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Letalidade e complicações osteomusculares e cardiovasculares no tétano

Resumos

OBJETIVO: A despeito do declínio em sua incidência, o tétano ainda é uma doença negligenciada nos países em desenvolvimento, permanecendo como causa importante de morbidade e mortalidade. Atualmente, com o aperfeiçoamento dos cuidados de terapia intensiva, torna-se importante conhecer melhor as complicações dessa grave condição. Este estudo visa avaliar a letalidade e complicações cardiovasculares e osteomusculares de pacientes com diagnóstico de tétano internados em unidade de terapia intensiva e os fatores associados ao pior prognóstico. MÉTODOS: Este foi um estudo retrospectivo realizado por meio da análise de prontuários médicos de pacientes com diagnóstico de tétano admitidos em unidade de terapia intensiva, de janeiro de 2000 a dezembro de 2001. Foram colhidas informações demográficas, clínicas e laboratoriais por meio de um questionário padrão. São descritas as variáveis relacionadas à letalidade, complicações cardiovasculares e osteomusculares. RESULTADOS: No período do estudo foram internados 22 pacientes com tétano, sendo 81,8% homens, com média de idade de 47,8 anos. O tétano era associado a atividades profissionais em 54,5% dos casos. A maioria dos pacientes desenvolveu a forma generalizada da doença (20 pacientes); em 81% dos casos, os pacientes nunca haviam recebido vacina antitetânica ou desconheciam sua situação vacinal. Após o ferimento, nenhum paciente recebeu profilaxia passiva apropriada e apenas dois foram submetidos a debridamento cirúrgico do foco, enquanto seis pacientes receberam antibioticoterapia. Onze pacientes (52,4%) desenvolveram alguma complicação cardiovascular. Úlcera de pressão foi a complicação cardiovascular mais freqüente (38,1%), seguida por arritmias (28,6%). Dois pacientes desenvolveram fraturas ósseas secundárias ao espasmo tetânico, correspondendo a 9,6% da amostra. A letalidade do tétano foi de 9,1%. Escore de APACHE II alto e forma gravíssima na classificação de tétano de Veronesi se associaram a maior risco de óbito (p=0,04 e 0,03, respectivamente). A classificação de Veronesi também se associou ao risco de complicações cardiovasculares (p=0,013) assim como a um maior tempo de permanência na unidade de terapia intensiva (p=0,009). CONCLUSÃO: O presente estudo demonstra falha na atenção primária à saúde em termos de cobertura vacinal e profilaxia do tétano pós-traumático em adultos. Apesar do aprimoramento do suporte intensivo, as complicações cardiovasculares ainda são freqüentes nesses pacientes. Indivíduos com alto escore APACHE II e forma clínica gravíssima precisam ser cuidadosamente monitorizados devido ao maior risco de óbito e de complicações cardiovasculares.

Tétano; complicações; Letalidade


OBJECTIVE: Despite the decline in the incidence of tetanus, this disease is still neglected in the developing world and remains a major cause of morbidity and mortality. With improvements in intensive care, it is important to better understand the complications of this serious condition. We aim to evaluate 1) the lethality and osteomuscular and cardiovascular complications of patients with tetanus who are admitted to the intensive care unit (ICU) and 2) the risk factors associated with a poor prognosis. METHODS: This was a retrospective study that analyzed the medical records of all of the patients diagnosed with tetanus who were admitted to an infectious diseases ICU between January 2000 and December 2001. A standardized form that included demographic, clinical and laboratory data was completed. The clinical variables that were related to lethality and osteomuscular and cardiovascular complications were described. RESULTS: A total of 22 tetanus patients were admitted (81.8% male, mean age of 47.8 years).The tetanus infection was associated with professional activities in 54.5% of cases. The majority of patients (20 patients) presented with the generalized form of disease. Eighty-one percent of the patients had never received a tetanus vaccine or were unaware of their vaccine status. Following the injury, none had received appropriated passive prophylaxis, only two patients had received surgical debridement of wound and six patients received antibiotic therapy. Eleven patients (52.4%) experienced some cardiovascular complication. A pressure ulcer was the most frequent cardiovascular complication (38.1%), followed by arrhythmias (28.6%). Two of the patients developed bone fractures secondary to tetanus spasms, corresponding to 9.6% of sample. The tetanus lethality rate was 9.1%. Higher APACHE II severity scores and very severe status based on the Veronesi tetanus classification were significantly associated with the risk of death (p=0.04 and 0.03, respectively). The Veronesi classification was also associated with the risk of cardiovascular complications (p=0.013) and the length of the ICU stay (p=0.009). CONCLUSION: The present study demonstrates the failure of primary medical care in vaccination and post-traumatic tetanus prophylaxis. Despite improvements in intensive care support, cardiovascular complications are still frequent in these patients. Individuals exhibiting high APACHE II scores and severe clinical forms of tetanus should be monitored closely due to a risk of death and cardiovascular complications.

