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Dividindo histórias e opiniões: o produto de uma pesquisa em história da educação matemática

Sharing stories and opinions: the product of a study on the history of mathematics education

Resumos

O presente texto tem como objetivo contar o processo de criação de um produto anexado a uma pesquisa de natureza histórica em um Programa de Mestrado Profissional de Educação Matemática. Como se sabe, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) destaca que a pesquisa desenvolvida em um Mestrado Profissional precisa gerar um produto que contribua para a prática dos profissionais da área envolvida. Sabemos que elaborar um produto a ser apensado a uma pesquisa histórica é algo bastante novo, visto que, tradicionalmente, essa linha de pesquisa vincula-se a mestrados acadêmicos. Assim, neste texto apresentamos como, ao elaborar a dissertação Uma história do ensino primário em tempos de modernização da matemática escolar, Vassouras 1950-1969, se deu a apropriação do referencial teórico e como o desenvolvimento da pesquisa em seu todo, incluindo as atividades realizadas durante o estágio supervisionado, proporcionaram o surgimento da ideia do referido material, sua elaboração e os ganhos obtidos.

Mestrado Profissional; Material didático; História da Educação Matemática


We describe the development of educational materials in association with historical research conducted as part of a Professional Masters degree program in Mathematics Education. The Coordination of Improvement of Higher Education Personnel (CAPES) requires that research developed in a Professional Masters must generate a product that contributes to the practice of the professionals involved. The development of educational material in association with historical research is something new, as this type of research is traditionally linked with academic Masters degree programs. Thus, I describe how the theoretical reference was applied in the course of conducting the research A history of primary teaching in times of modernization of school mathematics, Vassouras 19501969 and how the study, including the activities carried out during the internship, led to the development of the educational material.

Professional Master's; Educational Material; History of Mathematics Education


ARTIGOS

Dividindo histórias e opiniões: o produto de uma pesquisa em história da educação matemática

Sharing stories and opinions: the product of a study on the history of mathematics education

Heloisa Hernandez de Fontes SalvadorI; Lucia Maria Aversa VillelaII

IMestre em Educação Matemática pela Universidade Severino Sombra (USS). Professora de Matemática do Ensino Fundamental II do Colégio Santo Inácio e Colégio Andrews

IIDoutora em Educação Matemática pela Universidade Bandeirante de São Paulo (UNIBAN). Professora adjunta I do Mestrado Profissional em Educação Matemática da Universidade Severino Sombra

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Heloisa Hernandez de Fontes Salvador Rua Eduardo Guinle, 23/304, Botafogo CEP: 22260-080, Rio de Janeiro, RJ, Brasil E-mail: helohsal@gmail.com

RESUMO

O presente texto tem como objetivo contar o processo de criação de um produto anexado a uma pesquisa de natureza histórica em um Programa de Mestrado Profissional de Educação Matemática. Como se sabe, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) destaca que a pesquisa desenvolvida em um Mestrado Profissional precisa gerar um produto que contribua para a prática dos profissionais da área envolvida. Sabemos que elaborar um produto a ser apensado a uma pesquisa histórica é algo bastante novo, visto que, tradicionalmente, essa linha de pesquisa vincula-se a mestrados acadêmicos. Assim, neste texto apresentamos como, ao elaborar a dissertação Uma história do ensino primário em tempos de modernização da matemática escolar, Vassouras 1950-1969, se deu a apropriação do referencial teórico e como o desenvolvimento da pesquisa em seu todo, incluindo as atividades realizadas durante o estágio supervisionado, proporcionaram o surgimento da ideia do referido material, sua elaboração e os ganhos obtidos.

Palavras-chave: Mestrado Profissional. Material didático. História da Educação Matemática.

ABSTRACT

We describe the development of educational materials in association with historical research conducted as part of a Professional Masters degree program in Mathematics Education. The Coordination of Improvement of Higher Education Personnel (CAPES) requires that research developed in a Professional Masters must generate a product that contributes to the practice of the professionals involved. The development of educational material in association with historical research is something new, as this type of research is traditionally linked with academic Masters degree programs. Thus, I describe how the theoretical reference was applied in the course of conducting the research A history of primary teaching in times of modernization of school mathematics, Vassouras 19501969 and how the study, including the activities carried out during the internship, led to the development of the educational material.

