Acessibilidade / Reportar erro

O corpo despido pelas práticas de desenhar: dos usos à disciplinarização do desenho

The uncovered human body by practices of drawing: from the uses to the disciplining of drawing

Resumos

Inserido na problemática de investigação sobre os motivos pelos quais as práticas socioculturais de desenhar teriam adquirido e perdido o estatuto de conteúdo escolar, este artigo tem por objetivo refletir acerca dos diferentes usos dados à prática do desenho do corpo humano em duas atividades específicas: a atividade artística e a atividade médica. Parte-se do pressuposto de que a compreensão de características da vida escolar das práticas de desenhar exige a investigação dessas práticas em espaços não escolares. Como a prática do desenho do corpo tem atravessado os espaços escolares brasileiros, é nosso interesse, portanto, investigar como se pôde formar tal domínio de saber. Nesse sentido, nossa estratégia será analisar que problemáticas permearam tal prática durante o Renascimento, a fim de compreender possíveis implicações filosóficas, conceituais, técnicas e científicas decorrentes de suas diversas significações.

História da Educação Matemática; História do Desenho; Práticas Socioculturais de Desenhar; Desenho do Corpo Humano


Inserted into the investigation question on the reasons why the sociocultural practices of drawing would have acquired and lost the status of school content, this article aims to reflect about the different practice of drawing the human body in two specific activities: the artistic activity and the medical activity. It is assumed that the understanding of the characteristics of school life drawing practices require the investigation of the drawing practices outside of school. As the practice of drawing the human body has gone through the Brazilian school's spaces, it is our interest, therefore, to investigate how it was possible to form such knowledge domain. In this sense, our strategy will be to examine which problems permeated such practice during the Renaissance, in order to understand philosophical, conceptual, technical and scientific implications arising from its various meanings.

History of Mathematics Education; History of Drawing; Sociocultural Practices of Drawing; Human Body's Drawing


ARTIGOS

O corpo despido pelas práticas de desenhar: dos usos à disciplinarização do desenho* * Este trabalho tem o apoio do CNPq.

The uncovered human body by practices of drawing: from the uses to the disciplining of drawing

Rosilene Beatriz MachadoI; Cláudia Regina FloresII

IMestre em Educação Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT) na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil

IIDoutora em Educação - Ensino de Ciências e Matemática pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Pós-doutorado em Educação Matemática pela Universidade Estadual da Carolina do Norte, Estados Unidos da América. Professora do Departamento de Metodologia de Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT) na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. Pesquisadora do CNPq. Líder do grupo de pesquisa em Estudos Contemporâneos e Educação Matemática (GECEM)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rosilene Beatriz Machado Rua Frei João Vicelli, 264, Ponte Imaruim CEP: 88130-745, Palhoça, SC, Brasil E-mail: rosibmachado@gmail.com

RESUMO

Inserido na problemática de investigação sobre os motivos pelos quais as práticas socioculturais de desenhar teriam adquirido e perdido o estatuto de conteúdo escolar, este artigo tem por objetivo refletir acerca dos diferentes usos dados à prática do desenho do corpo humano em duas atividades específicas: a atividade artística e a atividade médica. Parte-se do pressuposto de que a compreensão de características da vida escolar das práticas de desenhar exige a investigação dessas práticas em espaços não escolares. Como a prática do desenho do corpo tem atravessado os espaços escolares brasileiros, é nosso interesse, portanto, investigar como se pôde formar tal domínio de saber. Nesse sentido, nossa estratégia será analisar que problemáticas permearam tal prática durante o Renascimento, a fim de compreender possíveis implicações filosóficas, conceituais, técnicas e científicas decorrentes de suas diversas significações.

Palavras-chave: História da Educação Matemática. História do Desenho. Práticas Socioculturais de Desenhar. Desenho do Corpo Humano.

ABSTRACT

Inserted into the investigation question on the reasons why the sociocultural practices of drawing would have acquired and lost the status of school content, this article aims to reflect about the different practice of drawing the human body in two specific activities: the artistic activity and the medical activity. It is assumed that the understanding of the characteristics of school life drawing practices require the investigation of the drawing practices outside of school. As the practice of drawing the human body has gone through the Brazilian school's spaces, it is our interest, therefore, to investigate how it was possible to form such knowledge domain. In this sense, our strategy will be to examine which problems permeated such practice during the Renaissance, in order to understand philosophical, conceptual, technical and scientific implications arising from its various meanings.

Keywords: History of Mathematics Education. History of Drawing. Sociocultural Practices of Drawing. Human Body's Drawing.

1 Das utilidades do desenho

(...) Permitha-se-me huma paridade, que verse em geral neste Discurso, comparando o Desenho a huma frondosa arvore, cujos vigorosos ramos, viçosas folhas, e falutiferos fructos, se espalhaõ em beneficio de todas as Sciencias, e Artes. (...).

Na Mathematica estende o Desenho hum de seus ramos, onde tem naõ pequena parte; pois que a Geometria, a Optica, a Prespectiva, e outras com figuras delineadas se aprendem, e se praticaõ.

E se com esta Sciencia sublime tem tanta união quem lha poderá negar com a Physica, e Historia Natural? Considerando a individual applicaçaõ que fazem taõ formosas Irmãs, sobre objectos, que a imitaçaõ do Desenho mais facilmente familiariza; e sem cujo socorro se naõ poderiaõ conhecer, nem estudar-lhes os seus predicados sem hum descomodo inexplicavel?

Do ramo que taõ frondosa arvore espalha na Medicina, colhe esta Defensora da Humanidade proveitosissimos fructos: mas naõ seja eu quem os indique; digaõ-no os que escreveraõ da Anatomia e da Botanica. Digaõ, digaõ esses os auxílios que acharão no Desenho, para promulgar as suas doutrinas, e ainda mesmo quando as estudaraõ.

Se comtemplo a Geographia, aqui me descobre o Desenho hum theatro taõ amplo como o Mundo inteiro. Que ramo naõ he este, Senhores, de taõ fecunda arvore! Naõ he prodígio da Deliniaçaõ ver no pequeno espaço d'huma folha de papel, todo o mar com suas Ilhas, Cachopos e Baixos? Toda a Terra, com a divisão de taõ diversos Reinos, e Provincias? As Cidades, os Rios, as Villas? (...).

E destes conhecimentos Geographicos, a que tanto concorre o Desenho, que utilidades naõ tiraõ os Povos, para o Comercio, para a Milicia, e para tecer a Historia? (...).

Sendo pois o Desenho de tanta utilidade para os Professores das Sciencias, que proveitos, que interesses naõ resultaõ delle às Artes, e a todas as manufacturas? Estas qualidades o fazem (como disse) preciso em qualquer Estado onde há civilidade.

A Pintura, Escultura, e Arquitectura, saõ as Depositarias dos copiosos fructos destes ramos. Ellas os prodigalizaõ a todas as Artes subalternas, e aos mesmos officios fabris: quanto mais a fundo, e com maior profusaõ derramarem o succo destes fructos, e com quanta maior sede o gostarem aquelles, que precisamente devem nutrir-se delle, tanto melhores serão as producções de seus respectivos empregos. Isto he innegavel, sendo evidente que o Desenho he o vivificador das Artes (DE CASTRO, 1818, p. 5-8).

É 24 de Dezembro de 1787. Recém criada está a aula de desenho na Real Casa Pia1 1 Fundada em Lisboa em 3 de julho de 1780, por Pina Manique, intendente-geral da Polícia, sob o reinado de Maria I de Portugal, a Casa Pia destinava-se à educação de órfãos e à recuperação, através do trabalho, de mendigos. As oficinas da Casa Pia tornaram-se centros importantes de produção, fornecendo material para a Marinha Portuguesa e para o Exército Português, bem como centros de formação profissional. de Lisboa, sob a responsabilidade do escultor Joaquim Machado de Castro. Em uma sessão acadêmica assistida por toda a corte, é também ele o encarregado de apresentar ao público as vantagens das faculdades gráficas, proferindo seu Discurso sobre as utilidades do Desenho.

