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Comparação do desempenho do SAPS 3 em pacientes com e sem tumor sólido admitidos a uma unidade de terapia intensiva no Brasil: um estudo de coorte retrospectiva

RESUMO

Objetivo:

Comparar o desempenho do Simplified Acute Physiology Score 3 (SAPS 3) em pacientes com e sem tumor sólido admitidos à unidade de terapia intensiva de um hospital oncológico.

Métodos:

Realizamos a análise de uma coorte retrospectiva em nossa base de dados administrativa da primeira admissão de pacientes adultos à unidade de terapia intensiva entre 2012 e 2016. Os pacientes foram classificados segundo a presença de tumor sólido. Avaliamos a discriminação utilizando a área sob a curva Características de Operação do Receptor (ASC COR) e a calibração com uso da abordagem com faixa de calibração.

Resultados:

Incluímos 7.254 pacientes (41,5% tinham câncer e 12,1% morreram durante a hospitalização). Os pacientes oncológicos tiveram maior mortalidade hospitalar do que os não oncológicos (respectivamente, 14,1% e 10,6%; p < 0,001). A discriminação do SAPS 3 foi melhor para os pacientes oncológicos (ASC COR = 0,85) do que para os não oncológicos (ASC COR = 0,79) (p < 0,001). Após aplicar a abordagem com faixa de calibração para pacientes oncológicos, o SAPS 3 atingiu as taxas médias observadas com intervalo de confiança de 95%. Em pacientes não oncológicos, o SAPS 3 superestimou a mortalidade nos pacientes com risco baixo a moderado. A calibração foi afetada pelo tempo apenas nos casos de pacientes não oncológicos.

Conclusão:

O SAPS 3 teve desempenho distinto para pacientes oncológicos e não oncológicos em nossa coorte de um único centro, observando-se variação (principalmente da calibração) ao longo do tempo. Esses achados devem ser levados em consideração ao avaliar o desempenho de escore de doença grave.

Descritores:
Escala fisiológica aguda simplificada; Prognóstico; Neoplasias; Unidades de terapia intensiva

ABSTRACT

Objective:

To compare the performance of the Simplified Acute Physiology Score 3 (SAPS 3) in patients with and without solid cancer who were admitted to the intensive care unit of a comprehensive oncological hospital in Brazil.

Methods:

We performed a retrospective cohort analysis of our administrative database of the first admission of adult patients to the intensive care unit from 2012 to 2016. The patients were categorized according to the presence of solid cancer. We evaluated discrimination using the area under the Receiver Operating Characteristic curve (AUROC) and calibration using the calibration belt approach.

Results:

We included 7,254 patients (41.5% had cancer, and 12.1% died during hospitalization). Oncological patients had higher hospital mortality than nononcological patients (14.1% versus 10.6%, respectively; p < 0.001). SAPS 3 discrimination was better for oncological patients (AUROC = 0.85) than for nononcological patients (AUROC = 0.79) (p < 0.001). After we applied the calibration belt in oncological patients, the SAPS 3 matched the average observed rates with a confidence level of 95%. In nononcological patients, the SAPS 3 overestimated mortality in those with a low-middle risk. Calibration was affected by the time period only for nononcological patients.

Conclusion:

SAPS 3 performed differently between oncological and nononcological patients in our single-center cohort, and variation over time (mainly calibration) was observed. This finding should be taken into account when evaluating severity-of-illness score performance.

Keywords:
Simplified acute physiology score; Prognostic; Neoplasms; Intensive care units

INTRODUÇÃO

Os escores de gravidade de doença são utilizados nos ambientes de unidade de terapia intensiva (UTI) em todo o mundo, para avaliação e monitoramento do desempenho, melhoria da qualidade e comparação.(11 Salluh JI, Soares M. ICU severity of illness scores: APACHE, SAPS and MPM. Curr Opin Crit Care. 2014;20(5):557-65.

