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Uma Interpretação Epistemológica do Processo de Modelagem Matemática: implicações para a matemática

An Epistemological Interpretation of the Mathematical Modeling Process: implications for mathematics

Resumos

Neste artigo, discutimos aspectos epistemológicos do processo de modelagem matemática motivados por uma análise da componente 'realidade' nesse processo. Descrições do processo de modelagem matemática, inspiradas pela matemática aplicada como método científico de pesquisa, são apresentadas, focando nelas a realidade a ser modelada, o que nos conduz em seguida a um desdobramento dessa componente do processo e subsequente análise epistemológica, diferenciando, notoriamente, a realidade inicial de uma pseudo-realidade, sendo, esta última, o objeto do conhecimento. Isso nos leva a uma releitura do referido processo, fundamentada em concepções de filosofia da ciência como realismo, estruturalismo e empirismo, que logo é adaptada ao estudo de situações matemáticas consideradas como a realidade inicial a ser modelada, permitindo uma visão semi-empírica da matemática, cujas consequências para a Educação Matemática são evidenciadas.

Modelagem Matemática; Epistemologia; Realidade; Pseudo-realidade; Experiência matemática


In this paper we discuss epistemological aspects of the mathematical modeling process motivated by an analysis of the component 'reality' in this process. Descriptions of the mathematical modeling process inspired by the applied mathematics as scientific method of research are presented, focusing on the reality to be modeled, which leads us to a deeper analysis of this component of the process and subsequent epistemological analysis, differentiating the initial reality from a pseudo-reality, the latter being the object of the knowledge. This leads us to a re-reading of the above-mentioned process, based on conceptions of the philosophy of science such as realism, structuralism and empiricism, which is adapted to the study of mathematical situations considered as the initial reality to be modeled, allowing a semi-empirical vision of the mathematics whose consequences for Mathematics Education are discussed.

Mathematical Modeling; Epistemology; Reality; Pseudo-reality; Mathematical experience


ARTIGOS

Uma Interpretação Epistemológica do Processo de Modelagem Matemática: implicações para a matemática

An Epistemological Interpretation of the Mathematical Modeling Process: implications for mathematics

José Carlos CifuentesI; Leônia Gabardo NegrelliII

IDoutor em Matemática pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor do Departamento de Matemática e do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e em Matemática da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. Endereço para correspondência: Departamento de Matemática, Universidade Federal do Paraná, Caixa Postal 19081, CEP: 81531-990, Curitiba, PR, Brasil, E-mail: jccifa@gmail.com

IIDoutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora do Departamento de Matemática da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Curitiba, PR, Brasil. Endereço para correspondência: Departamento de Matemática, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Câmpus Curitiba, Sede Central, Av. Sete de Setembro, 3165, CEP: 80230-901, Curitiba, PR, Brasil, E-mail: leoniagn@yahoo.com.br

RESUMO

Neste artigo, discutimos aspectos epistemológicos do processo de modelagem matemática motivados por uma análise da componente 'realidade' nesse processo. Descrições do processo de modelagem matemática, inspiradas pela matemática aplicada como método científico de pesquisa, são apresentadas, focando nelas a realidade a ser modelada, o que nos conduz em seguida a um desdobramento dessa componente do processo e subsequente análise epistemológica, diferenciando, notoriamente, a realidade inicial de uma pseudo-realidade, sendo, esta última, o objeto do conhecimento. Isso nos leva a uma releitura do referido processo, fundamentada em concepções de filosofia da ciência como realismo, estruturalismo e empirismo, que logo é adaptada ao estudo de situações matemáticas consideradas como a realidade inicial a ser modelada, permitindo uma visão semi-empírica da matemática, cujas consequências para a Educação Matemática são evidenciadas.

Palavras-Chave: Modelagem Matemática. Epistemologia. Realidade. Pseudo-realidade. Experiência matemática.

ABSTRACT

In this paper we discuss epistemological aspects of the mathematical modeling process motivated by an analysis of the component 'reality' in this process. Descriptions of the mathematical modeling process inspired by the applied mathematics as scientific method of research are presented, focusing on the reality to be modeled, which leads us to a deeper analysis of this component of the process and subsequent epistemological analysis, differentiating the initial reality from a pseudo-reality, the latter being the object of the knowledge. This leads us to a re-reading of the above-mentioned process, based on conceptions of the philosophy of science such as realism, structuralism and empiricism, which is adapted to the study of mathematical situations considered as the initial reality to be modeled, allowing a semi-empirical vision of the mathematics whose consequences for Mathematics Education are discussed.

Keywords: Mathematical Modeling. Epistemology. Reality. Pseudo-reality. Mathematical experience.

1 O problema epistemológico

A possibilidade de pensar matematicamente sobre questões físicas, artísticas, históricas ou sociais etc., é uma forma de manifestação do caráter interdisciplinar que o conhecimento construído pela humanidade apresenta na sua evolução. De modo recíproco, a possibilidade de pensar filosófica ou historicamente sobre a matemática tem contribuído para ampliar esse caráter, permitindo novas abordagens no pensamento matemático. A modelagem matemática é uma das atividades científicas e pedagógicas que favorecem essa prática interdisciplinar, possibilitam a colaboração entre matemáticos e especialistas de outras áreas do conhecimento e incentiva um ensino mais significativo da matemática.

No âmbito da Educação Matemática, muitas pesquisas sobre modelagem matemática estão voltadas mais para questões ligadas à ação dos agentes da modelagem: o professor, o aluno, e as diversas interações entre eles, do que para o próprio processo de modelar matematicamente uma situação ou um problema.

Do ponto de vista do processo, a modelagem matemática visa a elaboração/construção de um modelo matemático que descreva e/ou explique uma situação dita real, previamente delimitada. Para Dale Bean (2001, p. 55):

[...] a essência da modelagem matemática, definida como um processo de criar um modelo matemático baseado em hipóteses e aproximações simplificadoras [...] focaliza o processo matemático, enquanto as propostas para o ensino tratam questões metodológicas para conectar a Matemática aos interesses dos alunos. Embora distintos, os dois enfoques são importantes para o ensino e aprendizagem da matemática.

Por outro lado, para Anastácio:

[...] não é suficiente conhecer os passos na construção, análise e interpretação de um modelo matemático e suas diferentes aplicações. Faz-se necessário desenvolver nos alunos a capacidade de avaliar o processo de construção de modelo e os diferentes contextos de aplicação dos mesmos. (ANASTÁCIO, 1990, p. 97)

O que está implícito, em ambas as afirmações, é a existência de diversas etapas nesse processo que, ora com finalidade científica, ora pedagógica, são necessárias pôr em relevo para a devida compreensão do próprio processo e a percepção de seu alcance para a construção do conhecimento.

