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Lactato é O alvo para ressuscitação precoce na sepse

INTRODUÇÃO

A ressuscitação de pacientes com sepse é um desafio, por uma série de razões. Uma questão importante é: qual o tipo de ressuscitação que cada um necessita? Nas atuais diretrizes, a ressuscitação é direcionada principalmente para pacientes com elevado risco de mortalidade. Nesta revisão, discutiremos o valor da utilização dos níveis de lactato para identificar pacientes que podem se beneficiar do tratamento e como utilizar níveis sequenciais de lactato neste processo.

O CENÁRIO CLÍNICO

Embora na diretriz Surviving Sepsis Campaign tenha sido defendido que o lactato é um marcador de hipoperfusão tissular quando acima de 1,0mmol/L,(11 Dellinger RP, Levy MM, Rhodes A, Annane D, Gerlach H, Opal SM, Sevransky JE, Sprung CL, Douglas IS, Jaeschke R, Osborn TM, Nunnally ME, Townsend SR, Reinhart K, Kleinpell RM, Angus DC, Deutschman CS, Machado FR, Rubenfeld GD, Webb SA, Beale RJ, Vincent JL, Moreno R; Surviving Sepsis Campaign Guidelines Committee including the Pediatric Subgroup. Surviving sepsis campaign: international guidelines for management of severe sepsis and septic shock: 2012. Crit Care Med. 2013;41(2):580-637.) só se recomenda ressuscitação hídrica agressiva para pacientes com níveis de lactato acima de 4,0mmol/L, por sua associação com mortalidade elevada.(22 Casserly B, Phillips GS, Schorr C, Dellinger RP, Townsend SR, Osborn TM, et al. Lactate measurements in sepsis-induced tissue hypoperfusion: results from the Surviving Sepsis Campaign database. Crit Care Med. 2015;43(3):567-73.) No entanto, a origem da hiperlactatemia e seu tratamento podem ser mais complexos. Primeiramente, é importante compreender que a hipoperfusão tissular não provoca aumento do lactato, até que a diminuição do fornecimento de oxigênio aos tecidos (como efeito da hipoperfusão) atinja um ponto crítico, no qual ele é insuficiente para atender a demanda tissular de oxigênio, de forma que ocorre disóxia celular e que os níveis de lactato sobem.(33 Cecconi M, De Backer D, Antonelli M, Beale R, Bakker J, Hofer C, et al. Consensus on circulatory shock and hemodynamic monitoring. Task force of the European Society of Intensive Care Medicine. Intensive Care Med. 2014;40(12):1795-815.) Em segundo lugar, como a capacidade de depuração do fígado quase desaparece durante a sepse,(44 Tapia P, Soto D, Bruhn A, Alegría L, Jarufe N, Luengo C, et al. Impairment of exogenous lactate clearance in experimental hyperdynamic septic shock is not related to total liver hypoperfusion. Crit Care. 2015;19(1):188.) níveis persistentemente elevados de lactato podem não estar relacionados à disóxia tissular. Finalmente, outros fatores na sepse podem contribuir para o aumento dos níveis de lactato, mesmo fornecendo oxigênio adequadamente aos tecidos.(55 Bakker J, Nijsten MW, Jansen TC. Clinical use of lactate monitoring in critically ill patients. Ann Intensive Care. 2013;3(1):12.) Não obstante, o lactato é um importante marcador da resposta do paciente ao tratamento iniciado. Em TODAS as formas de falência circulatória aguda, uma diminuição dos níveis de lactato se associa com um desfecho mais favorável.(66 Vincent JL, Quintairos E Silva A, Couto L Jr, Taccone FS. The value of blood lactate kinetics in critically ill patients: a systematic review. Crit Care. 2016;20(1):257.) Assim, a partir destas considerações, podemos tirar nossa primeira conclusão: se os níveis de lactato NÃO diminuírem após o início do tratamento, há algo de errado.

