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Ser Crítico em Projetos de Modelagem em uma Perspectiva Crítica de Educação Matemática

Being critical in modelling projects in a critical perspective of mathematics education

Resumos

Apresento, neste artigo, uma análise de como um grupo de estudantes realizou a tarefa de desenvolver um projeto de modelagem matemática orientado pela educação matemática crítica. Especificamente, procuro compreender como o grupo interpretou o ser crítico que deles era esperado nessa tarefa. É apresentado um referencial teórico sobre modelagem na perspectiva da educação matemática crítica, enfatizando a concepção problematizadora e libertadora de educação de Paulo Freire, a compreensão de educação matemática crítica de Ole Skovsmose e o uso desses referenciais na organização de ambientes de aprendizagem de modelagem matemática. A abordagem metodológica foi qualitativa e o principal procedimento foi a análise do relatório de trabalho produzido pelo grupo. Da análise, foi possível perceber, pelo menos, duas maneiras diferentes pelas quais o grupo interpretou o que significa ser crítico: a primeira sinaliza uma inserção crítica dos educandos em sua realidade e, a segunda, que se apoiou em certezas matemáticas para chegar às conclusões do projeto.

Educação Matemática; Modelagem Matemática; Educação Matemática Crítica; Educação Libertadora


In this paper, I present an analysis of how a group of students carried out the task of developing a mathematical modelling project guided by critical mathematics education. Specifically, I try to understand how the group interpreted the being critical that was expected from them. A framework of mathematical modelling in a critical mathematics education perspective is presented, emphasizing Paulo Freire's problematizing and liberating conception of education, the critical mathematics education by Ole Skovsmose, and these references in organizing mathematical modelling learning milieu. The methodological approach was qualitative and the main procedure was the analysis of the work report developed by the group. From the analysis, it was possible to notice at least two different ways in which the group interpreted what to be critical means: one that suggests a critical insertion of students in their reality, and another that relied on mathematical certainties to reach the conclusions of the project.

Mathematics Education; Mathematical Modelling; Critical Mathematics Education; Liberating Education


ARTIGOS

Ser Crítico em Projetos de Modelagem em uma Perspectiva Crítica de Educação Matemática

Being critical in modelling projects in a critical perspective of mathematics education

Jussara de Loiola Araújo

Doutora em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora do Departamento de Matemática e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil. Endereço para correspondência: Departamento de Matemática UFMG, Av. Presidente Antônio Carlos, 6627, Pampulha, CEP: 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: jussara@mat.ufmg.br

RESUMO

Apresento, neste artigo, uma análise de como um grupo de estudantes realizou a tarefa de desenvolver um projeto de modelagem matemática orientado pela educação matemática crítica. Especificamente, procuro compreender como o grupo interpretou o ser crítico que deles era esperado nessa tarefa. É apresentado um referencial teórico sobre modelagem na perspectiva da educação matemática crítica, enfatizando a concepção problematizadora e libertadora de educação de Paulo Freire, a compreensão de educação matemática crítica de Ole Skovsmose e o uso desses referenciais na organização de ambientes de aprendizagem de modelagem matemática. A abordagem metodológica foi qualitativa e o principal procedimento foi a análise do relatório de trabalho produzido pelo grupo. Da análise, foi possível perceber, pelo menos, duas maneiras diferentes pelas quais o grupo interpretou o que significa ser crítico: a primeira sinaliza uma inserção crítica dos educandos em sua realidade e, a segunda, que se apoiou em certezas matemáticas para chegar às conclusões do projeto.

Palavras-chave: Educação Matemática. Modelagem Matemática. Educação Matemática Crítica. Educação Libertadora.

ABSTRACT

In this paper, I present an analysis of how a group of students carried out the task of developing a mathematical modelling project guided by critical mathematics education. Specifically, I try to understand how the group interpreted the being critical that was expected from them. A framework of mathematical modelling in a critical mathematics education perspective is presented, emphasizing Paulo Freire's problematizing and liberating conception of education, the critical mathematics education by Ole Skovsmose, and these references in organizing mathematical modelling learning milieu. The methodological approach was qualitative and the main procedure was the analysis of the work report developed by the group. From the analysis, it was possible to notice at least two different ways in which the group interpreted what to be critical means: one that suggests a critical insertion of students in their reality, and another that relied on mathematical certainties to reach the conclusions of the project.

Keywords: Mathematics Education. Mathematical Modelling. Critical Mathematics Education. Liberating Education.

1 Introdução

Desde a década de 80, modelagem matemática é uma tendência que tem ganhado força na educação matemática brasileira, por meio de experiências em sala de aula, desenvolvimento de pesquisas, incluindo as de mestrado e doutorado, criação de grupos de pesquisa e realização de encontros científicos, dentre outras ações (BIEMBENGUT, 2009). Este crescimento, como discutido em Araújo (2010), tem sido acompanhado, nos últimos anos, de uma maior atuação dos educadores matemáticos brasileiros junto à comunidade internacional. Embora o desenvolvimento da modelagem na educação matemática brasileira seja relativamente independente do que ocorreu em nível mundial, podemos constatar, como discutido por Blum et al. (2007), um movimento internacional semelhante ao ocorrido aqui.

Levando em conta sua origem na matemática aplicada, modelagem matemática pode ser entendida como o uso de modelos matemáticos para resolver problemas que têm origem em situações da realidade. Isso significa encontrar alguma representação matemática para essas situações, buscando entendê-la e tentando resolver algum problema relacionado a elas (BASSANEZI, 2002). Neste artigo, entretanto, estou me referindo especificamente à modelagem na educação matemática e, neste caso, ela toma contornos especiais, dependendo do contexto educacional, dos profissionais envolvidos e do perfil dos estudantes, dentre outros fatores (ARAÚJO, 2007a).