Keywords: Professional Master's. Educational Material. History of Mathematics Education.

1 Introdução

Ao ingressar no Mestrado Profissional de Educação Matemática da Universidade Severino Sombra recebi o convite da professora Lúcia Maria Aversa Villela a integrar a equipe vinculada ao projeto A Matemática do Ensino Primário de Vassouras, RJ: analisando um século de provas de alunos (1869 - 1969), vinculado à linha de pesquisa de história da educação matemática. Tal estudo articula quatro subprojetos de pesquisa:

Subprojeto 1

As provas de Aritmética do ensino primário em tempos do Império, 1869-1889 (projeto de Iniciação Científica que irá inventariar as provas desse período, categorizando o material encontrado a partir de seus conteúdos e tipos de exercícios solicitados nas avaliações).

Subprojeto 2

A escola primária republicana e a aritmética do curso primário, 1889-1946 (projeto de Iniciação Científica que irá inventariar as provas desse período, categorizando o material encontrado a partir de seus conteúdos e tipos de exercícios solicitados nas avaliações).

[...]

Subprojeto 3

Analisando as provas de alunos do curso primário em tempos de modernização da matemática escolar, 19501969 (projeto de mestrado que irá investigar, a partir das provas, as modificações na matemática com o advento do chamado Movimento da Matemática Moderna)

[...]

Subprojeto 4

As provas de alunos e as transformações da matemática escolar do curso primário, 1869-1969

O projeto, como um todo, objetiva abordar a seguinte questão: que mudanças envolvendo finalidades, metodologia e conteúdos do ensino de Matemática podem ser lidas a partir das provas de alunos? (VILLELA et al. 2010, p. 12-13).

Inicialmente, os dois primeiros subprojetos foram destinados a trabalhos de conclusão de curso de graduação e somente o terceiro a um projeto de mestrado. Logo, coube-me o subprojeto 3, o qual recebeu o título Uma história do ensino primário em tempos de modernização da matemática escolar, Vassouras 1950-1969 (SALVADOR, 2012a) e teve como objetivo geral analisar as transformações sofridas pelo ensino de matemática no curso primário, no período compreendido entre 1950 a 1969, a partir de provas de alunos encontradas no Arquivo Público da Secretaria Municipal de Educação de Vassouras (APSMEV). Buscou responder questões tais como:

• Que leitura é possível fazer a partir das provas?

• As provas mudaram nesse espaço temporal? Houve algum padrão na confecção desses instrumentos de avaliação? O nível de cobrança sofreu alteração ao longo do período?

• Que conteúdos de matemática foram solicitados nas provas? Houve algum tipo de evolução didática nas questões formuladas?

• Tais conteúdos eram contemplados pelos livros didáticos e legislações utilizadas pelos professores e/ou alunos?

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) destaca que a pesquisa desenvolvida em um Mestrado Profissional deve desenvolver "[...] aplicativos e materiais didáticos e instrucionais e de produtos, processos e técnicas" (BRASIL, 2009).

No caso em questão, tal produto, embasado na pesquisa, é de natureza educacional e visa à melhoria do ensino e aprendizagem da matemática através de elementos que favoreçam o desenvolvimento da prática docente.

Como as investigações relacionadas à linha de história da educação matemática, até então, se vinculavam aos mestrados acadêmicos, essa produção representou algo novo e desafiador. Neste texto tem-se como objetivo contar a experiência vivida: a apropriação do referencial teórico, o como se processou o desenvolvimento da pesquisa e o nascimento da ideia do produto, sua elaboração e os ganhos obtidos.

