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Ensinar longe da escola: ensaio sobre as representações em E. Durkheim1 1 Émile Durkheim nasceu em 1858 em Épinal, na região da Lorena, noroeste da França. Estudou na École Normale Supérieure, em Paris, e lecionou filosofia por alguns anos no ensino liceal. É considerado o grande impulsionador da sociologia na França, notadamente reconhecido pela sua responsabilidade em credenciá-la junto às instituições acadêmicas de prestígio. O avanço dos estudos sociológicos realizados por Durkheim foi alcançado por intermédio de sua atuação no domínio pedagógico, já que foi durante sua atuação como professor de Pedagogia e Ciências Sociais na Universidade de Bordéus (1887-1902) que publicou suas principais obras sociológicas. Em 1902 foi convidado a lecionar Sociologia e Pedagogia na Sorbonne, como assistente de Ferdinand Buisson na cátedra de Ciências da Educação. Em 1906 fundou o periódico L’Année Sociologique, mesmo ano em que, com a morte de Buisson, assume a referida cátedra, a qual é transformada, em 1910, em cátedra de Sociologia. Publicou obras de relevo para o campo das Ciências Sociais, como As regras do método sociológico, A divisão do trabalho social, A evolução pedagógica, O suicídio, Educação e sociologia e As formas elementares de vida religiosa, traduzidas para diversas línguas. e R. Chartier2 2 Roger Chartier nasceu em 1945 na cidade de Lyon, França. Estudou na Escola Normal Superior de Saint Cloud e na Universidade de Sorbonne. Historiador, foi titular da cátedra “A escrita e as culturas na Europa moderna” junto ao Collège de France, também foi, entre outras atividades, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales. É autor de uma vasta obra, desenvolvida na perspectiva da história cultural, investigando o mundo da escrita, o livro, as práticas de leitura, a materialidade dos escritos, a autoria e os gêneros literários, sobretudo na Europa do Antigo Regime. Suas primeiras publicações datam dos anos 1970 e compreendem sobretudo trabalhos com outros historiadores. Ele ainda conta com produções mais individuais, que datam principalmente dos anos 1980 em diante e inspiram ainda hoje inúmeras pesquisas em história da educação, daí tomá-lo como um autor central na formação de redes e centros de pesquisa. Ele atua no cruzamento de várias disciplinas, além da história, entre as quais podemos citar a sociologia, a linguística e a pedagogia. Entre seus livros, podemos citar: O sociólogo e o historiador (2012); A mão do autor e a mente de editor (2014); Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura (2007); A história ou a leitura do tempo (2009) e vale destacar sua famosa conferência no Collège de France, proferida em 2007 e intitulada “Escutar os mortos com os olhos”.

RESUMO

Após meses com as salas de aula fechadas, professores e alunos ainda não vislumbram quando se poderá voltar às escolas. Roger Chartier, no artigo “Mundo pós-pandemia”, publicado em 1º de junho na página virtual do Sesc-SP, destaca a “infinita tristeza do ensino” no isolamento. Na esteira dessa percepção, vimos desde a interrupção das aulas avaliações as mais diversas sobre o papel da instituição escolar e da socialização que ela realiza para a formação educacional da infância e juventude. Interessados em alargar a visão sobre o tema, propomos historicizar o que chamamos aqui de “imagem da sala de aula”. Para concretizar nosso propósito, escolhemos para análise as imagens presentes nas famosas histórias em quadrinhos francesas do Petit Nicholas, assinadas por René Goscinny e ilustradas por Jean-Jacques Sempé entre 1956 e 1964. Tais imagens serão interpeladas com o auxílio da noção de representação, na voz de autores há muito tempo lidos e relidos entre os educadores: Émile Durkheim e Roger Chartier. O uso do conceito de representação nos será útil para explorar as múltiplas respostas dos autores de seus respectivos tempos históricos sobre os problemas e as potências da escola. Lembrando as palavras de Ítalo Calvino (1993), convém dedicarmos um tempo para revisitar leituras importantes de nossa formação. As referências permanecem as mesmas, mas nossas trajetórias e desafios mudam. A atual situação é um convite à releitura dessas obras “clássicas” que, pela sua fecundidade, sobretudo quando explicam a força da representação, permitem refletir sobre a construção do desejável em educação hoje.

PALAVRAS-CHAVE:
Imagem da sala de aula; Representações coletivas; Émile Durkheim; Roger Chartier

ABSTRACT

After months of closed classrooms, teachers and students still cannot envisage when they will be able to return to schools. Roger Chartier, in the article “Post- pandemic world”, published on June 1st on the Sesc-SP website, highlights the “infinite sadness of teaching” in isolation. In the wake of this perception, we have seen, since classes were interrupted, the most diverse assessments of the role of the school as an institution and of the socialization it promotes for the education of children and youth. Hoping to broaden the views on this topic, we propose to historicize what we call the “image of the classroom”. To achieve our purpose, we analyzed the images found in the famous French comic books Petit Nicholas, signed by René Goscinny and illustrated by Jean-Jacques Sempé between 1956 and 1964. These images will be construed with the aid of the notion of representation, according to the voice of authors that educators have long read and re-read: Émile Durkheim and Roger Chartier. The concept of representation will be useful for us to explore the multiple responses of the authors to the problems and potential of the school in their respective historical times. Recalling the words of Ítalo Calvino (1993), we should take time to revisit important readings of our own education. The references remain the same, but the trajectories and challenges change. The current situation is an invitation to re-read these “classic” works that, because of their fruitfulness, especially in explaining the strength of representation, allow us to reflect on constructing what is desirable in education today.