2 Le Gall JR. The use of severity scores in the intensive care unit. Intensive Care Med. 2005;31(12):1618-23.
-33 Keegan MT, Soares M. What every intensivist should know about prognostic scoring systems and risk-adjusted mortality. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(3):264-9.) Desde sua primeira descrição nos anos 1980, desenvolveram-se muitos modelos prognósticos. Entretanto, dentre eles, o Simplified Acute Physiology Score 3 (SAPS 3) foi o único desenvolvido a partir de uma coorte multinacional (16.784 pacientes de 35 países).(44 Metnitz PG, Moreno RP, Almeida E, Jordan B, Bauer P, Campos RA, Iapichino G, Edbrooke D, Capuzzo M, Le Gall JR; SAPS 3 Investigators. SAPS 3--From evaluation of the patient to evaluation of the intensive care unit. Part 1: Objectives, methods and cohort description. Intensive Care Med. 2005;31(10):1336-44.,55 Moreno RP, Metnitz PG, Almeida E, Jordan B, Bauer P, Campos RA, Iapichino G, Edbrooke D, Capuzzo M, Le Gall JR; SAPS 3 Investigators. SAPS 3--From evaluation of the patient to evaluation of the intensive care unit. Part 2: Development of a prognostic model for hospital mortality at ICU admission. Intensive Care Med. 2005;31(10):1345-55.) No Brasil, Moralez et al. demonstraram recentemente que o SAPS 3 (equação padrão) persiste como o modelo prognóstico mais preciso.(66 Moralez GM, Rabello LS, Lisboa TC, Lima MD, Hatum RM, De Marco FV, Alves A, Pinto JE, de Araújo HB, Ramos GV, Silva AR, Fernandes GC, Faria GB, Mendes CL, Ramos Filho RA, de Souza VP, do Brasil PE, Bozza FA, Salluh JI, Soares M; ORCHESTRA Study Investigators. External validation of SAPS 3 and MPM0-III scores in 48,816 patients from 72 Brazilian ICUs. Ann Intensive Care. 2017;7(1):53.) Contudo, o desempenho dos escores de gravidade da doença podem ser diferentes em algumas instituições, em razão da mescla de casos e representatividade de subgrupos, como os pacientes oncológicos.

Como os intensivistas vem atendendo cada vez mais os pacientes oncológicos,(77 Azoulay E, Soares M, Darmon M, Benoit D, Pastores S, Afessa B. Intensive care of the cancer patient: recent achievements and remaining challenges. Ann Intensive Care. 2011;1(1):5.) são bem-vindos estudos que avaliem esses modelos prognósticos em pacientes críticos com câncer. Embora se tenham publicado diversos estudos em relação a esse tópico,(88 Soares M, Salluh JI. Validation of the SAPS 3 admission prognostic model in patients with cancer in need of intensive care. Intensive Care Med. 2006;32(11):1839-44.

9 Soares M, Silva UV, Teles JM, Silva E, Caruso P, Lobo SM, et al. Validation of four prognostic scores in patients with cancer admitted to Brazilian intensive care units: results from a prospective multicenter study. Intensive Care Med. 2010;36(7):1188-95.
-1010 Xing X, Gao Y, Wang H, Huang C, Qu S, Zhang H, et al. Performance of three prognostic models in patients with cancer in need of intensive care in a medical center in China. PLoS One. 2015;10(6):e0131329.) isso ocorreu há quase 10 anos, e, como previamente demonstrado, um fenômeno bem conhecido compromete o desempenho (principalmente a calibração) dos modelos prognósticos com o passar do tempo.(88 Soares M, Salluh JI. Validation of the SAPS 3 admission prognostic model in patients with cancer in need of intensive care. Intensive Care Med. 2006;32(11):1839-44.,1111 Zimmerman JE, Kramer AA, McNair DS, Malila FM. Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE) IV: hospital mortality assessment for today's critically ill patients. Crit Care Med. 2006;34(5):1297-310.) Nenhum desses estudos comparou o desempenho do modelo entre pacientes oncológicos e não oncológicos.

Assim, nossos objetivos, no presente estudo, foram avaliar o desempenho do SAPS 3 em pacientes com câncer admitidos em uma UTI, comparar o desempenho do escore nos pacientes com e sem câncer e estudar as tendências temporais do desempenho do SAPS 3.