Para Bassanezi (2002, p. 16), por exemplo, modelagem matemática, seja como método científico ou como estratégia de ensino e aprendizagem, é a "arte de transformar problemas da realidade em problemas matemáticos e resolvê-los interpretando suas soluções na linguagem do mundo real." Almeida e Ferruzzi (2009), por sua vez, entendem modelagem como uma alternativa pedagógica, dando destaque para seu caráter investigativo e o estabelecimento de uma perspectiva socioepistemológica. O entendimento de modelagem como método de ensino e aprendizagem é questionado por Caldeira (2009), que propõe que ela seja tratada como uma concepção de educação matemática. Já para Barbosa (2001, p. 31), "modelagem é um ambiente de aprendizagem no qual os alunos são convidados a indagar e/ou investigar, por meio da matemática, situações com referência na realidade."

Esta é só uma pequena amostra do intenso debate na comunidade brasileira sobre maneiras de compreender modelagem na educação matemática. Em minhas aulas, quando atuo como professora e proponho o desenvolvimento de projetos de modelagem matemática, tenho em mente a organização de ambientes de aprendizagem (BARBOSA, 2001) orientados por um referencial crítico de educação matemática (ARAÚJO, 2009). Nesse sentido, oriento os grupos de alunos a escolherem temas de seu interesse e a levantarem problemas relacionados a esses temas, a serem abordados, por meio de matemática, de tal forma que questões da educação matemática crítica fundamentem o desenvolvimento dos trabalhos.

Mas o que significa, em uma sala de aula de matemática, fundamentar um projeto de modelagem na educação matemática crítica? Como os alunos, ao desenvolverem seus projetos de modelagem, interpretam essa crítica? Em consonância com estas questões discuto, neste artigo, a maneira como um grupo de estudantes de graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) realizou a tarefa que lhes foi proposta de desenvolver um projeto de modelagem na perspectiva da educação matemática crítica. Especificamente, procuro compreender como o grupo interpretou o ser crítico que deles era esperado nessa tarefa.

Tecer reflexões sobre o que se entende por crítica, de maneira geral, na educação (matemática), é uma tarefa importante e necessária já que, segundo Pais et al. (2010, p. 408, tradução nossa), "[...] a noção de crítica sofreu um tipo de 'domesticação' no campo da educação [...]"1 1 "[ ] the notion of critique suffered from a kind of 'domestication' in the field of education" (PAIS et al., 2010, p. 408). .

Para realizar tal análise, inicio com uma discussão teórica, na próxima seção, sobre educação (matemática) crítica e sobre uma abordagem de modelagem matemática segundo essa perspectiva de educação matemática. Em seguida, apresento os aspectos metodológicos da pesquisa, destacando o contexto na qual ela foi realizada, a abordagem metodológica e procedimentos de coleta e análise de dados. Por fim, descrevo o projeto de modelagem desenvolvido pelo grupo, tecendo reflexões e uma análise sobre a forma como os alunos interpretaram a abordagem crítica que deles era esperada.

2 Perspectiva sociocrítica de modelagem

Para falar sobre modelagem segundo a educação matemática crítica, começo por circunstanciar uma compreensão da palavra crítica. Em uma acepção mais geral, segundo um dicionário de filosofia (JAPIASSU; MARCONDES, 1998, p. 59), crítica é entendida como "atitude de espírito que não admite nenhuma afirmação sem reconhecer sua legitimidade racional." Esse termo está fortemente relacionado ao trabalho do filósofo Immanuel Kant, com o sentido de análise pormenorizada, exame de valor, como em sua obra Crítica da Razão Pura, na qual procura explicar as condições gerais para construir certo tipo de conhecimento (SKOVSMOSE, 1994).

Para a Teoria Crítica, entretanto, crítica deve ser tratada como um conceito educacional. Essa perspectiva teórica foi desenvolvida pela Escola de Frankfurt, Alemanha, a partir do final da década de 20. Segundo Peukert (1996, p. 412), a educação é um projeto do Iluminismo, e esse movimento teórico é uma tentativa, por meio de uma autocrítica radical, de continuar esse projeto. Para o autor, a origem e o desenvolvimento da Teoria Crítica "trazem a marca dos processos socioculturais autodestrutivos da modernidade e do holocausto", fato causado pela racionalidade do Iluminismo, que não é suficiente para dar conta das consequências de suas ações. Portanto, tornam-se necessárias novas concepções de racionalidade e de educação, cuja busca faz parte do projeto da Teoria Crítica.

No Brasil, a concepção problematizadora e libertadora de educação, proposta por Freire (2002a), também adota uma atitude crítica de educação, embora não tenha vínculos com a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Freire (2002a) defende a inserção crítica do educando em sua realidade, a fim de problematizá-la e transcendê-la. É por meio de uma reflexão crítica da realidade aliada a ações (práxis) que os educandos, segundo Paulo Freire, conquistarão a liberdade. E, ao se dirigir para o professor, Freire (2002b, p. 42) aponta a criticidade como uma forma de superação entre o saber de pura experiência e o saber fruto de procedimentos metodologicamente rigorosos. Para o autor, "ensinar exige reflexão crítica sobre a prática."

D'Ambrosio (1999, p. 134, tradução nossa), ao propor um novo currículo para as escolas (trivium composto pela literacia, materacia e tecnoracia), destaca o caráter crítico, presente na materacia, mas não apenas nela, dirigido à nossa sociedade altamente tecnológica, já que "um referencial matemático é uma importante ferramenta para tratar muitas questões centrais de nossa sociedade"2 2 " A mathematical framework is an important tool to deal with many central issues of our society [ ]" (D'AMBROSIO, 1999, p. 134). . Para o autor, materacia é a capacidade de tirar conclusões a partir de dados e de cálculos feitos sobre eles, é a capacidade de utilizar resultados matemáticos para fazer inferências sobre fatos reais. "Este conjunto de capacidades é o primeiro passo em direção a uma postura intelectual e crítica."3 3 " This set of capabilities is the first step toward an intellectual and critical posture [ ]" (D'AMBROSIO, 1999, p. 134). (D'AMBROSIO, 1999, p. 134, tradução nossa).