KEYWORDS:
Images of the classroom; Collective representations; Émile Durkheim; Roger Chartier

Apresentação do problema

A proposta que aqui se lança decorre de uma tentativa de problematizar as reações observadas nos meios de comunicação e entre a comunidade escolar mais ampla a respeito da interdição do ensino presencial nas escolas da Educação Básica.3 3 No Brasil, desde a promulgação da Lei n.9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), integram a Educação Básica três níveis de ensino: a Educação Infantil, para crianças a partir dos 4 anos de idade; o Ensino Fundamental, desde a Lei n.11.114 de 2005 com duração de 9 anos, iniciando a partir dos 6 anos de idade; e o Ensino Médio, com duração de 3 anos. Tal restrição insere-se no conjunto de medidas sanitárias que, desde os primeiros meses de 2020, tentam proteger a população do contágio pela Covid-19. Com a pandemia - e o necessário isolamento social que se buscou estabelecer - os tempos e espaços para ensinar e aprender tornaram-se outros, tiveram de sê-los. Um dos aspectos que afloraram com maior intensidade diz respeito às implicações da interrupção das atividades escolares presenciais e a consequente adoção de ferramentas tecnológicas responsáveis por viabilizar o ensino remoto. Ficar fora das salas de aula levou a mudar, às vezes radicalmente, gestos e noções que associamos ao ensino. Não raro, professores se perguntam sobre o que se sente numa sala de aula “virtual”; sobre como manter a privacidade da aula em ambientes virtuais que podem ser vistos, invadidos, gravados ou editados; sobre como fica a circulação de nossa imagem e a contextualização da aula; sobre como propor e avaliar exercícios ou como medir a presença dos alunos. Perguntas como essas fazem emergir com maior vigor questionamentos acerca do grau e natureza das transformações operadas nas relações pedagógicas, frutos do incremento inaudito dos meios digitais no saber-fazer escolar.

As reações diante da impossibilidade de ensinar nas salas de aula tal qual nos habituamos são marcadas pelo estranhamento. Em entrevista recente, o historiador Roger Chartier (2020) reconheceu nesse processo uma “infinita tristeza do ensino”. Mesmo que compensem de alguma forma as atividades presenciais, as práticas digitais muitas vezes geram frustração. Elas instauram uma falta porque, por mais sofisticados que sejam, as tecnologias não são equivalentes aos encontros, ao cotidiano e à proximidade, tampouco substituem as emoções (Chartier, 2020). As palavras do autor, inspiradoras para o presente artigo, conduzem a pensar sobre as diferentes representações da escola e de suas práticas, já tão conhecidas por nós, que carregam distintas simbologias do presente, mas também do passado e do que se infere do futuro da instituição. Essas representações dizem respeito ao que concebemos e queremos da escola.

Ficar fora das salas de aula significa a saída de um lugar até então entranhado em nós. Há muitas gerações, participamos da criação e consolidação de normas que disciplinam os alunos, estabelecem horários próprios, lições determinadas, bem como o estudo de saberes específicos em espaços apropriados, enfim, criam um ritual da modernidade escolar (Boto, 2017_______. A liturgia escolar na Idade Moderna. Campinas: Papirus, 2017.). Ela vem instituindo práticas racionalizadas para otimizar tempos e espaços, como uma espécie de máquina de ensinar e aprender (Hamilton, 1989HAMILTON, D. Towards a Theory of Schooling. London: Falmer, 1989.) e que culminam, no século XX, na consolidação do método simultâneo de ensino. Desde o século XIX, a escola integra um projeto mundialmente difundido de homogeneização cultural e criação de uma cidadania nacional, tendo sido, ao longo desse tempo, instituí- das regras, muitas delas conhecidas até hoje, numa espécie de gramática escolar (Nóvoa, 2000NÓVOA, A. Uma educação que se diz nova. In: CANDEIAS, A.; NÓVOA, A.; FIGUEIRAS, M. (Org.) Sobre a educação nova. Lisboa: Educa, 2000. p.25-41.; Tyack, 1974TYACK, D. The one best system - a history of American urban education. Cambridge: Harvard University Press, 1974.) reconhecida como a única e melhor alternativa para se formar os futuros cidadãos.

Poderíamos imaginar facilmente que, dispostos numa mesma sala, em carteiras enfileiradas e voltadas para o professor e para a lousa, os alunos acompanham todos juntos e ao mesmo tempo as lições professadas pelo docente, expostas no livro escolar ou copiadas nos cadernos. É justamente essa imagem que povoa os pensamentos das duas crianças ilustradas na imagem da Figura 1. Elas fazem parte do universo do famoso Petit Nicolas, uma famosa série de desenhos infantis criada por René Goscinny e Jean-Jacques Sempé, publicadas entre os anos 1950 e 1960. Elas já inspiraram filmes e suas ilustrações ainda suscitam uma inegável proximidade com a vida de muitos estudantes hoje. Os autores retratam cenas do menino Nicolas, suas travessuras e relações com o mundo adulto. No conjunto dos desenhos, destacam-se as cenas dele na escola. No desenho que se segue, Nicolas e seu amigo estão uniformizados, o prédio da escola ao longe, suas pastas com o material escolar no chão e eles, escondidos atrás de um muro, pensam na sala de aula da qual (muito provavelmente) escaparam.

