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A construção do conhecimento matemático de uma turma de alunos do Ensino Médio num espaço sociocultural: uma postura etnomatemática

A construção do conhecimento matemático de uma turma de alunos do Ensino Médio num espaço sociocultural: Uma postura etnomatemática

Bianca Santos ChistéI; Reginaldo Tudeia dos SantosII; Sérgio Candido Gouveia NetoIII

IDoutoranda em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora do Ensino Superior da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Rolim de Moura, RO, Brasil

IIDoutorando em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor do Ensino Superior da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Ji-Paraná, RO, Brasil

IIIDoutorando em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor na Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Vilhena, RO, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Bianca Santos Chisté Avenida Maceió, 4919, Centro CEP: 76940-000, Rolim de Moura, RO, Brasil E-mail: bia_chiste@yahoo.com.br

FONSECA, A. A Construção do Conhecimento Matemático de uma Turma de Alunos do Ensino Médio num Espaço Sociocultural: uma postura etnomatemática. 2009. 166f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, 2009. (Orientador: Pedro Paulo Scandiuzzi).

A dissertação de mestrado de Adriano Fonseca configura-se como um trabalho de pesquisa de caráter etnográfico, realizado em Ipeúna, São Paulo, com um grupo de adolescentes do Ensino Médio da Escola Estadual Professor Marcelo de Mesquita, no segundo semestre de 2006 e 2007. A pesquisa teve como questão orientadora: "De acordo com os princípios etnomatemáticos, como agir de modo que a sala de aula se torne um espaço sociocultural, onde aconteça a construção de conhecimento matemático do/pelo grupo social envolvido?" (FONSECA, 2009, p. 12). Essa inquietação vincula-se à intenção da pesquisa, seu objetivo, que é buscar compreender a construção do conhecimento matemático de um grupo social específico, considerando os princípios etnomatemáticos.

Esse trabalho resultou das inquietações do autor como docente, de suas interrogações sobre suas práticas, sua compreensão do objeto de ensino - a matemática - , das interrogações dos estudantes, das inquietações sobre o distanciamento entre a matemática da escola e a matemática fora da escola, além da necessidade de refletir sobre o universo cultural de seus alunos, procurando, a partir disso, relacionar o ensino da matemática à realidade em que eles estavam inseridos.

O autor, inicialmente, no primeiro capítulo, apresenta seus aportes e influências teóricas, os estudos realizados na área de etnomatemática e seus princípios. Discute, também, conceitos como cultura1 1 Fonseca (2009, p. 19) não discute de forma aprofundada o termo cultura: para o autor não há definição de cultura. Ele afirma que "ao defini-la, tudo que não cabe na minha definição, não é cultura". , alteridade2 2 O autor fundamenta-se em Gusmão (2003) para discutir alteridade, afirmando que nós existimos na relação entre mim e o outro. Essa relação não se dá de maneira linear e arbitrária, mas em relações marcadas por hierarquia e poder. e diálogo simétrico3 3 Para Fonseca, o diálogo simétrico se constitui na produção de conhecimento por meio do diálogo estabelecido entre professor/aluno e aluno/professor, provocando assim novos saberes socioculturais. , que são mobilizados ao longo desse primeiro capítulo. É importante observar o registro do autor sobre sua mudança de concepção em relação ao fazer matemática. Inicialmente, ele afirma conceber a matemática como o conjunto de habilidades de dominar os símbolos e conceitos matemáticos, resolver exercícios formais e desenvolver o raciocínio para resolução de problemas. A partir de estudos e aprofundamentos teóricos sobre a matemática, foi possível a ele, autor, num segundo momento, compreender o fazer matemático além de atividades técnicas, mas enquanto uma atividade humana que envolve arte, criatividade, para que possamos compreender, explicar, medir, classificar, inferir, modelar, lidar com.

Ao ter contato com as discussões sobre etnomatemática, sua concepção de fazer matemática ampliou-se: matemática passa a ser concebida como "a atividade de todo grupo social de produzir conhecimentos, utilizando para isso instrumentos desenvolvidos a partir de habilidades/técnicas e criatividade/artes para compreender, explicar, modelar e inferir sobre os fatos da realidade" (FONSECA, 2009, p. 18). É essa, por fim, a concepção mobilizada em sua pesquisa.

A pesquisa realizada por Fonseca, de cunho etnográfico, fundamenta-se em Rockwell (1987) e utiliza como instrumentos metodológicos a observação, notas de campo, gravação sonora (gravador digital e visual, máquina digital) e questionário padrão, com perguntas abertas. Como o presente trabalho em etnomatemática visa ao trabalho escolar, o grupo social pesquisado é formado por alunos do primeiro e segundo anos do Ensino Médio. De acordo com autor, foram desenvolvidos com esse grupo dois projetos vinculados à pesquisa: o Projeto de leitura com um olhar matemático, realizado em 2006, quando cursavam o 1º ano do Ensino Médio; e o projeto chamado Projeto de leitura de mundo com um olhar etnomatemático, realizado em 2007, quando cursavam o 2º Ano do Ensino Médio. O segundo projeto foi uma continuidade do trabalho desenvolvido no ano anterior, mas com novas perspectivas, novos olhares, novas preocupações.