As ideias defendidas pela Teoria Crítica, por Paulo Freire e por Ubiratan D'Ambrosio, dentre outras, influenciaram a Educação Matemática Crítica tal como formulada por Ole Skovsmose.

Segundo Skovsmose (1994), a principal preocupação da educação matemática crítica é o desenvolvimento da matemacia, que é uma extensão, para a matemática, da concepção problematizadora e libertadora de educação proposta por Freire (2002a). Essa ideia é similar à materacia, como discutida por D'Ambrosio (1999). Na matemacia, o objetivo não é simplesmente desenvolver habilidades de cálculos matemáticos, mas, também, de promover a participação crítica dos estudantes/cidadãos na sociedade, discutindo questões políticas, econômicas, ambientais, nas quais a matemática serve como suporte tecnológico. Nesse caso, dirige-se uma crítica à própria matemática assim como a seu uso na sociedade, e não apenas se preocupa com seu ensino e aprendizagem.

Levantar essas questões sobre o papel da matemática na sociedade faz destacar o uso de modelos matemáticos, já que uma

[...] consciência crítica da sociedade tem [...] que incluir a consciência dos usos políticos de linguagem. No caso da educação matemática, isto implicaria na consciência do conteúdo ideológico de modelos matemáticos: o que está sendo deixado de fora no modelo matemático [...]?4 4 "[ ] critical awareness of societya has [...] to include the awareness of the political uses of language. In the case of mathematics education this would imply the awareness of the ideological content of mathematical models: what is being left out in the mathematical model [ ]?" (MELLIN-OLSEN, 1987, p. 203). (MELLIN-OLSEN, 1987, p. 203, tradução nossa).

Para mim, organizar ambientes de aprendizagem de modelagem segundo a educação matemática crítica, significa, como apontei em Araújo (2009), propor que os alunos, reunidos em grupos, utilizem matemática para resolver algum problema com origem na realidade, no dia-a-dia, mas de tal forma que essa resolução seja problematizada e questionada. Ou seja, a matemática

[...] ao mesmo tempo em que é usada para resolver algum problema, é também questionada sobre a forma em que é usada, tanto pelo grupo quanto pela sociedade, de maneira geral. É o uso da matemática da forma que é possível pelo grupo, mas em constante questionamento. (ARAÚJO, 2009, p. 65).

Nesse sentido, incentivam-se reflexões sobre o que foi considerado (ou que variáveis foram incluídas) no modelo e o que foi deixado de fora, como colocado por Mellin-Olsen (1987). Mais que isto, os motivos de tais escolhas são questionados: a quem elas interessam?

Modelagem segundo a educação matemática crítica é classificada por Kaiser e Sriraman (2006) como pertencente à Perspectiva Sociocrítica5 5 Uma perspectiva sociocrítica de modelagem foi formulada por Barbosa (2003). da Modelagem na Educação Matemática. Para os autores, o propósito central dessa perspectiva relaciona-se a objetivos pedagógicos de compreensão crítica do mundo, e ela se fundamenta em abordagens sociocríticas da sociologia política. Essa perspectiva de modelagem é muito presente na educação matemática brasileira e pode ser identificada nos trabalhos de Barbosa (2006), Jacobini e Wodewotzki (2006) e Luna, Souza e Santiago (2009), dentre vários outros.

Assim, fundamentada nesse referencial teórico, busquei colocar em prática, em uma disciplina do curso de Geografia da UFMG, o desenvolvimento de projetos de modelagem orientados pela educação matemática crítica. Esses projetos alinhavam-se ao contexto do desenvolvimento de outra pesquisa (ARAÚJO; PINTO, 2004) e, por isso, foram adotados procedimentos de coleta e análise de dados, que são apresentados na próxima seção.

3 Aspectos metodológicos

3.1 Contexto do estudo

A experiência que descrevo aqui aconteceu no primeiro semestre de 2006 (março a julho) na disciplina Matemática ofertada para estudantes de graduação do curso de Geografia da UFMG. Eu fui designada pelo Departamento de Matemática como a professora da disciplina. O conteúdo matemático previsto inclui o estudo de funções, derivadas e noções de integral.

As principais atividades que aconteceram durante aquele semestre foram aulas expositivas, atividades com computadores e desenvolvimento de projetos de modelagem matemática, em acordo com o que estava planejado por Araújo e Pinto (2004). Para atingir o objetivo deste artigo, vou focalizar os projetos de modelagem.

O desenvolvimento dos projetos de modelagem na disciplina Matemática começou com uma discussão sobre o que é modelagem matemática e sobre como abordá-la sob uma perspectiva crítica. Concomitantemente, orientei os alunos sobre como elaborar o plano de trabalho para o projeto a ser desenvolvido por cada grupo, solicitando-lhes que pensassem sobre temas para seus projetos e sobre a formação de grupos para desenvolvê-los.

Na aula seguinte, temas e grupos foram definidos por meio de um longo processo de negociação. Cada grupo ficou constituído com cerca de sete componentes e os temas escolhidos foram os seguintes: Transposição do Rio São Francisco (dois grupos: um para tratar de aspectos físicos e outro de aspectos sociais); Impactos Físicos na Implantação de Usinas Hidrelétricas; Aspectos socioeconômicos do Projeto Linha Verde em Belo Horizonte; Campus 2000: consequências no transporte na UFMG; Lendas Climáticas; Energia Solar.