Os pensamentos dos meninos retratados por Sempé e Goscinny retratam a sala de aula, cuja construção vem sendo marcada em estudos como os de Boto (2017_______. A liturgia escolar na Idade Moderna. Campinas: Papirus, 2017.), nos quais se evidencia como o discurso pedagógico dos séculos XVI e XVII reverberou na cultura escolar dos dias de hoje. Evocando educadores da Reforma Protestante, da Contrarreforma católica e do Iluminismo, a autora identifica heranças das formas como pensamos a escola. Inés Dussel e Marcelo Caruso (2003DUSSEL, I.; CARUSO, M. A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. São Paulo: Moderna, 2003.) chamam a atenção para o fato de que:

[...] compreender de onde surgem [nossas atuais representações da sala de aula], de quais estratégias e problemas fazem parte, e que efeitos causaram pode ajudar-nos a aliviar essa carga e a assumir nossa tarefa como uma reinvenção própria das tradições que recebemos. (Dussel; Caruso, 2003DUSSEL, I.; CARUSO, M. A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. São Paulo: Moderna, 2003., p.17)

De que maneira, portanto, concebemos a sala de aula? O que esperamos dela? São perguntas cujas respostas não se dissociam das representações produzidas historicamente a respeito da escola, as quais atuam em vários sentidos, assinalando nossa percepção de formação humana e os modos pelos quais concebemos, vivemos, desejamos ou recusamos esse lugar. Adicionalmente, tais respostas contêm representações da escola, em que as circunstâncias do presente, as profundas modificações impostas pela crise sanitária e as incertezas que lançam ao funcionamento das atividades escolares não apenas durante a etapa de suspensão, mas também num eventual período de retorno às aulas, mobilizam os sujeitos a, no mínimo, reelaborarem suas concepções e expectativas quanto a papéis, modelos e importância da escola. Propomo-nos, nas páginas que seguem, marcar a configuração do “possível e do desejável” em educação, expondo a contemporaneidade de reflexões permitidas por Émile Durkheim e Roger Chartier, especialmente quando eles discutem a noção de representação. Trata-se de autores clássicos no sentido atribuído por Calvino (1993CALVINO, I. Por que ler os clássicos? São Paulo: Cia. das Letras, 1993.). A fecundidade das obras dos dois autores mobiliza o ensaio aqui proposto, numa situação que torna hoje a releitura de ambos mais urgente e relevante.

Figura 1
Representações da sala de aula em Le petit Nicolas.

Representação em Durkheim

Na extensa obra de interpretação da realidade vivida nas últimas décadas do século XIX e princípios do século XX, quando se debruça sobre instituições, estruturas e “móveis” fundamentais que atuam no funcionamento da sociedade moderna (e seu complexo integrado de fatos sociais), Durkheim concede especial atenção à ideia de “consciência coletiva”, base para a teorização de seu conceito de representação coletiva. Essa passagem em direção à noção de representação, que se insurge ao longo de sua produção no domínio das ciências sociais, dada a ver, por exemplo, em O suicídio (Durkheim, 2000), culmina como uma das chaves capitais para a sociologia durkheimiana em As formas elementares da vida religiosa (Durkheim, 1989).

Em linhas gerais, e isso demarca outrossim um aspecto peculiar da trajetória intelectual do autor, a maturação da noção de representação acompanha um movimento mais geral de superação do discurso filosófico, em especial “da substituição da epistemologia kantiana por uma sociologia do conhecimento” (Pinheiro Filho, 2004, p.139).

Preocupado com a objetividade e a busca pela construção e delineamento dos mecanismos e procedimentos metodológicos indispensáveis à pesquisa social, Durkheim passa a problematizar as balizas em que se dá a produção de conhecimento, o que o leva a considerar as categorias de análise em íntimo comércio com o engendramento das representações coletivas que permitem inferir a propósito do real. Ora, a proposição nesses termos do problema fundamental da produção do conhecimento provoca Durkheim a buscar respostas para uma injunção “clássica” que incomodava os homens de saber desde há muito: a origem da dualidade da natureza humana - a divisão entre “corpo e alma” - ou mais precisamente entre materialidade e subjetividade.4 4 Durkheim chegou a cunhar uma expressão própria para caracterizar tal disjuntiva - homo duplex (Pinheiro Filho, 2004, p.140). O caminho encontrado pelo autor para enfrentar a questão acarretou a formulação de uma sociologia das categorias, no interior da qual figurava sua teoria das representações coletivas (Pinheiro Filho, 2004, p.140).