Tetanus; complications; Lethality


ARTIGO ORIGINAL

Letalidade e complicações osteomusculares e cardiovasculares no tétano

Sigrid de Sousa dos SantosI; Soraya Mena BarretoII; Yeh-Li HoI

IDivisão de Moléstias Infecciosas e Parasitárias, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil

IIPrograma de Aprimoramento Profissional, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Ho Yeh Li Divisão de Moléstias Infecciosas e Parasitárias. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - 4º andar - MI - sala 4028 CEP: 05403-000 - São Paulo (SP), Brasil Fone: (11) 2661-6045 / (11) 2661-6530 E-mail: hoyehli@yahoo.com.br

RESUMO

OBJETIVO: A despeito do declínio em sua incidência, o tétano ainda é uma doença negligenciada nos países em desenvolvimento, permanecendo como causa importante de morbidade e mortalidade. Atualmente, com o aperfeiçoamento dos cuidados de terapia intensiva, torna-se importante conhecer melhor as complicações dessa grave condição. Este estudo visa avaliar a letalidade e complicações cardiovasculares e osteomusculares de pacientes com diagnóstico de tétano internados em unidade de terapia intensiva e os fatores associados ao pior prognóstico.

MÉTODOS: Este foi um estudo retrospectivo realizado por meio da análise de prontuários médicos de pacientes com diagnóstico de tétano admitidos em unidade de terapia intensiva, de janeiro de 2000 a dezembro de 2001. Foram colhidas informações demográficas, clínicas e laboratoriais por meio de um questionário padrão. São descritas as variáveis relacionadas à letalidade, complicações cardiovasculares e osteomusculares.

RESULTADOS: No período do estudo foram internados 22 pacientes com tétano, sendo 81,8% homens, com média de idade de 47,8 anos. O tétano era associado a atividades profissionais em 54,5% dos casos. A maioria dos pacientes desenvolveu a forma generalizada da doença (20 pacientes); em 81% dos casos, os pacientes nunca haviam recebido vacina antitetânica ou desconheciam sua situação vacinal. Após o ferimento, nenhum paciente recebeu profilaxia passiva apropriada e apenas dois foram submetidos a debridamento cirúrgico do foco, enquanto seis pacientes receberam antibioticoterapia. Onze pacientes (52,4%) desenvolveram alguma complicação cardiovascular. Úlcera de pressão foi a complicação cardiovascular mais freqüente (38,1%), seguida por arritmias (28,6%). Dois pacientes desenvolveram fraturas ósseas secundárias ao espasmo tetânico, correspondendo a 9,6% da amostra. A letalidade do tétano foi de 9,1%. Escore de APACHE II alto e forma gravíssima na classificação de tétano de Veronesi se associaram a maior risco de óbito (p=0,04 e 0,03, respectivamente). A classificação de Veronesi também se associou ao risco de complicações cardiovasculares (p=0,013) assim como a um maior tempo de permanência na unidade de terapia intensiva (p=0,009).