Definidos os temas, cada grupo elaborou um plano de trabalho, que foi avaliado por mim e devolvido ao grupo. Nessa avaliação, busquei orientá-los, visando um maior detalhamento de todos os passos a ser seguidos no desenvolvimento do projeto e a definição do foco de pesquisa. Procurei, também, levantar questões acerca de como a matemática seria utilizada no projeto.

Depois da aprovação dos projetos, os grupos começaram sua execução, com reuniões em sala de aula e fora dela. Eles apresentaram relatos parciais do desenvolvimento dos projetos a cada mês e, a partir desses relatos, cada grupo recebia orientações e sugestões, minhas e de toda a turma, para a continuidade do trabalho. Em todas essas orientações, eu procurava levar em conta as preocupações da educação matemática crítica.

Ao final do semestre, todos os grupos fizeram uma apresentação oral dos projetos para a turma (as quais foram filmadas) e entregaram uma versão escrita do projeto. Neste artigo, o foco é a interpretação da abordagem crítica de modelagem matemática do grupo que escolheu estudar o tema aspectos socioeconômicos do projeto de construção da Linha Verde em Belo Horizonte6 6 Linha Verde foi um projeto do governo do Estado de Minas Gerais que pretendia construir uma via de trânsito rápido ligando o centro de Belo Horizonte ao Aeroporto Tancredo Neves (Confins), cobrindo uma distância de 35,4 km. .

Eu tinha um duplo papel nesse contexto: o de professora e o de pesquisadora. Durante as aulas, prevalecia o papel de professora e eu contava com a participação de um aluno de iniciação científica7 7 Felipe Pereira Heitmann era, à época, aluno de Licenciatura em Matemática da UFMG e participava do desenvolvimento da pesquisa proposta por Araújo e Pinto (2004), com uma bolsa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). , que auxiliava na coleta de dados. Fora das aulas, eu assumia o papel de pesquisadora, tomando notas referentes às minhas percepções das aulas e realizando a organização da coleta e análise dos dados. Entretanto, os papéis de professora e pesquisadora poderiam se alternar ou mesmo acontecer concomitantemente, dependendo dos eventos ocorridos em sala de aula e fora dela.

3.2 Coleta e análise de dados

A pesquisa foi desenvolvida por meio de uma abordagem qualitativa, que é caracterizada como tendo o ambiente natural como fonte de dados; como sendo descritiva; como estando mais interessada no processo do que nos resultados finais; por realizar análise indutiva dos dados; e por dar importância vital aos significados dados aos fatos. (BOGDAN; BIKLEN, 1994). Esse entendimento mostrou-se coerente com o objetivo da pesquisa que deu origem aos dados aqui discutidos, que visava analisar a comunicação entre os estudantes.

Dos procedimentos metodológicos adotados, destaco aqueles utilizados durante o desenvolvimento dos projetos de modelagem: observação e filmagem de algumas reuniões do grupo Linha Verde, pelo aluno de iniciação científica; observação, por mim e pelo aluno de iniciação científica, de todos os grupos durante os relatos parciais e as apresentações finais dos projetos, sendo que estas últimas foram filmadas; coleta de material escrito, produzido pelos grupos. As observações, apoiadas pelas filmagens, possibilitavam que aspectos relacionados aos objetivos da pesquisa fossem detectados e destacados para posterior análise.

Os vídeos e documentos escritos, construídos por meio desses procedimentos, foram retomados em uma pesquisa posterior8 8 Pesquisa de pós-doutorado realizada pela autora na Universidade de Lisboa, sob supervisão do Prof. João Filipe Matos, com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) do MEC, Brasil (Processo no. 0799/08-4). . Do estudo realizado por Araújo, Santos e Silva (2010), fruto dessa nova pesquisa, surgiu a necessidade de refletir, com mais cuidado, sobre a forma como os projetos de modelagem foram realizados. Em particular, retomei os dados com a intenção de focar na atitude crítica dos alunos diante de questões sociais.

Como essa retomada dos dados ocorreu cerca de três anos após a coleta inicial dos dados, não seria possível realizar uma nova coleta para investigar a atitude crítica dos alunos. Optei, então, para este artigo, por revisitar o relatório de trabalho do grupo que desenvolveu o projeto Linha Verde. A retomada do relatório, visando compreender como o grupo interpretou o ser crítico que deles era esperado, e a análise aqui realizada, foram motivadas pelas conclusões a que chegaram Araújo, Santos e Silva (2010), ao analisarem o vídeo e os slides da apresentação final do grupo. Em seu artigo, as autoras apontam uma dubiedade de motivos que o grupo Linha Verde tinha em desenvolver o projeto de modelagem, e a análise, apresentada a seguir, dá continuidade a essa discussão.

4 Estudo matemático do tráfego da via: os argumentos do governo são verdadeiros?

O objetivo do projeto de modelagem do grupo aqui focado consistiu em "analisar os impactos sócio-econômicos do Projeto Linha Verde9 9 O projeto de modelagem do grupo e o projeto do Governo do Estado de Minas Gerais têm o mesmo nome: Linha Verde. O contexto deixará claro de que projeto estarei falando em cada momento. na Avenida Cristiano Machado, no trecho entre a Rua Jacuí e a Avenida Silviano Brandão." (RELATÓRIO DO GRUPO, 2006, p. 5). As intervenções do projeto Linha Verde neste trecho incluíam a construção de um viaduto por cima da pista original da avenida.

Especificamente, o grupo tinha dois objetivos: i) verificar, por meio de cálculos matemáticos, a veracidade dos argumentos e dados apresentados pelo governo para justificar a necessidade do projeto Linha Verde; ii) fazer uma estimativa do tempo de vida útil do novo viaduto construído, visando "demonstrar até quando o projeto Linha Verde suportará o constante crescimento do fluxo de veículos no trecho delimitado." (RELATÓRIO DO GRUPO, 2006, p. 5). Em uma tentativa de sintetizar seus objetivos em uma única frase, o grupo afirmou que buscava relacionar "o tráfego, a necessidade da construção de um viaduto e seus impactos na região em análise." (RELATÓRIO DO GRUPO, 2006, p. 7).