Embora exista uma série de razões pelas quais pacientes com sepse possam ter aumento de seus níveis de lactato, no quadro inicial destes pacientes a causa mais provável é o fornecimento inadequado de oxigênio. Esta é também a única causa que podemos tratar de forma efetiva, quando pudermos excluir intoxicações, erros inatos do metabolismo e outras causas metabólicas de aumento dos níveis de lactato.(55 Bakker J, Nijsten MW, Jansen TC. Clinical use of lactate monitoring in critically ill patients. Ann Intensive Care. 2013;3(1):12.) O tratamento inicial da hiperlactatemia em pacientes com sepse deve ser direcionado à melhora do fornecimento tissular de oxigênio. Isto é obtido de forma mais efetiva quando se melhora o fluxo sanguíneo global, com o objetivo de melhorar a perfusão microcirculatória. Outras medidas que podem ser simultaneamente adotadas são a melhora da saturação arterial de oxigênio, a melhora dos níveis de hemoglobina e a diminuição da demanda de oxigênio. Quando iniciado imediatamente na admissão do paciente à unidade de terapia intensiva (UTI), este conjunto de medidas não apenas diminui de forma eficiente os níveis de lactato, como também melhora em 20% a taxa de sobrevivência.(77 Jansen TC, van Bommel J, Schoonderbeek FJ, Sleeswijk Visser SJ, van der Klooster JM, Lima AP, Willemsen SP, Bakker J; LACTATE study group. Early lactate-guided therapy in intensive care unit patients: a multicenter, open-label, randomized controlled trial. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(6):752-61.) Embora os pacientes deste último estudo tivessem o lactato em níveis ≥ 3,0mmol/L, é concebível que pacientes com níveis mais baixos também possam beneficiar-se, já que níveis de lactato entre 2,0 e 3,9mmol/L em pacientes com suspeita de infecção se associam com níveis significantes de mortalidade, mesmo na ausência de hipotensão.(88 Puskarich MA, Illich BM, Jones AE. Prognosis of emergency department patients with suspected infection and intermediate lactate levels: a systematic review. J Crit Care. 2014;29(3):334-9.) O conceito de utilização do pacote de medidas do estudo de Jansen et al.(77 Jansen TC, van Bommel J, Schoonderbeek FJ, Sleeswijk Visser SJ, van der Klooster JM, Lima AP, Willemsen SP, Bakker J; LACTATE study group. Early lactate-guided therapy in intensive care unit patients: a multicenter, open-label, randomized controlled trial. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(6):752-61.) apenas no período inicial da ressuscitação (nas primeiras 8 horas após admissão à UTI) foi recentemente confirmado em estudo realizado em sobreviventes de choque séptico. Hernandez et al.(99 Hernandez G, Luengo C, Bruhn A, Kattan E, Friedman G, Ospina-Tascon GA, et al. When to stop septic shock resuscitation: clues from a dynamic perfusion monitoring. Ann Intensive Care. 2014;4:30.) avaliaram a taxa de normalização do lactato e demonstraram a existência de uma curva bifásica. Nas primeiras 6 horas, os níveis de lactato se normalizaram rapidamente após início do tratamento. Na segunda fase (até 24 horas), a normalização foi muito mais lenta. Ao final, 50% dos pacientes (todos sobreviventes) tinham aumento dos níveis de lactato 24 horas após iniciarem o tratamento. Os autores especularam que, no começo da evolução da sepse, os níveis aumentados de lactato respondem rapidamente às melhoras do fornecimento de oxigênio aos tecidos (que é o principal efeito do aumento do débito cardíaco, por meio da ressuscitação hídrica, e da melhora da pressão de perfusão, pelo uso de vasopressores). Esta fase pode, então, representar uma fase da hiperlactatemia dependente do fluxo, enquanto na fase tardia os níveis aumentados de lactato são, provavelmente, mais relacionados a outros fatores. Isto permite uma segunda conclusão a respeito do uso dos níveis de lactato em pacientes com sepse: níveis aumentados de lactato devem ser vistos como a consequência de oxigenação tissular inadequada apenas durante um tempo limitado, na fase inicial da sepse. Além disto, levar o paciente a níveis normais de lactato com continuação da ressuscitação da perfusão/oxigenação tissular pode não mais ser eficaz.