Estudos, ainda no âmbito da Educação Matemática, sobre diversos conceitos e etapas envolvidos no processo de modelar, sobre a natureza de seus elementos e procedimentos, são menos comuns. Conforme o documento preliminar de discussão da International Commission on Mathematical Instruction (ICMI), que trata de Aplicações e Modelagem na Educação Matemática e que concentra pesquisas internacionais nessa área (MUELLER, 2003), há uma demanda por pesquisas nessa direção, pesquisas que visem obter uma estrutura conceitual para a modelagem, na qual termos comumente utilizados, como problema e realidade, tenham a devida fundamentação (NEGRELLI, 2005). Essa demanda pode ser vista como uma necessidade de estudos sobre os fundamentos do processo de modelagem matemática, de modo que novos conhecimentos acerca da própria matemática e seu papel na constituição do conhecimento sobre o mundo sejam adquiridos. Nesse sentido, uma compreensão aprofundada da modelagem matemática também pode sugerir novas visões da própria matemática e auxiliar na aquisição de conhecimentos acerca de seus conceitos e métodos, fornecendo elementos para uma concepção, por parte do educador matemático e do aspirante a modelador matemático, do que seja o aprender a pensar matematicamente.

Bassanezi (2002) situa, dentre os argumentos para a inclusão de aspectos referentes à modelagem no ensino e aprendizagem de matemática, um argumento denominado intrínseco, segundo o qual se considera que "a inclusão de modelagem, resolução de problemas e aplicações fornecem ao estudante um rico arsenal para entender e interpretar a própria matemática em todas suas facetas" (Bassanezi, 2002, p. 37).

Ubiratan D'Ambrosio, no prefácio da obra de Bassanezi, intitulada "Ensino-aprendizagem com Modelagem Matemática", coloca que

[...] a modelagem matemática é matemática por excelência. As origens das idéias centrais da matemática são o resultado de um processo que procura entender e explicar fatos e fenômenos observados na realidade. O desenvolvimento dessas idéias e sua organização intelectual dão-se a partir de elaborações sobre representações do real. (BASSANEZI, 2002, p. 13)

Para nós, a modelagem matemática, além de ser matemática é, também, epistemologia, uma vez que os modelos matemáticos, por meio de um processo investigativo que não se limita ao senso comum, "visam entender e explicar fatos e fenômenos observados na realidade", conforme citação acima, isto é, o conhecimento e compreensão dessa realidade. Assim, a modelagem matemática é um processo que tem, também, caráter epistemológico, na medida em que permite a avaliação e crítica da produção do conhecimento científico, através da matemática, sobre o mundo, sobre a realidade.

Ao analisar, neste artigo, o processo de modelagem matemática de um ponto de vista epistemológico, pretendemos identificar as etapas nas quais a matemática intervém e qual sua relação com a linguagem matemática e com a lógica da solução de problemas.

Para este estudo, destacamos três etapas:

a) a identificação (ou percepção) de uma realidade inicial;

b) a construção de uma realidade intermediária entre a realidade inicial e o modelo proposto para ela, que chamaremos de pseudo-realidade, e;

c) a elaboração e avaliação do modelo propriamente.

Na análise das etapas, mostramos que a matemática não intervém apenas na elaboração do modelo, como indicado em (c), que é posterior à identificação de uma situação ou problema extraído da realidade (inicial). Se assim fosse, a matemática ensinada e aprendida por meio da modelagem poderia se reduzir a técnicas e conceitos. Na abordagem que propomos, a matemática presente na modelagem, e que pode ser ensinada e aprendida, vai além de técnicas e conceitos, envolve, também, segundo análise do item (b), atitudes, escolhas, intuição, ou seja, envolve um pensar matematicamente, que está presente em diversas abordagens da modelagem no âmbito da educação matemática, porém, sem a ênfase necessária.

Observamos, então, que a matemática intervém, também, na construção da pseudo-realidade, a que realmente é modelada, pois essa nova realidade se compõe de estruturas, sendo elas objetos matemáticos constituídos por relações, regularidades, simetrias etc.

Neste trabalho, optamos por não inserir as categorias realidade inicial e pseudo-realidade numa tradição filosófica, mas apresentá-las como categorias metodologicamente necessárias para conduzir a nossa argumentação. Podemos entender realidade inicial como o mundo exterior que, de alguma forma, pode ser observado e com o qual podemos experimentar.

A pergunta que mais interessa responder à modelagem matemática é a seguinte: o que podemos conhecer da realidade através da matemática?, que é o problema epistemológico, e não em que consiste essa realidade ou qual sua natureza, o problema ontológico, uma diferença muito sutil, mas que a nossa abordagem crítica pretende esclarecer.

Os exemplos apresentados inicialmente estão inspirados no processo de modelagem matemática proveniente da Matemática Aplicada, processo que pode ser considerado método do pensamento científico; neles, discutimos uma das componentes principais desse processo: a realidade a ser modelada e seu estatuto ontológico. Nossa análise nos conduz ao desdobramento dessa componente, como indicado acima em (a) e (b).

Mais ainda, como uma das principais contribuições desta pesquisa, adaptamos o processo ao estudo de situações tomadas do mundo platonista da matemática, considerando-as como realidades iniciais, passíveis de ser modeladas matematicamente, o que nos permite esboçar uma concepção plural de matemática, a que se revela de diversas formas nos diferentes momentos do processo de modelagem. Essa concepção pode ser considerada num sentido platonista, quando interpretada como realidade inicial; estruturalista, quando construída como pseudo-realidade, onde a intuição matemática é o guia, e formalista, quando realizada como modelo, formatado através de sistemas axiomáticos e suas lógicas subjacentes. Nesse processo, destacamos a experiência matemática como forma de acesso à realidade inicial e subsequente construção da pseudo-realidade.

A concepção plural da matemática, na medida em que provém de um processo intrinsecamente empírico, pode ser chamada de semi-empírica, o que a aproxima da concepção quase-empírica dada por Lakatos (1987). O caráter quase-empírico que Lakatos atribui a certas teorias científicas, e que depois adapta à matemática, vem expresso na seguinte citação:

O fato de um sistema dedutivo ser euclidiano ou quase-empírico, vem determinado pelo padrão de fluxo ou corrente do valor de verdade no sistema. O sistema é euclidiano se o fluxo característico é a transmissão da verdade desde o conjunto de axiomas [...] ao resto do sistema [...]; um sistema é quase-empírico se o fluxo característico é a retransmissão da falsidade desde os enunciados básicos falsos [...] até "as hipóteses." (LAKATOS, 1987, p. 48, tradução nossa)

Na próxima seção, a nossa proposta de interpretação do processo de modelagem matemática, dada pelas etapas mencionadas anteriormente, a identificação da realidade inicial, a construção da pseudo-realidade e a elaboração do modelo, dialoga com outras propostas que consideramos representativas, especialmente as discutidas em Bassanezi (2002) e Bean (2001).