Para atingir seus objetivos, o grupo desenvolveu duas frentes de trabalho: entrevistas com pessoas envolvidas no projeto Linha Verde e um estudo matemático do tráfego na região. As entrevistas estavam diretamente relacionadas com o objetivo principal do projeto. Por meio delas, o grupo pretendia coletar informações sobre os impactos que as pessoas que viviam e/ou trabalhavam na região estavam vivenciando devido às obras.

O estudo matemático do tráfego, por sua vez, funcionou como um elo entre a discussão sobre os impactos socioeconômicos na região, que era o objetivo principal do grupo, e o questionamento que faziam sobre a validade dos argumentos e dados usados pelo governo para justificar o desenvolvimento do Projeto Linha Verde, que era um de seus objetivos específicos. Como discutido por Araújo, Santos e Silva (2010), este objetivo específico estava relacionado com o fato de o grupo querer dar voz à sua identidade de geógrafos, o que nos dá a dimensão de sua importância para o grupo.

Apresento, a seguir, mais detalhes sobre essas duas frentes.

4.1 Entrevistas

O relato das entrevistas traz informações sobre perguntas feitas e respostas obtidas, além de apresentar intervenções dos entrevistadores ao longo das perguntas, a fim de estimular os entrevistados a refletir sobre o projeto Linha Verde. Visto que se tratava, para a maioria dos alunos, de uma primeira experiência com o desenvolvimento de projetos, esse procedimento pode ser considerado natural, assim como também pode trazer informações sobre como o grupo interpretou a atitude crítica que deles era esperada.

Para analisar a parte do relatório do grupo na qual as entrevistas foram apresentadas, foi necessário reorganizar as informações, buscando detectar quais foram as pessoas entrevistadas, as perguntas feitas, as respostas obtidas e as intervenções dos entrevistadores. Com base na análise do relatório de trabalho do grupo, tais informações estão sintetizadas a seguir.

As pessoas entrevistadas pelos elementos do grupo eram pedestres e/ou comerciantes da Avenida Cristiano Machado, no trecho considerado para a pesquisa. Os pedestres, na sua maioria, moravam ou trabalhavam na região e darei destaque à entrevista dessas pessoas. O grupo planejou fazer três perguntas para os pedestres entrevistados, que visavam obter opiniões referentes ao projeto Linha Verde, sobre transtornos vivenciados durante a realização das obras e expectativas quanto aos resultados das mesmas.

Com relação às opiniões dos pedestres sobre o projeto, o grupo encontrou muitas pessoas que não tinham informações sobre ele ou que só tinham informações por meio de propagandas em panfletos, outdoors ou televisão. Havia pessoas que acreditavam que a obra era importante para a região, pois há muito tempo fazia-se necessária alguma intervenção, e outras que pensavam que ela não passaria de uma obra eleitoreira.

Sobre os transtornos durante a realização das obras, os entrevistados se mostraram insatisfeitos. As principais reclamações foram sobre dificuldades para atravessar a avenida, existência de poucas passagens para pedestres, piora na qualidade do trânsito por causa das obras e aumento da poluição sonora. Mesmo assim, alguns pedestres afirmaram que esses problemas eram necessários para que as melhorias fossem proporcionadas.

Por fim, com relação às expectativas quanto ao projeto, alguns entrevistados acreditavam que ele iria melhorar a vida das pessoas, mas outros pensavam que a obra traria benefícios apenas para usuários de veículos que se dirigiam ao aeroporto, e não para pedestres. Houve, também, uma divergência de opiniões sobre o problema dos atropelamentos na avenida: algumas pessoas acreditavam que eles iriam diminuir com o projeto e outras acreditavam que eles aumentariam.

No relato das entrevistas, o grupo deixou claro que os entrevistadores intervieram no ponto de vista dos entrevistados. Por exemplo, eles lembraram aos entrevistados que não estava prevista a construções de passarelas no trecho, e levantaram hipóteses sobre o aumento da criminalidade na região. E, ao perceberem que os pedestres estavam mal informados sobre o projeto Linha Verde, os entrevistadores "no prosseguir da entrevista, [acabavam] por fazer com que o entrevistado refletisse a respeito dos acontecimentos ao seu redor." (RELATÓRIO DO GRUPO, 2006, p. 11).

Ao final do relato das entrevistas com os pedestres, o grupo apresentou suas impressões:

A impressão que tivemos dessa pesquisa foi de que os pedestres, muito afetados nesse projeto, estão insatisfeitos com as modificações atuais da obra. A falta de transparência por parte do governo é refletida na opinião pública. Infelizmente a propaganda do governo de Minas Gerais oculta qual o verdadeiro motivo dessa obra e a quem ela servirá. Na verdade, grande parte da população não utiliza o transporte aéreo e por isso não será beneficiada com o Projeto Linha Verde [...]. (RELATÓRIO DO GRUPO, 2006, p. 12).

Assim, ao analisar as entrevistas, o grupo generalizou a insatisfação dos pedestres, não mencionando as falas que traziam alguma avaliação positiva do projeto Linha Verde. Além disso, o grupo usou a falta de informação da população entrevistada como ponto de partida para questionar a veiculação de informações por parte do governo e suas intenções, afirmando categoricamente que ele visava atender a uma minoria da população.