Em seu discurso uno, por um olhar atento não passam despercebidos tantos outros discursos... Geométrico. Perspectivo. Descritivo. Cartográfico. Técnico. Arquitetônico. Anatômico. Industrial. Artístico. Desenho. Desenhos? Um e outro. De fato, há uma variedade de temas com os quais o desenho dialoga. "Variedade ligada às suas próprias potencialidades, não se restringindo seu campo apenas às tradicionais três artes do desenho - pintura, escultura e arquitetura. Ou seja: embora linguagem e conhecimento específico, o desenho está sempre dialogando com outros modos de linguagem e conhecimento" (DORIA, 2006, p. 260).

Pouco tempo passaria desde o pronunciamento do Discurso de Machado de Castro até que a institucionalização da instrução pública básica2 2 Entenda-se institucionalização da instrução pública básica por construção de um sistema de ensino público organizado, buscando estruturar um ensino secundário (equivalente ao que hoje chamamos ensino fundamental e médio) que desse uma cultura geral (propedêutica) à elite do país. começasse a se efetivar em países como França e Portugal. O desenho, objeto cultural (no sentido de forma simbólica produzida por práticas socioculturais, conforme Miguel (2010)) tão abrangente, passa a ganhar, então, a partir do século XIX, o estatuto de disciplina escolar3 3 Disciplina escolar aqui entendida como campo escolar delimitado de saber, ou seja, o desenho enquanto objeto da atividade educativa escolar. . Agora, no contexto de uma educação que se quer propedêutica, suas variadas utilidades, enaltecidas na passagem acima destacada, ao mesmo tempo em que lhe conferem importância e notoriedade, o inserem em uma situação de instabilidade, em permanente rearticulação pelas forças em campo e reacomodação de seus conteúdos múltiplos.

No Brasil não foi diferente. Percebe-se uma constante (re)organização do que deveria ou não ser ensinado em relação ao desenho nos espaços escolares. Na estruturação do ensino primário e secundário do Colégio Pedro II4 4 O Colégio Pedro II era um colégio destinado à elite burguesa do Brasil e foi criado com o intuito de servir de modelo à escolarização secundária do país. durante o século XIX, por exemplo, seu ensino deu-se principalmente articulado aos saberes da geometria e do desenho linear, oscilando entre suas diversas especificidades:

Apareceu ora como cadeira isolada, ora como saber instrumentalizador da Trigonometria e do Cálculo. [...]. Já o Desenho Linear foi também distribuído ao longo dos programas, e ora aparece somente em seu viés de execução instrumentalizado - o Desenho Linear Geométrico, como saberes que trabalham em função das ciências exatas, ora como saberes que buscam o desenvolvimento de habilidades viso-motoras, como no caso do Desenho Linear à vista, do Desenho Imitativo, do Desenho de Paisagem e do Desenho de Figura Humana e ora como saberes formadores quando desenvolvem habilidades voltadas para a Arquitetura e a Indústria, como no caso do ensino do Desenho das Ordens Arquitetônicas e o do Desenho de Ornato (TRINCHÃO, 2008, p. 200-201).

Somente com a Reforma Francisco Campos5 5 Aquela Reforma buscou organizar e uniformizar os conteúdos e métodos de ensino nas escolas oficiais em todo o país. O curso secundário foi então dividido em um ciclo fundamental (5 séries) e um ciclo complementar (2 séries). O primeiro visava à formação básica geral, e o segundo era considerado como preparatório ao ensino superior. , em 1931, aparentemente ocorreu, ou se pretendeu, uma oficialização e normatização dos conteúdos e carga horária de desenho, direcionados aos diferentes níveis de ensino. Instituído como disciplina escolar, passou a ser caracterizado por quatro modalidades:

Desenho do Natural - desenho de observação, feito à mão livre, com estudo da luz, sombra e perspectiva;

Desenho Decorativo - estudo dos elementos e das regras da composição visual;

Desenho Geométrico - estudo das construções da geometria euclidiana plana, com o propósito de resolver os problemas do plano bidimensional, com utilização dos instrumentos de desenho;

Desenho Convencional - inclui a geometria descritiva, ramificações do desenho técnico e desenhos esquemáticos (ZUIN, 2001, p. 75).

Entretanto, apesar da nítida tentativa de reunir o amplo espectro da representação gráfica inerente ao desenho, longe de conferir uniformidade à disciplina, estudos6 6 Por exemplo, Nascimento (1999); Machado (2012). sugerem que sua estratificação em quatro modalidades, com objetivos e conteúdos bastante distintos, atrelada a agravantes diversos, como a insuficiente formação dos professores, acabaram por contribuir com seu desmantelamento do currículo brasileiro na segunda metade do século XX. Hipótese que ganha sustentação quando o parecer n. 1.071/72 do Conselho Federal de Educação (CFE) justifica a exclusão do desenho como disciplina autônoma do currículo da escola básica7 7 Promovida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1971. , argumentando em favor de sua visibilidade como auxiliar de outras disciplinas:

Em Estudos Sociais, na confecção de mapas e maquetes no relevo geográfico, quadros estatísticos e cronogramas. No campo das Ciências, comunicação visual do desenho geométrico, como desenho de precisão, nos gráficos de representação de fenômenos físicos e leis matemáticas, confecção e desenho de modelos anatômicos e aparelhagem de laboratórios. No próprio campo de Educação Artística, como elementos de integração das Artes na cenografia teatral, na confecção de cartazes e painéis, na expressão plástica de peças folclóricas (BRASIL, 1972, p. 100).

Pode-se inferir que a LDB de 1971 reduziu e dispersou o desenho às suas múltiplas utilidades, colocando-o arbitrariamente à mercê de uma possível incorporação em distintas disciplinas. A partir daí, gradativamente o desenho perdeu espaço como disciplina organizada no ensino básico de modo que, hoje não é mais que um objeto cultural moribundo (quiçá morto) em nossas práticas escolares em tal nível de ensino8 8 Argumento presente em diversas pesquisas que tratam da história da disciplina de desenho no Brasil, tais como: Nascimento (1994, 1999), Zuin (2001), Trinchão (2008), Machado (2012). .

Aqui, o ponto central de nossas inquietações. Afinal, que movimento é esse capaz de formar e deformar disciplinas escolares? Em especial, por que o desenho, que já fez parte da história da educação brasileira, deixou o currículo escolar? Em pesquisa anterior9 9 MACHADO, R. B. Entre Vida e Morte: Cenas de um Ensino de Desenho. 2012. 254f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012. , arquitetada sobre a análise de como a disciplina de desenho foi manejada, conduzida e utilizada em uma instituição escolar específica, entre os anos de 1960 e 2004, pudemos evidenciar elementos que lhe conferiram vida, e elementos que lhe conferiram morte. Esses elementos, por sua vez, provocaram a emergência de questões outras, potencialmente esclarecedoras para a compreensão acerca dos condicionamentos atuantes sobre o tempo de vida escolar do desenho. Dito de outra forma, emergiu daí a necessidade de perceber que tipos de discursos possibilitaram o estabelecimento dos elementos de vida e morte evidenciados.