2 Etapas do processo de modelagem matemática à luz do problema epistemológico

A atividade de modelagem é entendida, geralmente, como um movimento que parte do mundo dito real, focando uma situação específica desse mundo, fase inerente ao próprio método científico que envolve interpretações, intuições e crenças sobre esse mundo, e traduzindo-a em um modelo através de um processo de matematização. Assim, do ponto de vista da Matemática Aplicada, a modelagem matemática é concebida como um método científico de pesquisa que "alia teoria e prática, motiva seu usuário na procura do entendimento da realidade que o cerca e na busca de meios para agir sobre ela e transformá-la" (Bassanezi, 2002, p. 17). Na Educação Matemática, essa mesma concepção de modelagem é mantida em sua essência, passando por adaptações em função das necessidades pedagógicas de cada nível de ensino em que é abordada.

Para os nossos propósitos, as descrições do processo de modelagem matemática, inspiradas na visão tradicional dada pela Matemática Aplicada, fornecem um referencial para situar e analisar a componente realidade no referido processo, o que nos permite separá-lo de outras práticas relacionadas com a modelagem, pondo em relevo suas potencialidades epistemológicas e não apenas as pedagógicas.

Uma sequência de etapas a ser seguidas no processo de modelar uma situação ou problema real, e que tomamos como representativa, é exposta em (Bassanezi, 2002) nos seguintes termos.

A primeira etapa é a experimentação, na qual dados referentes a uma situação de interesse são coletados para, posteriormente, receberem um tratamento matemático. Notemos que, nesse primeiro momento, a observação e a experiência desempenham um papel fundamental, e vão direcionar as etapas posteriores. Aqui, já se manifesta o caráter empirista intrínseco da modelagem matemática.

A segunda etapa é a abstração, seu objetivo é obter modelos matemáticos para a situação ou problema explorados na etapa anterior. Para isso, o reconhecimento de variáveis e possíveis relações entre elas, o levantamento de hipóteses e o emprego adequado de algum tipo de linguagem permitirão a confecção, primeiro de um recorte daquela situação focada inicialmente, e, depois, a elaboração, sobre esse recorte, de modelos matemáticos propriamente ditos. Notemos que, nesta etapa, há construção de um recorte, que é um ato de interpretação, promovido por meio da elaboração de hipóteses que realizam simplificação na situação inicial. Sobre esse recorte se elabora o modelo matemático, o que sugere que ele, o recorte, também possui um status de realidade dado seu caráter semântico-interpretativo, a realidade a modelar.

A terceira etapa da descrição do processo de modelar, exposta em (BASSANEZI, 2002), é a resolução, que envolve a manipulação do modelo matemático e, uma vez que representa um problema levantado, demanda a busca por alguma solução. Podemos dizer que esta etapa solicita conhecimentos acerca de conceitos e métodos matemáticos, bem como outras habilidades relativas ao pensar matematicamente.

Na quarta etapa, denominada validação, os modelos são testados de modo a verificar se os mesmos dão conta dos fenômenos observados na primeira etapa, se as hipóteses empregadas para a produção de um recorte da situação focada inicialmente se revelaram adequadas, não produzindo simplificações excessivas, por exemplo.

A quinta e última etapa é a modificação, na qual há um retorno à situação inicial, de modo a confrontá-la com os resultados obtidos por meio da exploração do modelo matemático. Aqui, se necessário, podem ser avaliadas e modificadas as hipóteses que geraram a representação sobre a qual o modelo foi construído. Vemos que, nesta etapa revela-se o caráter dinâmico e de retro-alimentação do processo de modelar, o que denota, também, um indicativo de seu caráter aproximativo.

Acrescentamos a essa descrição do processo de modelar, proposta por Bassanezi, a colocação de Bean (2001), que reforça a ideia de produção de um recorte elaborado a partir de hipóteses e aproximações simplificadoras. A produção desse recorte é fase essencial na descrição epistemológica do processo de modelagem, servindo, inclusive, para diferenciá-lo de outros processos como a resolução de problemas, pois promove principalmente a formulação de perguntas, parte indispensável da lógica da modelagem, revelando o seu caráter qualitativo não-aristotélico. Segundo Bean (2001, p. 53),

[...] os aspectos que distinguem a modelagem matemática de outras aplicações de matemática são as exigências das hipóteses e das aproximações simplificadoras como requisitos na criação de modelos. As demais etapas o problema, a resolução e a verificação da matemática, a validação da solução e a decisão valem para qualquer tipo de solução de problema envolvendo matemática.

A descrição do processo de modelagem apresentada em (BASSANEZI, 2002), assim como outras descrições similares, esboça momentos característicos desse processo e, notoriamente, como vimos, a construção de uma nova realidade, a que de fato será modelada, é um desses momentos.

Portanto, dos pontos de vista epistemológico e metodológico, distinguimos, no processo de modelagem matemática, dois tipos de realidade: a realidade inicial, que é a que se nos apresenta para a observação e a experimentação, e a pseudo-realidade, que é construída, e que se constitui no próprio objeto do conhecimento. Assim, se assumirmos a máxima de que só é possível conhecer através de uma representação, a identificação da pseudo-realidade no processo de modelagem matemática pode ser entendida como um recurso (ou, em forma metafórica, como um par de óculos) epistemológico para a aquisição do conhecimento da realidade através daquela.

Na descrição dada por Bassanezi, a experimentação aparece como uma forma de acesso à realidade inicial, enquanto que a abstração constitui o processo que permeia a construção da pseudo-realidade. Se considerarmos as ideias de Bachelard (2000), a experimentação já é um passo na direção da construção da pseudo-realidade, pois supõe uma teorização sobre o que está sendo observado.

Para Bachelard, "O real imediato é um simples pretexto do pensamento científico e não mais um objeto de conhecimento" (2000, p. 14), e acrescenta:

[...] a observação tem necessidade de um corpo de precauções que levam a refletir antes de olhar, que reformam pelo menos a primeira visão, de maneira que nunca é a primeira observação que é a boa. A observação científica é sempre uma observação polêmica; [...] ela transcende o imediato; ela reconstrói o real após ter reconstruído seus esquemas. (2000, p. 18-19).