As entrevistas realizadas pelo grupo visavam não apenas coletar opiniões da população local sobre as obras do Projeto Linha Verde, mas, também, influenciar essas opiniões. Embora o grupo já tivesse uma opinião formada sobre o projeto e buscasse influenciar a população local, ele parecia estar preocupado com o bem-estar das pessoas, com seu acesso às informações, e procurava convidar a população a um debate sobre a realidade que a cercava.

Seu procedimento, tanto na condução quanto nas reflexões sobre as entrevistas, trazia manifestações do que o grupo interpretou como uma atitude crítica diante do tema do projeto de modelagem por eles desenvolvido. A seu modo, parece-me que o grupo tinha uma atitude coerente com o que Freire (2002a) defende: a inserção crítica do educando em sua realidade. Essa atitude crítica foi reforçada ao final da apresentação das entrevistas, quando o grupo afirmou que

O objetivo dessas entrevistas não foi somente o de criticar o Projeto Linha Verde ou induzir a população a fazê-lo. Queremos mostrar que o povo, embora financie obras como essa, não tem acesso a informações claras. Em nossas várias pesquisas, percebemos que até agora não houve preocupação alguma por parte do governo com o objetivo de criar projetos que amenizassem os impactos dessa obra. (RELATÓRIO DO GRUPO, 2006, p. 14).

O posicionamento crítico do grupo diante de sua realidade pode ser interpretado como receptividade para o desenvolvimento de projetos de modelagem na perspectiva da educação matemática crítica. Seria desejável, então, incentivar a continuidade dessa consciência crítica no tratamento matemático do projeto, que é descrito a seguir.

4.2 Estudo matemático do tráfego na região

O estudo matemático, realizado pelo grupo, iniciou-se com a apresentação de diversas fórmulas utilizadas pela Engenharia de Tráfego. Para isso, o grupo contou com a ajuda de uma aluna do curso de Engenharia Civil da UFMG. Para a análise, selecionei algumas partes do relatório que mostram o procedimento matemático escolhido pelos alunos. Foco minha discussão nessa seleção. Ela diz respeito ao segundo objetivo específico do grupo: fazer uma estimativa do tempo de vida útil do novo viaduto construído.

Para fazer essa estimativa, o grupo utilizou fórmulas para comparar a capacidade do novo viaduto com o fluxo de veículos para o qual ele seria destinado. A capacidade da via é "o número de veículos que pode passar sobre uma dada seção de uma faixa ou via, em uma direção [...], durante a unidade de tempo" (RELATÓRIO DO GRUPO, 2006, p. 23).

Como o novo viaduto não teria interrupções do trânsito, a fórmula para medir sua capacidade, segundo informações obtidas pelo grupo junto à aluna de Engenharia Civil, é:

Nessa fórmula, como apresentado no relatório do grupo, C é a capacidade do trecho com fluxo contínuo, w é o fator de ajuste para a largura da faixa e afastamento lateral, c é o fator de ajuste para caminhões e ô é o fator de ajuste para ônibus. Os fatores w, c e ô foram obtidos por meio de tabelas apresentadas pelo grupo nos anexos de seu relatório.

Neste ponto, anterior aos cálculos realizados pelo grupo, já é possível levantar algumas hipóteses sobre a atitude crítica que se desejava por parte dos alunos e sobre como eles interpretaram essa crítica.

A fórmula para o cálculo da capacidade do viaduto foi apresentada sem questionamentos sobre sua origem, sobre as variáveis nela consideradas, ou mesmo sobre sua adequação para medir razoavelmente essa capacidade. Como já discuti em Araújo (2007b), o uso de fórmulas ou modelos matemáticos sem o questionamento de sua origem é uma prática corriqueira entre profissionais de outras áreas, diferentes da matemática. Mas esse questionamento é desejável em uma abordagem de modelagem segundo a educação matemática crítica. Pode-se questionar, também, a origem das tabelas utilizadas pelo grupo para estabelecer os valores dos fatores w, c e ô. Embora o grupo afirme que a fonte dessas tabelas é HCM 1965, eles não informam o que é HCM10 10 Fazendo uma busca na Internet, uma possibilidade que encontrei para o significado dessa sigla é Highway Capacity Manual (HCM). Veja, por exemplo, http://www.brazhuman.com.br/HCM-MG_050.html. , nem questionam a adequação dessa tabela para a realidade atual, já que ela data de 1965. O grupo se limitou a decidir quais seriam os valores de w, c e ô, por meio das tabelas, com base em características físicas do novo viaduto. Sem levar em conta essas reflexões, o grupo apresentou os valores obtidos para os fatores: w = 0,97; c = 0,95 e ô = 0,97. O que resultou em C = 2000 ⋅ 0,97 ⋅ 0,95 ⋅ 0,97 = 1788 veic / h ((veículos por hora).

E, como o viaduto teria três faixas, a capacidade total do viaduto pôde ser calculada por meio da multiplicação do valor acima por 3, ou seja,

Calculada a capacidade total da via, o próximo passo do grupo foi comparar esse valor com o fluxo de veículos no novo viaduto. Para tal, o grupo buscou informações junto à Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte (BHTRANS)11 11 www.bhtrans.pbh.gov.br. . De acordo com a empresa, o fluxo de veículos no trecho em que o viaduto seria construído, em 2005, perfazia 3600 veic/h em horário de pico. No relatório, o grupo afirma ser essa a única informação disponível na BHTRANS, mas eles necessitavam de informações mais recentes. Assim, "como não foi possível obter maiores dados, [foi] feita uma estimativa de como [seria] o crescimento do tráfego no trecho estudado [...]" (RELATÓRIO DO GRUPO, 2006, p. 29).