Nesse sentido, nosso principal propósito, agora,10 10 Essa é a problemática central do estudo em nível de doutoramento iniciado em 2012, realizado por Rosilene Beatriz Machado, no Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação da Profa. Dra. Cláudia Regina Flores. é investigar por que as práticas socioculturais de desenhar teriam adquirido o estatuto de conteúdo escolar e, posteriormente, perdido tal estatuto. Práticas socioculturais aqui entendidas como aquelas realizadas pelos integrantes de comunidades de prática, como "um conjunto articulado e intencional de ações individuais ou coletivas que retiram as suas significações do jogo discursivo constituído na (e constitutivo da) atividade que define a existência social dessa prática e da própria comunidade que a realiza" (MIGUEL, 2010, p. 14). Comunidades de prática, estas, "que compartilham propósitos, regras, valores, instrumentos e práticas induzidos por uma forma de atividade da qual participam e desenvolvem" (MIGUEL, 2010, p. 43).

Para tanto, algumas digressões fazem-se necessárias. Primeiramente, há que se questionar e esclarecer que práticas de desenhar são essas que se tornaram disciplinarizadas. E, para além disso, como se deram essas práticas, ou seja, como o desenho foi mobilizado em diferentes atividades humanas por diferentes comunidades de prática. Atividade humana tomada como:

Um jogo idiossincrático, complexo, articulado, regrado, mutável, imprevisível e contraditório, constituído não só por práticas socioculturais, mas também outros elementos situados e dinâmicos que estabelecem entre si múltiplas e conflituosas interações igualmente situadas, jogo este constitutivo de (e constituído por) relações sociais múltiplas e conflituosas que uma comunidade, através das práticas que realiza, estabelece não só com os seus integrantes, mas também com os integrantes de outras comunidades, visando à obtenção de certos propósitos compartilhados definidos, sobretudo, pela natureza da própria atividade que desenvolvem (MIGUEL, 2010, p. 10-11).

Apoiando-nos em Miguel (2010), partimos do pressuposto, portanto, de que para podermos esclarecer as características da vida escolar das práticas de desenhar, precisamos efetuar um deslocamento de análise, a fim de investigar as vidas não escolares dessas mesmas práticas. Isto implica buscar tudo aquilo que se entende por desenho e analisar o vasto terreno de dispersão e disseminação de seus efeitos.

Voltemos ao Discurso de Joaquim Machado de Castro, referenciado no início deste texto. Lá estão indicativos de práticas de desenhar realizadas por distintas comunidades de prática que, em geral, compuseram o rol de conteúdos escolares atribuídos à disciplina de desenho quando de sua institucionalização. Dado o recorte aqui necessário, vamos eleger apenas uma delas como objeto de nossa reflexão no presente artigo: a prática do desenho do corpo humano11 11 Entendendo que essa prática comporta, também, o desenho da anatomia humana externa (ou de superfície) e interna. .

2 Do recorte no discurso

No decorrer do século XIX o desenho do corpo humano parece ter sido uma prática corrente nas Academias Militares e nas Academias de Belas Artes espalhadas pelo Brasil. Dória (2004) afirma que no âmbito militar, de finalidade eminentemente objetiva e prática, eram ministrados uma diversidade de conteúdos tais como o desenho arquitetônico e de figuras, plantas e animais, também, o desenho de paisagem e as proporções do corpo humano. Nas Academias de Belas Artes, por sua vez, "o professor da Aula de Desenho deveria desenvolver nos seus alunos a habilidade da observação, o domínio das dimensões e proporções das formas e de noções de anatomia aplicada ao Desenho" (TRINCHÃO, 2008, p. 140, grifo nosso).

No século XX, a prática do desenho do corpo humano continuaria presente no ensino secundário brasileiro, ao menos nos discursos oficiais, inserida na modalidade do desenho do natural. A Portaria Ministerial s/n de 30/06/1931, que estabeleceu os programas do curso fundamental do ensino secundário, para a quarta série determinava a cópia da figura humana, com representações parciais, feitas sumariamente em croquis de observação direta; e a figura humana em conjunto, com estudo de proporções. Para o curso complementar, a Portaria Ministerial s/n de 17/03/1936 estabelecia para o Curso Médico, Farmacêutico e Odontológico o estudo sintético do corpo humano, em diversas posições; ligeiros esquemas anatômicos; partes do corpo humano e desenho especializado de órgãos do corpo.

Uma década mais tarde, o desenho do corpo humano ficaria restrito ao curso científico12 12 Entre 1942 e 1946, foram decretadas as Leis Orgânicas de Ensino, que ficaram conhecidas por Reforma Capanema. Essa reforma, consolidada em seis decretos-leis, organizou o ensino primário, secundário, bem como o ensino industrial, comercial, normal e agrícola. O ensino secundário continuou dividido em dois ciclos, mas ganhou uma configuração diferente: o 1º ciclo, ou curso ginasial, teve a duração alterada de cinco para quatro anos e o 2º ciclo, ou curso colegial, de dois para três anos, sendo que este foi subdividido em duas modalidades distintas, o clássico e o científico. . A Portaria Ministerial n. 10 de 04/01/1946 estabelecia para a segunda série a representação da figura humana com estudo das proporções do corpo humano; estudo elementar das proporções do corpo humano apresentado de frente, de costas e de perfil; e representação em esboço, das devidas proporções, de várias proporções do corpo humano. Já para a terceira série, determinava a representação de partes da figura humana, como elementos da osteologia, tais quais o fêmur, a tíbia, o perônio, o maxilar inferior etc., e a representação do esqueleto da cabeça; ainda, a representação de órgãos do corpo humano, como a representação esquemática de cortes do coração, do aparelho visual e do aparelho auditivo, com as respectivas indicações morfológicas de seus pormenores. Em 1951, os programas para o curso ginasial e científico foram redefinidos pelas Portarias n. 966 e n. 1045. De acordo com Nascimento (1999, p. 18), pouca coisa se alterou em relação às portarias anteriores. Ao que tudo indica, esses foram os últimos programas oficiais de desenho publicados pelo Ministério da Educação no Brasil.

Como se vê, a prática do desenho do corpo atravessou os espaços escolares brasileiros13 13 Igualmente em países como Portugal (TRINCHÃO, 2008; PENIM, 2011) e França (D'ENFERT; LAGOUTTE, 2004). . Interessa-nos, pois, questionar: como se pôde formar tal domínio de saber? Em outras palavras, como distintas comunidades de prática realizaram esta prática de desenhar específica? Para minimamente dar conta dessas questões, nossa estratégia será analisar que problemáticas levaram certos sujeitos a construir tal conhecimento, inserindo-nos "no terreno da emergência para compreender as implicações filosóficas, conceituais, técnicas e científicas que entram em jogo na formulação de novos saberes" (FLORES, 2007, p. 37).

3 Das significações

"Do ramo que taõ frondosa arvore espalha na Medicina, colhe esta Defensora da Humanidade proveitosissimos fructos: mas naõ seja eu quem os indique; digaõ-no os que escreveraõ da Anatomia e da Botanica" (DE CASTRO, 1818, p. 5-8). Terá sido apenas na atividade médica que a prática de desenhar o corpo humano foi significada? Certamente não. Certamente, também, o escultor Machado de Castro, embora fazendo referência apenas a essa particular atividade, sabia bem que tal prática desenvolveu-se largamente na atividade artística.

Claro que:

Os elementos situados constitutivos de uma atividade humana especificada, embora não tendo propriedades inerentes ou inalienáveis, adquirem, por atribuição compartilhada pela comunidade envolvida com essa atividade, propriedades ou funções bastante diferentes daquelas que lhe seriam atribuídas por outras comunidades envolvidas com outras atividades (MIGUEL, 2010, p. 11).

Assim sendo, o que queremos é, justamente, perceber as diversas significações que foram dadas à prática do desenho do corpo humano em função dos diferentes propósitos das atividades humanas (médica e artística) em que esteve imersa. Então, partindo dessa prática específica, é nosso interesse, ainda, refletir sobre os usos conferidos ao desenho a partir da Renascença e seus efeitos posteriores na compreensão de conhecimentos oriundos da ciência moderna. Cumpre dizer que nos situamos no Renascimento não porque lá esteja a origem dessa prática sociocultural que intentamos investigar, a partir da qual se daria seu desenvolvimento linear e contínuo. Mas porque acreditamos encontrar-se nesse período o nó das problemáticas que circunscreveram e foram circunscritas por tal prática.