O objetivo último da ressuscitação é restaurar a perfusão microcirculatória, e não a macro-hemodinâmica.(1010 Dünser MW, Takala J, Brunauer A, Bakker J. Re-thinking resuscitation: leaving blood pressure cosmetics behind and moving forward to permissive hypotension and a tissue perfusion-based approach. Crit Care. 2013;17(5):326.) No entanto, as diretrizes e os protocolos atuais ainda são principalmente direcionados a parâmetros macrocirculatórios, como a pressão arterial, e à utilização de ressuscitação hídrica agressiva. Embora estudos recentes a respeito do uso precoce de terapia guiada por meta (TGM) não tenham demonstrado benefícios em comparação ao tratamento usual,(1111 Angus DC, Barnato AE, Bell D, Bellomo R, Chong CR, Coats TJ, et al. A systematic review and meta-analysis of early goal-directed therapy for septic shock: the ARISE, ProCESS and ProMISe Investigators. Intensive Care Med. 2015;41(9):1549-60.) devemos reconhecer que a ressuscitação nos pacientes com sepse já mudou significativamente. Nos recentes estudos de TGM, a ressuscitação hídrica já foi realizada na maior parte dos pacientes. Mesmo no estudo de Jansen et al.(77 Jansen TC, van Bommel J, Schoonderbeek FJ, Sleeswijk Visser SJ, van der Klooster JM, Lima AP, Willemsen SP, Bakker J; LACTATE study group. Early lactate-guided therapy in intensive care unit patients: a multicenter, open-label, randomized controlled trial. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(6):752-61.) sobre lactato, os níveis desta substância tiveram exatamente a mesma trajetória daqueles obtidos nos pacientes do grupo controle, a despeito do fato de que a equipe terapêutica não estava ciente dos níveis reais. Isto traz à cena uma questão importante: se os níveis de lactato não foram diferentes entre os dois grupos, por que os pacientes no grupo guiado por lactato tiveram melhores taxas de sobrevivência? Não se identificaram muitas diferenças nas variáveis coletadas no estudo que pudessem explicar este efeito. Em média, os pacientes no grupo, segundo o protocolo, foram tratados com cerca de 500mL de fluidos a mais durante o período de tratamento, e mais de 1L a menos durante o período de observação (8 - 72 horas após o início do tratamento). Além disto, o uso de nitroglicerina para melhorar a perfusão microcirculatória, conforme exigido pelo protocolo, foi mais presente no grupo segundo o protocolo do que no grupo controle (43% versus 20% dos pacientes). Embora isto não tenha resultado em diferenças nos níveis de lactato, este ajuste terapêutico pode ter causado um efeito significante nos pacientes que efetivamente necessitavam de quantidades extra de fluidos e vasodilatadores, quando os níveis de lactato não diminuíram como planejado (20% de diminuição por 2 horas no grupo segundo o protocolo). Em segundo lugar, o uso de menos fluidos no período de observação pode ter resultado em menos morbidade associada à sobrecarga de fluidos.(1212 Legrand M, Dupuis C, Simon C, Gayat E, Mateo J, Lukaszewicz AC, et al. Association between systemic hemodynamics and septic acute kidney injury in critically ill patients: a retrospective observational study. Crit Care. 2013;17(6):R278.

13 Vellinga NA, Ince C, Boerma EC. Elevated central venous pressure is associated with impairment of microcirculatory blood flow in sepsis: a hypothesis generating post hoc analysis. BMC Anesthesiol. 2013;13:17.
-1414 Kelm DJ, Perrin JT, Cartin-Ceba R, Gajic O, Schenck L, Kennedy CC. Fluid overload in patients with severe sepsis and septic shock treated with early goal-directed therapy is associated with increased acute need for fluid-related medical interventions and hospital death. Shock. 2015;43(1):68-73.)

Um aspecto relacionado a um comentário feito anteriormente não foi captado pelo estudo. Como o alvo do grupo, segundo o protocolo, era a diminuição do lactato em pelo menos 20% por 2 horas, e a falha em atingir este objetivo devia desencadear reavaliação do tratamento em uso, em alguns pacientes foram iniciados procedimentos diagnósticos adicionais (tomografia computadorizada, ecocardiograma etc.), e o tratamento foi ajustado (laparotomia, modificação do regime antibiótico etc.). Assim, considerando os argumentos anteriores, podemos concluir que, em pacientes com sepse, a ressuscitação precoce com o objetivo de melhorar o equilíbrio entre o fornecimento de demanda de oxigênio, restaurando a oxigenação por meio de uma abordagem multimodal, é eficaz para melhora da sobrevivência.