Há dois aspectos, aqui, que eu gostaria de destacar para análise: o acesso a informações e a busca de soluções para impasses encontrados no desenvolvimento do projeto. Não sabemos até que ponto o grupo se empenhou na busca das informações necessárias. Mas, no relatório eles descrevem, em vários momentos, a frustração quanto à escassez de informações por parte de órgãos públicos. Acredito que esse fato mostra mais um pouco da atitude crítica do grupo. Por outro lado, a solução que o grupo deu para esse impasse é questionável:

Para este estudo, espera-se uma grande demanda para a nova construção, já que a mesma ligará o centro de Belo Horizonte ao Aeroporto de Confins, região norte e região metropolitana, bem como o aumento na velocidade do trajeto. Assim, estima-se que o fluxo que passa hoje no trecho considerado será o mesmo que passará no início da implantação do viaduto, acrescido de 10%. (RELATÓRIO DO GRUPO, 2006, p. 29, grifos meus)

O grupo não se apoiou em argumentos consistentes para justificar a estimativa de 10% do crescimento do fluxo de veículos na via. Parece-me que eles queriam obter dois valores para o fluxo de veículos no trecho estudado: 3600 veic/h em 2005 e 3960 (= 3600 + 360) veic/h em 2006 (início do uso do viaduto). A partir daqui, o grupo mergulhou completamente em discussões matemáticas.

A necessidade de dois pontos vem do fato de que eles pretendiam usar o software Excel para obter uma função que permitisse ao grupo fazer uma estimativa do tempo de vida útil do viaduto, que era seu objetivo. Eles plotaram esses dois pontos no software e fizeram uma análise do fenômeno estudado, para decidir que função utilizariam para representar o fluxo de veículos:

Como espera-se que esse crescimento [do fluxo] aumente rápido com o início do tempo e depois aumente mais devagar, já que com o tempo a densidade do tráfego irá aumentar, diminuindo assim a sua fluidez, usa-se o recurso da linha de tendência do programa Microsoft Excel, e utiliza-se a regressão logarítmica, que descreve o que se espera. (RELATÓRIO DO GRUPO, 2006, p. 29)

Assim, o grupo obteve o gráfico e sua respectiva função logarítmica:

De posse da função y = 519,37 In x + 3600, o grupo se dedicou ao cálculo do ano em que o valor de y estaria próximo de 5364 veic/h, que é a capacidade do viaduto, calculada previamente. Para isso, eles atribuíram valores aleatórios para x e calcularam o y correspondente, dando destaque para os seguintes valores12 12 No Relatório do grupo há um erro de correspondência entre o número de anos decorridos e o ano propriamente dito. Esse erro foi corrigido na apresentação oral do grupo e, neste artigo, estou considerando a correspondência correta. :

Em 2033 (decorridos 29 anos):

Em 2034 (decorridos 30 anos): y = 519,37 ⋅ ln(30) + 3600 = 5367.

O grupo concluiu que a capacidade do novo viaduto seria atingida em 2033, ou seja, em um prazo de 29 anos, levando em conta que o ano de 2005 correspondia a x = 1 na função. Ou, se considerarmos que o projeto de modelagem foi desenvolvido no ano de 2006, a capacidade seria atingida dali a 27 anos.

Nesta parte do projeto, referente ao cálculo do fluxo de veículos, parece que prevaleceu a necessidade de buscar uma justificativa matemática, a qualquer custo, para que o objetivo fosse atingido. Essa atitude do grupo parece estar amparada no que Borba e Skovsmose (1997) denominam ideologia da certeza da matemática. Segundo os autores, a ideologia da certeza sustenta o caráter de neutralidade dessa ciência, atribuindo a ela o poder de detentora do argumento definitivo em qualquer debate na sociedade. Assim, o grupo se apoiou em um argumento forte, amparado em fórmulas matemáticas, para chegar à conclusão de quanto tempo seria necessário para atingir a capacidade de fluxo do novo viaduto. Não importava, para o grupo, que esse argumento tivesse sido construído em cima de estimativas imprecisas: chegar a uma conclusão baseada em argumentos matemáticos consistia num dos motivos do grupo (ARAÚJO; SANTOS; SILVA, 2010). Entretanto, como questionar a ideologia da certeza da matemática é um dos propósitos da educação matemática crítica, nesta parte de seu projeto de modelagem o grupo deixa de ter uma atitude crítica.

Para concluir o projeto, o grupo afirma que, de acordo com a Engenharia de Tráfego, o tempo de vida útil desejável para obras de engenharia é de 20 a 30 anos. Portanto, o valor encontrado pelo grupo (27 anos) é "condizente com o tempo de projeto de obras de Engenharia." (RELATÓRIO DO GRUPO, 2006, p. 30). Essa constatação foi frustrante para o grupo, já que eles pretendiam verificar, por meio de cálculos matemáticos, a veracidade dos argumentos e dados apresentados pelo governo para justificar a necessidade do projeto Linha Verde.

Na apresentação oral do projeto, um dos componentes do grupo fez um fechamento que retratou essa mistura de sentimentos:

Aluno: Então nós temos aí 27 anos de via fluindo normalmente, pelas projeções que nós fizemos. Beleza! Mas aí Estes 27 anos compensam toda a intervenção no local? Compensam todo o impacto que eles estão tendo na área? Impacto com os comerciantes, impacto com os pedestres. Justifica todo o investimento financeiro do nosso bolso? (Transcrição do vídeo).

Esta fala mostra, ao mesmo tempo, a credibilidade inquestionável que o grupo tinha nos cálculos matemáticos, o que não é coerente com os propósitos da educação matemática crítica (SKOVSMOSE, 1994), e uma atitude crítica com relação à sua realidade social, caracterizada por preocupações com o bem-estar da população e com o uso do dinheiro público.

5 Considerações finais

Retomo, aqui, o objetivo a que me propus neste artigo: analisar a maneira como um grupo de estudantes de graduação em Geografia da UFMG realizou a tarefa que lhes foi proposta de desenvolver um projeto de modelagem na perspectiva da educação matemática crítica. Da análise apresentada na seção anterior, foi possível perceber, pelo menos, duas maneiras diferentes pelas quais o grupo interpretou essa crítica.