4 Do despir: por uma representação naturalista

Pouco mais de dois séculos separam as pinturas a seguir (Figura 1 e Figura 2).



A pintura da Figura 1, realizada no período medieval, representa Nossa Senhora com o Menino no trono, rodeada por anjos. Na parte inferior, sob os arcos laterais estão os profetas Jeremias e Isaías; Abraão e o rei Davi aparecem sob a cadeira do trono, simbolizando os fundamentos do reino de Cristo. A pintura da Figura 2, realizada no período renascentista, representa a passagem bíblica da queda do homem, protagonizada por Adão e Eva. Em uma e outra são evidentes as características dos regimes de representação em que foram constituídas e, não obstante, ajudaram a constituir.

No período medieval o objetivo das imagens era antes "transmitir informações do que retratar cenas realistas num espaço métrico" (FLORES, 2007, p. 87). Assim, por exemplo, os tamanhos dos personagens mediam-se mais pelo seu status social do que por qualquer perspectiva geométrica. Os personagens importantes eram desenhados relativamente grandes e posicionados no centro do quadro, enquanto os outros elementos eram pequenos e encaixados nas margens. Dessa forma, os objetos e as pessoas ficavam justapostos, "aglomerados sobre um plano, sem que houvesse a preocupação de criar uma ilusão de profundidade, e nem de relacionar as grandezas aparentes" (FLORES, 2007, p. 87). Ainda que La Maestá possa sugerir alguma tentativa de profundidade espacial através da estrutura côncava por trás das figuras dos profetas, essa é uma pintura de feição simbólica que carrega, marcadamente, as características da tradição medieval: "pintura sacra, mais preocupada com hierarquia do que com proporção" (FLORES, 2007, p. 63).

Na gravura de Adão e Eva de Albrecht Dürer14 14 Albrecht Dürer (1471-1528) foi um gravador, pintor, ilustrador e teórico de arte alemão durante o Renascimento europeu. , diferentemente, é o caráter realista da imagem que, literalmente, rouba a cena. Há dois elementos centrais nessa composição: a utilização da perspectiva geométrica e o naturalismo evidente nos corpos representados. Durante o Renascimento europeu, o ideal de vida contemplativa começava a ceder lugar para um ideal de vida ativa, deslocando o homem da posição de espectador para a de proprietário da natureza. Isso se deu, obviamente, em um cenário de profundas transformações políticas, econômicas e sociais. O que nos interessa ressaltar, porém, é a nova concepção secularizada de mundo que passou a se articular nesse período:

Se, anteriormente, o conhecimento do mundo e dos homens estava sob o poder das entidades religiosas, cabendo ao homem apenas aprender os ensinamentos fornecidos nos textos sagrados e nos textos da tradição, com a descoberta da razão o sujeito do conhecimento passa a conhecer e

representar

os objetos do conhecimento (FLORES, 2007, p. 111, grifo nosso).

Assim, os motivos pictóricos deixaram, gradativamente, de exibir temáticas exclusivamente religiosas, mudando-se a forma de pintar. Houve uma preocupação em estudar a natureza e os retratos convergiam para um padrão estereotipado, almejando a perfeição e a beleza ideal. Para dar conta desse jogo realista de representação tornou-se essencial a atuação de dois protagonistas: o desenvolvimento da técnica da perspectiva e o conhecimento minucioso da anatomia humana. Por outro lado, atrelado a essas questões, é preciso considerar que, naquela época, começara a ser reivindicada, por parte dos artífices,15 15 Seguindo Kickhofel (2010, p. 166), usamos neste artigo o termo artífice no lugar de artista, evitando "os sentidos atuais do termo 'artista' relacionados ao artista romântico em diante e sugere-se ao leitor considerar o sentido de 'artífice' em relação a Alberti e seus contemporâneos", que produziam suas obras seguindo encomendas. uma elevação do seu status social, de forma que a utilização da perspectiva geométrica, bem como a geometrização do corpo humano nas pinturas, cumpriram duplo papel: ao mesmo tempo em que se faziam suporte para a pretendida representação realista do espaço e da natureza, contribuíam para elevar o estatuto da arte ao informá-la com conhecimentos científicos16 16 É conveniente esclarecer os sentidos dos termos arte e ciência no período histórico do Renascimento, já que possuem conotações distintas das atuais. Conforme Kickhofel (2004, p. 431), "o termo 'arte' no Renascimento esteve ligado à definição de Aristóteles, qual seja, produzir a partir de princípios, mas não necessariamente os primeiros", ou seja, uma disposição que se ocupa de produzir, envolvendo o reto raciocínio. "Em outras palavras, o termo arte significava manualidade ou a habilidade voltada a realizar algo material". Já "ciência, physica, philosophia ou scientia naturalis, a partir da qual foram elaboradas as ciências modernas, era um corpo de conhecimentos organizado segundo princípios definidos, sendo seu objetivo principal o conhecimento das primeiras causas." Assim, arte tem o sentido de praticar e produzir, enquanto ciência tem o sentido de explicar e demonstrar. .

Pode-se dizer, então, que na Renascença o corpo se singularizou17 17 Neste artigo é nosso objetivo tão somente analisar a problemática do desenho do corpo. Entretanto, um estudo aprofundado sobre o desenvolvimento da técnica da perspectiva durante o Renascimento pode ser encontrado em Flores (2007). , ou seja, "tudo o que o corpo expressa como dor, alegria, medo, entre outros, passa a ser explicado a partir do próprio corpo, como uma reação a um estímulo externo" (ZANIRATO, 2011, p. 27). Ora, se as formas de olhar e de representar o mundo estavam em transformação, agora mensurável, geométrica e racional, também o olhar sobre o corpo transformou-se. A nova forma de ser homem, que doravante é um homem que explora, investiga e descobre, o faz voltar seu olhar para si. Logo, o estudo da anatomia humana permitia aos pintores melhor perceber os detalhes do corpo, suas expressões, proporções, e, principalmente, compreender seus movimentos. É importante ressaltar, contudo, que o "estudo do corpo humano, tal como aparecia nos registros artísticos, não ia muito além da anatomia de superfície, ou seja, dos músculos que com os movimentos do corpo assumem uma conformação mais visível" (CHEREM, 2005, p. 27). Assim, por exemplo, "o estudo dos ossos destinava-se à correta compreensão das medidas do corpo, e para isto, a altura dependia, sobretudo das dimensões do esqueleto".

Naquele contexto, Leon Battista Alberti18 18 Leon Battista Alberti (1404-1472), considerado um humanista italiano, foi arquiteto e o primeiro teórico de arte. Três de seus tratados sistematizam artes: De pictura (1435), De re aedificatoria (1452) e De statua (1460). O Corpo Despido pelas Práticas de Desenhar: dos usos à disciplinarização do desenho foi uma das personagens centrais. Seus tratados foram os primeiros a sistematizar artes, sendo que em Depictura (1435), há uma exposição de maneira formal das ideias matemáticas que sustentavam a técnica da perspectiva. Segundo Crosby (1999), os ensinamentos de Alberti acabaram influenciando outros artífices como Piero della Francesca, Leonardo da Vinci, Luca Pacioli e Albrecht Dürer. Alberti visava o naturalismo nas pinturas e, para tanto, argumentava que o pintor deveria ser douto o quanto pudesse em várias ciências, em especial, em geometria. Colocava, também, a importância do conhecimento das proporções e da anatomia: "Então, convém ter certa razão a respeito da grandeza dos membros, em qual medida será útil primeiro colocar cada osso do animal, depois acrescentar os seus músculos e depois vesti-lo todo com suas carnes" (ALBERTI, 1999, p. 116).