CONCLUSÃO: O presente estudo demonstra falha na atenção primária à saúde em termos de cobertura vacinal e profilaxia do tétano pós-traumático em adultos. Apesar do aprimoramento do suporte intensivo, as complicações cardiovasculares ainda são freqüentes nesses pacientes. Indivíduos com alto escore APACHE II e forma clínica gravíssima precisam ser cuidadosamente monitorizados devido ao maior risco de óbito e de complicações cardiovasculares.

Descritores: Tétano/complicações; Letalidade

INTRODUÇÃO

O tétano é uma moléstia infecciosa não contagiosa causada pela tetanospasmina, uma potente exotoxina produzida pelo Clostridium tetani. Esta doença se caracteriza por hipertonia generalizada ou localizada dos músculos esqueléticos.(1-3)

Esta infecção em geral se inicia após a inoculação de esporos de C. tetani por meio de um ferimento. As condições anaeróbicas permitem proliferação da bactéria com consequente produção da toxina. A tetanospasmina se infiltra nos músculos e tecidos ao redor da lesão, atingindo consecutivamente a fenda sináptica da junção neuromuscular, o axônio do neurônio motor e o corpo celular (no corno anterior da medula espinal). Ali a toxina sofre transporte trans-sináptico para os neurônios inibitórios locais. Finalmente a toxina bloqueia a liberação pelos neurônios inibitórios dos neurotransmissores glicina e ácido gama-amino butírico. A consequência clínica é uma contração muscular crônica, a hipertonia.(4) A estimulação sensitiva (particularmente táctil e dolorosa) pode desencadear contrações simultâneas, paroxísticas e sustentadas de diferentes grupos musculares, tanto agonistas quanto antagonistas. Estas contrações involuntárias são denominadas espasmos tetânicos.(5)

Segundo Veronesi, a gravidade do tétano pode ser classificada de acordo com o período de incubação (desde a lesão atéprimeiro sintoma), período deprogressão (do trismo até espasmo generalizado), progressão para hipertonia, uso de ventilação mecânica, resposta a relaxantes musculares (diazepam e/ou curare), desenvolvimento de disautonomia e apresentação cefálica. O tétano pode, portanto, ser classificado como leve, grave ougravíssimo.(3)

As complicações mais importantes do tétano são em geral consequência dos cuidados intensivos, como pneumonia associada ao ventilador, infecções do cateter, sepse, tromboembolismo, desenvolvimento de úlcera de estresse e deformidades. Outras complicações podem ser secundárias ao espasmo como rabdomiólise, insuficiência renal, fratura vertebral e avulsões tendíneas.(6-8) Quando a enfermidade é tratada com sucesso, os sintomas regridem por completo.(9,10)

O principal objetivo do tratamento do tétano é a sobrevivência do paciente. Entretanto, outro objetivo é obter uma qualidade de vida razoável.(11) Infelizmente tem sido relatadas sequelas como estado vegetativo persistente em consequência de dano cerebral por hipóxia e incapacidade permanente.(6)

O tétano tem distribuição mundial e pode representar um grave problema de saúde pública, especialmente em países em desenvolvimento com níveis mais baixos de condições econômicas, sociais e educacionais.(12) Como a prevenção do tétano é relativamente barata e eficaz, sua cobertura é considerada um índice sensível do desempenho dos serviços de saúde.(13,14)

Entre 1982 e 2004 o número de casos de tétano no Brasil apresentou redução progressiva e contínua, caindo de 2.810 casos para 497 casos ao ano.(14) A incidência relatada de tétano caiu no estado de São Paulo entre 1989 e 1999, provavelmente em razão da disseminação do uso de imunização contra tétano. Em 1999 foi lançada a Campanha Nacional Brasileira de Vacinação do Idoso contra influenza, doença pneumocócica, tétano e difteria,(15) com um declínio da incidência de tétano no estado de São Paulo para menos de 0,1 por 100.000 pessoas-anos.(16)