MÉTODOS

Este foi um estudo de coorte retrospectiva de todos os pacientes consecutivamente admitidos à nossa UTI clínico-cirúrgica (uma UTI de 30 leitos no Hospital Sírio-Libanês, um hospital terciário privado com uma unidade oncológica dedicada, localizado em São Paulo, SP) e foi aprovado pelo comitê de ética local. Uma descrição detalhada da nossa unidade foi previamente publicada, a qual não se alterou durante o período do estudo.(1212 Rodrigues CM, Pires EM, Feliciano JP, Vieira JM Jr, Taniguchi LU. Admission factors associated with intensive care unit readmission in critically ill oncohematological patients: a retrospective cohort study. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(1):33-9.) Os critérios de exclusão foram idade inferior a 18 anos e gravidez. Se algum paciente tivesse mais de uma admissão durante o período de inclusão, só a primeira era incluída. Alguns pacientes deste estudo foram também incluídos em uma análise prévia de nosso grupo, referente a readmissões à UTI (1.702 pacientes).(1212 Rodrigues CM, Pires EM, Feliciano JP, Vieira JM Jr, Taniguchi LU. Admission factors associated with intensive care unit readmission in critically ill oncohematological patients: a retrospective cohort study. Rev Bras Ter Intensiva. 2016;28(1):33-9.)

Nossa análise utilizou dados administrativos que foram colhidos prospectivamente em um programa de base de dados na nuvem (Sistema Epimed™) por enfermeiros treinados.(1313 Zampieri FG, Soares M, Borges LP, Salluh JI, Ranzani OT. The Epimed Monitor ICU Database(r): a cloud-based national registry for adult intensive care unit patients in Brazil. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(4):418-26.) O período do estudo foi entre 1° de janeiro de 2012 e 31 de julho de 2016. A condição oncológica foi definida como qualquer paciente admitido com câncer sólido ativo (atualmente sob quimioterapia curativa ou paliativa, radioterapia, imunoterapia ou cirurgia) nos últimos 12 meses. Excluíram-se os pacientes hematológicos, por terem, em geral, características distintas comparativamente aos pacientes portadores de tumores sólidos (por exemplo, um maior ônus de doença ativa, necessidade de tratamento oncológico durante a permanência na UTI, tempo prolongado de neutropenia, maior intensidade da imunossupressão, transplante concomitante de medula óssea e maior incidência de complicações específicas, como infecções fúngicas e por citomegalovírus).

Os dados registrados incluíram idade, sexo, data da admissão à UTI, SAPS 3,(44 Metnitz PG, Moreno RP, Almeida E, Jordan B, Bauer P, Campos RA, Iapichino G, Edbrooke D, Capuzzo M, Le Gall JR; SAPS 3 Investigators. SAPS 3--From evaluation of the patient to evaluation of the intensive care unit. Part 1: Objectives, methods and cohort description. Intensive Care Med. 2005;31(10):1336-44.,55 Moreno RP, Metnitz PG, Almeida E, Jordan B, Bauer P, Campos RA, Iapichino G, Edbrooke D, Capuzzo M, Le Gall JR; SAPS 3 Investigators. SAPS 3--From evaluation of the patient to evaluation of the intensive care unit. Part 2: Development of a prognostic model for hospital mortality at ICU admission. Intensive Care Med. 2005;31(10):1345-55.) local de origem, diagnóstico de admissão, procedimentos cirúrgicos antes da admissão, índice de Charlson para comorbidades,(1414 Charlson ME, Pompei P, Ales KL, MacKenzie CR. A new method of classifying prognostic comorbidity in longitudinal studies: development and validation. J Chronic Dis. 1987;40(5):373-83.) utilização de recursos durante a permanência na UTI (ventilação mecânica, fármacos vasoativos ou terapia de substituição renal), condição oncológica (locorregional ou metastático) e mortalidade hospitalar. O SAPS 3 foi calculado utilizando os dados da admissão à UTI. Como recomendado, os valores faltantes foram codificados como “normal” para cada variável.(66 Moralez GM, Rabello LS, Lisboa TC, Lima MD, Hatum RM, De Marco FV, Alves A, Pinto JE, de Araújo HB, Ramos GV, Silva AR, Fernandes GC, Faria GB, Mendes CL, Ramos Filho RA, de Souza VP, do Brasil PE, Bozza FA, Salluh JI, Soares M; ORCHESTRA Study Investigators. External validation of SAPS 3 and MPM0-III scores in 48,816 patients from 72 Brazilian ICUs. Ann Intensive Care. 2017;7(1):53.)