2 Apropriação do Referencial Teórico

Na intenção de responder questões propostas por Valente (2007b) -Por que hoje colocamos os problemas sobre o ensino de matemática do modo como colocamos? e Por que pensamos em reformas sobre esse ensino do modo como são propostas? - nos é imposto uma pesquisa histórica, visto que

[...] a reflexão histórica, mormente no campo educativo, não serve para "descrever o passado", mas sim para nos colocar perante um patrimônio de ideias, de projetos e de experiências. A inscrição do nosso percurso pessoal e profissional neste retrato histórico permite uma compreensão crítica de "quem fomos" e de "como somos" (NÓVOA, 1999, p. 13).

A reflexão de Nóvoa nos remete a uma linha de pesquisa que vê a escola de uma forma diferente. Em décadas anteriores, o interesse dos historiadores era relacionado aos aspectos estruturais da escola e a dados quantitativos. Na pesquisa, a escola foi vista como um local privilegiado de estudo que se dá a partir dos elementos produzidos pela cultura escolar.

Para Julia (2001, p. 10) "cultura escolar" pode ser entendida como "[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos".

Pesquisar sob a ótica da cultura escolar significa analisar este conjunto de normas levando-se em consideração, além destas, as finalidades que regem a escola, as relações que a própria cultura escolar mantém em "cada período de sua história com o conjunto das culturas que lhe são contemporâneas" (JULIA, 2001, p.10) (religiosa, política, popular), o papel desempenhado pela profissionalização do trabalho de educador, os conteúdos ensinados e as práticas escolares.

Dentro desse contexto, a disciplina escolar, no caso a matemática, tornase particularmente objeto de interesse. Buscamos identificar indícios sobre a constituição desse saber escolar, no período de 1950 a 1969, na cidade de Vassouras, visando perceber a sua dinâmica, as continuidades e descontinuidades no processo de escolarização.

Chervel (1990, p. 181) considera que se deva empregar o termo disciplina escolar como "conteúdo de ensino, historicamente criado pela própria escola, na escola e para escola". Para ele, a disciplina escolar é composta de diferentes elementos: "um ensino de exposição, os exercícios, as práticas de incitação e de motivação e um aparelho docimológico" (p. 206). Chama de aparelho docimológico ao conjunto de avaliações escolares que englobam as provas que são realizadas durante o ano e os chamados exames finais que permitem a passagem para a próxima etapa.

Assim, o estudo histórico dos processos de avaliação pode contribuir em boa medida para o entendimento da organização dos ensinos escolares; em específico, para a compreensão de como a matemática escolar foi constituída e chegou até nossas salas de aula hoje (VALENTE, 2008, p.13).

"O período considerado pela pesquisa leva em conta uma circunstância ímpar de existência de provas de alunos encontradas no Arquivo Público de Vassouras" (VILLELA et al. 2010, p. 4). Nesses instrumentos pudemos observar a presença de certos exercícios em sua função de controle, o que permite desvelar a trajetória dos saberes efetivamente presentes no cotidiano escolar naquele período.

Claro está que as provas serão consideradas como fontes privilegiadas de pesquisa sendo sempre cotejadas com livros didáticos, arquivos pessoais, legislação escolar dentre outros documentos, fundamentais para a escrita de uma história da educação matemática (VILLELA et al. 2010, p. 3-4).

Além das provas dos alunos, foram encontrados outros documentos. Em alguns deles há o registro de três livros didáticos usados pelos professores da época: "Aritmética Primária", e "Aritmética Elementar Ilustrada", ambos de Antônio Trajano, e o terceiro, "Práticas de Aritmética, Geometria e Desenho", de Gaspar de Freitas.

Um teórico que norteia a investigação histórica baseada nos livros didáticos é Choppin (2004). Segundo ele, "os livros didáticos exercem quatro funções essenciais, que podem variar consideravelmente segundo o ambiente sociocultural, a época, as disciplinas, os níveis de ensino, os métodos e as formas de utilização" (CHOPPIN, 2004, p. 552). Esse autor considera que documentos como esses podem ser analisados a partir das funções referencial, instrumental, ideológica e cultural e documental.