As ideias de Bachelard conduzem a uma melhor compreensão de nossa interpretação do processo de modelagem matemática, da experiência matemática, conforme exposto na última seção deste artigo.

3 Discussão sobre a ontologia da realidade inicial e da pseudo-realidade no processo de modelagem matemática

Em que consiste a realidade que é o ponto de partida no processo de modelagem matemática, isto é, qual é a sua ontologia?

De um ponto de vista um tanto ingênuo, podemos entender como realidade tudo o que existe. Esse pressuposto, que podemos considerar como uma hipótese de trabalho, permite-nos adotar a posição filosófica chamada de realismo empírico, que consiste no reconhecimento da existência das coisas independentemente do conhecimento que temos delas. À realidade empírica denominamos realidade inicial, a qual também pode ser entendida como o mundo exterior.

À modelagem matemática interessa transpor um problema dessa realidade para a matemática, com a finalidade de compreendê-la através da resolução desse problema, como colocado por Bassanezi (2002).

Porém, onde realmente reside o problema que será transposto para a matemática: na realidade inicial? Argumentamos que não. O momento intermediário entre a realidade inicial e o modelo, que consiste na construção da pseudo-realidade, é o momento da problematização. Assim, podemos entender por problematização o processo de construir a pseudo-realidade, processo propiciado pela elaboração de hipóteses e aproximações simplificadoras.

Para que a problematização ocorra são necessárias abstrações (o que nos lembra a descrição de Bassanezi), situando o problema em um outro plano que já não é o da realidade da qual se tratou inicialmente. A problematização pressupõe uma seleção de elementos daquela realidade inicial, os dados, passíveis de serem captados pela percepção e intuição do indivíduo, mas que, por tal motivo, supõe uma interpretação. Portanto, a problematização não é um processo puramente lógico. Novamente, ficam evidenciadas as características qualitativas do processo.

Essa percepção-interpretação da realidade, segundo Poincaré (1946), vem acompanhada de certos parâmetros de seleção como homogeneidade, simplicidade, regularidade, dentre outros, que, no fundo, têm um caráter de estrutura matemática, que integra parte da ontologia dessa pseudo-realidade.

Tais elementos se destacam a um primeiro olhar, sugerindo homogeneidade em um ambiente naturalmente complexo, e podem, então, revelar regularidades que permitem fazer previsões. A intuição matemática tem um papel fundamental nesse momento de seleção, o que revela o papel decisivo do sujeito epistêmico no processo de modelagem. Nessa etapa do processo, a intervenção do especialista na área onde se insere a realidade inicial pode ser relevante no auxílio da construção da pseudo-realidade.

A escolha de elementos constitui o primeiro passo na construção da pseudo-realidade, o que implica na elaboração de uma representação da realidade inicial, utilizando diversas linguagens, desde a natural, a natural enriquecida com elementos gráficos ou visuais, a matemática. É a linguagem que, dependendo de sua complexidade, vai nos dar limitações das possibilidades de conhecimento dessa realidade intermediária, uma vez que a realidade inicial não nos é possível conhecer, se admitirmos que não podemos conhecer nada além do que podemos expressar por meio de uma linguagem, parafraseando Wittgenstein (1968, p. 111) quando diz "os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo". Por exemplo, a linguagem natural, a linguagem natural enriquecida com figuras e esquemas, a linguagem algébrica, trazem diferentes níveis de complexidade que proporcionam aproximações em maior ou menor grau com a realidade inicial.

Na verdade, a linguagem convencionada permite uma simulação da realidade, contendo implicitamente uma simplificação da realidade. [...] Por outro lado, a formulação simplificada do contexto real global permite formular detalhes que seriam difíceis, quase impossíveis de serem destacados numa linguagem natural. O jogo de dois aspectos aparentemente contraditórios na reformulação do problema [...] está na essência do método científico e [...] deve ser um dos principais componentes do processo educacional. (D'Ambrosio, 1986, p. 65)

Novamente, Bean aponta que

a essência da modelagem matemática consiste em um processo no qual as características pertinentes de um objeto ou sistema são extraídas com a ajuda de hipóteses e aproximações simplificadoras, e representadas em termos matemáticos (o modelo). As hipóteses e as aproximações significam que o modelo criado por esse processo é sempre aberto à crítica e ao aperfeiçoamento. (BEAN, 2001, p. 53)

Pela citação anterior, Bean sugere, implicitamente, a ideia de uma pseudo-realidade ou realidade intermediária, no sentido que a colocamos, embora não a explicite. No entanto, para ele essa nova realidade já é parte do modelo procurado. Para nós, ainda não é. Nosso entendimento do processo de modelagem matemática prevê uma realidade inicial, posta, uma pseudo-realidade, construída e que será modelada, e o modelo. O estatuto ontológico da pseudo-realidade é um dos principais assuntos esclarecidos nesta proposta, e os exemplos a seguir visam contribuir com esse objetivo.

Um exemplo muito ilustrativo das duas primeiras etapas do processo de modelagem matemática é o estudo da trajetória de um projétil. Para esse estudo, podemos considerar como realidade inicial o ambiente terrestre, com toda sua complexidade natural, onde ocorre o lançamento do projétil (o mundo exterior).

Como hipóteses ou aproximações simplificadoras podemos ter, para um primeiro recorte:

a) o pressuposto de que a superfície terrestre é plana (uma situação limite, e não um caso particular);

b) o pressuposto de que a trajetória do projétil não sofre alteração devido ao atrito com a atmosfera (outra situação limite);

c) o pressuposto de que o próprio projétil é um ponto material (ainda outra situação limite); e

d) o pressuposto de que a ação da força de gravidade tem a mesma intensidade a qualquer altura; dentre outras.

Com esses pressupostos temos, como pseudo-realidade, um mundo onde a superfície terrestre é plana, onde não há atmosfera que possa produzir atrito etc., isto é, uma realidade construída e não dada. É ela que será modelada matematicamente.

Devemos salientar que as aproximações simplificadoras podem ser entendidas, em geral, como situações limites, como o exemplo esboçado acima mostra, situações que consideramos parte da constituição da pseudo-realidade, mas que não acontecem necessariamente na realidade inicial. A simplificação, então, não significa fazer um recorte elementar da realidade inicial, mas trazê-lo devidamente modificado da realidade, através de situações limites. Por exemplo, ao utilizarmos uma representação para a órbita dos planetas do sistema solar podemos adotar uma órbita circular, o que nos permite estudar o movimento desses astros em um determinado contorno. No entanto, a simplificação da órbita de modo a considerá-la circular é algo diverso ao que de fato ocorre, mas nos permite estudar os fenômenos planetários com certa aproximação.