Análise dos dados

Os dados paramétricos quantitativos foram apresentados como médias ± desvio padrão (DP). Os dados não paramétricos foram apresentados como medianas (faixa interquartis - IQR - 25% - 75%), e as variáveis categóricas foram apresentadas como percentagens. As variáveis categóricas foram comparadas utilizando o teste qui-quadrado.

O desfecho primário foi mortalidade hospitalar. A taxa de mortalidade estimada foi calculada utilizando a equação padrão para o SAPS 3. A discriminação do SAPS 3 foi avaliada utilizando a área sob a curva Característica de Operação do Receptor (ASC COR). As comparações entre as ASC CORs foram realizadas utilizando o método de Delong.(1515 DeLong ER, DeLong DM, Clarke-Pearson DL. Comparing the areas under two or more correlated receiver operating characteristic curves: a nonparametric approach. Biometrics. 1988;44(3):837-45.) A calibração foi avaliada utilizando o método de faixa de calibração, conforme descrito pelo GiViTI.(1616 Finazzi S, Poole D, Luciani D, Cogo PE, Bertolini G. Calibration belt for quality-of-care assessment based on dichotomous outcomes. PLoS One. 2011;6(2):e16110.) Esse método aplica uma função logística polinomial generalizada entre o desfecho e a transformação logit da probabilidade predita estimada, com os respectivos limites de intervalo de confiança (IC) de 95% e 80%. Um desvio estatisticamente significante do bissetor (a linha de calibração perfeita) ocorre quando os limites do IC95% da faixa de calibração não incluem o bissetor.(1616 Finazzi S, Poole D, Luciani D, Cogo PE, Bertolini G. Calibration belt for quality-of-care assessment based on dichotomous outcomes. PLoS One. 2011;6(2):e16110.) As taxas de mortalidade padronizadas (TMPs) com os respectivos IC95% foram calculadas pela divisão das taxas de mortalidade observada pela predita. O escore de Brier é uma medida geral de desempenho que foi calculada utilizando uma fórmula padrão.(1717 Steyerberg EW, Vickers AJ, Cook NR, Gerds T, Gonen M, Obuchowski N, et al. Assessing the performance of prediction models: a framework for traditional and novel measures. Epidemiology. 2010;21(1):128-38.) Para estudar as tendências temporais do desempenho do SAPS 3, dividimos a coorte em dois subgrupos segundo a data da admissão à UTI (em relação a 1° de outubro de 2014, para criar dois subgrupos com tamanhos similares).

Os dados foram analisados utilizando os programas IBM SPSS Statistics, versão 21 e R (http://www.r-project.org). Todos os dados estatísticos foram bicaudais, sendo o valor de p < 0,05 considerado estatisticamente significante.

RESULTADOS

Durante o período do estudo, ocorreram 8.345 admissões à UTI. Após exclusão de 846 readmissões e 945 pacientes hematológicos, restaram 7.390 pacientes. Entretanto, 136 pacientes (1,8%) não tinham registrada em nossa base de dados a condição quando da alta hospitalar. Assim, nossa coorte final do estudo compreendeu 7.254 pacientes (41,5% oncológicos). Os pacientes oncológicos eram mais jovens e tinham SAPS 3 mais baixo, foram mais frequentemente admitidos para cirurgia eletiva e tiveram mortalidade hospitalar mais elevada do que os não oncológicos (respectivamente, 14,1% e 10,6%; p < 0,001; Tabela 1).

Com a utilização da equação preditiva padrão SAPS 3, a TMP geral foi de 0,93 (IC95% 0,88 - 0,98) com o escore de Brier de 0,088 e ASC COR de 0,82 (IC95% 0,81 - 0,83). A análise com faixa de calibração demonstrou que o SAPS 3 tendeu a superestimar a mortalidade em toda nossa coorte de pacientes (Tabela 2).