O livro didático é tido como referência (função referencial) para se encontrar os "conhecimentos, técnicas ou habilidades que um grupo social acredita que seja necessário transmitir às novas gerações". É visto como instrumento (função instrumental) às práticas pedagógicas já que "põe em prática métodos de aprendizagem, propõe exercícios ou atividades". Exerce também uma função ideológica e cultural, pois se constitui "como um dos vetores essenciais da língua, da cultura e dos valores das classes dirigentes" e é considerado como um conjunto de documentos (função documental) textuais ou simbólicos "cuja observação ou confrontação podem vir a desenvolver o espírito crítico do aluno" (CHOPPIN, 2004, p. 553).

O estudo do livro didático, considerando tais funções, pode trazer uma significativa teia de informações. Segundo Valente (2007a), fazendo perguntas para os didáticos de matemática produzidos em cotidianos passados pode-se estudar as práticas da educação matemática de outros tempos.

3 O desenvolvimento da pesquisa e da ideia do produto

A análise das provas encontradas, que contemplavam apenas as três primeiras séries do ensino primário, possibilitou o mapeamento dos conteúdos abordados: algarismos romanos, sistema de numeração decimal, operações fundamentais, divisibilidade, sistema métrico, sistema monetário, frações, números decimais, geometria e medida de tempo.

Pode-se observar que os exercícios de cálculos estavam sempre presentes nas provas, apesar de não representarem o maior percentual de cobrança. Quanto aos cálculos observados, todos os alunos efetuavam a divisão pelo processo curto e, considerando o período de estudo, o dispositivo da prova dos nove só apareceu nas provas de 1952 (Figura 1).


Essa observação sobre a divisão nos fez analisar com mais detalhes a abordagem que cada um dos três livros didáticos citados dava à operação. Estabelecemos, ainda, uma comparação com o que estava posto em alguns livros de arithmetica do século XIX, que já analisáramos por conta de outra pesquisa. Juntou-se a essa análise as dúvidas acumuladas sobre a operação de divisão ao longo da nossa prática docente e a de colegas, mapeadas nas inúmeras oportunidades vivenciadas junto à formação inicial e continuada de professores.

Assim, nasceu a ideia do produto: que tal partilhar histórias encontradas nos livros, alguns de arithmetica do século XIX e outros de matemática dos anos de 50 e 60 do século XX sobre a operação de divisão? Paralelamente a esses achados a proposta foi, também, levantar reflexões e discussões sobre como esse conteúdo foi (utilizando-se dados obtidos na pesquisa) e é desenvolvido nas escolas (experiência vivida por uma das autoras). Dessa forma, elaboramos um pequeno paradidático, intitulado "Dividindo histórias e opiniões - compartilhando e polemizando a operação de divisão".

4 A elaboração

Dividir histórias e opiniões sobre a operação de divisão significa compartilhar práticas de apropriação desse saber, em diferentes contextos do passado. Por ser uma reflexão com base na história da educação matemática, e que, consequentemente, oferece um "[...] alargamento da compreensão do processo de escolarização" (VALENTE, 2007b, p.28), o produto, destinado à formação do professor, representa um modo privilegiado de ampliar o debate sobre a condução da educação matemática em tempo presente. Ao manter uma relação com as práticas profissionais realizadas no passado, sugerimos que o professor estará melhor fundamentado para refletir e desenvolver atividades didático-pedagógicas sobre o tema abordado.

Assim, o primeiro capítulo desse paradidático apresenta, à luz de um olhar histórico, algumas reflexões sobre o algoritmo da divisão, a linguagem utilizada pelos professores, o conceito e o registro do quociente, a verificação da operação e suas ideias. Atividades englobando situações-problemas e suas respostas, algoritmos, calculadora e cálculo mental, foram tratadas no segundo capítulo, para aprofundar o que fora discutido anteriormente. Para concluir, levantam-se alguns questionamentos que oportunizam aos professores a continuidade de reflexões.