Cabe reforçar que o conhecimento da anatomia humana por parte dos pintores tinha fins estritamente artísticos e, por isso, seus estudos versavam em geral sobre a anatomia da superfície19 19 Com exceção de Leonardo da Vinci (1452-1519) que, indo além dos artistas de sua época que se contentavam com o estudo da motricidade a partir de músculos, ossos e articulações, procurou conhecer minuciosamente o funcionamento do corpo como um todo, realizando centenas de desenhos anatômicos. Há controvérsias entre os estudiosos vincianos quanto à finalidade desses desenhos. Alguns acreditam que, para além de fins artísticos, Leonardo buscava o conhecimento da anatomia interna com o intuito de elaborar um manual de anatomia (não finalizado) em conjunto com o médico Marcantonio Della Torre. Outros, porém, argumentam que estes foram feitos para uso próprio e decorrentes de sua peculiar curiosidade. . O objetivo principal era expressar os afetos (ou movimentos da alma, como ira, dor, alegria, medo, desejo) que, por sua vez, seriam conhecidos através dos movimentos dos membros: "Assim, convém que aos pintores sejam bem notados todos os movimentos do corpo, os quais bem aprendem da natureza, embora seja coisa difícil imitar os muitos movimentos da alma" (ALBERTI, 1999, p. 123). Conforme Leonardo da Vinci,

Para ser um bom fazedor de todas as posições e gestos que os membros adotam nos nus, é preciso que o pintor conheça a anatomia dos nervos, ossos, músculos e dos tendões, para saber, de acordo com os distintos movimentos e esforços, que nervo ou músculo é a causa do movimento (DA VINCI apud CHEREM, 2005, p. 28).

Além disso, o corpo deveria estar em harmonia com os demais elementos da cena, o que tornava o conhecimento de suas medidas e proporcionalidades fundamental:

Uma vez que a natureza nos pôs à vista as medidas, não é pequena a utilidade em reconhecê-las. [...]. Para se medir bem um corpo animado deve-se apanhar um dos seus membros com o qual se medirão os outros. O arquiteto Vitrúvio media a altura dos homens pelos pés. Quanto a mim, parece-me coisa mais digna que os outros membros tenham referência com a cabeça, embora tenha notado ser praticamente comum em todos os homens que a medida do pé seja a mesma que vai do queixo ao cocuruto da cabeça (ALBERTI, 1999, p. 116).

Na pintura de Adão e Eva é possível evidenciar com clareza o contorno dos músculos, provavelmente decorrente de estudos anatômicos realizados por Dürer. Mais ainda, pode-se perceber a execução de uma aritmética corporal implícita nas estruturas anatômicas. Ainda que Dürer propusesse a não existência de um modelo único para representar a figura humana, tais quais os clássicos cânones gregos - devendo o artista examinar a cabeça de um, o tronco, braços, pés e mãos de outro -, em suas composições utilizava proporções que variavam de sete a dez cabeças. Na figura de Adão e Eva, convém sugerir que a proporção utilizada tenha sido de oito cabeças:

Deixamos claro que se trata de uma sugestão de proporcionalidade, resultante do nosso olhar observador, analisador e organizador, da mesma forma, podendo haver outros elementos na imagem que não enquadramos em nossos raciocínios matemáticos. Dito isto, outras observações podem ser destacadas. Notemos que a metade exata do corpo está na quarta divisão, passando pela articulação superior da coxa (abaixo da bacia), sendo que o comprimento da porção inferior (coxa, perna e pé) é igual ao comprimento da porção superior (tronco, cabeça e pescoço). Ainda, o comprimento da mão é pouco menor que o da cabeça, e o comprimento do pé corresponde a aproximadamente metade do comprimento da perna.

Além disso, a primeira divisão acaba na ponta do queixo; a segunda nos mamilos; a terceira na cintura; a quarta no púbis; a quinta na coxa, acima do joelho; a sexta na perna, pouco abaixo dos joelhos e também das mãos quando estão estendidas; a sétima abaixo da barriga da perna; e por fim, a oitava sob a planta dos pés. Há, também, diferenças anatômicas entre o homem e a mulher. A mulher estreita-se nos ombros e alarga-se nos quadris, a cintura é delgada e os músculos não se destacam. No homem tais características se invertem: os ombros são mais largos e os quadris mais estreitos, o esqueleto é maior e mais forte, os relevos são mais visíveis e os músculos aparecem com maior evidência.

Com isto, o que queremos ressaltar são as significações atribuídas à prática do desenho do corpo na atividade artística durante a Renascença. Nesse meio, com fins puramente artísticos, imbuído em um novo ideário perceptivo de mundo, o desenho do corpo adquiriu um viés geometrizado e racional, sendo que os estudos anatômicos lhe conferiam expressão, vivacidade e realismo.

5 Do despir: por uma representação descritiva

Atentemos para as imagens a seguir (Figura 5 e Figura 6).



A Figura 5 representa a condução de uma sessão de dissecação do corpo humano. Essa imagem está estampada no manual conhecido como De Anatome, publicado em 1315 por Mondino de Liuzzi (1270-1326), utilizado como referência para estudos anatômicos por quase três séculos. A Figura 6, estampada no manual de anatomia De humani corporis fabrica, publicado em 1543, igualmente representa uma sessão de anatomia, mas desta vez conduzida pelo médico Andreas Vesalius (1514-1564).

Na primeira imagem "a palavra é soberana" (CHIARELLO, 2011, p. 291). Pode-se até mesmo inferir que este frontispício lá está mais para ser lido do que visto. Os traços que o compõe não delineiam mais que os contornos vazios de uma figura sem volume em uma cena quase sem profundidade. "A perspectiva é, com efeito, pobre e o espaço da representação reduz-se à dimensão vertical, em torno da qual se organiza hierarquicamente a cena" (CHIARELLO, 2011, p. 291)20 20 As observações que realizamos sobre essas imagens são oriundas das análises já realizadas por Chiarello (2011). . No alto e no centro da cena está a autoridade suprema de cuja palavra emana a verdade e cujo discurso principia e finaliza o que acontece no plano inferior da gravura. "Mas o lector não a vê. Seu domínio é o da elocução, e não o da visão, e aqui é a elocução que determina a visão. Suas palavras conferem à dissecção sua razão de ser, orientam todo o procedimento de incisão, tornam inteligível o corpo humano em suas formas e estruturas, mas seu olhar paira imperturbável sobre o plano da ação" (CHIARELLO, 2011, p. 291).

Durante o período medieval e início da Renascença a atividade do professor de anatomia era tão somente expor a tradição textual. Tal era o poder das palavras que aquele que as proferia não era o mesmo que realizava o procedimento da dissecação. Cabia a um cirurgião iletrado ir abrindo o cadáver, ao passo que um professor assistente deveria ir apontando as estruturas guiadas pelos textos escolásticos, em geral, os escritos de Galeno, Avicena e Mondino. "Nada se executa sobre o corpo humano que a palavra antes não ordene, nada se descobre no corpo humano que a palavra antes não exponha, nada se percebe sobre o corpo humano que o livro, autoridade suprema, antes não revele" (CHIARELLO, 2011, p. 293).

Na segunda imagem a situação é diametralmente oposta:

Um amplo espaço sustentado por colunas monumentais em semicírculo encontra-se superlotado, e todos nele se concentram como se assistissem a um espetáculo há muito aguardado. Há volume nas figuras sombreadas e profundidade na cena. A perspectiva da gravura é primorosa. Não obstante as inúmeras e diferentes personagens que poderiam extraviar nossa atenção, nosso olhar é irresistivelmente arrastado para o ponto de fuga da cena, ponto para o qual também convergem os olhares de tantos quantos ali se aglomeram. Neste ponto vemos um cadáver já aberto cujas entranhas, a saltar da cavidade abdominal, oferecem-se abertamente. Os olhares de todos nelas se fixam, e nelas também mergulha nosso olhar (CHIARELLO, 2011, p. 295).