Tabela 1
Características gerais dos pacientes incluídos
Tabela 2
Comparação do desempenho do Simplified Acute Physiology Score 3 em todos os pacientes, em subgrupos de pacientes oncológicos e não oncológicos

Comparação do desempenho do SAPS 3 em pacientes oncológicos e não oncológicos

A discriminação do SAPS 3 foi mais alta para pacientes oncológicos do que para não oncológicos (p < 0,001; Tabela 2). A análise com faixa de calibração demonstrou que, em pacientes oncológicos, não se observou qualquer calibração inadequada. Entretanto, em pacientes não oncológicos, o SAPS 3 superestimou a mortalidade nos pacientes com risco predito baixo a moderado (Figura 1).

Figura 1
Faixa de calibração para Simplified Acute Physiology Score 3 em pacientes oncológicos (A) e não oncológicos (B), descrito como intervalos de desvio do bissetor. Intervalos de mortalidade prevista, nos quais o faixa de calibração se desvia significantemente do bissetor e os níveis de confiança de 80% e 95% são descritos na região inferior direita dos gráficos. SAPS 3 - Simplified Acute Physiology Score 3.

Avaliação da tendência temporal

A frequência de pacientes oncológicos não se alterou entre os dois períodos avaliados (1.498 de 3.542 pacientes, ou seja, 42,3% versus 1.510 de 3.712 pacientes, ou seja, 40,7%; p = 0,16). A discriminação do SAPS 3 não foi afetada entre os subgrupos por período (Figura 2). A análise com faixa de calibração mostrou ausência de calibração inadequada no subgrupo oncológico de pacientes em qualquer dos períodos. Contudo, no grupo não oncológico, observaram-se infracalibração no primeiro período e supracalibração no segundo período (Figura 3 e Tabela 3).

Figura 2
Área sob as curvas Características de Operação do Receptor para Simplified Acute Physiology Score 3 em pacientes oncológicos (parte superior) e não oncológicos (parte inferior). Os subgrupos foram divididos por período em que ocorreu admissão à unidade de terapia intensiva (primeira e segunda metade).

Figura 3
Faixa de calibração para Simplified Acute Physiology Score 3 em pacientes oncológicos (A e C) e não oncológicos (B e D), descrito como intervalos de desvio do bissetor. Os intervalos de mortalidade prevista, nos quais a faixa de calibração se desvia significantemente do bissetor, e níveis de confiança de 80% e 95% estão descritos na região inferior direita dos gráficos. Os subgrupos foram divididos por período da admissão à unidade de terapia intensiva (primeiro período A e B, segundo período C e D). SAPS 3 - Simplified Acute Physiology Score 3.

Tabela 3
Desempenho do Simplified Acute Physiology Score 3 para pacientes oncológicos em comparação com não oncológicos no primeiro e segundo períodos

DISCUSSÃO

Nesta coorte retrospectiva, avaliamos o desempenho do SAPS 3 em pacientes críticos oncológicos e não oncológicos. Identificamos que a discriminação e calibração do SAPS 3 foram precisas para pacientes oncológicos em nossa coorte, a discriminação foi maior e a calibração mais precisa para pacientes oncológicos do que para não oncológicos, e a calibração só foi afetada pelo tempo no caso de pacientes não oncológicos.