Diversos fatores importantes devem ser levados em consideração quando se utiliza esta abordagem. Primeiramente, isto deve ser utilizado por um período limitado de tempo (a evidência atual sugere 6 - 8 horas). Embora o estudo original(77 Jansen TC, van Bommel J, Schoonderbeek FJ, Sleeswijk Visser SJ, van der Klooster JM, Lima AP, Willemsen SP, Bakker J; LACTATE study group. Early lactate-guided therapy in intensive care unit patients: a multicenter, open-label, randomized controlled trial. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(6):752-61.) tenha utilizado níveis de lactato acima de 3,0mmol/L, alguns estudos sugerem que este regime pode ser efetivo em todos os pacientes com sepse que apresentem aumento dos níveis de lactato (acima de 2,0mmol/L). Após o início da ressuscitação, se o balanço entre a demanda e o fornecimento de oxigênio efetivamente melhorar, os níveis de lactato devem diminuir rapidamente (Figura 1). Assim, mensurações frequentes (pelo menos a cada 2 horas) devem fazer parte do protocolo de ressuscitação. Se as medidas terapêuticas não resultarem em uma rápida diminuição dos níveis e lactato, então REPENSAR, REAVALIAR e RESOLVER.

Figura 1
Como utilizar o lactato na ressuscitação da sepse associada com disfunção circulatória.

  • Editor responsável: Jorge Ibrain Figueira Salluh

REFERÊNCIAS

  • 1
    Dellinger RP, Levy MM, Rhodes A, Annane D, Gerlach H, Opal SM, Sevransky JE, Sprung CL, Douglas IS, Jaeschke R, Osborn TM, Nunnally ME, Townsend SR, Reinhart K, Kleinpell RM, Angus DC, Deutschman CS, Machado FR, Rubenfeld GD, Webb SA, Beale RJ, Vincent JL, Moreno R; Surviving Sepsis Campaign Guidelines Committee including the Pediatric Subgroup. Surviving sepsis campaign: international guidelines for management of severe sepsis and septic shock: 2012. Crit Care Med. 2013;41(2):580-637.
  • 2
    Casserly B, Phillips GS, Schorr C, Dellinger RP, Townsend SR, Osborn TM, et al. Lactate measurements in sepsis-induced tissue hypoperfusion: results from the Surviving Sepsis Campaign database. Crit Care Med. 2015;43(3):567-73.
  • 3
    Cecconi M, De Backer D, Antonelli M, Beale R, Bakker J, Hofer C, et al. Consensus on circulatory shock and hemodynamic monitoring. Task force of the European Society of Intensive Care Medicine. Intensive Care Med. 2014;40(12):1795-815.
  • 4
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  • 5
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  • 6
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  • 7
    Jansen TC, van Bommel J, Schoonderbeek FJ, Sleeswijk Visser SJ, van der Klooster JM, Lima AP, Willemsen SP, Bakker J; LACTATE study group. Early lactate-guided therapy in intensive care unit patients: a multicenter, open-label, randomized controlled trial. Am J Respir Crit Care Med. 2010;182(6):752-61.
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  • 9
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  • 11
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  • 12
    Legrand M, Dupuis C, Simon C, Gayat E, Mateo J, Lukaszewicz AC, et al. Association between systemic hemodynamics and septic acute kidney injury in critically ill patients: a retrospective observational study. Crit Care. 2013;17(6):R278.
  • 13
    Vellinga NA, Ince C, Boerma EC. Elevated central venous pressure is associated with impairment of microcirculatory blood flow in sepsis: a hypothesis generating post hoc analysis. BMC Anesthesiol. 2013;13:17.
  • 14
    Kelm DJ, Perrin JT, Cartin-Ceba R, Gajic O, Schenck L, Kennedy CC. Fluid overload in patients with severe sepsis and septic shock treated with early goal-directed therapy is associated with increased acute need for fluid-related medical interventions and hospital death. Shock. 2015;43(1):68-73.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2016
  • Aceito
    05 Jan 2017
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