Juntamente ao uso da técnica da perspectiva presente nessa gravura, outros detalhes são bastante instigantes. Vejamos, inicialmente, que é o próprio Vesalius quem conduz a dissecação; além disso, o cadáver dissecado é de uma mulher e os livros existentes na imagem estão fechados, sendo até difícil observá-los entre tantos elementos representados. Há ainda no detalhe da Figura 6, para onde especialmente queremos chamar atenção, uma folha de papel, uma pena, um tinteiro e a mão de um desenhista, próximos ao cadáver.

Desenho dentro do desenho, e espaço em branco em meio ao espaço repleto da cena, a folha de papel ali está posta como um convite para ser preenchida. Mesmo o olhar que Vesalius nos endereça, a nós que admiramos o frontispício, reconduz nosso olhar para o papel do desenhista logo abaixo (CHIARELLO, 2011, p. 296).

Desenho dentro do desenho. De fato, pela primeira vez teve-se publicado um livro de anatomia em que texto e imagem aparecem conjugados. No De humani corpori fabrica existem mais de duzentas ilustrações, divididas em três categorias: "o esqueleto, do qual há três ilustrações, os músculos, em número de catorze, e as partes individuais do corpo. As gravuras mais impressionantes são as dos músculos que estão dispostas de forma a mostrar uma progressiva dissecação, desde a superfície do cadáver até às suas camadas mais profundas" (ZANIRATO, 2011, p. 41). Nesse livro, a imagem não assume posição inferior a do texto escrito, ambos complementam-se, não sendo o desenho concebido apenas como ilustração, mas como consolidação dos conhecimentos obtidos na mesa de dissecação. "Cada imagem era acompanhada de um texto escrito por Vesalius, de forma que um não poderia ser entendido sem o outro, formando um todo inseparável" (ZANIRATO, 2011, p. 42).

Pode-se pensar, então, em dois pontos de inflexão epistemológicos a partir daqui. Por um lado, com Vesalius não mais é o texto que orienta a observação e a experiência realizadas sobre o corpo humano. Inversamente, são a observação e a experiência que se reproduzem no texto de anatomia, gerando implicações nos rumos da atividade médica que não conseguiremos explorar neste artigo. Há um deslocamento do reino da oratio para o domínio da perceptio (CHIARELLO, 2011, p. 295). Por outro lado, é o desenho, e não somente o texto escrito, que viabiliza o registro da observação e experiência, tornando-se indispensável nos tratados de anatomia: "o grande mérito de Vesalius reside, destarte, nas descrições detalhadas e nas ilustrações anatômicas primorosas, ambas resultantes de uma observação prática acurada realizada fervorosamente" (CHIARELLO, 2011, p. 301, grifo nosso).

Ainda que algumas ilustrações do De fabrica possam ter sido realizadas pelo próprio Vesalius, eram os artífices que, em geral, ao presenciarem as dissecações ficavam responsáveis por ilustrar as pranchas anatômicas. A figura a seguir (Figura 7) representa uma dessas ilustrações:


Note-se que os músculos vão sendo gradualmente retirados, expostos como se estivessem pendurados. Essa disposição, atrelada à posição frontal em que o corpo está exposto, com as pernas e braços afastados, bem como, à cabeça voltada para a esquerda, possibilita ao observador perceber as conexões entre os músculos, além de suas formas, volume e tamanho. É interessante destacar, ainda, o fundo composto por vegetação e construções, conferindo à cena alguma ideia de profundidade21 21 Em Zanirato (2011) há uma análise de cinco pranchas anatômicas contidas na obra de Andreas Vesalius, incluindo a que utilizamos no presente artigo. .

Nosso intuito, portanto, é enfatizar a evidente diferença de significações atribuídas à prática do desenho do corpo na atividade artística e na atividade médica. Nesta, os desenhos nas pranchas anatômicas deveriam servir como uma espécie de recurso didático, concebidos como mapas do corpo. Naquela, como já argumentado, a ideia era preencher de forma mais natural e realista um determinado espaço em uma pintura. Não obstante, os usos do desenho do corpo a partir dessas atividades transgrediram suas fronteiras, provocando implicações filosóficas, conceituais, técnicas e também científicas.

6 Das intersecções

Ainda que o desenho do corpo comporte propósitos diferenciados nas atividades artística e médica, uma intersecção dos respectivos saberes e práticas pode ser sugerida ao nível da representação médico-anatômica. No período anterior a Vesalius a rudeza das ilustrações "mostra o pouco interesse pelas artes dos artífices por parte dos professores de anatomia". A partir daí, "a inclusão de gravuras nos tratados de anatomia ocorreu aos poucos, e inclusive Vesalius teve de enfrentar resistências por utilizá-las em seu grande livro de 1543" (KICKHOFEL, 2011, p. 331).

Não pensamos que os artífices, com suas técnicas ilustrativas, tenham sido os responsáveis pelo desenvolvimento da anatomia, tampouco que tivessem interesses científicos quando de suas investigações anatômicas. Seus interesses eram artísticos:

A partir da primeira metade do século XV, nas mãos de artistas como Massacio, Donatello, Pollaiolo, Verrocchio, Michelangelo e Raphael, e artistas teóricos como Alberti e Leonardo, entre muitos outros, a arte europeia tomou a direção do naturalismo. Sendo então o homem o centro de todas as perguntas, ou ao menos das perguntas mais importantes, a descrição do corpo humano tomou a posição central nessa busca. Não obstante alguns estudos de anatomia artística feitos pelos artistas mencionados acima, é importante ressaltar que todas as dificuldades de representação da figura humana não se beneficiaram do progresso dos textos anatômicos contemporâneos (KICKHOFEL, 2003, p. 397).

Contudo, é preciso reconhecer a importância dos artífices quando passaram a trabalhar para anatomistas das universidades, criando suas pranchas anatômicas, em especial a partir da obra de Vesalius. Uma cultura visual lentamente iniciava-se em função do "descobrimento de técnicas de ilustração desenvolvidas nos ateliês dos artistas renascentistas e à intensa atividade editorial da época, que lentamente descobria o 'poder da ilustração'" (KICKHOFEL, 2003, p. 397). Então, o que argumentamos é que o desenho a partir do Renascimento começou a experimentar novos papéis, na transição de uma cultura de memória e instrução para uma cultura de descoberta e invenção. Se, antes, era tido meramente como um recurso facilitador da compreensão de determinado assunto por parte dos não letrados, daqueles incapazes de apreender o discurso escrito, agora, aos poucos, passa a adquirir poder explicativo equiparável ao das palavras ao possibilitar descrever com maior exatidão as observações advindas da experiência.