Recentemente, Moralez et al. publicaram o maior estudo de validação de escore de gravidade no Brasil, utilizando dados contemporâneos de uma coorte multicêntrica.(66 Moralez GM, Rabello LS, Lisboa TC, Lima MD, Hatum RM, De Marco FV, Alves A, Pinto JE, de Araújo HB, Ramos GV, Silva AR, Fernandes GC, Faria GB, Mendes CL, Ramos Filho RA, de Souza VP, do Brasil PE, Bozza FA, Salluh JI, Soares M; ORCHESTRA Study Investigators. External validation of SAPS 3 and MPM0-III scores in 48,816 patients from 72 Brazilian ICUs. Ann Intensive Care. 2017;7(1):53.) Os autores demonstraram que a equação padrão do SAPS 3 foi precisa na predição dos desfechos em nosso país, dando suporte à iniciativa nacional da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) para comparação (benchmarking) entre unidades.(1818 Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB). UTIs brasileiras. Registro Nacional de Terapia Intensiva [internet]. [citado 2019 out 01]. Disponível em http://www.utisbrasileiras.com.br/
http://www.utisbrasileiras.com.br/...
) Entretanto, a variação da mescla de casos entre as unidades pode levar a uma deterioração do desempenho.(1919 Keegan MT, Gajic O, Afessa B. Severity of illness scoring systems in the intensive care unit. Crit Care Med. 2011;39(1):163-9.) Um subgrupo de particular interesse é o dos pacientes oncológicos críticos, porque 15% dos pacientes admitidos às UTIs europeias têm câncer.(2020 Taccone FS, Artigas AA, Sprung CL, Moreno R, Sakr Y, Vincent JL. Characteristics and outcomes of cancer patients in European ICUs. Crit Care. 2009;13(1):R15.)

Algumas publicações prévias avaliaram o desempenho do SAPS 3 em pacientes oncológicos.(88 Soares M, Salluh JI. Validation of the SAPS 3 admission prognostic model in patients with cancer in need of intensive care. Intensive Care Med. 2006;32(11):1839-44.

9 Soares M, Silva UV, Teles JM, Silva E, Caruso P, Lobo SM, et al. Validation of four prognostic scores in patients with cancer admitted to Brazilian intensive care units: results from a prospective multicenter study. Intensive Care Med. 2010;36(7):1188-95.
-1010 Xing X, Gao Y, Wang H, Huang C, Qu S, Zhang H, et al. Performance of three prognostic models in patients with cancer in need of intensive care in a medical center in China. PLoS One. 2015;10(6):e0131329.) Em geral, esses estudos sugerem que o escore é preciso tanto em termos de discriminação quanto de calibração, conforme demonstrado por nossa base de dados. Esse achado é reconfortante, já que os pacientes oncológicos são, em geral, mal representados nas coortes de desenvolvimento (8% da coorte original do SAPS 3).(44 Metnitz PG, Moreno RP, Almeida E, Jordan B, Bauer P, Campos RA, Iapichino G, Edbrooke D, Capuzzo M, Le Gall JR; SAPS 3 Investigators. SAPS 3--From evaluation of the patient to evaluation of the intensive care unit. Part 1: Objectives, methods and cohort description. Intensive Care Med. 2005;31(10):1336-44.,55 Moreno RP, Metnitz PG, Almeida E, Jordan B, Bauer P, Campos RA, Iapichino G, Edbrooke D, Capuzzo M, Le Gall JR; SAPS 3 Investigators. SAPS 3--From evaluation of the patient to evaluation of the intensive care unit. Part 2: Development of a prognostic model for hospital mortality at ICU admission. Intensive Care Med. 2005;31(10):1345-55.) Entretanto, a mortalidade hospitalar de pacientes críticos com câncer depende mais da condição aguda do que da presença de características da própria doença oncológica.(2020 Taccone FS, Artigas AA, Sprung CL, Moreno R, Sakr Y, Vincent JL. Characteristics and outcomes of cancer patients in European ICUs. Crit Care. 2009;13(1):R15.,2121 Schellongowski P, Sperr WR, Wohlfarth P, Knoebl P, Rabitsch W, Watzke HH, et al. Critically ill patients with cancer: chances and limitations of intensive care medicine-a narrative review. ESMO Open. 2016;1(5):e000018.) Assim, os escores gerais de gravidade da doença devem captar a maior parte do prognóstico em curto prazo dessa população.

Uma abordagem nova, no presente estudo, foi a comparação do desempenho do SAPS 3 em pacientes oncológicos com o desempenho em pacientes não oncológicos. Observamos que esse escore foi superior em pacientes oncológicos admitidos à UTI, em termos de discriminação e calibração. Até onde sabemos, este foi o primeiro estudo a comparar esses subgrupos em uma mesma coorte. As razões para essa observação não são claras, porém salientam a importância das diferenças, em termos de mescla de casos entre as unidades, e, como isso, podem afetar as comparações entre modelos.