Assim, conquanto pensadores contemporâneos a Durkheim, como Max Weber, tenham incorporado a expressão no léxico da sociologia, integrando as representações “num quadro de referência e um vetor da ação dos indivíduos” (Moscovici, 2001MOSCOVICI, S. Das representações coletivas às representações sociais: elementos para uma história. In: JODELET, D. (Org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001. p.45-66., p.46), algo como “um saber comum, que tem o poder de se antecipar e de prescrever o comportamento dos indivíduos, de programá-lo” (ibidem, p.47), Durkheim foi de fato quem primeiro conferiu ao termo um estatuto conceitual, inédito na esfera dos estudos sociológicos. Para Moscovici (2001), o conceito de representação, na maneira como o concebeu Durkheim, pode ser definido por uma dupla separação: em primeiro lugar “as representações coletivas se separam das representações individuais, como o conceito das percepções ou das imagens” (ibidem, p.47). A segunda separação assinala as idiossincrasias entre o que é abarcado pelo horizonte do indivíduo e aquele mais amplo, de uma coletividade. Nesse sentido,

[...] se as representações individuais têm por substrato a consciência de cada um... e as representações coletivas, a sociedade em sua totalidade…, resulta que estas não são o denominador comum daquelas, mas antes sua origem, correspondendo “à maneira pela qual esse ser especial, que é a sociedade, pensa as coisas de sua própria experiência” (DURKHEIM, E. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: Presses Universitaires de France, 1968, p. 621 apud MOSCOVICI, 2001MOSCOVICI, S. Das representações coletivas às representações sociais: elementos para uma história. In: JODELET, D. (Org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001. p.45-66., p. 47) Compreende-se que tal representação seja homogênea e vivida por todos os membros de um grupo, da mesma forma que partilham uma língua. Ela [a representação] é coletiva… também porque perdura pelas gerações e exerce uma coerção sobre os indivíduos, traço comum a todos os fatos sociais. (Moscovici, 2001MOSCOVICI, S. Das representações coletivas às representações sociais: elementos para uma história. In: JODELET, D. (Org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001. p.45-66., p.47)

Na esteira dessa clivagem, a operação levada a cabo por Durkheim opõe as representações coletivas às individuais, oposição exemplificada pela estabilidade da transmissão e da reprodução das primeiras face à variabilidade e caráter efêmero das últimas. Tal enquadramento produziu esquemas emblemáticos. Ressalta na apreensão que faz Durkheim das representações coletivas seu traço de imutabilidade, ou seja, de que mesmo na diversidade das coletividades o que subsiste ao fim e ao cabo é o próprio elemento da coletividade. “A própria invariância das representações advém desse traço, que é o mesmo em toda parte” (Moscovici, 2001MOSCOVICI, S. Das representações coletivas às representações sociais: elementos para uma história. In: JODELET, D. (Org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001. p.45-66., p.54). Tal configuração indica uma realidade ao mesmo tempo homogênea e coercitiva, preservando os vínculos entre os indivíduos (ibidem). Em consonância com essa disposição, pode-se inferir que a noção de representação durkheimiana terminou por sugerir determinadas tipificações, ao realizar associações diretas entre a expressão das representações coletivas com objetos ou realidades perenes, autônomos e homogêneos, processo indissociado da menor relevância concedida, por exemplo, a expressões relacionadas à “individualidade”, terreno do sensorial, da simples percepção, do mutável, dimensão cujo interesse Durkheim (2011, p.114-15) atribuía à Psicologia.

E em relação à educação, que inter-relações podem ser estabelecidas com o conceito de representações coletivas? Ora, para Durkheim o papel da educação consistia na construção do ser humano novo. Tendo o plano histórico-político como pano de fundo, o modelo educacional representativo de uma “nova era” havia dado seus primeiros passos há pouco tempo, com a instauração da III República Francesa e mais especificamente com as reformas empreendidas pelo Primeiro Ministro Jules Ferry, em 1881. O ideal de sociedade republicana, laica, industrial e burguesa contido no corolário filosófico-político de Durkheim influía tanto nos elementos conceituais que compunham sua ciência social quanto na projeção do tipo de educação desejável para consolidar sua referência de sociedade moderna, anticlerical e de tintas igualitárias. Durkheim perseguia, enfim, um ideal, e seus fundamentos deveriam justamente “corresponder à representação que a sociedade fazia de si, de seus membros e de seu futuro” (Oliveira, 2012OLIVEIRA, M. de. O conceito de representações coletivas em Durkheim: uma trajetória da divisão do trabalho às formas elementares. Debates do NER, Porto Alegre, ano 13, n.22 p.67-94, jul./dez. 2012., p.82).

O ideal aludido aqui, todavia, não oblitera que Durkheim tenha investido energia em pensar a dinâmica da mudança social. Ele alerta que as representações coletivas novas ressoam a emersão de novas instituições, para tal basta que tais representações coincidam com novas necessidades sociais (Filloux, 2010FILLOUX, J.-C. Émile Durkheim. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2010., p.18). A ambiência em que se processam tais correspondências é indicadora, por seu turno, de períodos “nos quais devem ser resolvidos conflitos entre forças de estagnação e forças de evolução” (ibidem, p.18). Diferentemente do modo como Durkheim caracteriza a educação em outros momentos da história francesa - lembremos da preponderância da escala nacional em seu raciocínio a respeito dos processos educacionais - como quando em Educação e Sociologia (1922, publicação póstuma) afirma que a “sociedade [francesa] se encontra[va] em relativa estabilidade e equilíbrio temporário […] no século XVII” (Durkheim, 2011, p.118-19), o século XX é apresentado como um tempo de incertezas, em que a ação metódica, científica e sociológica deve ser bem dirigida a fim de prover ao corpo social o que ele necessita. Assim, no turbilhão das forças estagnadoras e evolutivas que sacodem a sociedade de seu país, novas representações sociais não são apenas demandadas, mas imperiosamente necessárias.