Por outro lado, não pensamos que somente durante o período renascentista o corpo humano tornou-se objeto de observação. Mas, sim, que com a Renascença transformou-se o modo como este corpo passou a ser observado. "Somente quando um novo modelo perceptivo começa a conceber de modo diverso a natureza do corpo humano, endereçando a ele questões que antes não faziam sentido, é que algo de novo pode tornar-se visível" (CHIARELLO, 2011, p. 299). A preocupação em apreendê-lo minuciosamente, seja para os fins artísticos ou para os fins médicos pretendidos, carregou consigo a necessidade de uma observação sistemática que tornasse isso possível. Chiarello (2011) defende que aqui já se insinua o novo modo de apreensão do objeto consagrado no século XVI, quando do surgimento da ciência moderna, que conjuga uma concepção matemática da natureza com uma metodologia experimental:

Para confirmá-lo, basta contemplar a família iconográfica inaugurada pelo frontispício da Fabrica de Vesalius em que o corpo humano, com as entranhas expostas, ocupa o centro da cena. Nela, o livro foi destronado, é certo, não mais aparece como fonte suprema e absoluta da verdade, mas não desapareceu. Mais ou menos visível, lá está ele sempre presente para que seu discurso, e agora também suas figuras, esquemas e diagramas possam ser confrontados com o que se observa, de forma metódica e sistemática, sobre o corpo humano. Afinal, se agora a atenção recai sobre o corpo humano é em um esforço de adequação do conhecimento, que o livro encerra, a uma nova concepção de observação, que se encaminha para o método experimental da ciência moderna. Entra em cena uma observação metódica que busca a exatidão e que torna a representação da anatomia humana passível de ser sistematicamente aprimorada (as mensurações, as análises matemáticas, os modelos quantitativos e as experimentações não tardarão a serem desenvolvidas);

entra em cena uma descrição, tanto teórica quanto imagética do corpo

, que visa à elaboração de tratados cada vez mais precisos e abrangentes do corpo humano, em uma atividade de aquisição de conhecimento que agora se entende cumulativa (CHIARELLO, 2011, p. 299, grifo nosso).

Cumpre dizer, não obstante, que a anatomia descritiva que se desenvolveu a partir de Vesalius não comporta uma análise experimental quantitativa, marca distintiva da ciência dos séculos XVI e XVII. Nesse sentido, concordamos com Kickhofel (2003, p. 402) ao afirmar que apenas a observação e descrição de Vesalius não fizeram a ciência moderna. Entretanto, nos aproximamos em maior medida de Chiarello (2011), pensando que, mesmo não havendo uma relação de causa e efeito entre as questões postas na Renascença e o nascimento da ciência moderna, ao menos, o período renascentista configurou-se como um campo de emergência de elementos que posteriormente, atrelados a tantos outros, contribuíram com a caracterização de tal ciência. Dentre tais elementos, destacam-se o empreendimento de um rigoroso aspecto observacional e a busca por uma descrição exata do objeto.

O desenho, portanto, fez-se suporte deste ideário descritivo das coisas do mundo, instaurado a partir do Renascimento. Ao viabilizar essas novas necessidades, principalmente através da descrição racional do espaço pela técnica da perspectiva geométrica e da descrição naturalista do corpo humano através da observação anatômica, gradativamente informou e foi informado por conhecimentos científicos, em especial matemáticos. Foi uma nova roupagem que lhe coube a partir daí, possibilitando-lhe adentrar atividades que não somente a artística. Além das descrições anatômicas aqui discutidas, não tardaria muito para que o desenho fosse incorporado nas descrições botânicas, na cartografia, na engenharia militar, nas geometrias projetiva e descritiva, nos projetos técnicos da revolução industrial, dentre tantos outros.

Oriundas dessas variadas atividades humanas, diversas práticas de desenhar tornaram-se disciplinarizadas a partir do século XVIII, inseridas na atividade escolar. Neste ensaio procuramos explorar algumas significações não escolares dadas à prática do desenho do corpo. É nosso objetivo futuro dar continuidade a essa análise, investigando, inclusive, outras práticas de desenhar apontadas aqui. Acreditamos que, partindo dessas problemáticas, poderemos melhor compreender o processo de circulação do desenho no âmbito da atividade educativa brasileira.

Cláudia Regina Flores

Servidão Feliciano Martins Vieira, 155, apto. 907, Itacorubi

CEP: 88034-130, Florianópolis, SC, Brasil

E-mail: claudia.flores@ufsc.br

Submetido em Agosto de 2012.

Aprovado em Setembro de 2012.