O declínio da incidência de tétano não se associou com um concomitante declínio na letalidade do tétano no Brasil. A taxa de mortalidade por casos de tétano se encontra entre 20% e 40% no estado de São Paulo. Esta é uma taxa ainda elevada em comparação aos países desenvolvidos.(17) A letalidade do tétano se relaciona com a idade do paciente, a forma clínica e gravidade da doença, as condições de suporte ao paciente crítico, a necessidade de ventilação mecânica, o uso de sedativos e bloqueadores neuromusculares e o controle da disautonomia.(18)

Independentemente do tratamento específico, a letalidade do tétano pode ser reduzida por meio da prevenção das complicações respiratórias, cardiovasculares, osteomusculares e metabólicas. As principais causas de morte por tétano são as complicações cardiovasculares e respiratórias, particularmente pneumonia associada ao ventilador.(18,19) Uma melhor compreensão destas complicações pode melhorar as abordagens terapêuticas para prevenção de óbito, sequelas e/ou limitações funcionais.

Este estudo teve como objetivo avaliar a letalidade, complicações osteomusculares e cardiovasculares de pacientes com tétano admitidos a uma unidade de terapia intensiva (UTI) e os fatores de risco associados a um pior prognóstico.

MÉTODOS

Este estudo foi realizado em uma UTI de moléstias infecciosas com seis leitos, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, um hospital universitário com 2.200 leitos localizado na cidade de São Paulo. Em sua maioria, os pacientes tinham baixa condição socioeconômica.

Todos os pacientes com tétano admitidos à UTI entre janeiro de 2000 e dezembro de 2001 foram retrospectivamente incluídos. Não se utilizaram critérios de exclusão. O comitê de ética do Hospital das Clínicas aprovou o estudo (processo número 964/02), dispensando a necessidade de assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido em razão da natureza retrospectiva do estudo, desde que fosse assegurada a confidencialidade dos dados.

Foi desenvolvido um questionário padronizado (preparado no programa EPED EPI, versão 6.03) e os dados foram colhidos desde a admissão à UTI até a alta. Foram colhidos dados demográficos assim como as características do tétano (quadro clínico, porta de entrada, presença de infecção secundária, períodos de incubação e progressão, e a classificação da gravidade do tétano segundo a classificação adaptada de Veronesi(3) (Tabela 1), a condição de vacinação contra tétano, cuidados médicos da lesão, assim como os cuidados iniciais para o tétano). Registramos também o escore de gravidade segundo o sistema Acute Physiology and Chronic Health Evaluation II (APACHE II), e o tratamento do tétano realizado na UTI, incluindo necessidade de ventilação mecânica invasiva, complicações osteomusculares e cardiovasculares, ocorrência de insuficiência renal ou de infecções hospitalares (pneumonia, infecção do trato urinário, bacteremia) e desfecho hospitalar.

Consideramos como complicações osteomusculares as fraturas (exceto as já existentes na admissão), pé equino e anormalidades da marcha. Definimos as complicações cardiovasculares como a presença de disautonomia, choque séptico, choque cardiogênico, edema pulmonar agudo, insuficiência coronária, arritmias, trombose venosa profunda, embolia pulmonar, AVC e úlceras de pressão. O diagnóstico de outras complicações sistêmicas (renais, pulmonares ou infecciosas) foi feito pelo médico responsável.

O protocolo de tratamento do tétano na UTI consistiu de administração de imunoglobulina antitetânica humana na dose de 4.000 a 5.000 UI por via intramuscular e 1.000 UI por via peri-lesional antes do debridamento cirúrgico, antibioticoterapia com penicilina ou metronidazol, relaxamento muscular com diazepam e sedação com fenobarbital se necessário.

Como rotina, todos os pacientes foram submetidos a monitorização contínua com eletrocardiograma de três derivações e da pressão arterial para identificação de possíveis episódios de arritmia e/ou disautonomia. Foram realizados eletrocardiogramas adicionais de 12 derivações em caso de suspeita de arritmia ou insuficiência coronária. Foi instalado monitoramento invasivo contínuo da pressão arterial conforme necessário para confirmação da presença de oscilações da pressão arterial. Definiu-se disautonomia como a presença de acentuada instabilidade cardiovascular com flutuações abruptas entre situações de hipertensão e taquicardia com situações de hipotensão grave e bradicardia.