Os itens escolhidos para trazer a debate surgiram das questões: O que é relevante no estudo da operação de divisão? Sobre quais aspectos da abordagem desse conteúdo, nós professores, devemos refletir? Como nos desvencilharmos de receitas e pensarmos nos porquês dos procedimentos? Como tornar o ensino da divisão significativo para o aluno?

Como esse livreto ainda está passando por um tratamento editorial, é pertinente comentar que a versão apresentada à banca de conclusão constituiuse de cinquenta e oito páginas de dimensões 14,8 por 21 cm.

Como Villela coloca no prefácio, por meio de uma linguagem coloquial, essa obra "de forma instigante, incita o leitor a trilhar novos velhos caminhos" sobre o ensino dessa operação numérica.

Para ilustrar um pouco de tudo o que foi dito até aqui, inserimos algumas partes do paradidático que mostram o resgaste histórico associado à reflexão. No item relacionado à linguagem, remetemos a Trajano (1947), em seu livro "Aritmética Primária", na 5ª Lição de dividir, que explica como dividir 2436 por 6:

Como não podemos dividir 2 por 6, tomaremos também a ordem seguinte e teremos 24. No princípio da operação não é necessário escrever a cifra no quociente. Então, 24 dividido por 6 dá 4, e não fica resto. Temos agora de dividir a ordem seguinte que é 3; ora, como não podemos dividir 3 por 6, tomaremos também a ordem seguinte, que é 6, e teremos 36. Escreveremos uma cifra no quociente e depois dividiremos 36 por 6, que dará 6. O quociente da divisão é 406 (TRAJANO, 1947, p.31 apud SALVADOR 2012b, p. 21).

A partir desse trecho do livro de Trajano, propomos que o leitor estabeleça uma comparação da forma como o autor descreve o processo da divisão e a maneira como hoje em dia o fazemos. A seguir, sugerimos uma reflexão sobre tal abordagem.

É assim que hoje em dia a maioria dos professores explica o processo de dividir, mas algumas questões devem ser observadas. Primeiro, "como não podemos dividir 2 por 6"? Aqui há uma imprecisão de linguagem, visto que ao usarmos este tipo de fala, estamos reforçando a concepção errônea de que só é possível um número caber uma quantidade inteira de vezes em outro e, além disso, este 2 representa 2000. Para completar, parece bastante misterioso ignorar os "36" sem qualquer problema.

O que se quer é que o aluno pense em 2436 como 2 unidades de milhar, 4 centenas, 3 dezenas e 6 unidades e não com os algarismos independentes 2, 4, 3 e 6. Uma ideia é usar um contexto como o empacotamento de doces em pacotes com 10, com 10 pacotes em cada caixa de papelão e com 10 caixas de papelão em cada caixote. Dessa forma, se tem 2 caixotes, 4 caixas, 3 pacotes e 6 doces para dividir por 6 pessoas. Nesse contexto, é razoável compartilhar primeiro os caixotes até não mais poderem ser compartilhados. Aqueles restantes são "desempacotados" e as caixas compartilhadas e assim por diante.

Van de Walle (2009, p.267) afirma que "a linguagem desempenha um papel importante ao pensar conceitualmente sobre o algoritmo. A maioria dos adultos está tão acostumada à linguagem de "caber em" que é difícil abandoná-la".

Voltando ao exemplo dado, pode-se pensar em outra forma de expressão:

Eu quero compartilhar 2 unidades de milhar, 4 centenas, 3 dezenas e 6 unidades entre esses 6 grupos de mesma quantidade. Não existem suficientes unidades de milhar para cada um dos 6 grupamentos ter uma quantidade inteira de unidades de milhar. Logo, passo a ver as 2 unidades de milhar como 20 centenas. Isso me dá um total de 24 centenas e, portanto, posso colocar em cada um dos 6 grupamentos 4 centenas. Da mesma forma, não existem suficientes dezenas para cada um dos 6 grupamentos ter uma quantidade inteira de dezenas. Logo, troco 3 dezenas por 30 unidades. Isso me dá um total de 36 unidades. Posso colocar 6 unidades em cada um dos seis conjuntos. Ao todo distribui 4 centenas e 6 unidades a cada uma das partes, ou seja 406 unidades (SALVADOR, 2012b, p.21, 22).

