: Oxford. 1990.
  • ROGOFF, B. Social interactions as apprenticeship in thinking: Guided participation in spatial planning. In: RESNICK, L.B.; LEVINE, J.M.;TEASLEY, S.D. (Org.). Perspectives on socially shared cognition Washington, DC: American Psychological Association, 1987. p. 349–364.
  • ROGOFF, B. Observing sociocultural activity on three planes: Participatory appropriation, guided participation, and apprenticeship. In: WERTSCH, J.V.;DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind Cambridge, UK: Cambridge Universtity Press, 1995. p. 139–163.
  • ROGOFF, B. Cognition as a collaborative process. In:DAMON, W.; KUHN, D.;SIEGLER, R. S. (Org.). Handbook of child psychology: Cognition, perception and language, New York: Wiley, v.2, 1998. p. 679–744.
  • VALSINER, J. Culture and the development of children's action New York: John Wiley & Sons. 1997.
  • VALSINER, J. Culture and human development: An introduction London: Sage Publications. 2000.
  • VALSINER, J.; VAN DER VEER, R. The social mind: Construction of the idea. Cambridge, UK: Cambridge University Press. 2000.
  • VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente Tradução: J. Cipolla Neto; L. S. M. Barreto; S. C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes. 1984.
  • VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem Tradução de J. L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes.1987.
  • VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem Tradução de P. Bezerra, São Paulo, SP: Martins Fontes. 2001.
  • WERTSCH, J. V.; SMOLKA, A. L. B. Continuando o diálogo: Vygotsky, Bakhtin e Lotman. In Daniels, H. (Org.). Vygotsky em foco: pressupostos e desdobramentos. Campinas: Papirus. 1995. p. 50–121.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2015

Histórico

  • Recebido
    Abr 2014
  • Aceito
    Ago 2014
UNESP - Universidade Estadual Paulista, Pró-Reitoria de Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática Avenida 24-A, 1515, Caixa Postal 178, 13506-900 Rio Claro - SP Brasil - Rio Claro - SP - Brazil
E-mail: bolema.contato@gmail.com