A primeira delas foi colocada em ação pelo grupo, principalmente, na parte de seu projeto em que se dedicaram às entrevistas das pessoas que frequentavam o trecho da Av. Cristiano Machado, em estudo. Naquele momento, o grupo procurou questionar as afirmativas e atuação do governo, demonstrando uma "atitude de espírito que não admite nenhuma afirmação sem reconhecer sua legitimidade racional." (JAPIASSU; MARCONDES, 1998, p. 59). As preocupações do grupo com o bem-estar da população local e com o uso do dinheiro público sinalizam uma inserção crítica do educando em sua realidade (FREIRE, 2002a).

Essa atitude crítica deu lugar a outro tipo de atitude do grupo, relativa à parte do projeto dedicada ao estudo matemático do tráfego na região. Nesse segundo momento, o grupo deixou a crítica esmaecer e apoiou-se em certezas matemáticas, de forma inquestionável, para realizar sua análise e chegar às conclusões às quais chegou, corroborando uma ideologia da certeza da matemática (BORBA; SKOVSMOSE, 1997). Deixaram de ter, então, uma atitude coerente com a educação matemática crítica.

Não compreendo essa dubiedade como uma falta de coerência do grupo, mas, sim, como uma marca da situação em que se encontravam: eram futuros geógrafos e alunos da disciplina Matemática. Como discutimos em Araújo, Santos e Silva (2010), o grupo tinha dois motivos para estar engajado nessa atividade: dar voz à sua identidade de geógrafos e ter sucesso na disciplina Matemática, os quais podem ser associados, respectivamente, aos procedimentos que deram origem às duas maneiras de interpretar a atitude crítica que deles se esperava.

Levando em conta, então, esses dois motivos, bem como a análise aqui realizada, levanto algumas questões. Por que o grupo, para dar voz à sua identidade de geógrafos, entendeu que poderia influenciar as pessoas entrevistadas, procurando despertar nelas uma atitude crítica semelhante à que eles tinham? Será que a compreensão de crítica do grupo incluía uma educação crítica de seus entrevistados? E, relacionado ao motivo de ter sucesso na disciplina Matemática, por que, no entendimento do grupo, eles alcançariam tal sucesso ao se apoiar em certezas matemáticas? Será que esse entendimento tem origem na tradição das aulas de matemática?

Essas questões podem nos levar a perguntas mais gerais, com desdobramentos para a prática de sala de aula e pesquisas. Ambientes de aprendizagem de modelagem na perspectiva da educação matemática crítica vão sempre conviver, em maior ou menor grau, com uma prática tradicional de matemática. Como acontece esse encontro? Que modelagem acontece quando a crítica convive com valores, nem sempre críticos, fortemente enraizados na sala de aula de matemática? Assim, acredito que estudos mais minuciosos desse tema merecem ser agendados por pesquisadores que se dedicam à modelagem na educação matemática.

Agradecimentos

Agradeço às Profas. Madalena Santos e Teresa Silva, da Universidade de Lisboa, pelas longas discussões, presenciais ou à distância, que instigaram-me às reflexões desenvolvidas no artigo. Agradeço, ainda, aos avaliadores e ao editor convidado desta edição temática do Bolema, Prof. Jonei Barbosa, pelas sugestões dadas à versão original.

Submetido em Outubro de 2010.

Aprovado em Janeiro de 2012.

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  • SKOVSMOSE, O. Towards a philosophy of critical mathematics education Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1994.
  • 1
    "[ ]
    the notion of critique suffered from a kind of 'domestication' in the field of education" (PAIS et al., 2010, p. 408).
  • 2
    "
    A mathematical framework is an important tool to deal with many central issues of our society [ ]" (D'AMBROSIO, 1999, p. 134).
  • 3
    "
    This set of capabilities is the first step toward an intellectual and critical posture [ ]" (D'AMBROSIO, 1999, p. 134).
  • 4
    "[ ]
    critical awareness of societya has [...]
    to include the awareness of the political uses of language. In the case of mathematics education this would imply the awareness of the ideological content of mathematical models: what is being left out in the mathematical model [ ]?" (MELLIN-OLSEN, 1987, p. 203).
  • 5
    Uma perspectiva sociocrítica de modelagem foi formulada por Barbosa (2003).
  • 6
    Linha Verde foi um projeto do governo do Estado de Minas Gerais que pretendia construir uma via de trânsito rápido ligando o centro de Belo Horizonte ao Aeroporto Tancredo Neves (Confins), cobrindo uma distância de 35,4 km.
  • 7
    Felipe Pereira Heitmann era, à época, aluno de Licenciatura em Matemática da UFMG e participava do desenvolvimento da pesquisa proposta por Araújo e Pinto (2004), com uma bolsa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 8
    Pesquisa de pós-doutorado realizada pela autora na Universidade de Lisboa, sob supervisão do Prof. João Filipe Matos, com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) do MEC, Brasil (Processo no. 0799/08-4).
  • 9
    O projeto de modelagem do grupo e o projeto do Governo do Estado de Minas Gerais têm o mesmo nome: Linha Verde. O contexto deixará claro de que projeto estarei falando em cada momento.
  • 10
    Fazendo uma busca na Internet, uma possibilidade que encontrei para o significado dessa sigla é
    Highway Capacity Manual (HCM). Veja, por exemplo,
  • 11
  • 12
    No Relatório do grupo há um erro de correspondência entre o número de anos decorridos e o ano propriamente dito. Esse erro foi corrigido na apresentação oral do grupo e, neste artigo, estou considerando a correspondência correta.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2012

    Histórico

    • Recebido
      Out 2010
    • Aceito
      Jan 2012
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