Conforme se viu, a história é utilizada na e para a escola, buscando instigar o professor a pensar sobre sua prática. No item relacionado à verificação da operação, uma das questões de uma prova analisada é empregada para disparar a discussão.

Na prova da 3ª série de 1952 (

Figura 11

), a professora considera meio acerto o cálculo realizado pelo aluno. Pelo que parece, o aluno, ao fazer a prova real, somente multiplica o quociente pelo divisor. A caligrafia indica que, a adição deste produto com o resto, foi feita pela professora. Na soma (ou total), ela deve ter cometido o engano de trocar o 8 e o 6 de ordens. Quanto às provas dos nove que constam da correção, parecem ter sido feitas por duas avaliadoras diferentes: uma que usou a caneta vermelha e outra, a preta. Só que certamente ocorreram erros nos dois dispositivos apresentados. Segundo o que vimos, o esquema correto para a prova dos nove seria:


Palmer nos traz outra prova real para a conta de divisão além da

D = d. q + r

. Ele propõe que se faça a soma dos produtos parciais com o resto final, como mostra a

Figura 12

na página ao lado.


Esta prova também não é explorada nos dias de hoje, apesar de estar baseada na ideia das subtrações sucessivas e possibilitar ao aluno uma retomada da construção do sistema decimal de numeração que possivelmente trabalhou no quadro valor de lugar (Q.V.L.), já que o 48 que se vê abaixo do dividendo, na verdade é uma forma simplificada de representar 48 unidades de milhar, e, portanto, 48 000.

Ainda referindo-se ao exposto em Salvador (2012b), no capítulo onde algumas atividades são selecionadas para aprofundar as discussões feitas, foi possível utilizar o resgate histórico para promover aprendizagem. Uma das atividades, parte de Mandarino (2005, p. 173), apud Salvador (2012b, p.42-43), e propõe que observemos a conta realizada por Júlia:

6. Observe que Júlia registrou o "zero" no seu quociente. No entanto, sabemos que um "zero à esquerda" não altera o valor do número.

a) Explique por que Júlia registrou este zero.

b) Você acha que o registro deste zero ajuda ou atrapalha a compreensão do algoritmo? Justifique sua resposta:

c) Se um aluno seu registrasse este zero na ordem das centenas, como Júlia, como você agiria? (MANDARINO, 2005, p.173 apud SALVADOR, 2012b, p. 42-43).

A seguir, são apresentadas as respostas das questões, utilizando trecho do livro de Trajano (1956, p. 33, 34), visto que a maioria dos livros didáticos utilizados nas escolas, hoje em dia, não aborda essa discussão que é tão importante para a estimativa do quociente.

Júlia sabe que na ordem das centenas o 12 não cabe nenhuma vez inteira em 7. Logo, para representar isto, colocou o zero no seu quociente.

Antes de se iniciar um cálculo de divisão, é interessante solicitar que os alunos verifiquem quantas ordens terá a resposta. Por exemplo, na conta de Júlia, se na ordem das centenas está sendo ocupada pelo algarismo 7 e este é menor do que 12, não haverá centenas no quociente, logo o resultado terá duas ordens. Essa análise ajuda também nos casos em que temos zeros no quociente, por exemplo, 1785 ÷17 : como 1 é menor do que 17, sabemos que no quociente não teremos unidade de milhar, logo o resultado terá 3 ordens. Sabendo disso, o aluno nunca dará como resposta 15, que é um erro bastante comum.

Trajano (1956) chama atenção dos alunos para esta questão: Quando o divisor constar de mais de um algarismo, separam-se no dividendo tantos algarismos quantos tiver o divisor, e ainda mais um, se o número separado no dividendo fôr inferior ao divisor.

