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LIBERAIS E ANTILIBERAIS: um debate contemporâneo

BOLÍVAR, Lamounier. . Liberais e antiliberais: a luta ideológica do nosso tempo. 1. ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 144 p.

Poucos cientistas políticos conseguiram alcançar um espaço tão generoso na grande mídia, sobretudo na mídia televisiva, como Bolívar Lamounier. Se parte desse espaço resulta de seu alinhamento ideológico com as posições políticas assumidas por esses veículos de comunicação, outra parte, sem dúvida, deve-se à sua capacidade de análise e de síntese.

Seu último trabalho, Liberais e antiliberais: a luta ideológica do nosso tempo, divide--se em quatro capítulos, precedidos por uma breve apresentação e uma introdução, e sucedidos por uma bibliografia comentada. Logo na “Apresentação”, o autor expõe o objetivo geral do livro: “pôr em relevo os fundamentos do conhecimento político in actu, entendendo por tal não apenas a ciência política acadêmica, mas primeiro e sobretudo os elementos cognitivos das três grandes ideologias do século XX – liberalismo, de um lado, marxismo e fascismo, do outro” (p. 11). Conforme admite mais adiante, essas ideologias ainda dispõem de enorme vitalidade na medida em que os indivíduos delas se servem para se orientar dentro do sistema político. O cerne cognitivo de uma ideologia, enfatiza Lamounier, reside nos programas e modelos de análise que lhe dão sustentação, os quais, longe de serem racionais, estão quase sempre associados a emoções, valores, sentimentos e também ressentimentos. Nesse sentido, para o autor, a antinomia ideológica fundamental do século XX situa-se, de um lado, nos regimes liberal-democráticos e, de outro, nos regimes totalitários.

Na “Introdução”, Lamounier afirma que o Iluminismo criou a noção psicologicamente superficial de um cidadão filosofante, e que a reação às disfunções dos estágios iniciais da democracia representativa continua a se manifestar em duas frentes: uma, em relação ao funcionamento das instituições, sobretudo dos legislativos e partidos políticos; e outra, mais propriamente filosófica, que se refere à ideologia liberal e ao mundo moderno. No primeiro caso, o antídoto sugerido gravita em torno de ações reformistas, sobretudo em relação aos sistemas partidários e eleitorais, movidas pelos anseios do cidadão comum, a saber: a ordem social e um Estado capaz de mantê-la. No segundo caso, a solução sugerida, em parte sob o influxo romântico e utópico da obra de Jean-Jacques Rousseau, aponta para a erradicação total do sistema liberal-democrático e para a construção de uma sociedade nova, verdadeiramente humana. A despeito das tradições marxistas de cunho democrático, as quais mencionaremos na segunda parte desta resenha, Lamounier entende que o fascismo e o marxismo “mantêm um estreito paralelismo com as ideologias antiliberais, ou seja, com o fascismo e o marxismo, entendendo por antiliberal qualquer teoria, ideologia ou doutrina que se contraponha às estruturas institucionais da democracia representativa” (p. 17-18).

A seguir, o autor expõe a chave-interpretativa de sua análise no decorrer do livro: os ídolos do filósofo inglês Francis Bacon, expostos em seu Novum Organum em 1620. Na visão do Lamounier, embora concebidos como guias para a pesquisa nas ciências naturais, os ídolos baconianos constituem um referencial importante, sobretudo quando aplicados a quatro questões fulcrais nas ciências humanas: 1) individualismo versus holismo; 2) ideologia versus realidade; 3) ideias impulsionadoras da ação revolucionária; e 4) deficiências na formação de conceitos e teorias. A partir de então, ele procura demonstrar a correspondência dos ídolos de Bacon e as três grandes ideologias políticas de nosso tempo: liberalismo, fascismo e marxismo.

