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O ENIGMA DO GOVERNO BOLSONARO E OS CAMINHOS DA DEMOCRACIA BRASILEIRA

NOBRE, Marcos. Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. São Paulo: Todavia, 2020. 70

Escrever “a quente”, no calor dos acontecimentos, em linguagem simples e direta, acessível, pois, a um público de não especialistas, e esclarecer a essência do governo Bolsonaro – eis o que parece ser o objetivo do filósofo da Unicamp e do Cebrap, Marcos Nobre, em Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia (2020).

Não é de hoje que esse autor publica análises de conjuntura, tentando explicar ao público nativo algum fenômeno que deixou os analistas políticos em estado de incompreensão (algo particularmente incomum, sobretudo, entre os filósofos brasileiros). Em 2013, foram as manifestações que tomaram as ruas de muitas cidades brasileiras e que serviram de estopim para a escrita de Choque de democracia ( Nobre, 2013aNOBRE, M. Choque de democracia: razões da revolta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013a. ), texto em seguida aumentado e mais bem elaborado em O imobilismo em movimento ( Nobre, 2013bNOBRE, M. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013b. ). O assunto agora é a vitória absolutamente inesperada de um candidato de extrema-direita à presidência da República e seu governo.

O livro perpassa, fundamentalmente, seis temas inter-relacionados, dispostos de modo bastante desordenado: 1) o modo de funcionamento ou o estilo, por assim dizer, do governo Bolsonaro; 2) o comportamento pessoal de Jair Bolsonaro, como deputado, candidato à Presidência e, enfim, como atual presidente da República; 3) o provável futuro do seu governo, diante da crise econômica e da pandemia do Covid-19, evento que foi uma dificuldade imprevista em seu projeto autoritário de poder; 4) os elementos comuns e específicos do governo de Bolsonaro em relação ao populismo autoritário global; 5) seu papel no processo de crise da Nova República brasileira; 6) e, por fim, mas não menos importante, as estratégias a serem adotadas, pelo campo democrático, de resistência a esse projeto. Aspectos normativos e descritivos se mesclam, pois, na escrita de O ponto-final , constituindo um livro que é, ao mesmo tempo, um ato de resistência e um esforço de compreensão da realidade nacional, traço típico da teoria crítica, corrente filosófica que Marcos Nobre estuda há anos.

Como um ensaio, o escrito é marcado pela desconsideração dos critérios mais formais dos textos científicos, algo bastante legítimo, diga-se de passagem. Nesse sentido, seu autor está mais preocupado, como dito, em anunciar determinada tese de interpretação do que em comprová-la; mais concentrado em orientar seus leitores do que em construir uma visão sistemática sobre determinado objeto de estudo. E que tese é essa? Primeiramente, a de que o governo Bolsonaro tem natureza diferente de tudo o que estávamos familiarizados em termos de política. Não se trata de um governo, no sentido clássico, que queira implementar determinada agenda e que, para isso, estabelece alianças com os demais partidos, no contexto do “presidencialismo de coalizão” (que Nobre assume como um diagnóstico acertado sobre a realidade nacional). Assim, melhor seria falar do “antigoverno” Bolsonaro, dado que, em vez de buscar a estabilidade para viabilizar a aprovação das políticas previstas em sua agenda, o presidente fomenta a todo instante o caos. Um estilo político de guerra, que transforma a instabilidade em parte permanente do contexto político, segundo a qual todos que divergem do próprio presidente são tomados como inimigos da nação. Essa lógica antissistêmica evidencia um segundo aspecto do governo Bolsonaro: sua incompatibilidade “congênita” com a cultura democrática, marcada pelo pluralismo de valores, pela tolerância, pelo debate racional etc.