Análise estatística

Realizamos uma análise descritiva das características demográficas, epidemiológicas e clínicas, escores de gravidade, complicações e desfecho. Realizamos uma análise univariada para avaliar os fatores associados com complicações osteomusculares e cardiovasculares e sobrevivência. As variáveis categóricas foram avaliadas utilizando os testes Qui quadrado e exato de Fisher. As variáveis contínuas foram expressas como mediana (mínimo-máximo) e comparadas utilizando o teste t de Student para variáveis com distribuição normal ou o teste de Mann-Whitney para variáveis não paramétricas. Foi utilizado um nível de significância de 0,05. As análises estatísticas foram realizadas utilizando o programa EPI-Info versão 6.03.

RESULTADOS

No total foram admitidos à UTI 22 pacientes com tétano, sendo que 18 eram do gênero masculino (81.8%) (Tabela 2). Os pacientes eram oriundos do interior (nove pacientes), litoral (sete pacientes) e capital do estado de São Paulo (seis pacientes). O tétano estava associado à atividade profissional em 54,5% dos casos.

O prontuário médico de um dos pacientes não estava disponível, de forma que não foi possível obter seus dados referentes a complicações cardiovasculares. A maioria absoluta dos pacientes (17 pacientes) desenvolveu tétano generalizado descendente; três apresentaram padrão generalizado ascendente e um desenvolveu o padrão localizado. Ferimentos do membro inferior foram responsáveis por 85,7% dos casos. Um paciente desenvolveu tétano em consequência de necrose do íleo distal. Havia presença clínica de infecção secundária da ferida em oito pacientes (38,1%).

O período de incubação foi determinado em 18 pacientes, com um tempo mediano de oito dias (variando de 1-15 dias). O período de progressão foi menor que 48 horas em dois pacientes, entre 48 e 72 horas em cinco pacientes e maior que 72 horas em nove pacientes. Em um paciente com rigidez generalizada, os espasmos generalizados foram evitados por meio de abordagem farmacológica.

A avaliação do escore de gravidade APACHE II estava disponível para 20 pacientes. Todos, exceto dois pacientes, tinham escores abaixo de 13 nas primeiras 24 horas após a admissão. Segundo a escala de gravidade de Veronesi, 23,8% dos pacientes tinham tétano gravíssimo, 42,9% tinham tétano grave e 33,3% tétano leve.

Dezessete pacientes nunca tinham recebido vacinação contra tétano ou não conheciam a sua condição de vacinação (81%). Dois pacientes receberam o esquema básico de vacinação contra difteria/tétano/coqueluche sem receber doses de reforço. Dois pacientes receberam um esquema básico incompleto de imunização. Doze pacientes procuraram tratamento médico logo após a lesão, mas nenhum deles recebeu profilaxia passiva adequada e apenas cinco receberam vacinação antitetânica. Apenas dois pacientes foram submetidos a debridamento cirúrgico da ferida e seis pacientes receberam antibioticoterapia.

Dezenove pacientes (90,5%) procuraram serviços de emergência após desenvolver os primeiros sinais de tétano. Antes de serem transferidos ao nosso centro, apenas quatro deles foram submetidos a debridamento cirúrgico; seis receberam imunoglobulina/soro antitetânico; três receberam vacinação antitetânica; nove receberam antibióticos e o miorrelaxante diazepam foi administrado a doze pacientes.

Após admissão à nossa UTI, todos os pacientes receberam penicilina ou metronidazol, associados ou não a outro antibiótico. Em dezesseis pacientes o debridamento cirúrgico da ferida foi realizado dentro das primeiras 24 horas após a admissão. Todos os pacientes foram tratados com diazepam endovenoso contínuo. Foi fornecida sedação adicional com fenobarbital a 13 pacientes (61,9%). Quatro pacientes tiveram falha da ação miorrelaxante do diazepam em altas doses (10 mg/kg/dia) e necessitaram de agentes bloqueadores neuromusculares (19%). O pico médio de creatinofosfoquinase sérica foi de 5.670 + 10.498 U/l, com um pico mediano de 1.456 U/l (445 - 5.528).