O projeto de leitura com um olhar matemático objetivou fazer com que os alunos percebessem e compreendessem a utilização dos conceitos da matemática escolar em artigos impressos e digitais, buscando dar sentido a essa disciplina. Para isso, os alunos foram organizados em grupos e, de acordo com os temas escolhidos pelo professor, os discentes pesquisavam em artigos de jornal, revistas, internet ou outras fontes confiáveis, textos a partir dos quais pudessem discutir questões matemáticas. A dinâmica do trabalho consistiu na leitura, discussão, localização da linguagem, problematização e respostas ao questionário elaborado pelo professor.

A preocupação antes do início do desenvolvimento do projeto foi apresentá-lo aos alunos para que decidissem sua viabilidade ou não. Como eles demonstraram interesse e curiosidade por ser algo novo na disciplina de matemática, foram organizados sete grupos de trabalho com mais ou menos o mesmo número de integrantes. O pesquisador esclareceu aos grupos que deveriam montar uma apresentação sobre um tema de interesse de cada grupo, cujo objetivo principal era fazer com que percebessem e compreendessem a utilização de expressões matemáticas presentes em artigos impressos e ou digitais. Cada grupo faria uma apresentação com base em algum texto que deveria mobilizar símbolos referentes à matemática escolar, foram necessárias duas aulas de 50 minutos para essa apresentação. O pesquisador orientou a organização das apresentações em cinco momentos: 1. leitura do texto, 2. perguntas do grupo apresentador para os outros grupos, 3. Perguntas dos outros grupos para o grupo apresentador, 4. Comentários do professor quanto ao texto e à discussão. Nas duas últimas apresentações, os grupos foram orientados a escrever suas respostas, lerem e depois entregá-las para o grupo apresentador para que pudessem colocá-las no questionário. Os grupos foram orientados a registrar no questionário informações extras, perguntas que necessitavam de novas pesquisas e respostas dos grupos, por exemplo. Essas novas pesquisas fizeram com que os alunos fossem buscar junto aos professores e outros profissionais as respostas de que precisavam. Os temas abordados indicados pelo pesquisador ou escolhidos pelos alunos foram Medicina, esporte, organização, saúde e comportamento humano. Nos temas foram abordados conceitos de porcentagem, proporção, função afim, operações básicas, velocidade e posição no movimento retilíneo uniforme, dentre outros. Segundo o autor da dissertação, o projeto permitiu que fossem ultrapassados os limites da sala de aula e dos muros da escola.

Já o projeto de leitura com um olhar etnomatemático teve como objetivo buscar e explicar fatos e fenômenos com os quais se tem contato cotidianamente, visando que os alunos compreendessem maneiras próprias de explicar, inferir, classificar, medir, constituindo, assim, um saber sistematizado. Para isso, o autor, já com um olhar etnomatemático, procurou organizar o trabalho para que o grupo tivesse mais autonomia em suas escolhas, apresentações e discussões. Dessa maneira, os grupos escolheram os temas e os artigos que mais lhes despertavam curiosidade e interesse. Em suas apresentações eles utilizaram, além de artigos impressos, materiais audiovisuais. O grupo ainda teve a seu critério a organização do debate e a elaboração das questões problematizadoras e geradoras de discussão. Com um olhar etnomatemático, os alunos discutiram sobre algumas soluções dadas às situações que envolvem algum tipo de crime, buscando compreender se essas soluções são corretas ou não, tentando levantar outras soluções. Além disso, levantaram as possíveis causas da criminalidade. Com isso, puderam observar, analisar e discutir recortes da própria realidade e, assim, compreendê-la e explicá-la, buscando, a partir daí, encontrar soluções para algumas das situações problematizadas.

Na discussão dos resultados da dissertação o autor faz uma retomada de sua questão diretriz, bem como dos objetivos do estudo. De acordo com Fonseca, a necessidade dessa discussão é apresentar as categorias mais gerais conectadas aos conceitos etnomatemática e seus princípios, conhecimento matemático, espaço sociocultural, alteridade e diálogo simétrico, já que as categorias sociais específicas4 4 As categorias sociais específicas tratadas pelo autor foram escolhidas pelos grupos de alunos. Entre elas destacam-se: violência, pedofilia, negligência infantil, exploração infantil, drogas e inclusão escolar. foram apresentadas nos capítulos segundo e terceiro. Mas, o que são essas categorias gerais? O pesquisador afirma que estas são (a) a ausência da matemática escolar no discurso, (b) a construção de conhecimento matemático, (c) o espaço sociocultural, (d) a mudança de postura, e (e) a construção da consciência crítica. Ao tratar da primeira dessas categorias, o autor discorre sobre o que julga ser dois de seus motivos: o sentimento de repulsa e incompreensão, observado na avaliação dos alunos no projeto de 2006, e o interesse dos grupos radicar nas questões sociais, ao invés das sociotecnológicas.