As profundas transformações que as sociedades contemporâneas sofrem ou estão sofrendo demandam transformações correspondentes na Educação nacional. [...] Não se trata mais de colocar ideias prontas em prática, mas sim de descobrir ideias que nos guiem. (Durkheim, 2011_______. Educação e sociologia. Petrópolis: Vozes, 2011., p.119)

E como descobrir tais ideias, já que, “embora realmente sintamos que mudanças são necessárias, não sabemos muito bem como elas devem ser” (Durkheim, 2011_______. Educação e sociologia. Petrópolis: Vozes, 2011., p.119)? Para o autor estudado uma possível resposta só poderia ser encontrada no estudo da sociedade. E é nesse ponto que as representações coletivas são evocadas por Durkheim para ajudar a compreender a mudança, a produção de novas instituições demandadas pela realidade, as quais guardam as marcas dos desejos e necessidades emanados dos agentes. Tomando como exemplo a França de seu tempo e a intencionalidade de formação do cidadão da III República a partir da atenção dada à infância e à juventude pelas reformas empreendidas entre as últimas décadas do século XIX e as do início do século XX, é possível acompanhar com maior acuidade o encadeamento discursivo de Durkheim. No estudo “Natureza e método da Pedagogia”, o qual integra o livro póstumo Educação e Sociologia, Durkheim (2011, p.95) assevera que

[...] o ideal pedagógico de uma época expressa antes de tudo o estado da sociedade na época considerada. Contudo, para que este ideal se torne realidade, é preciso ainda fazer com que a consciência da criança se conforme com ele. [...] Saberemos orientar melhor a sensibilidade moral dos alunos neste ou naquele sentido quando tivermos noções mais completas e precisas sobre o conjunto dos fenômenos que chamamos de tendências, hábitos, desejos, emoções etc., sobre as diversas condições que os regem, e sobre a forma sob a qual eles se manifestam na criança.

Não obstante, vale frisar, com o autor, que o presente (e o próprio futuro) não se realiza senão pelos despojos que o passado lhe legou (ibidem, p.94), e que as aspirações desse presente são mais bem reconhecíveis pela investigação da história da educação e da pedagogia. O entrelaçamento da mudança educacional com a inflexão de certa consciência coletiva e a consequente produção de novas representações - igualmente coletivas - são tratadas numa das principais obras pedagógicas do autor francês: A evolução pedagógica (Durkheim, 1995_______. A evolução pedagógica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.), voltada a abordar a “evolução” dos níveis secundário e superior na França desde a Idade Média até o final do século XIX. Tal mudança, ou antes mudanças, denominadas também por Durkheim de “renascenças pedagógicas”, correspondem, simultaneamente, a evoluções políticas e econômicas e ao aparecimento de mentalidades e necessidades novas. Durkheim chama a atenção, na obra, para que as mudanças não espelham apenas o enquadre mais vasto do período em que se processam, mas refletem outrossim a maneira pela qual a escola corporifica as necessidades irrompidas, ainda não institucionalizadas, da sociedade política. Os saberes escolares que emergem com tais mudanças, transformando-se nos novos conteúdos de ensino, contribuem, a seu modo, para originar novas categorias de pensamento, as quais estão na base da formação das representações coletivas de uma dada sociedade (Durkheim, 1995, p.19-20).

Representação em Chartier

Em “O mundo como representação”, Roger Chartier (1991CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, v.5, n.11, p.66, jan./abr. 1991.) parte da constatação de que, àquela altura, a história ainda era vista como uma disciplina “sadia e vigorosa”, também “atravessada por incertezas”. Em seu artigo, ele explicita os desafios e as potencialidades postas pelos encontros entre a história e outras áreas do conhecimento. Sem querer adentrar os questionamentos postos às ciências sociais e às próprias práticas de pesquisa, convém destacar aqui o lugar conferido pelo autor à ideia de representação em sua perspectiva de análise, herdeira de teorias elaboradas no seio das ciências sociais e, mais especificamente, da sociologia. Aqui pode-se destacar autores como Émile Durkheim, passando por Norbert Elias até Pierre Bourdieu (Jodelet, 2001JODELET, D. (Org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001.).

Negando o primado do recorte social como única entrada das diferenciações e das partilhas culturais e renunciando a uma divisão rigidamente hierarquizada das práticas e das temporalidades (econômicas, sociais, culturais, políticas), Chartier (1991CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, v.5, n.11, p.66, jan./abr. 1991.) considera que toda prática ou estrutura resulta de representações, contraditórias ou em disputa, por meio das quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles. Ao abandonar os recortes quantitativos do econômico e do social e afastar-se das noções de classe ou mentalidade, a obra de Chartier (1991) reúne investigações que atentam para a maneira como um grupo elabora, vive e pensa sua vida. É nesse sentido que a noção de representação, sobretudo a de representação coletiva, é essencial em suas interpretações. Ela engloba as práticas a partir das quais uma determinada identidade social é reconhecida, permitindo assim que os grupos classifiquem e recortem a realidade e marquem aí sua existência (Chartier, 1991). Na sua obra, as representações servem como categoria de análise do conhecimento, como fenômeno ou prática, capaz de construir as divisões e classificação do mundo social. “Não existe história possível se não se articulam as representações das práticas e as práticas da representação.” (Chartier, 2004, p.18) Além disso, “toda história, quer se diga econômica, social ou religiosa, exige o estudo dos sistemas de representação e dos atos que eles geram. Por isso, ela é cultural” (Chartier, 2011a, p.15-29).