Durante a permanência na UTI, 11 pacientes (52,4%) desenvolveram alguma complicação cardiovascular: um apresentou disautonomia, cinco apresentaram choque séptico, dois apresentaram choque cardiogênico, dois tiveram edema agudo de pulmão, um teve insuficiência coronária, seis tiveram arritmias, dois tiveram embolia pulmonar, um teve trombose venosa profunda e oito tiveram escaras de pressão (38,1%).

Embora os pacientes com tétano tenham apresentado episódios frequentes de taquicardia sinusal, particularmente durante os espasmos musculares, alguns deles desenvolveram episódios arrítmicos mais graves, com bradicardia sinusal grave/bradiassistolia (cinco pacientes) ou extrassistolia supraventricular persistente (um paciente).

Catorze pacientes (66,7%) necessitaram de ventilação mecânica. Treze pacientes tiveram algum tipo de complicação respiratória (61,9%), sendo que 12 tiveram atelectasia, oito tiveram pneumonia hospitalar e dois tiveram pneumotórax.

Cinco pacientes tiveram como complicação insuficiência renal (23,8%), sendo que três deles necessitaram de diálise (15,8%). Treze pacientes desenvolveram complicações infecciosas (59,1%). Dois pacientes desenvolveram complicações osteomusculares (fratura) secundária aos espasmos tetânicos, o que correspondeu a 9,6% da amostra.

Em sua maioria, os pacientes receberam alta hospitalar. A duração mediana da permanência na UTI e no hospital foi, respectivamente, de 23 (4-84) dias e 33 (9-85) dias.

Dois pacientes morreram. Não houve associação entre a duração da permanência na UTI e a letalidade (p = 0,4). Um dos pacientes que faleceram tinha 64 anos de idade e outro 76 anos de idade. Por outro lado, a média de idade dos pacientes que sobreviveram foi de 45,6 anos (5 a 72 anos). Embora isto possa sugerir uma associação entre letalidade e idade, esta diferença não foi estatisticamente significante (p = 0,06) (Tabela 2).

Apenas quatro mulheres fizeram parte desta amostra, sendo que duas delas morreram. Apesar do pequeno número de mulheres, ocorreu uma significante associação entre o gênero e o prognóstico (p = 0,03).

A grande maioria dos pacientes desenvolveu um padrão de tétano generalizado descendente (17 pacientes). Apesar de teoricamente mais grave, este padrão não se associou a pior prognóstico (p = 0,65). Igualmente, não foi observada associação significante entre a distribuição da porta de entrada do tétano e letalidade.

O escore APACHE II de gravidade foi significantemente diferente entre os sobreviventes e os que não sobreviveram (p = 0,04). Entretanto, em um dos dois pacientes que faleceram, o escore não foi determinado. Com relação à escala de gravidade de Veronesi, a diferença na gravidade foi mais coerente, já que ambos os pacientes que vieram a falecer pertenciam ao grupo de pacientes com tétano gravíssimo (p = 0,03).

Não houve diferença estatística entre a ocorrência de complicações cardiovasculares e a idade (p = 0,09) ou gênero (p = 0,67). Entretanto, ocorreu uma forte associação entre a classificação de Veronesi (0,013) e a duração da permanência na UTI (p = 0,009) com o desenvolvimento de complicações cardiovasculares (Tabela 3).

DISCUSSÃO

Este estudo apresenta as características de pacientes com tétano no estado de São Paulo. Os pacientes mais afetados são adultos (média de idade = 47,8 anos), do gênero masculino (81,8%) e são oriundos do interior ou do litoral (72,7%), o que demonstra a vulnerabilidade ao tétano de homens ativos que residem fora da capital do Estado de São Paulo, particularmente secundário à falha da prevenção no local de trabalho. Para corroborar esta suspeita, observamos que em sua maioria os pacientes jamais haviam sido vacinados contra a doença (81%).