Para o autor chegar a essa conclusão, mobilizou a perspectiva da Matemática em Ação, de Ole Skovsmose (2005). Assim, Fonseca (2009, p. 154) concluiu que ao tratar de questões sociais o grupo não necessitou da matemática escolar. Afirma, entretanto, que a matemática escolar pode tornar-se relevante, "à medida que o grupo social, no diálogo simétrico, sentir a necessidade de usá-la" cabendo ao outro a decisão de usá-la ou não. Dessa forma, o autor questiona: o grupo pesquisado, então, não constrói conhecimento matemático? E responde: depende do ponto de vista. Considerando a matemática escolar, não há, propriamente, construção da matemática. Contudo, considerando matemática sob a perspectiva da etnomatemática, de Ubiratan D'Ambrosio, o grupo constrói matemática ao compreender, explicar, inferir sobre os problemas sociais. Nessa construção passa-se por dois momentos (elaboração e problematização dos temas). No primeiro momento, diferentemente dos conteúdos escolares prontos e acabados, os conteúdos (temas) apresentados pelos alunos estavam para ser descontruídos, reconstruídos e construídos. O segundo momento (problematização dos temas) é quando ocorre a matematização, nas ações de compreender, explicar, inferir, modelar, classificar e conviver com a realidade do grupo.

As referidas etapas abarcavam duas situações: conhecimento do outro (artigos, música, clip, diálogo simétrico com pesquisador e professor, conhecimento do eu) e interação entre eu e o outro (construção de novo conhecimento sociocultural que transcenda e renove os conhecimentos anteriores). O conhecimento do outro só é possível a partir do momento em que reconhecemos e visualizamos a sala de aula como espaço sociocultural. Nesse espaço sociocultural, o aluno é compreendido como sujeito sociocultural, ou seja, sujeito pertencente ao grupo social particular inscrito numa cultura própria. Reconhecer o outro, saber que o outro é diferente de mim, pensa e age diferente de mim, segundo o autor, é faceta fundamental para perceber a alteridade no construto do conhecimento. Para Fonseca, a alteridade manifesta-se, no estudo em questão, por exemplo, na efetivação dos trabalhos realizados com os alunos, quando a direção e coordenação acolheram e abriram espaço para a implementação dos projetos e, também, quando o professor da turma aceitou participar das atividades. A possibilidade de reconhecer o outro só se concretiza quando ocorre o diálogo simétrico.

Com seu trabalho, o autor mostra que é possível construir uma matemática segundo as ideias do Programa de Etnomatemática, isto é, uma matemática carregada de significados, quando o estudante resolve problemas, infere, e constrói uma relação de solidariedade e cooperação.

Referências

GUSMÃO, N. M. M. Os desafios da diversidade na escola. In: GUSMÃO, N. M. M. (Org.). Diversidade, cultura e educação: olhares cruzados. São Paulo: Editora Biruta, 2003. p. 83-105.

SKOVSMOSE, O. Matemática em Ação. In: BICUDO, M. A. V., BORBA, M. C. (Org.). Educação Matemática: pesquisa em movimento. 2. ed. São Paulo: Editora Cortez, 2005. p. 30-57.

ROCKWELL, E. Reflexiones sobre el proceso etnográfico (1982-1985). México: D.F., Departamento de Investigaciones Educativas- Centro de Investigaciones y Estudios Avanzados del IPN, 1987. (Mimeo).

Reginaldo Tudeia dos Santos

Rua Rio Amazonas, 351, Jardim dos Migrantes

CEP: 76900-726, Ji-Paraná, RO, Brasil

E-mail: rtudeia@yahoo.com.br

Sérgio Candido Gouveia Neto

Avenida Rotary Clube, 14551, Setor Chacareiro

CEP: 76980-000, Vilhena, RO, Brasil

E-mail: gouveianeto@gmail.com

  • ROCKWELL, E. Reflexiones sobre el proceso etnográfico (1982-1985) México: D.F., Departamento de Investigaciones Educativas- Centro de Investigaciones y Estudios Avanzados del IPN, 1987. (Mimeo).
  • Endereço para correspondência:

    Bianca Santos Chisté
    Avenida Maceió, 4919, Centro
    CEP: 76940-000, Rolim de Moura, RO, Brasil
    E-mail:
  • 1
    Fonseca (2009, p. 19) não discute de forma aprofundada o termo cultura: para o autor não há definição de cultura. Ele afirma que "ao defini-la, tudo que não cabe na minha definição, não é cultura".
  • 2
    O autor fundamenta-se em Gusmão (2003) para discutir alteridade, afirmando que nós existimos na relação entre mim e o outro. Essa relação não se dá de maneira linear e arbitrária, mas em relações marcadas por hierarquia e poder.
  • 3
    Para Fonseca, o diálogo simétrico se constitui na produção de conhecimento por meio do diálogo estabelecido entre professor/aluno e aluno/professor, provocando assim novos saberes socioculturais.
  • 4
    As categorias sociais específicas tratadas pelo autor foram escolhidas pelos grupos de alunos. Entre elas destacam-se: violência, pedofilia, negligência infantil, exploração infantil, drogas e inclusão escolar.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013
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