Óbvio, é difícil falar em lógica e racionalidade quando se trata do governo Bolsonaro, marcado por constantes ditos e não ditos, mentiras, descoordenação etc. Mas é esse precisamente o intento de O ponto-final . Contra as teses de que Bolsonaro age sem lógica, de que é burro ou louco, seu autor advoga que há um projeto e uma estratégia por trás da aparente desorientação do presidente. Para Nobre, Bolsonaro tem não apenas um projeto familiar de perpetuação no poder (evidenciado pelo fato de que, desde os primeiros dias de governo, ele se colocou como candidato à reeleição), mas também um projeto de destruição da democracia nacional. O presidente não quer apenas vencer em 2022, mas exercer, pelo menos, dois mandatos para demolir as instituições políticas que marcam o Brasil desde a Constituição de 1988, seguindo o exemplo do que tem feito Viktor Orbán na Hungria.

É contra o legado dessa Carta constitucional, definida equivocadamente sob a ótica bolsonarista como “de esquerda”, que o presidente da República age permanentemente. Trata-se, portanto, de uma política reacionária (e não propriamente conservadora), que projeta no período mais repressivo da ditadura militar (não o período dos generais da Escola Superior de Guerra, como Castelo Branco e Geisel, mas os da “linha dura”, como Costa e Silva e Médici) um desejo de retorno, idealizado por Bolsonaro e seus apoiadores mais convictos como um tempo de harmonia social e de consolidação dos valores dos “cidadãos de bem”. O saudosismo bolsonarista com os “anos de chumbo” explica também o porquê da paranoia extemporânea com o comunismo. Sendo um político antissistema (embora estivesse nele há mais de três décadas), Bolsonaro precisa de um inimigo, real ou imaginário, que justifique sua prática diária beligerante. Petistas, comunistas, imprensa, universidade etc. compõem o cenário de oposição do qual supostamente seu governo é uma sempre vítima acuada.

A interpretação de Nobre sobre o governo Bolsonaro o compreende também como um caso radical de populismo autoritário, que viceja em diversas nações do globo e que, mais do que somente casos de países governados por populistas de direita, tem claramente um projeto de desmonte das instituições de controle, que caracterizam os Estados democráticos contemporâneos, como o Judiciário e a Mídia. Nesse sentido, embora ataque as instituições, Bolsonaro delas depende (daí a ideia de “parasitismo político”, proposta pelo autor), pelo menos em um primeiro momento para que, em um segundo mandato, possa, de fato, destruí-las completamente. No contexto da chamada “desdemocratização”, estaríamos, de acordo com Nobre, mais próximos dos casos mais graves da Hungria, Turquia e Filipinas do que do cenário estadunidense (à época, governado por Donald Trump) e inglês, do premiê Boris Johnson, nos quais as instituições independentes de controle do poder são mais fortes e seus líderes não são tão autoritários. Mas, como dito, o autor apresenta suas ideias, mas não as fundamenta com dados e evidências.

Ele esclarece que o governo Bolsonaro é sustentado por facções ideológicas distintas, dando maior destaque ao núcleo militar, que funciona como uma espécie de partido, a estruturar e a tentar dar alguma estabilidade ao governo (contra os problemas criados pelo próprio Bolsonaro). Além dos militares, o governo Bolsonaro se vê permanentemente dividido entre defensores do agronegócio, evangélicos e lavajatistas. Não deixa de ser curioso que o filósofo não mencione o amplo apoio dado pelo setor empresarial nacional em torno da candidatura de Jair Bolsonaro, desde 2018, afiançada pelo “posto Ipiranga”, Paulo Guedes. Ademais, para Marcos Nobre, o liberalismo do ministro da Economia é meramente de fachada, sendo compatível com o desmonte do Estado democrático de direito levado a cabo pelo presidente (como se as linguagens conservadoras do liberalismo contemporâneo, como o neoliberalismo, fossem, necessariamente, defensoras dos princípios desse tipo de Estado!). Parece, portanto, que Nobre não responsabiliza esse setor da sociedade civil pelo desmonte em curso da Nova República, dissocia o liberalismo da crise atual da democracia de massas e nem compreende que a democracia não é um valor insuperável para todas as tradições do pensamento político contemporâneo. Nesse sentido, trabalhos como os de Pierre Dardot e Cristian Laval (2016)DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. e de Wendy Brown (2019)BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Ed. Filosófica Politéia, 2019. , para citar apenas dois dentre vários estudos publicados sobre esse tema, evidenciam como o neoliberalismo, na diversidade de correntes teóricas que o constitui, não apenas é um crítico da soberania popular e da capacidade dos Estados limitarem os ganhos do capital e promoverem justiça social, como tem convergido com pautas conservadoras ao desresponsabilizarem o Estado por várias atividades essenciais à existência humana (como a saúde e a educação, por exemplo), responsabilizando os indivíduos e as famílias – agora, abandonadas à sua própria sorte ( Brown, 2019BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Ed. Filosófica Politéia, 2019. ; Cooper, 2017COOPER, M. Family values: between neoliberalism and the new social conservatism. New York: Zone Books, 2017. ).