Para os nossos propósitos é conveniente ressaltar que esse processo de simplificação, abstração ou problematização, de fato implica na explicitação de estruturas dadas pelas relações envolvidas nos fenômenos em estudo. Essa é uma visão estruturalista que nos conduz ao estabelecimento de uma ontologia da pseudo-realidade, permitindo-nos, então, dizer que o ser dela são as estruturas. Aliás, entendemos por estruturalismo a concepção de que a realidade construída é um conjunto formal de relações.

Podemos, ainda, entender por pseudo-realidade o dito por Dewey na seguinte afirmação, que tomaremos emprestada: "Na sua fórmula mais breve, a [pseudo-] realidade torna-se existência, qual gostaríamos que fosse depois que analisamos seus defeitos e decidimos quais devem ser eliminados" (ABBAGNANO, 2003, p. 833).

Assim como Dewey, outros autores apontam o problema da inacessibilidade do real, notoriamente Bachelard, para quem o acesso ao real vem carregado sempre de teoria, como mencionado anteriormente. No processo de modelagem matemática, a construção da pseudo-realidade é uma via de acesso à realidade inicial. A teoria (referida por Bachelard) que permite sua construção é a que norteia e revela a amplitude das hipóteses simplificadoras.

Notemos que, em função da necessidade epistemológica, além de metodológica, de constituição da pseudo-realidade, a modelagem matemática pode ser considerada uma atividade criadora: construir as situações limites e estruturas adequadas por meio das hipóteses e aproximações simplificadoras. Mais do que isso, na passagem da realidade inicial para a pseudo-realidade há, como já esboçado, um ato de interpretação que movimenta as capacidades de intuição, imaginação e criação do modelador, todas elas fazendo parte de uma forma de pensamento matemático mais largo que o puramente lógico, e que as tornam necessárias à modelagem matemática, não apenas do ponto de vista científico, senão também pedagógico.

4 A elaboração e avaliação do modelo matemático

A partir da identificação e desdobramento da componente realidade no processo de modelagem, propomos uma releitura desse processo na qual destacamos as três primeiras etapas: a consideração de uma realidade inicial, a construção de uma pseudo-realidade e a elaboração e avaliação de modelos para situações problematizadas nesta última.

Naturalmente, essas três etapas não dão conta do processo todo de modelagem matemática, que envolve, também, a solução de problemas e a modificação do modelo resultante do confronto dessa solução com a realidade na qual o problema foi levantado. O aperfeiçoamento do modelo conforme ele se mostre limitado ou surjam outras possibilidades de abordagem do mesmo, pode ser considerado como parte da avaliação do modelo.

Seguindo, então, o processo de simplificação iniciado na constituição da pseudo-realidade, buscamos uma nova representação, como terceira etapa do processo, ao se substituir a linguagem natural por uma linguagem matemática, mais adequada, rumo à elaboração do que chamaremos de modelo.

O modelo matemático finalmente obtido é (ou pode ser pensado como) uma teoria que, como em muitos casos de realidades não matemáticas, pode estar dada por uma coleção de equações de diversos tipos, por exemplo algébricas, diferenciais ou de diferenças, dependendo da complexidade do recorte a ser modelado, ou por uma coleção de sentenças que, como as equações, podem ser consideradas conjeturas (ou axiomas) sobre a realidade em estudo. Teoria formulada numa determinada linguagem e que tem uma lógica subjacente que, no caso de a teoria estar dada, por exemplo, por equações, pode constituir-se das regras e procedimentos que nos conduzem à resolução dessas equações.

Já no caso de a teoria estar dada por axiomas, podemos adotar, como lógica subjacente, a chamada lógica clássica ou alguma outra conveniente, sendo a dedução o procedimento geralmente utilizado para obter conclusões. Há uma visão formalista por trás desta interpretação de modelo como teoria.

Podemos entender as conjeturas como verdades provisórias, que se apresentam como respostas escondendo sua condição de perguntas.

No caso do fenômeno de lançamento de um projétil, um modelo a elaborar pode ser dado por meio de um conjunto de equações que descrevam a trajetória do projétil, ou por certas equações diferenciais que as tenham como soluções. Tais equações configuram relações entre as variáveis e/ou parâmetros escolhidos como relevantes para a descrição do recorte em estudo.

Essas equações, que constituem uma teoria para a trajetória do projétil, ainda nessa versão simplificada, devem ter suficiente generalidade para envolver muitos casos possíveis. Isso se consegue supondo que informações relevantes, por exemplo, a velocidade inicial e o ângulo de lançamento, são parâmetros que podem assumir valores relativamente arbitrários.

A avaliação do modelo nos faculta encontrar suas limitações e reformular as nossas hipóteses iniciais, dando a possibilidade de criar pseudo-realidades mais aprimoradas, talvez possamos dizer, mais próximas da realidade inicial, embora o grau de proximidade não possa ser definido satisfatoriamente, e só pode ser estimado em termos de suas consequências. Por exemplo, para o estudo da trajetória de um projétil de longo alcance ou de um satélite artificial, podemos partir da mesma realidade inicial identificada no caso do lançamento de um projétil, porém utilizando outras hipóteses simplificadoras. Assumindo, agora, que o ambiente terrestre é esférico, e que a força de gravidade depende da distância do projétil ao centro da terra, outra pseudo-realidade é confeccionada e outro modelo é elaborado, dado também por equações. Esse novo modelo, reparemos, deve ter como caso limite (e não como caso particular) o modelo mais simples construído anteriormente, pois a planaridade da terra é uma situação limite da situação da terra ser esférica que resulta de fazer crescer o seu raio indefinidamente.

Ainda, nesse novo modelo desconsidera-se, por exemplo, a rotação da terra, que pode ter efeitos observáveis, exigindo a elaboração de um modelo mais aperfeiçoado ainda.

Observa-se o caráter aproximativo do processo de modelagem matemática tanto na construção da pseudo-realidade como na elaboração do modelo matemático que a descreva.

O modelo é, então, uma forma de ver a realidade inicial (através do recorte dela) e é, também, um recurso epistemológico para a sua compreensão. Essa compreensão não significa, em princípio, atingir a verdade a respeito da realidade inicial, que talvez seja inacessível à teoria, mas, dado o caráter aproximativo do recorte, pode revelar o que em filosofia da ciência chama-se adequação empírica com os fenômenos estudados.