No primeiro capítulo, “Homo politicus (ídolos da tribo)”, em consonância com a primeira recomendação de Bacon, segundo a qual o indivíduo deve antes conhecer a si mesmo, Lamounier alerta para a incapacidade dos líderes políticos, sobretudo os impregnados por filosofias holísticas, quanto à realização de um autoexame. Nessa perspectiva, as lideranças revolucionárias, influenciadas por circunstâncias imediatas e ideologias, revelam-se pouco afeitas ao exercício da introspecção. Ao analisar a trajetória de três líderes revolucionários (Lênin, Stalin e Trotsky), Lamounier, afirma que a teoria social marxista – da qual todos eles foram tributários – serve de justificativa da submissão da massa pelo partido-vanguarda, e, consequentemente, pelas lideranças comunistas.

No segundo capítulo, “Ideologia e realidade (ídolos da caverna)”, guiado pela segunda injunção de Bacon, segundo a qual não devemos nos fiar demais nas primeiras impressões, Lamounier retoma a consagrada alegoria da caverna de Platão com o intuito de enfatizar as diferenças existentes entre o senso comum e o conhecimento verdadeiro. A intenção do autor é demonstrar que a linha de pensamento platônica, cujo principal postulado reside na identificação de um reino de aparência, ilusão e opacidade, que só pode ser desfeito por meio do conhecimento científico-filosófico, se prolongou no positivismo e no marxismo, sobremaneira na ênfase concedida por seus representantes à teoria, visto que, para ambas as vertentes, a teoria é o único caminho de acesso à verdade. Esse movimento torna--se claro no modo como a esquerda emprega a noção de ideologia. Isso porque ela a utiliza como um instrumento desvelador das ilusões e enganos prevalecentes na sociedade burguesa e na consciência dos indivíduos e das classes sociais. Assim, a partir de Marx, a expressão ideologia adquire um sentido muito específico: ela passa a ser definida como uma falsa consciência, uma inversão dos fatos ou, o que é pior, como um artifício classista capaz de falsear a realidade. Disso decorre que a única forma de escapar à ideologia (aparência) seria a verdade – ou seja, a apreensão da realidade através da única teoria “correta” do devir histórico, que seria o próprio marxismo. Na visão de Lamounier, o aparecimento do livro Ideologia e Utopia, em 1929, possibilitou um relativo arejamento na área das ciências humanas, na medida em que seu autor, o sociólogo alemão Karl Mannheim, afasta-se do referencial teórico marxista. O conceito de “ideologia total” propugnado por Mannheim permitiu uma reavaliação da definição proposta por Marx, colocando o próprio marxismo entre as diversas manifestações ideológicas possíveis. Similarmente ao protofascismo, afirma Lamounier, o marxismo constitui uma ideologia que, desde o início, pretendeu “extrair uma sentença condenatória contra a democracia burguesa, declarando-a de antemão inviável” (p. 125). Com efeito, a partir do reexame da percepção historicista da história, Lamounier detém-se no caso brasileiro, mas, especificamente, na importação dos ideais liberais tomados de empréstimo de outros países e, por isso, inadequados à “realidade brasileira”.

O terceiro capítulo, “Identidade, recriação e purificação (ídolos do teatro)”, tem como ponto de partida a crítica ao filósofo Jean-Jacques Rousseau. Em acordo com a terceira injunção baconiana, segundo a qual os “ídolos do teatro” são pensadores em relação aos quais tendemos a mostrar uma deferência excessiva, Lamounier analisa a influência do pensador franco-genebrino sobre o anarquismo e o marxismo. Essa influência se expressaria através das concepções rousseaunianas de um “homem novo” e de uma “sociedade igualitária”, que, incorporadas pela esquerda, converteram-se em uma visão escatológica e redentora em direção ao paraíso terreno. Destarte, a idealização radical de uma natureza humana boa (o mito da bondade natural) reaparece com ares científicos no marxismo, em especial no postulado de um processo histórico inexoravelmente conducente à “sociedade sem classes”. Profeta da individualidade, da vida privada, mas também da vida comunitária que, em última instância, obstrui as liberdades individuais, Profeta da sinceridade e da transparência, que vê o artista como um intérprete da sensibilidade e das necessidades sociais, Profeta do progresso, que contribuiu, ainda que obliquamente, para a formação de certos movimentos revolucionários quanto aos meios (violentos), mas reacionários no tocante ao conteúdo e à postura antimoderna – o paradoxal Rousseau se situa na origem dos totalitarismos de esquerda e de direita, pois, como todo pensamento político romântico, suas concepções envolvem uma tendência antiliberal.