Nota-se na obra de Chartier significativa abertura para o estudo de textos do gênero literário. Para ele, os documentos são também construídos no âmbito das representações e o que importa em sua análise é trabalhar a relação delas com as práticas sociais. Seu intuito é compreender de que modo a circulação do texto dá a conhecer realidades, autoriza pensamentos, mobiliza determinadas relações (Chartier, 1991). Em seu entender, há que atentar para o encontro entre “o mundo do texto” e o “mundo do leitor”, reconhecendo a diversidade das práticas de leitura em tempos, lugares e espaços determinados, bem como às múltiplas significações de um texto decorrentes das formas pelas quais ele é recebido pelos seus leitores. Inspirado em Michel de Certeau (1994CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano - 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.), Chartier pensa também as possibilidades de transgressão de sentido. Suas reflexões enraízam-se em torno de três polos:

[...] de um lado, o estudo crítico dos textos, literários ou não, canônicos ou esquecidos, decifrados nos seus agenciamentos e estratégias; de outro, a história dos livros e, para além, de todos os objetos que contém a comunicação do escrito; por fim, a análise das práticas que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos, produzindo assim usos e significações diferençadas. (Chartier, 1991CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, v.5, n.11, p.66, jan./abr. 1991., p.178)

Chartier vem sendo lido por um público vasto e diversificado, ligado à literatura, filologia, pedagogia e, especialmente, à história da educação. No Brasil, “desde o final dos anos 1980, [...] seus escritos chegaram ao meio acadêmico por meio de edições hispano-americanas, portuguesas, francesas; na década de 1990, por edições nacionais” (Biccas, 2017_______. Roger Chartier: contribuições para a história da educação. In: LOPES, E. M.; FARIA FILHO, L. M. de. (Org.) Pensadores sociais e história da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. v.2, p.269-98., p.270). Ele figura entre as referências mais usadas entre os historiadores da educação, como atesta o balanço da produção feita por Denice Catani e Luciano Mendes de Faria Filho (2002CATANI, D. B.; FARIA FILHO, L. M. de. Um lugar de produção e a produção de um lugar: a história e a historiografia divulgadas no GT História da Educação da ANPEd (1985-2000). Revista Brasileira de Educação, n.19, p.113-28, jan./abr. 2002.) junto à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), considerando as produções da área entre 1985 e 2000. Ressalte-se também o texto de Marta Maria Chagas de Carvalho (1998CARVALHO, M. M. C. de. A configuração da historiografia educacional brasileira. In: FREITAS, M. C. (Org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. p.329-53.) sobre a historiografia educacional brasileira. O olhar sobre essa produção permite notar como a noção de representação, nos termos em que é pensada por Roger Chartier, dá luz a processos variados, amplos e complexos, envolvidos na difusão e consolidação da escola moderna e das práticas aí engendradas. Suas explicações conduzem a pensar nos modos pelos quais alunos e professores são orientados em seu ofício, quais ideias perfazem seus ideais e são dadas a ler nos mais variados textos feitos para ensinar e aprender, entre os quais podemos mencionar, por exemplo, os materiais de instrução, os guias curriculares, os cadernos, os livros didáticos, as leis de ensino. Como diria Chartier (1998, p.8), são textos que tentaram impor uma “ordem” às práticas de leituras, nas quais podemos incluir aqui as leituras da escola.

O livro sempre visou instaurar uma ordem; fosse a ordem de sua decifração, a ordem no interior ele deve ser compreendido ou, ainda, a ordem desejada pela autoridade que o encomendou ou permitiu sua publicação. [...] A ordem dos livros também tem um outro sentido. Manuscritos ou impressos, os livros são objetos cujas formas comandam, se não a imposição de um sentido ao texto que carregam, ao menos os usos de que podem ser investidos e as apropriações às quais são suscetíveis.

Além de assinalar as “ordens” dos livros, o historiador destaca que eles estão suscetíveis a leituras múltiplas e móveis, variáveis de acordo com os tempos, lugares e comunidades. É nesse sentido que entre os textos e suas compreensões se chega a outro conceito apresentado por Chartier (2002_______. A história cultural: entre práticas e representações. 2.ed. São Paulo: Difel, 2002.): o de apropriação. Trata-se de entender os usos e as interpretações às quais um pensamento é suscetível. Chartier (2002) recusa a manipulação de juízos de valores sobre os sentidos atribuídos aos textos. Não há uma leitura certa ou errada. As interpretações projetadas sobre um determinado texto são plurais e possuem relação direta com as condições sociais da leitura, com a materialidade do texto e as técnicas de escrita.