Nobre também argumenta então que o governo Bolsonaro está baseado em feudos, isto é, áreas sob as quais o presidente geralmente não intervém, mas também não se responsabiliza. O Ministério da Economia, com Paulo Guedes, o Ministério da Agricultura, como Teresa Cristina, e o Ministério da Mulher, de Damares Alves seriam exemplos desses feudos, sobre os quais Bolsonaro se limita a usar seu poder de veto. Trata-se de um estilo de governo errático, incapaz de criar e implementar uma agenda coordenada e transversal. O autor comenta então que, na Nova República, vigorava o modelo de coalizão partidária, dado o alto grau de fragmentação no Congresso Nacional. O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e depois o Partido dos Trabalhadores (PT) não puderam estabelecer uma maioria congressual e, ao mesmo tempo, um governo funcional, o que fazia da aliança com o PMDB e com outros partidos, fator fundamental para a governabilidade. Com o governo Bolsonaro, são os militares que passaram, cada vez mais, a estruturar o governo, não mais os partidos de centro e de direita (pelo menos até 2020). Os setores supramencionados compuseram uma coalizão de conveniência (mas não um grupo homogêneo), costurada por meio das redes sociais e em torno do sentimento compartilhado de exclusão da arena política. Pastores, militares, ruralistas etc. teriam encontrado na figura de Jair Messias Bolsonaro uma chance de assumir um protagonismo político que nunca tiveram (com exceção dos militares, mas que foram alijados do poder desde a redemocratização do país). O autor quer matizar a visão que centra a discussão sobre a eleição de 2018, na oposição entre petismo e antipetismo, e evidenciar a pluralidade de atores que compõem a sociedade brasileira e que podem, eventualmente, compor uma coalizão democrática contra a reeleição de Bolsonaro em 2022. Contra a ideia de que todos os apoiadores de Bolsonaro são fascistas, Nobre defende igualmente ser necessário compor uma ampla coalizão que envolva parte desses setores para barrar o projeto autoritário bolsonarista.

Ele também sustenta que a vitória eleitoral de Bolsonaro em 2018 é um resultado derradeiro da crise institucional iniciada em 2013. Tendo desafiado o “sistema” como candidato outsider , o presidente, para surpresa de todos, continua a agir, mesmo depois de empossado, como se estivesse “fora do sistema”, pois, argumenta Nobre, governar para ele seria o mesmo que se render ao “sistema”. Assim, como candidato permanente, a tática de Bolsonaro é minar a democracia “por dentro”, como fazem os líderes autoritários no século XXI, conforme explica, por exemplo, Adam Przeworski (2020)PRZEWORSKI, A. Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. , por meio da noção de “autoritarismo furtivo”. São políticos que não estruturam um sistema institucional de apoio, por meio de uma coalizão de partidos, mas se nutrem precisamente da crise dessas instituições. Isso explica também a composição caquistocrática do seu governo: ele não se une, nem se apoia, em geral, em um quadro de políticos e especialistas experimentados, alçando, por conseguinte, indivíduos inexpressivos e/ou sabidamente incompetentes para o exercício do governo.