  • ALBERTI, L. B. Da pintura Tradução de Antonio da Silveira Mendonça. 2. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 1999.
  • BRASIL. Ministério da Educação e Saúde Pública. Portaria Ministerial s/n de 30 de junho de 1931. Dispõe sobre os programas do curso fundamental do ensino secundário e instruções metodológicas - Desenho. Diário Oficial da União Rio de Janeiro, ano LXX, n. 178, 30 jul. 1931. p. 12423-24.
  • BRASIL. Portaria Ministerial s/n de 17 de março de 1936. Dispõe sobre os programas do curso complementar - Desenho. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, ano LXXV, n. 66, 19 mar. 1936. p. 5.824-25.
  • BRASIL. Portaria Ministerial n.10 de 04 de janeiro de 1946. Expede programas de Desenho e respectivas instruções metodológicas e determina sua execução nos cursos colegial e científico do ensino secundário. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, ano LXXXV, n. 11, 14 jan. 1946. p. 609-11.
  • BRASIL. Portaria Ministerial n. 966 de 02 de outubro de 1951. Aprova programas para o curso secundário. In: BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Serviço de documentação. Programas do ensino secundário. São Paulo: Ed. Nacional, 1952. p. 50-2.
  • BRASIL. Portaria Ministerial n. 1045 de 14 de dezembro de 1951. Aprova os planos de desenvolvimento dos programas mínimos do curso secundário e respectivas instruções metodológicas. In: BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Serviço de documentação. Programas do ensino secundário São Paulo: Ed. Nacional, 1952, p. 172-185.
  • BRASIL. Conselho Federal de Educação. Parecer n. 1.071/72 de 02 de outubro de 1972. Posição do desenho no currículo de ensino de 1º e 2º graus. In: SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Educação e ensino artísticos: legislação básica (federal e estadual). São Paulo: SE/CENP, 1984, p.131-133.
  • CHEREM, A. J. Medicina e arte: observações para um diálogo interdisciplinar. Acta Fisiátrica, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 26-32, 2005.
  • CHIARELLO, M. Sobre o nascimento da ciência moderna: estudo iconográfico das lições de anatomia de Mondino a Vesalius. Scientia & Studia, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 291-317, 2011.
  • CROSBY, A. W. A mensuração da realidade: a quantificação e a sociedade ocidental (1250-1600). Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Ed. da UNESP, 1999.
  • D'ENFERT, R.; LAGOUTTE, D. Un art pour tous Le dessin à l'école de 1800 à nos jours. Lyon: INRP, 2004.
  • DE CASTRO, J. M. Discurso sobre as utilidades do desenho Lisboa: Oficina de António Rodrigues Galhardo, 1818. 69p.
  • DÓRIA, R. P. Entre o Belo e o Útil: manuais e práticas do ensino do desenho no Brasil do século XIX. 2004. 237f. Tese (Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
  • DORIA, R. P. Entre práticas e discursos: questões de método na pesquisa da história do ensino do desenho. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE-IFCH, 2., 2006, Campinas. Anais... Campinas: Ed. Unicamp, 2006. p. 260-262. CD-ROM.
  • FLORES, C. R. Olhar, saber, representar: sobre a representaçaÞo em perspectiva. São Paulo: Musa, 2007.
  • KICKHOFEL, E. H. P. A lição de anatomia de Andreas Vesalius e a ciência moderna. Scientia & Studia, São Paulo, v. 1, n. 3, p. 389-404, 2003.
  • KICKHOFEL, E. H. P. Uma falsa lição de anatomia ou de um simples caso de impregnação teórica dos fatos. Scientia & Studia, São Paulo, v. 2, n. 3, p. 427-43, 2004.
  • KICKHOFEL, E. H. P. Aristóteles, Alberti e a ciência do pintor. O Que nos Faz Pensar, Rio de Janeiro, n. 27, p. 164-183, maio 2010.
  • KICKHOFEL, E. H. P. A ciência visual de Leonardo da Vinci: notas para uma interpretação de seus estudos anatômicos. Scientia & Studia, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 319-55, 2011.
  • MACHADO, R. B. Entre Vida e Morte: Cenas de um Ensino de Desenho. 2012. 254f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.
  • MIGUEL, A. Percursos Indisciplinares na Atividade de Pesquisa em História (da Educação Matemática): entre jogos discursivos como práticas e práticas como jogos discursivos. Bolema, Rio Claro, v. 23, n. 35A, p. 1-57, abr. 2010.
  • NASCIMENTO, R. A. O Ensino do Desenho na Educação Brasileira: apogeu e decadência de uma disciplina escolar. 1994. 120f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual Paulista, Marília, 1994.
  • NASCIMENTO, R. A. A função do desenho na educação 1999. 216f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual Paulista, Marília, 1999.
  • PENIM, L. A alma e o engenho do currículo: história das disciplinas de Português e de Desenho no ensino secundário do último quartel do século XIX a meados do século XX. Lisboa: FCG, 2011.
  • TRINCHÃO, G. M. C. O desenho como objeto de ensino: história de uma disciplina a partir dos livros didáticos luso-brasileiros oitocentistas. 2008. 496f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade do Vale do Rio Sinos, São Leopoldo, 2008.
  • ZANIRATO, B. S. L. Em busca da realidade: A representação do corpo na anatomia e na pintura do Renascimento. 2011. 97f. Monografia (Graduação em História) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011.
  • ZUIN, E. S. L. Da régua e do compasso: as construções geométricas como um saber escolar no Brasil. 2001. 211f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001.
  • Endereço para correspondência:
    Rosilene Beatriz Machado
    Rua Frei João Vicelli, 264, Ponte Imaruim
    CEP: 88130-745, Palhoça, SC, Brasil
    E-mail:
  • *
    Este trabalho tem o apoio do CNPq.
  • 1
    Fundada em Lisboa em 3 de julho de 1780, por Pina Manique, intendente-geral da Polícia, sob o reinado de Maria I de Portugal, a Casa Pia destinava-se à educação de órfãos e à recuperação, através do trabalho, de mendigos. As oficinas da Casa Pia tornaram-se centros importantes de produção, fornecendo material para a Marinha Portuguesa e para o Exército Português, bem como centros de formação profissional.
  • 2
    Entenda-se institucionalização da instrução pública básica por construção de um sistema de ensino público organizado, buscando estruturar um ensino secundário (equivalente ao que hoje chamamos ensino fundamental e médio) que desse uma cultura geral (propedêutica) à elite do país.
  • 3
    Disciplina escolar aqui entendida como campo escolar delimitado de saber, ou seja, o desenho enquanto objeto da atividade educativa escolar.
  • 4
    O Colégio Pedro II era um colégio destinado à elite burguesa do Brasil e foi criado com o intuito de servir de modelo à escolarização secundária do país.
  • 5
    Aquela Reforma buscou organizar e uniformizar os conteúdos e métodos de ensino nas escolas oficiais em todo o país. O curso secundário foi então dividido em um ciclo fundamental (5 séries) e um ciclo complementar (2 séries). O primeiro visava à formação básica geral, e o segundo era considerado como preparatório ao ensino superior.
  • 6
    Por exemplo, Nascimento (1999); Machado (2012).
  • 7
    Promovida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1971.
  • 8
    Argumento presente em diversas pesquisas que tratam da história da disciplina de desenho no Brasil, tais como: Nascimento (1994, 1999), Zuin (2001), Trinchão (2008), Machado (2012).
  • 9
    MACHADO, R. B.
    Entre Vida e Morte: Cenas de um Ensino de Desenho. 2012. 254f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.
  • 10
    Essa é a problemática central do estudo em nível de doutoramento iniciado em 2012, realizado por Rosilene Beatriz Machado, no Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação da Profa. Dra. Cláudia Regina Flores.
  • 11
    Entendendo que essa prática comporta, também, o desenho da anatomia humana externa (ou de superfície) e interna.
  • 12
    Entre 1942 e 1946, foram decretadas as
    Leis Orgânicas de Ensino, que ficaram conhecidas por Reforma Capanema. Essa reforma, consolidada em seis decretos-leis, organizou o ensino primário, secundário, bem como o ensino industrial, comercial, normal e agrícola. O ensino secundário continuou dividido em dois ciclos, mas ganhou uma configuração diferente: o 1º ciclo, ou curso ginasial, teve a duração alterada de cinco para quatro anos e o 2º ciclo, ou curso colegial, de dois para três anos, sendo que este foi subdividido em duas modalidades distintas, o clássico e o científico.
  • 13
    Igualmente em países como Portugal (TRINCHÃO, 2008; PENIM, 2011) e França (D'ENFERT; LAGOUTTE, 2004).
  • 14
    Albrecht Dürer (1471-1528) foi um gravador, pintor, ilustrador e teórico de arte alemão durante o Renascimento europeu.
  • 15
    Seguindo Kickhofel (2010, p. 166), usamos neste artigo o termo
    artífice no lugar de
    artista, evitando "os sentidos atuais do termo 'artista' relacionados ao artista romântico em diante e sugere-se ao leitor considerar o sentido de 'artífice' em relação a Alberti e seus contemporâneos", que produziam suas obras seguindo encomendas.
  • 16
    É conveniente esclarecer os sentidos dos termos
    arte e
    ciência no período histórico do Renascimento, já que possuem conotações distintas das atuais. Conforme Kickhofel (2004, p. 431), "o termo 'arte' no Renascimento esteve ligado à definição de Aristóteles, qual seja, produzir a partir de princípios, mas não necessariamente os primeiros", ou seja, uma disposição que se ocupa de produzir, envolvendo o reto raciocínio. "Em outras palavras, o termo arte significava manualidade ou a habilidade voltada a realizar algo material". Já "ciência, physica, philosophia ou scientia naturalis, a partir da qual foram elaboradas as ciências modernas, era um corpo de conhecimentos organizado segundo princípios definidos, sendo seu objetivo principal o conhecimento das primeiras causas." Assim, arte tem o sentido de praticar e produzir, enquanto ciência tem o sentido de explicar e demonstrar.
  • 17
    Neste artigo é nosso objetivo tão somente analisar a problemática do desenho do corpo. Entretanto, um estudo aprofundado sobre o desenvolvimento da técnica da perspectiva durante o Renascimento pode ser encontrado em Flores (2007).
  • 18
    Leon Battista Alberti (1404-1472), considerado um humanista italiano, foi arquiteto e o primeiro teórico de arte. Três de seus tratados sistematizam artes:
    De pictura (1435),
    De re aedificatoria (1452) e
    De statua (1460).
    O Corpo Despido pelas Práticas de Desenhar: dos usos à disciplinarização do desenho
  • 19
    Com exceção de Leonardo da Vinci (1452-1519) que, indo além dos artistas de sua época que se contentavam com o estudo da motricidade a partir de músculos, ossos e articulações, procurou conhecer minuciosamente o funcionamento do corpo como um todo, realizando centenas de desenhos anatômicos. Há controvérsias entre os estudiosos vincianos quanto à finalidade desses desenhos. Alguns acreditam que, para além de fins artísticos, Leonardo buscava o conhecimento da anatomia interna com o intuito de elaborar um manual de anatomia (não finalizado) em conjunto com o médico Marcantonio Della Torre. Outros, porém, argumentam que estes foram feitos para uso próprio e decorrentes de sua peculiar curiosidade.
  • 20
    As observações que realizamos sobre essas imagens são oriundas das análises já realizadas por Chiarello (2011).
  • 21
    Em Zanirato (2011) há uma análise de cinco pranchas anatômicas contidas na obra de Andreas Vesalius, incluindo a que utilizamos no presente artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      Ago 2012
    • Aceito
      Set 2012
    UNESP - Universidade Estadual Paulista, Pró-Reitoria de Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática Avenida 24-A, 1515, Caixa Postal 178, 13506-900 Rio Claro - SP Brasil - Rio Claro - SP - Brazil
    E-mail: bolema.contato@gmail.com