As relações, equações e/ou sentenças que constituem o modelo (teoria) podem ser consideradas conjeturas sobre a realidade em estudo. As conjeturas podem ser verdadeiras no âmbito da pseudo-realidade na qual elas foram criadas, embora não o sejam na realidade inicial na qual elas são interpretadas, o que traz à tona a questão da relação entre modelo e verdade, entre verdade e realidade.

Finalizaremos esta seção apontando que a concepção de modelo, aqui considerada, diferencia-se da que é usada na lógica matemática, especialmente na chamada teoria de modelos, na qual eles são realizações de uma teoria matemática: por exemplo, a geometria de Lobachevski, considerada como uma teoria axiomática, tem dois modelos ou realizações, o de Klein e o de Poincaré. Eles são interpretações dessa teoria, são suas realidades criadas a posteriori. Na modelagem matemática, é a teoria que é o modelo de suas realizações.

5 Modelos matemáticos de situações do mundo dito real

Nesta seção, e a modo de ilustração, discutimos, com certo detalhe, o exemplo dado por Bassanezi (2002) sobre o fenômeno de crescimento de uma espécie de peixe de origem africana, a tilápia do Nilo, e o método matemático de ajuste de curvas associado a ele, à luz das ideias desenvolvidas nas seções anteriores, ressaltando algumas de suas características.

Diferentes tipos de ajuste de curvas ou regressão são discutidos por Bassanezi (2002) como técnicas de elaboração de modelos. Segundo esse autor:

Uma regressão ou ajuste de curvas é um recurso formal para expressar alguma tendência da variável dependente y quando relacionada com a variável independente x. Em outras palavras, regressão é um mecanismo ou artifício que fornece uma relação funcional quando se tem uma relação estatística. (BASSANEZI, 2002, p. 54)

Por exemplo, a partir de uma representação gráfica, na qual estão associados aos pares os dados dentre os quais se pretende identificar a existência de correlação, podemos ajustar diferentes tipos de curvas (linhas de tendência), visando encontrar um modelo matemático que permita conhecer o comportamento dos dados dos quais se dispõe, bem como prever seu comportamento futuro. Para isso, "escolhemos, a priori, o tipo de curva que desejamos para expressar a relação funcional entre as variáveis. Este processo nem sempre satisfaz as condições mínimas exigidas para uma previsão do relacionamento futuro destas variáveis" (BASSANEZI, 2002, p. 55).

Nesse processo de ajuste de curvas podemos interpretar cada uma das possibilidades de ajuste aí discutidas (linear, quadrática, exponencial etc.) como modelando, ou seja, sendo um modelo de, uma pseudo-realidade previamente construída para se obter conhecimento acerca de uma realidade anterior. Essa pseudo-realidade é obtida a partir dos dados relativos às variáveis entre as quais se busca estabelecer uma relação funcional, relação que pode ser entendida como um modelo matemático para a pseudo-realidade recortada.

Assim,

em termos de modelagem matemática de fenômenos caracterizados por um processo dinâmico, a formulação do modelo pode muitas vezes preceder à análise dos dados experimentais. Nestes casos, o método de ajuste de curvas é fundamental para a validação dos modelos estabelecidos a priori. (BASSANEZI, 2002, p. 56)

Para o estudo do fenômeno de crescimento das tilápias podemos descrever as seguintes etapas:

a) Identificação da realidade inicial: é o fenômeno a ser estudado que, neste caso, é o crescimento das tilápias, tanto em comprimento como em peso, ao longo do tempo.

A pesquisa sobre a realidade inicial em estudo começa pela observação e experimentação, primeiros passos na direção da abstração necessária no processo de construção da pseudo-realidade, motivando a escolha dos parâmetros ou variáveis do sistema a ser estudado. Esse passo inicial geralmente resulta, após um processo de medição das variáveis envolvidas, numa tabela discreta de dados: a pseudo-realidade a ser modelada. Esses dados são chamados de relações estatísticas e a representação gráfica correspondente é chamada de gráfico de dispersão. A representação gráfica é parte da linguagem informal que permite definir o recorte.

b) Construção da pseudo-realidade: é um recorte dado, por exemplo, pela Tabela 1 de dados experimentais sobre as tilápias, e a correspondente curva de regressão, apresentada na Figura 1, expostas em (BASSANEZI, 2002, p. 52), e empregadas neste texto com algumas adaptações, que relaciona certas variáveis pertinentes ao problema: t = idade em semanas (não significa assumir t como variável discreta), l = comprimento médio em centímetros e p = peso médio em gramas.


Na Figura 1, l e p são variáveis de tipo contínuo, pois podem tomar qualquer valor real (não negativo).

c) Elaboração do modelo procurado: consiste em uma ou mais relações funcionais entre essas variáveis para compreender o fenômeno em consideração através do recorte dado em (b).

Dentre as relações funcionais, podemos procurar funções de dependência entre, por exemplo, l e p em função de t, ou p em função de l etc.

A escolha do tipo de relação funcional (linear, quadrática, exponencial etc.) pode ser, ainda, considerada como parte da pseudo-realidade construída. Por exemplo, no caso do gráfico de dispersão mostrado, a intuição sobre a natureza do fenômeno sugere a escolha a priori de uma equação tipo potência para a qual se supõe, por exemplo, p(0) = 0 e p crescente em relação a l.

d) Técnica de elaboração do modelo: para encontrar a relação de dependência comprimento/peso, p = p(l), no exemplo em análise, podemos sugerir, então, que o gráfico correspondente à tabela dada é da forma p(l) = bll, onde b e l são parâmetros a serem estimados.

Esses parâmetros tem, de fato, um significado biológico que o especialista em tilápias interpretará para esse problema (sabe-se que b está relacionado com a taxa de metabolismo dos peixes e l com a sua forma).

As relações funcionais procuradas, constituintes do modelo do fenômeno, são curvas de ajuste e expressam algumas tendências de uma das variáveis em relação à outra. Essas curvas são as que melhor se ajustam aos dados iniciais e permitem fazer previsões, preencher lacunas nos dados experimentais e apresentam-se como recurso para uma melhor compreensão da realidade em análise.

Para estimar os valores de b e λ na expressão p(l) = blλ, que melhor aproximem a equação ao fenômeno, é conveniente, neste caso, transformar essa equação numa linear, o que pode ser feito tomando logaritmos:

log p = log b + λlog l. Nesse caso, chamando de P = log p e L = log l, obtemos a seguinte equação linear P = log b + λL.

Os valores de log b e λ podem ser obtidos pelo método dos quadrados mínimos, que é um método matemático para obter a reta de ajuste dos dados transformados.