Após a lesão, apenas 54,5% dos pacientes procuraram atenção médica. Infelizmente, nenhum deles recebeu tratamento adequado, o que poderia ter prevenido a doença, evidenciando a falha da atenção primária na prevenção do tétano pós-traumático.

Os problemas respiratórios se constituíram na complicação mais frequente do tétano na UTI (61,9%), seguido por complicações infecciosas (59,1%), cardiovasculares (52,4%) e renais (23,8%).

Apesar de termos incluído a disautonomia como uma complicação cardiovascular, este evento ocorreu em apenas um paciente, sem um grande impacto em nossa análise. A úlcera de pressão foi a complicação cardiovascular mais frequente em nossa amostra, seguida por arritmias. O desenvolvimento de lesões musculares graves com níveis elevados de creatinofosfoquinase e insuficiência renal se associou com hipervolemia e edema pulmonar agudo. Nessa amostra houve um aumento significante das complicações cardiovasculares em pacientes que permaneceram por mais tempo na UTI (p = 0,009) e com forma mais grave segundo a classificação de Veronesi (p = 0,03). O monitoramento eletrocardiográfico por 24 horas é importante para detectar arritmias, caso contrário, alguns casos poderão não ser diagnosticados adequadamente.(20)

A letalidade em pacientes com tétano admitidos à UTI foi de 9,1% (2/22 pacientes), uma taxa comparável à dos serviços de alta qualidade em países desenvolvidos. Isto é provavelmente atribuível ao nível de conhecimento e especialização de nossa equipe multidisciplinar no controle do tétano e aos avanços nos recursos de suporte ao paciente crítico. Embora 33,3% (7/21 pacientes) fossem classificados como portadores de tétano leve, a intervenção terapêutica precoce e adequada e o monitoramento na UTI foram fundamentais para evitar a evolução natural dos sintomas.

O escore baixo de gravidade segundo o sistema APACHE II em pacientes com tétano quando de sua admissão reflete as características benignas da doença durante o período inicial. O gênero feminino (p = 0,03) e classificação de gravidade segundo Veronesi (p = 0,03) foram fatores de risco para letalidade. A ocorrência de doença mais grave em mulheres já foi observada e se associa a manifestações clínicas da doença menos evidentes.(21) Mulheres mais idosas apresentam uma desproporção entre a gravidade dos espasmos musculares periféricos e os espasmos laríngeos, provavelmente em razão da flacidez dos músculos abdominais e paravertebrais, assim merecendo atenção especial.

Pacientes mais idosos com tétano tendem a ter um prognóstico pior.(21) Entretanto, em nossa amostra a idade não foi um fator de risco independente significante para letalidade ou desenvolvimento de complicações cardiovasculares.

Nosso estudo tem algumas limitações. Trata-se de um estudo retrospectivo, e consequentemente algumas informações não puderam ser recuperadas por se basearem na análise de prontuários médicos. Além disto, o número pequeno de pacientes em nossa amostra limitou a realização de análises multivariadas.

CONCLUSÃO

Este estudo demonstra diversas atitudes que devem ser tomadas para reforçar a profilaxia do tétano no Estado de São Paulo, particularmente em relação à prevenção no local de trabalho e após o trauma. Além das medidas adequadas de relaxamento muscular para prevenção de lesões musculares e dos avanços nos recursos para cuidados intensivos, a prevenção adequada e o controle das complicações cardiovasculares podem ser primordiais para reduzir a duração da permanência na UTI e promover a qualidade de vida de pacientes com tétano.

Agradecimentos

Este estudo foi parcialmente apoiado por verbas da Fundação do Desenvolvimento Administrativo - FUNDAP (SMB).

Submetido em 24 de Setembro de 2011

Aceito em 12 de Dezembro de 2011

Conflitos de interesse: Nenhum.

Estudo realizado na Unidade de Terapia Intensiva, Divisão de Moléstias Infecciosas e Parasitárias, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil.

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  • Autor correspondente:
    Ho Yeh Li
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Aceito
      12 Dez 2011
    • Recebido
      24 Set 2011
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