Mas diante da pandemia e da crescente ameaça de impeachment, Bolsonaro não teve opção que não se refugiar nas ideias adotadas pela sua militância, mesmo que tais ideias sejam vistas como excessivas por boa parte da população. Diferentemente de outros populistas autoritários já bem estabelecidos, o projeto de Bolsonaro ainda estava tentando formar suas bases quando foi pego no contrapé pela crise sanitária, fazendo-o adiar a ruptura com a ordem democrática. Para o filósofo, Bolsonaro sempre governou para essa parcela da população, ignorando as demais, porque ela poderia garantir sua ida para o segundo turno eleitoral e, eventualmente, vencê-lo.

Com a pandemia e o agravamento da crise econômica, todavia, Bolsonaro intensificou essa aposta, voltando-se ao seu núcleo duro de apoio e, ao mesmo tempo, buscou no “centrão” um aliado decisivo contra o impeachment que se materializava por conta de sua conduta pessoal. Embora esses dois movimentos pareçam contraditórios, eles não o são, dado que seu núcleo duro pode apoiar o movimento de aproximação de Bolsonaro ao “centrão”, compreendido como concessão tática necessária para a manutenção do seu governo. Sendo um ensaio, seria improvável encontrar em Ponto-final uma identificação mais precisa, ou empiricamente lastreada, do chamado “centrão”. A rigor, essa noção (com toda carga pejorativa que lhe é associada) é assumida como um parti pris da análise de Nobre. Contudo esse é um dos pontos fracos do ensaísmo, tradicionalmente criticado pelos “pais-fundadores” das ciências sociais, qual seja, o de se basear em impressões e noções não propriamente fundamentadas pela ciência.

Como dito, Ponto-final procura relacionar a eleição de Bolsonaro, seu governo e a instabilidade por ele cotidianamente produzida à crise da Nova República, normalmente identificada como tendo seu ponto de partida nas manifestações de 2013. Para ele, a partir daqueles eventos ficou evidente de que era possível causar um abalo no sistema político nacional, sem necessariamente dispor de grandes organizações, como partidos e sindicatos. Negando que junho de 2013 tivesse uma pauta de direita, ou que seus efeitos tenham tido o efeito de favorecer esse espectro ideológico, Nobre avalia que seu limite foi não ter encontrado um canal institucional para canalizar suas reivindicações. Ao contrário, o sistema político teria agido de maneira reativa, eliminando o governo do PT (na “parlamentada” de 2016, que depôs Dilma Rousseff), e que ameaçava a sobrevivência do “peemedebismo”. Não deixa de ser curioso que o autor não se debruce sobre o impeachment de Dilma Rousseff, evento diretamente associado a certa ascensão da direita e da extrema-direita no Brasil contemporâneo, conforme mostra outro belo ensaio publicado nos últimos anos: O colapso da democracia no Brasil , de Luís Felipe Miguel (2019)MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Expressão Popular, 2019. .

No anexo ao livro “O que fazer de Junho de 2013?”, o filósofo reitera a tese de que aqueles protestos serviram como uma espécie de alerta contra a dinâmica peemedebista, mas o sistema político deu uma resposta insuficiente, de mera autoblindagem. Nota-se que Marcos Nobre mantém o diagnóstico precipuamente positivo desse ciclo de protesto ( Nobre, 2013aNOBRE, M. Choque de democracia: razões da revolta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013a. ; 2013bNOBRE, M. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013b. ), o de representar o “movimento” contra a “inércia” do sistema político, não propriamente justificado e pouco crítico ou atento à complexidade do que parece ter sido esse fenômeno social ( Singer, 2013SINGER, A. Brasil, junho de 2013: classes e ideologias cruzadas. Novos Estudos Cebrap, n. 97, p. 23-40, nov. 2013. ). A respeito do anexo, o autor sustenta que preponderam duas interpretações hegemônicas sobre esses eventos. A primeira, a do “ovo da serpente”, seria construída a partir de indicadores econômicos e sociais da crise e, a segunda, a “da quebra das regras informais das instituições”, estaria mais atenta à dinâmica institucional. Ambas assumem que o sistema político brasileiro operava adequadamente até o mencionado ano e veem no protagonismo do Judiciário um dos elementos cruciais para a derrocada do sistema político. Para a primeira, foi em 2013 que se iniciou a “regressão autoritária”; para a segunda, foi a partir da intensa polarização política que se seguiram as eleições de 2014, em que o candidato derrotado, Aécio Neves, contestou na Justiça o resultado do pleito. Sem apresentar uma terceira teoria, alternativa às duas primeiras, Nobre pondera que o exame dos seus ganhos e deficiências pode nos ajudar a compreender melhor o que temos que fazer, no presente e no futuro, para superar a atual crise da democracia.