No quarto e último capítulo, “Conceito de democracia (ídolos do mercado)”, ao resgatar o alerta de Bacon, segundo o qual todos aqueles que se deixam seduzir pelas conversas do mercado se desviam do caminho da verdade, Lamounier aponta os limites da democracia moderna, mas também o prolongado processo de desconcentração ou “descompactação” do poder e das estruturas socioeconômicas que configura os sistemas representativos. Para tanto, o autor entende que aqueles sistemas políticos que se aproximam do limite puramente institucional dispõem de maiores chances de se aprimorar, ao passo que os sistemas políticos que se inclinam na direção contrária tendem a não persistir por muito tempo, na medida em que cedem espaço a algum tipo populismo. Para Lamounier, a ideia de que é possível uma democracia plena ou total, como defende parte da esquerda, revela-se falsa, sobretudo quando se deixa de atentar para o estímulo da economia, o que, em sua ótica, é fundamental para diversificar os interesses sociais. Assim, só as sociedades capazes de pôr em relevo a institucionalização de um subsistema representativo conseguiriam garantir um grau de participação popular razoável.

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Apesar da clareza de suas ideias e da facilidade com que analisa os processos políticos contemporâneos, alguns pontos do novo trabalho de Bolívar Lamounier são bastante problemáticos, a começar pelo título. Este, como o leitor facilmente identifica, baseia-se em certa visão maniqueísta da realidade. De um lado, estão os liberais, os quais, na ótica do autor, se confundem com a própria noção de democracia. De outro, os antiliberais, os quais, por seu turno, estão na contramão dos valores democráticos. Como sugere o subtítulo da obra, essas visões políticas, além de antagônicas, são responsáveis por protagonizar uma luta ideológica. Os critérios por ele empregados para dar sustentação à sua análise gravitam em torno da função do Estado, bem como do papel do indivíduo e da liberdade no interior de uma sociedade. Nesse sentido, a ideologia antiliberal se caracteriza pela ênfase em um Estado centralizador, oferecendo pouco espaço à atuação dos indivíduos. Embora o autor saliente a imperfeição dos Estados liberal-democráticos, eles, sem dúvida, seriam moralmente superiores aos Estados totalitários, na medida em que possibilitam a seus cidadãos, seja por meio da sociedade civil, seja por meio de grupos ou partidos políticos, realizarem ajustes e refinamentos no sistema político e social. A impressão que fica é que, para Lamounier, a existência de uma sociedade liberal está condicionada ao exercício democrático, visto que, em sua taxionomia, liberalismo e democracia aparecem imbricados. Em nenhum momento, entretanto, o autor cogita a possibilidade de uma sociedade liberal, calcada no livre-mercado, ser também antidemocrática, como se o autoritarismo fosse prerrogativa exclusiva dos regimes antiliberais. A confusão, sem dúvida, deve-se ao fato de Lamounier relacionar as noções de liberalismo e democracia, tomando-as como complementares e indissociáveis.