Obtemos, assim, a seguinte reta ajustada: P = 4,2067 + 3,103L, donde, substituindo na equação original, obtemos finalmente p = 0,0149 l 3,103.

Para completar o modelo do fenômeno em consideração, ainda seria necessário encontrar relações entre as variáveis p e l e o tempo t, o que daria um modelo discreto ou contínuo se a variável tempo for considerado de um tipo ou de outro.

Neste exemplo, observa-se muito claramente que a modelagem matemática não se reduz à aplicação de técnicas matemáticas de resolução de problemas, há toda uma sequência de raciocínios que misturam técnicas tanto qualitativas como quantitativas nesse processo.

6 Modelos matemáticos de situações matemáticas

O acesso ao conhecimento matemático é uma das funções da modelagem matemática na educação matemática, que não pode apenas se preocupar em ajudar a resolver problemas reais. Por meio da modelagem matemática, pode-se aprender matemática, aprender a pensar matematicamente, a identificar bases filosóficas e epistemológicas de determinadas abordagens, além de conhecer a fecundidade e as limitações dos próprios conceitos e métodos matemáticos (NEGRELLI, 2008).

Ao analisarmos de um ponto de vista epistemológico o processo de modelagem matemática, procuramos identificar, como já mencionado, as etapas nas quais a matemática intervém e qual sua relação com a linguagem matemática. Conforme exposto, a matemática não intervém apenas no modelo matemático elaborado, senão também na construção da pseudo-realidade, pois essa realidade intermediária, como já mostramos, está constituída por estruturas, sendo elas também objetos matemáticos, afinal lidam com relações, regularidades, simetrias etc.

Uma pergunta natural nesse momento é a seguinte: o que aconteceria se a nossa realidade inicial fosse a realidade matemática? Há um certo platonismo por trás dessa questão, isto é, há a pressuposição de que o mundo da matemática pode ser considerado, num momento inicial, como existente independentemente da nossa possibilidade de conhecê-lo, capaz de ser observado como uma realidade exterior.

Com esse pressuposto, nesta e na próxima seção adaptamos o processo de modelagem matemática, como descrito nas seções anteriores, ao estudo de situações matemáticas, considerando-as como uma realidade inicial a ser modelada matematicamente, o que nos conduzirá em forma natural a uma reinterpretação da própria matemática veiculada por uma concepção plural dela, de cunho semi-empirista, subjacente aos processos de modelagem matemática. Neste caso, apontamos a necessidade de distinguir a realidade matemática a ser modelada do modelo matemático que a descreva. O semi-empirismo mencionado reside nessa dualidade.

Tal concepção envolve conceitos próprios das ciências naturais, onde há uma realidade exterior a ser observada, inclusive através de experimentos elaborados para esse propósito, sendo muitas vezes mais importante que a obtenção de uma verdade, a adequação empírica entre os fenômenos observados e a teoria (ou modelo) construída para explicá-los. Um primeiro estudo nessa direção foi feito em Cifuentes e Negrelli (2007) e em Negrelli (2008).

Assim, podemos tomar agora como exemplo de realidade inicial matemática, e assumindo um ponto de vista platonista, a aritmética, entendendo esta como o universo dos números naturais com todas as suas operações, relações e propriedades inatas.

Dentre todas as possíveis operações que os números naturais comportam, escolhemos, fazendo um recorte adequado e visando construir uma pseudo-realidade a ser modelada matematicamente, aquelas que permitam formular um modelo, na forma de um sistema axiomático, para a compreensão parcial desse universo. Por exemplo, podemos escolher as operações de adição e multiplicação, ou a operação de sucessor, constituindo o que chamamos de estrutura de Peano padrão. Aqui, revela-se o momento estruturalista-construtivo do processo.

A estrutura de Peano padrão é, então, um sistema da forma (N, s, 0) onde N = {0, 1, 2, ...} e s é a função sucessor definida por s(n) = n + 1 para cada n em N.

Para essa estrutura, considerada como um recorte do mundo dos números naturais e, portanto, pensada como uma pseudo-realidade a ser modelada, é necessário elaborar uma teoria que sirva como modelo para descrevê-la. Teoria que, neste caso, consiste não de equações como na modelagem de muitas situações reais, senão de sentenças que capturem as que consideramos como verdades essenciais desse sistema, os axiomas (embora as equações também sejam sentenças numa linguagem possivelmente mais aprimorada). Peano estabeleceu uma tal coleção de sentenças conhecidas hoje como os axiomas de Peano. Assim, os axiomas de Peano constituem um modelo da estrutura de Peano padrão a qual, pela sua vez, é um recorte do mundo natural da aritmética.

Nesse caso, a pseudo-realidade, que antecede o modelo matemático (o sistema axiomático), é aquele submundo constituído pelos números naturais e as operações escolhidas.

Ainda, ressaltamos que do ponto de vista lógico deve ser discutida a linguagem matemática em que a teoria axiomática será expressa. No caso particular do modelo axiomático de Peano, essa linguagem pode ser de 1ª ordem ou de 2ª ordem, possibilitando ou não a existência de outras realidades (não isomorfas) que se adequem a esse modelo. A escolha dos axiomas e da lógica subjacente dizem respeito ao momento formalista do processo.

Um campo da matemática especialmente rico em suas características semi-empíricas é o chamado universo dos conjuntos. Dele podemos extrair diversos recortes, por exemplo, a chamada estrutura cumulativa V dos conjuntos sem urelementes, a qual ordena todos os conjuntos em uma hierarquia definida recursivamente. Para descrever essa estrutura podem ser montadas diversas teorias (modelos, na nossa concepção) dadas por sistemas axiomáticos como, por exemplo, os sistemas ZF de Zermelo-Fraenkel ou NBG de Von Neumann-Bernays-Gödel. Nessa abordagem axiomática do universo (recortado) dos conjuntos, são notórias diversas extensões desses sistemas, acrescentando axiomas que, na realidade, são conjeturas ou hipóteses, cuja verdade, ou melhor, plausibilidade depende de suas consequências. Assim, por exemplo, podemos acrescentar o axioma da escolha ou alguma de suas versões mais fracas, ou a hipótese do contínuo ou sua negação, ou ainda o chamado axioma de construtibilidade V = L que afirma que todos os conjuntos são definíveis na linguagem subjacente, assim como diversos axiomas que garantem a existência de certos números cardinais grandes como, por exemplo, os chamados cardinais inacessíveis.