Ilustração. No primeiro exemplo, separam-se dois algarismos; no segundo exemplo, separam-se quatro algarismos; e no terceiro exemplo, separam-se três algarismos, porque 12 é menor do que 25.

Antes de operarmos uma divisão já podemos saber quantos algarismos terá o quociente. Para isto, bastará só contar os algarismos do dividendo a partir do último algarismo marcado para a direita, e o número de algarismos que ali houver, será o número de algarismos do quociente. Assim, o quociente do primeiro exemplo terá só dois algarismos; o do segundo também terá dois, e do terceiro terá três (SALVADOR, 2012b, p.44-45).

Parece-nos relevante tal resgate histórico, a fim de contribuir para a prática docente atual. O livreto termina, propondo alguns questionamentos para que o professor possa refletir, juntamente com seus pares, sobre as mudanças que ocorrem nas diferentes culturas escolares, a cada espaço e tempo, de modo a privilegiar ou relegar ao segundo plano determinados aspectos e objetivos das ações de ensino e de aprendizagem, bem como a forma de cada um atuar nesses processos.

Todas as discussões propostas nesse livreto foram vivenciadas em oficinas desenvolvidas junto a professores da rede municipal de Vassouras e alunos da graduação de Matemática da Universidade Severino Sombra, por meio do Projeto de Extensão Essa é do baú! Ação 1. Os achados encontrados durante a pesquisa sobre a operação de divisão serviram para levantar reflexões e discussões sobre como esse conteúdo foi e é desenvolvido nas escolas. Os participantes tiveram a oportunidade de discutir sobre os diferentes algoritmos e ideias da operação e, em alguns momentos, manifestaram surpresa diante de procedimentos que se perderam ao longo do tempo e que mereceriam ser resgatados no presente. Isto se vê, por exemplo, nos comentários sobre a forma de registro de quocientes não inteiros, observados em livro de Palmer, do século XIX, e no guia de orientação didática "Matemática na Escola Primária", de 1962, onde, explicitamente, é citado no programa para a terceira série que "[...] nas divisões inexatas completar-se-á o quociente com uma fração cujo numerador é o resto e cujo denominador é o divisor" (BRASIL, 1962, p.120).

O livreto está recebendo tratamento editorial pela gráfica da Universidade Severino Sombra, de acordo com as normas de impressão. Ao se vencer essas etapas, o material, junto com a dissertação que o acompanha, estará disponibilizado nos sites do programa (<http://www.uss.br/page/stric_mat_dissertacoes.asp>) e do Laboratório de Pesquisa em História da Educação Matemática (LaPHEM): (<www.laphem.com.br>). Circulará, também, em versão impressa.

5 Conclusão

De início, parecia ser difícil elaborar qualquer produto de natureza mais prática a ser apresentado a professores, a partir de uma investigação na linha da história da educação matemática. Ao viver a experiência, a pesquisadora e dinamizadora de oficinas realizadas ao longo do estágio supervisionado, que também é professora de sala de aula e teve a oportunidade de explorar várias das questões suscitadas, surpreendeu-se ao perceber que a própria narrativa o construiu.

A experiência de autoria dessa narrativa foi única. Ao estabelecer uma relação histórica com as práticas profissionais realizadas por profissionais do passado, tornou-se possível refletir sobre a nossa prática docente: na tentativa de pensar sobre como levar os achados aos nossos pares, sofremos as ações dessas reflexões.

Esse paradidático, inserido na linha de pesquisa de História da Educação Matemática, foi a forma inovadora encontrada por um Programa de Mestrado Profissional em Educação Matemática para ampliar o diálogo entre o passado e o presente, que busca a reflexão sobre o porquê e como ocorrem mudanças na cultura escolar.

Referências

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Lucia Maria Aversa Villela

Rua Almirante Cochrane, 249/204, Tijuca

CEP: 20550040, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

E-mail: luciavillela@globo.com

Submetido em Agosto de 2012.

Aprovado em Novembro de 2012.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Ago 2013

    Histórico

    • Recebido
      Ago 2012
    • Aceito
      Nov 2012
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