Observando trabalhos que versam sobre histórias de leituras especificamente “profissionais” (a título de exemplo, trabalhos como os de Catani, 1994CATANI, D. B. Ensaios sobre a produção e circulação dos saberes pedagógicos. São Paulo, 1994. Tese (Livre-Docência) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.; Biccas, 2008BICCAS, M. de S. O impresso como estratégia de formação de professores: o caso da Revista do Ensino (1925-1940). Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008.; Silva, 2018SILVA, V. B. Saberes em viagem nos manuais pedagógicos: construções da escola em Portugal e no Brasil (1870-1970). São Paulo: Editora Unesp, 2018.), temos um campo de pesquisas razoavelmente bem constituído na área educacional, os quais permitem conhecer e analisar textos que ordenaram em suas páginas uma cultura profissional do professorado (Perrenoud, 1993PERRENOUD, P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação. Lisboa: Dom Quixote, 1993.). O que se tem em mente é um amplo conjunto de práticas, dentre as quais estão as tarefas cotidianas na sala de aula, a convivência com os alunos, a conversa cotidiana com os colegas, a partilha de uma identidade comum, a integração de experiências pessoais às atividades de trabalho, bem como a assimilação, durante a formação inicial, de valores, competências, crenças, hábitos e conhecimentos que buscam instaurar modalidades de interpretação e ação junto às situações de ensino. Nessa perspectiva de análise, os livros didáticos, os manuais pedagógicos, a imprensa de ensino, a legislação específica são exemplos de gêneros de textos que pretendem incorporar nos indivíduos os gestos necessários ou convenientes (Chartier, 2002_______. A história cultural: entre práticas e representações. 2.ed. São Paulo: Difel, 2002.). Produzir esses textos significou exercer, de algum modo e a distância, a autoridade de instruir e controlar o trabalho docente, pois eles permitiram divulgar, instaurar e impor modos de compreender e conceber o exercício do magistério. Em meio à sua produção e circulação é que vem se construindo as representações sobre a escola, a sala de aula e seus modos de funcionamento.

Considerações finais

As heranças das nossas experiências escolares e os desafios postos pela pandemia nos conduzem inevitavelmente à revisão dos modos de conceber os trabalhos de alunos e professores, enfim, das atuais concepções do ensino e da sala de aula. A noção de representação, tal como desenvolvida em seus respectivos modos, por autores como Durkheim e Chartier, alude aos processos pelos quais nossa ideia acerca do ensino vai se constituindo. Os autores sinalizam a força dessas representações, bem como a coexistência de ideias convergentes e até mesmo em disputa. No caso das representações da sala de aula, que neste artigo estão em pauta, vale pontuar que, mesmo antes da disseminação da Covid-19, os educadores já reconheciam desde algum tempo contradições que impediam a matrícula e permanência de determinados grupos na escola, bem como o sucesso escolar de todos os alunos. Importante atentar, nesse sentido, para questões que despontam paramentadas de roupagem atual, moderna, as quais, num exame mais cuidadoso, com o auxílio da história da educação, vemo-las também atravessando o passado educacional em outros momentos. Entraves para se expandir vagas e garantir a qualidade do ensino, por exemplo, são aspectos de que vem se ocupando os educadores e continuam mobilizando múltiplas pesquisas e debates, assinalando as várias perspectivas de uma “crise” da escola (Boto et al., 2019). Portanto, antes que novidades em absoluto, as respostas acalentadas e oferecidas a fim de enfrentar os efeitos da Covid-19 reintroduzem dinâmicas e processos já experimentados, teorizados e/ou praticados pelos agentes educacionais em tempos pretéritos e que são reexaminados face às injunções do tempo presente. Temas assim associados ganham novos contornos com a pandemia, em que insuficiências e/ou precariedades apontadas em relação aos sistemas de ensino, como desempenho em avaliações de larga escala ou qualificação do pessoal docente, são considerados à luz dos supostos estrangulamentos da “escola tradicional”, representada a partir de rituais e recursos pedagógicos defasados.

Este ensaio deteve-se num dos aspectos envolvidos nessa “crise” que a pandemia aprofundou e deu novas nuances. Ao atentar especificamente para as experiências de ensino fora da sala de aula, interpela-se um conjunto de representações postas em jogo. Daí revisitar autores clássicos para pensar a educação - Durkheim e Chartier - e que, da perspectiva da sociologia e da história, permitem apreender as potencialidades de compreensão postas pela noção em pauta. Tal como se procurou mostrar, a especificidade das nossas mudanças é mais bem compreendida quando comparada com outras representações que, ao longo do tempo, foram conformando a escola. Durkheim, com suas representações coletivas, focalizou os efeitos dos processos de construção da escola de massas moderna, difundida e consolidada no decorrer dos séculos XIX e XX. Chartier encontra inspirações em Durkheim para tecer suas ideias sobre representação, colocando no centro de suas interrogações as múltiplas formas a partir das quais os grupos constroem os sentidos de suas práticas, imagens ou textos.

De certa maneira, a pandemia desconstrói representações razoavelmente consolidadas acerca dos modos de ensinar e aprender na escola. Fora das salas de aula - ilustradas de modo tão sugestivo e próximo a nós por Sempé e Goscinny (2012SEMPÉ, J.-J.; GOSCINNY, R. Le petit Nicolas. Paris: IMAV Editions, 2012.) - não se pode mais contar com a turma de estudantes reunidos ao mesmo tempo, num mesmo espaço físico, para aprender as mesmas lições professadas pelo professor, lidas no livro didático ou copiadas na lousa. As raízes do método simultâneo são postas em causa e reelaboradas. Daí motivar Roger Chartier, autor que tem participado ativamente de debates e eventos educacionais nos últimos tempos, a denominar em junho de 2020 o momento vivido pelo ensino como a “infinita tristeza do ensino fora da sala de aula”. Talvez não seja exagerado supor aqui que essa tristeza decorre da impossibilidade das trocas presenciais e da proliferação de outros formatos de ensino, das quais não podemos escapar nem mensurar com exatidão seus efeitos.