A respeito desse exemplo, e debatendo com Gödel, Lakatos observa que:

[...] o empirismo de Gödel fica suavizado pela esperança de que se chegue a descobrir que os princípios da teoria de conjuntos são verdadeiros a priori. Gödel proclama que 'os axiomas [...] mostram claramente [...] que o sistema axiomático da teoria de conjuntos [...] pode complementar-se sem arbitrariedade por meio de novos axiomas que não fazem mais do que revelar o conteúdo do conceito de conjunto como explicado'. No entanto, Gödel não parece estar muito convencido da possibilidade de uma caracterização a priori do conceito de conjunto, como resulta evidente de suas observações quase-empiristas [...] e também pela perplexidade que mostra [ao afirmar] que o axioma de construtibilidade 'parece aportar um complemento natural aos axiomas da teoria de conjuntos, na medida em que determina de modo preciso a vaga noção de um conjunto arbitrariamente infinito'. (LAKATOS, 1987, p. 56, tradução nossa)

Salientamos, novamente, que o processo a ser seguido nas situações puramente matemáticas é, em certa forma, análogo ao da modelagem matemática de situações não matemáticas. Nessas novas situações podemos assumir, no início do processo, que existe, num sentido platonista, um mundo real matemático que se pretende modelar através de um modelo matemático dado, neste caso, por um sistema axiomático que é a teoria que descreve e/ou explica os fenômenos desse mundo em estudo. Nas situações puramente matemáticas o modelo axiomático faz o papel do sistema de equações para o caso da modelagem de um fenômeno físico.

Sugerimos, assim, que é possível fazer modelagem matemática ao interior da própria matemática, pretensão que exige que diferenciemos, teórica e metodologicamente, o mundo real matemático em estudo, onde a intuição age, do modelo matemático que o descreva, onde a lógica organiza.

7 A experiência matemática à luz da modelagem matemática

A experiência matemática, numa primeira abordagem, pode ser entendida como o acesso à realidade matemática, cuja existência, de um ponto de vista platonista, podemos considerar como dada.

Conforme a proposta de Bean (2001), a modelagem matemática, enquanto atividade complexa, está mais perto de uma ciência experimental, desde que se utiliza de noções como experiência, sistema, hipótese, aproximação etc. Portanto, ao adaptarmos o processo de modelagem matemática à descrição de realidades matemáticas, somos conduzidos a enxergar a própria matemática como uma ciência experimental.

Com Polya, podemos dizer que "[a Matemática] tem dois aspectos: é a rigorosa ciência de Euclides, mas é também uma outra coisa. A Matemática, apresentada da maneira euclidiana, revela-se uma ciência dedutiva, sistemática, mas a Matemática em desenvolvimento apresenta-se como uma ciência indutiva, experimental" (POLYA, 1986, p. VI).

Segundo Bruter, e em concordância com Polya, "A matemática é uma ciência de representação e de observação, uma ciência de manipulação, uma ciência hipotético-dedutiva, uma ciência de provas" (BRUTER, 1998, p. 31). E acrescenta: "A ciência entra na sua fase experimental quando começa a agir sobre os seus objetos de estudo. Esta fase é de natureza dinâmica. Ela diz respeito a dois aspectos essenciais da ciência: a descoberta de fatos e a sua explicação" (BRUTER, 1998, p. 35).

A aritmética pré-formal é desenvolvida classicamente como um campo de experiências, procurando regras para a solução dos problemas, usualmente através do uso de analogias. Com efeito, "Primeiro observamos alguma semelhança", diz Polya (1966, p. 27), no processo de observação procura-se alguma analogia.

A tradução de um contexto a outro, numa situação de analogia, pode ser considerada como uma manipulação dos objetos envolvidos para atribuir-lhes propriedades e verificá-las experimentalmente, experimento que pode ser mental. De fato, a analogia tem um papel importante na formulação de hipóteses ou conjeturas.

Por outro lado, segundo Euler, o conhecimento que se apóia na observação é obtido por indução, isto é, um raciocínio que vai do particular ao geral (POLYA, 1966, p. 25).

Esse caráter dinâmico de ciência experimental, típico da modelagem matemática, possibilita, então, observar a forma, a organização, a configuração ou estrutura, a estabilidade, a regularidade, a simetria (situações limites) na delimitação da pseudo-realidade, de fato, a observação já é um recorte da realidade como nos ensina Bachelard, para quem a atividade científica é uma síntese entre realismo e racionalismo (BACHELARD, 2000, p. 13).

Atualmente, um dos instrumentos mais importantes para a observação de fatos matemáticos é o computador. As imagens geradas por ele, usando diferentes softwares, permitem observar novos fenômenos matemáticos, fazendo possível a experimentação em matemática com representações gráficas para a elaboração de conjeturas.

Depois da observação de vários exemplos com a identificação de suas analogias vem a generalização, processo que só é possível a partir do particular, mesmo sendo abstrato. Uma conjetura já é a expressão de uma generalização.

Uma vez feita a generalização e elaborada uma conjetura, é preciso testa-la com outros casos, com outros exemplos, os quase-experimentos na denominação de Euler (POLYA, 1966, p. 27). Os diversos quase-experimentos, dando certo, apóiam a conjetura e sugerem procurar um padrão, ou norma (POLYA, 1966, p. 29). Esse padrão é parte essencial do modelo procurado.

A validação de um modelo matemático para uma situação física se dá com o experimento: só é válido aquilo que o experimento corrobora; no caso de uma situação matemática, a validação se dá com a coerência lógica: só é válido aquilo que pode ser demonstrado.

Concluímos, então, afirmando que dentro dessa concepção semi-empirista de matemática, com sua face experimental, na qual a intuição matemática é alimentada, e sua face lógica, na qual o conhecimento matemático é consolidado, é que colocamos a modelagem matemática de situações matemáticas.

A relevância de tal concepção, mais precisamente sua explicitação e discussão, para a Educação Matemática reside na possibilidade de enriquecer a formação inicial e continuada do professor de matemática através do fornecimento de novos olhares sobre os conteúdos matemáticos. De modo especial, sobre o método axiomático, que é uma forma tradicional de se apresentarem muitas das teorias que os futuros professores estudam e são consideradas indispensáveis à sua formação. Os sistemas axiomáticos fazem o papel dos modelos que descrevem as situações puramente matemáticas mencionadas acima.

Finalizamos, apontando a evidente possibilidade de adaptar a teoria de rupturas e obstáculos epistemológicos, introduzida originalmente por Bachelard para as ciências naturais (BACHELARD, 2003), para a ciência matemática, dado o paralelo entre ambas, traçado aqui.

Submetido em Outubro de 2010.

Aprovado em Janeiro de 2012.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Ago 2012

Histórico

  • Recebido
    Out 2010
  • Aceito
    Jan 2012
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