Ele argumenta que o risco do governo Bolsonaro à democracia não deve ser minimizado e precisa ser enfrentado pela formação de uma ampla frente política, o que exige um movimento de superação dos ressentimentos produzidos pelos erros e agressões passadas, de parte a parte, além da inclusão, nessa aliança, de governadores e das Forças Armadas (que não admitirão a humilhação de serem postas fora da política novamente). Bolsonaro, alerta o filósofo, estaria se aproveitando das dificuldades impostas pela pandemia para organizar seu governo de guerra e promover seu interesse pessoal. No contexto de escrita do ensaio, o autor julgava ser inviável um impeachment de Bolsonaro (dada a falta de apoio popular e congressual à proposta). Todavia, Nobre interpreta que os desdobramentos no futuro próximo levariam a essas condições, dada a sobreposição de crises (sanitária, econômica e institucional), levando a uma situação de caos social. Independentemente da concretização do impeachment de Jair Bolsonaro, a superação da crise da democracia pressupõe, segundo Marcos Nobre, um acordo não meramente eleitoral, mas minimamente programático e capaz de recompor minimamente o sistema político até então vigente. Não deixa de ser curioso que um autor que se notabilizou por caracterizar pejorativamente o sistema brasileiro como “peemedebista”, há menos de dez anos, defenda agora que esse mesmo sistema se recomponha, restabelecendo as bases para a convivência entre as diversas forças do espectro político nacional.

Nesse sentido, apesar de se identificar com a tradição da Teoria Crítica, a análise de Nobre converge fortemente com várias intepretações liberais da crise das democracias contemporâneas, isto é, que não problematizam a relação entre as crises e dinâmicas do capital e das lutas de classes delas decorrentes e que assumem como um desiderato moral a restauração ou preservação da democracia liberal. Nesse sentido, conforme antes já argumentado ( Moreira, 2020MOREIRA, M. Democracias no século XXI: causas, sintomas e estratégias para superar sua crise. Lua Nova, Sâo Paulo, n. 111, p. 15-49, 2020. ), estes trabalhos clamam para que as elites partidárias impeçam a indicação ou a participação de líderes com comportamento autoritário ( Levitsky; Ziblatt, 2018LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. ) e/ou reivindicam que os próprios cidadãos (talvez motivados pela leitura de tais obras) defendam a democracia por meio de ações e hábitos virtuosos ( Snyder, 2017SNYDER, T. Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. ; Mounk, 2019MOUNK, Y. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. ). Boa parte das críticas feitas a esses trabalhos podem ser dirigidas a Ponto-final: são trabalhos irrealistas – dado que assumem (mas não demonstram) como certa a possibilidade de reversão da crise da democracia – e pouco críticos, já que não problematizam os limites da democracia, tal como vivenciada no contexto do capitalismo neoliberal.

REFERÊNCIAS

  • BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Ed. Filosófica Politéia, 2019.
  • COOPER, M. Family values: between neoliberalism and the new social conservatism. New York: Zone Books, 2017.
  • DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
  • MIGUEL, L. F. O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Expressão Popular, 2019.
  • MOREIRA, M. Democracias no século XXI: causas, sintomas e estratégias para superar sua crise. Lua Nova, Sâo Paulo, n. 111, p. 15-49, 2020.
  • MOUNK, Y. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • NOBRE, M. Choque de democracia: razões da revolta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013a.
  • NOBRE, M. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013b.
  • PRZEWORSKI, A. Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
  • SINGER, A. Brasil, junho de 2013: classes e ideologias cruzadas. Novos Estudos Cebrap, n. 97, p. 23-40, nov. 2013.
  • SNYDER, T. Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2021
  • Aceito
    20 Jun 2022
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