Outro ponto frágil na argumentação de Lamounier refere-se à aproximação entre os regimes nazifascistas e o regime socialista. Mais uma vez, os critérios empregados pelo autor circunscrevem-se ao modelo de Estado e ao grau de liberdade individual a partir de dicotomias que Marx jamais empregou em seus textos. Disso decorre que haveria mais aproximações entre esses regimes do que distinções, visto que todos eles se caracterizariam pela excessiva interferência do Estado na vida política e social, pela presença de um partido único, pela submissão dos valores individuais aos valores coletivos, além, é claro, da truculência depreendida contra dissidentes. Desse modo, ao tomar a experiência socialista no leste europeu, sobretudo durante o período stalinista, como um decalque dos regimes fascistas e nazistas, falta a Lamounier uma reflexão mais apurada sobre a seguinte questão: qual é o ponto de partida de cada um desses regimes? Dito de outro modo, em que medida os objetivos traçados por fascistas, nazistas e socialistas se equiparam? Aqui, certamente é possível identificar algumas distinções entre eles. Isso porque, como se sabe, o ideal socialista, tanto no plano histórico quanto no plano social, é anterior aos ideais nazifascistas, e teve como mote a superação da sociedade de classes capitalista, fato que não aparece no horizonte dos demais regimes supracitados. Ademais, o sentido que movia originalmente os socialistas nunca foi o de estabelecer uma estrutura política autoritária, embora, no decorrer do processo histórico, tenha sido esse o rumo tomado. Carece, pois, um esforço maior por parte do autor em compreender os motivos desse desvio de rota, ao invés, simplesmente, de igualar a experiência socialista às nazifascistas. Desse modo, poderíamos indagar se os preceitos básicos do socialismo coincidem, de fato, com os preceitos levados a cabo por Mussolini e Hitler, ou, no mínimo, questionar em que medida a experiência socialista pode ser reduzida às lideranças totalitárias que, no decorrer do século XX, falaram em seu nome.

Dessa segunda fragilidade desponta uma terceira: Lamounier não faz qualquer distinção entre as ideias marxianas, as ideias marxistas e o que se convencionou a chamar “socialismo real”. A esse respeito, o autor frequentemente emprega essas expressões como correlatas. Nesse ponto, em especial, a confusão é enorme, pois, por um lado, ao igualar essas expressões, o autor reduz a discussão sobre o fracasso e o autoritarismo presentes em grande parte dos países capitalistas. Em outros termos, Lamounier simplesmente ignora a própria lógica do modo de produção capitalista, em que a desigualdade, mais do que um efeito, é um fundamento. Por outro lado, ao tomá-las como sinônimos, o autor deixa de atentar para o fato de que as ideias marxianas não podem e nem devem ser reduzidas às diversas interpretações marxistas, muito menos aos efeitos deletérios do chamado socialismo real. Isso porque Marx jamais defendeu uma sociedade em que o Estado fosse o centro organizador da vida social, e muito menos que um grupo de burocratas vinculado ao partido se autoatribuísse o poder decisório sobre a vida dos demais.

Na esteira dessa terceira fragilidade, surge uma quarta, também relevante, que diz respeito à própria definição de “socialismo real”. Digo isso, pois, como se sabe, uma parte considerável dos intérpretes marxistas tem questionado a aproximação comumente feita entre o “socialismo real” e o socialismo propugnado por Marx. Essa discussão, aliás, não é recente. Como demonstra Adolfo Sánchez Vázquez,1 1 VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. O valor do socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2010. ela tem início logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Isso porque o socialismo real, sobretudo em sua versão soviética e chinesa, nega muitas das propostas marxianas. Desse modo, ao reunir coisas de natureza tão distinta em sua análise, igualando-as, Lamounier presta-se a uma confusão cuja própria literatura marxista se esforçou – e ainda se esforça – em desfazer.

Por último, é possível destacar a visão ingênua do autor sobre os supostos efeitos benevolentes e autocriativos da economia. No capítulo final do livro, Lamounier deposita, nos processos econômicos e institucionais, a solução dos problemas inerentes às democracias contemporâneas, tendo como pressuposto a hipótese de que as economias de mercado são capazes de solucionar magicamente as mazelas sociais. Em nenhum momento, porém, o autor questiona a influência exercida pelos grandes grupos e corporações financeiras na reprodução dessas mazelas, bem como passa desapercebido em relação à influência da economia sobre a produção das leis e a configuração das instituições. Um bom exemplo disso são as reformas, trabalhista e previdenciária, levadas a cabo pelo atual governo brasileiro, que, em nome da superação da crise econômica, aposta todas as suas fichas no sacrifício de direitos historicamente conquistados para satisfazer as demandas do mercado. Infelizmente, o livro de Lamounier foi escrito antes desse processo, conquanto, historicamente, não faltem exemplos de como o mercado pode agir em benefício próprio.

  • 1
    VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. O valor do socialismo. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    08 Jul 2017
  • Aceito
    04 Ago 2017
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