Outra observação relevante foi o efeito do tempo nos componentes do desempenho. A calibração é particularmente suscetível às tendências temporais. Zimmerman et al. demonstraram que a discriminação do Acute Physiology And Chronic Health Evaluation (APACHE) IV foi robusta e mudou pouco durante o período avaliado, porém a calibração se deteriorou na população geral de UTI.(1111 Zimmerman JE, Kramer AA, McNair DS, Malila FM. Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE) IV: hospital mortality assessment for today's critically ill patients. Crit Care Med. 2006;34(5):1297-310.) Soares et al. também demonstraram essa deterioração em sua análise temporal da calibração do SAPS 3 em pacientes oncológicos.(88 Soares M, Salluh JI. Validation of the SAPS 3 admission prognostic model in patients with cancer in need of intensive care. Intensive Care Med. 2006;32(11):1839-44.) Novamente, observamos diferentes efeitos na análise da tendência temporal em pacientes oncológicos em comparação com não oncológicos. Não se observou calibração inadequada nos pacientes oncológicos em qualquer dos períodos. Entretanto, nos pacientes não oncológicos, não apenas ocorreu calibração inadequada, como esta se moveu de subestimação para superestimação entre o primeiro e o segundo período avaliados. Especulamos que modificações na prática clínica afetaram principalmente os pacientes não oncológicos, mas essa sugestão pode ser excessivamente simplista. Viés de seleção na pré-admissão à UTI e práticas relacionadas ao final da vida podem ter também afetado a calibração.

Nosso estudo tem alguns pontos fortes, como uma amostra grande, que permitiu a realização de análises de subgrupos geradoras de hipóteses (pacientes oncológicos versus não oncológicos) que não tinham sido antes realizadas. Nosso estudo também avaliou um escore validado nas mesmas condições que em estudos prévios em pacientes oncológicos, assim como ocorreu em uma das maiores coortes de validação externa.(66 Moralez GM, Rabello LS, Lisboa TC, Lima MD, Hatum RM, De Marco FV, Alves A, Pinto JE, de Araújo HB, Ramos GV, Silva AR, Fernandes GC, Faria GB, Mendes CL, Ramos Filho RA, de Souza VP, do Brasil PE, Bozza FA, Salluh JI, Soares M; ORCHESTRA Study Investigators. External validation of SAPS 3 and MPM0-III scores in 48,816 patients from 72 Brazilian ICUs. Ann Intensive Care. 2017;7(1):53.) Contudo, este estudo também teve limitações. Primeiramente, trata-se de uma coorte em um único centro. Nossos resultados refletem a prática local e nossa mescla de casos (o que limita a possibilidade de generalizar os achados). Entretanto, alguns dos resultados concordam com os encontrados em estudos prévios. Em segundo lugar, o estudo teve um longo período de coleta de dados. Embora esse fator possa ter afetado a avaliação global do desempenho, isso foi necessário para permitir a análise de diferentes períodos. Finalmente, decisões referentes ao final da vida não foram anotadas de forma sistemática em nossa base de dados.

CONCLUSÃO

A discriminação do SAPS 3 foi melhor para pacientes oncológicos do que para não oncológicos. O SAPS 3 não mostrou desvios importantes da calibração ideal em pacientes oncológicos. Em nossa coorte em um único centro, o desempenho do SAPS 3 (principalmente a calibração) variou ao longo do tempo de forma diferente, segundo a condição oncológica.

  • FINANCIAMENTO
    Este trabalho teve apoio financeiro local do Hospital Sírio-Libanês, São Paulo, SP

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Editado por

Aviso legal: Dr. Taniguchi, Editor de Seção da Revista Brasileira de Terapia Intensiva, não se envolveu na avaliação e nem na decisão de publicar este artigo. Dr. Taniguchi recebeu recursos financeiros por palestras ministradas para a empresa Nestlé.
Editor responsável: Márcio Soares

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2020
  • Aceito
    05 Abr 2020
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