Tentando escapar tanto de um tom nostálgico lamentando as tradicionais formas de ensinar quanto de um tom entusiasmado com as formas virtuais de ensino, o presente artigo ancora-se na riqueza da noção de representação para se desviar de um perigoso anacronismo. Não se pode esquecer que a escola foi historicamente construindo suas representações e práticas diante de desafios específicos de determinados tempos e espaços. O método simultâneo foi fruto de estratégias conformadas entre finais do século XIX e início do século XX para atender de forma racional a um número crescente de alunos (Gallego, 2008GALLEGO, R. de C. Tempos e temporalidades e ritmos nas escolas públicas primárias em São Paulo (1846-1890). São Paulo, 2008. Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.). Os critérios de julgamento dessas práticas mudam e nossas tradições são reinventadas na medida que outras demandas são postas.

As mutações do presente vividas de forma tão intensa estão transformando nossas relações, os suportes de nossas lições, as técnicas de ensinar e aprender, assim como os nossos tempos e espaços. Não estamos mais nas salas de aula, pelo menos até quando se encontrem formas mais efetivas de proteção contra a Covid-19 em espaços compartilhados por muitas pessoas. Essas mudanças estão sendo discutidas e até preconizadas à exaustão. Alguns discursos tentam até conjurar o desaparecimento da escola em suas formas tradicionais. Afinal, o que concebemos e queremos da escola? Ao ser interrogado sobre o destino da escola, Roger Chartier (2020) responde “não sei”. É discutível a tese segundo a qual estamos diante do fim da escola. É provável que algumas tecnologias alimentem representações já conhecidas, aperfeiçoando modos de ensinar e aprender já conhecidos. Talvez valha a pena, tal como o historiador, sinalizar que, numa situação tão adversa quanto a nossa, podemos fortalecer representações mais voltadas à construção de uma escola que, efetivamente, se destine a todos. Como ele mesmo assinala, “podemos sonhar e agir juntos para que [o mundo pós-pandemia] seja menos cruel” (Chartier, 2020).

Referências

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Notas

  • 1
    Émile Durkheim nasceu em 1858 em Épinal, na região da Lorena, noroeste da França. Estudou na École Normale Supérieure, em Paris, e lecionou filosofia por alguns anos no ensino liceal. É considerado o grande impulsionador da sociologia na França, notadamente reconhecido pela sua responsabilidade em credenciá-la junto às instituições acadêmicas de prestígio. O avanço dos estudos sociológicos realizados por Durkheim foi alcançado por intermédio de sua atuação no domínio pedagógico, já que foi durante sua atuação como professor de Pedagogia e Ciências Sociais na Universidade de Bordéus (1887-1902) que publicou suas principais obras sociológicas. Em 1902 foi convidado a lecionar Sociologia e Pedagogia na Sorbonne, como assistente de Ferdinand Buisson na cátedra de Ciências da Educação. Em 1906 fundou o periódico L’Année Sociologique, mesmo ano em que, com a morte de Buisson, assume a referida cátedra, a qual é transformada, em 1910, em cátedra de Sociologia. Publicou obras de relevo para o campo das Ciências Sociais, como As regras do método sociológico, A divisão do trabalho social, A evolução pedagógica, O suicídio, Educação e sociologia e As formas elementares de vida religiosa, traduzidas para diversas línguas.
  • 2
    Roger Chartier nasceu em 1945 na cidade de Lyon, França. Estudou na Escola Normal Superior de Saint Cloud e na Universidade de Sorbonne. Historiador, foi titular da cátedra “A escrita e as culturas na Europa moderna” junto ao Collège de France, também foi, entre outras atividades, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales. É autor de uma vasta obra, desenvolvida na perspectiva da história cultural, investigando o mundo da escrita, o livro, as práticas de leitura, a materialidade dos escritos, a autoria e os gêneros literários, sobretudo na Europa do Antigo Regime. Suas primeiras publicações datam dos anos 1970 e compreendem sobretudo trabalhos com outros historiadores. Ele ainda conta com produções mais individuais, que datam principalmente dos anos 1980 em diante e inspiram ainda hoje inúmeras pesquisas em história da educação, daí tomá-lo como um autor central na formação de redes e centros de pesquisa. Ele atua no cruzamento de várias disciplinas, além da história, entre as quais podemos citar a sociologia, a linguística e a pedagogia. Entre seus livros, podemos citar: O sociólogo e o historiador (2012); A mão do autor e a mente de editor (2014); Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura (2007); A história ou a leitura do tempo (2009) e vale destacar sua famosa conferência no Collège de France, proferida em 2007 e intitulada “Escutar os mortos com os olhos”.
  • 3
    No Brasil, desde a promulgação da Lei n.9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), integram a Educação Básica três níveis de ensino: a Educação Infantil, para crianças a partir dos 4 anos de idade; o Ensino Fundamental, desde a Lei n.11.114 de 2005 com duração de 9 anos, iniciando a partir dos 6 anos de idade; e o Ensino Médio, com duração de 3 anos.
  • 4
    Durkheim chegou a cunhar uma expressão própria para caracterizar tal disjuntiva - homo duplex (Pinheiro Filho, 2004, p.140).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2021
  • Aceito
    29 Jun 2021
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