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Michel Foucault1 1 Michel Foucault nasceu em 15 de outubro de 1926, em Poitiers. Cursou a École Normale Supérieure; aos 22 anos, licenciou-se em Filosofia e, aos 23, em Psicologia. Aos 35 anos, defendeu a sua tese de doutoramento - Folie et déraison -, posteriormente publicada com o título História da loucura (1961). Direcionou suas atenções de pesquisa para a problematização das ordens dos saberes, das engrenagens institucionais e das artes de existir, para ficarmos em alguns dos eixos principais de sua vastíssima produção intelectual que abarca múltiplas experiências de escrita, aulas, entrevistas, palestras. Em 12 de abril de 1970, aos 43 anos, foi eleito para o Collège de France. Nessa Instituição, foi o responsável pela cátedra História dos Sistemas de Pensamento de 2 dezembro de 1970 até 25 de junho de 1984, data do seu falecimento em Paris. Suas reflexões têm contribuído para a emergência de diferentes interlocuções e debates em diversas áreas do conhecimento, como a Filosofia, História, Medicina, Direito, Antropologia, Psicologia e Pedagogia. em (de)formações: sobre clássicos e usos em História da Educação

RESUMO

O artigo focaliza a chamada história genealógica, sublinhando as principais categorias mobilizadas por Michel Foucault, consideradas como ferramentas alternativas para o exercício de produção de sentidos sobre acontecimentos diversos. Em seguida, explora as apropriações de Foucault no campo da História da Educação, a partir do conjunto de artigos publicados na Revista Brasileira de História da Educação, de 2001 a 2021. Esse percurso de análise foi construído com o anseio de pensarmos esse autor como um clássico que, ao sofrer (de)formações, pode contribuir para a emergência de outras ênfases interpretativas nos estudos educacionais.

PALAVRAS-CHAVES:
História da Educação; Michel Foucault; Genealogia; Revista Brasileira de História da Educação

ABSTRACT

The article focuses on genealogical history, highlighting the main categories mobilized by Michel Foucault and considered as alternative tools to produce meaning about diverse events. It then explores Foucault’s appropriations in the History of Education, from the set of articles published in the Revista Brasileira de História da Educação [Brazilian Journal of the History of Education] from 2001 to 2021. This course of analysis arose from the desire to think Foucault as a classic who, by undergoing (de)formations, can contribute to the emergence of other interpretative emphases in educational studies.

KEYWORDS:
History of education; Michel Foucault; Genealogy; Brazilian Journal of the History of Education

Introdução

“Vários, como eu sem dúvida, escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever.”

(Foucault, 2008aFOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008a., p.20)

Os clássicos que escolhemos como nossos. Esse mote que anima o dossiê é mesmo instigante, porquanto nos convida a refletir sobre as leituras que contribuíram (e, de certo modo, permanecem contribuindo) para que nos modifiquemos a cada (re)encontro (Calvino, 1993CALVINO, I. Por que ler os clássicos? São Paulo: Cia. das Letras, 1993.). A esse respeito, de largada, convém realçar que o nosso clássico tanto defendia que seus escritos fossem compreendidos como experiências transformadoras de si quanto destacava a necessidade de que nossos autores sofressem (de)formações.

Afinal, a tentativa de escapar daqueles que eram (ou pretendiam que fossem) os contornos do conhecido, do familiar, do mesmo ou do previsível em relação às suas análises se caracterizou como algo constante nas pesquisas, nas aulas, nas entrevistas, nas palestras e nas experiências de escrita de Michel Foucault. Com efeito, um rosto, um nome próprio, uma voz autorizada, uma assinatura - sob o seu olhar crítico - se configuravam como circunstâncias que tencionavam anteceder, antecipar, estabelecer traços de continuidade, enfim, estabilizar e aprisionar o pensamento. Daí o seu brado para que o deixassem ser livre para escrever, para refletir, para estudar.

Tais considerações concorrem para que a seleção de Michel Foucault como um dos nossos clássicos converta-se em um terreno minado, em uma tarefa arriscada. Isso porque esse clamor por liberdade o impulsionou, por diversas oportunidades, a se debruçar sobre a investigação de táticas, deslocamentos, descontinuidades e rupturas que lhe ensejassem condições para guerrear contra o que se apresentava como estável, contínuo e linear. Essas modalidades de investimentos propiciaram as condições para que problematizasse a ordem dos saberes, as engrenagens institucionais e as artes de existir, para ficarmos em alguns dos eixos centrais dos seus estudos.

Dessa perspectiva, nos limites e recortes conferidos, optamos por focalizar algumas das contribuições de Foucault para o campo da História da Educação Brasileira. Para tanto, o artigo foi estruturado em três atos.

No primeiro ato, abordamos a chamada história genealógica, escrutinando as principais categorias de análise mobilizadas pelo autor; ferramentas consideradas necessárias para o exercício (nunca acabado) de produção de sentidos sobre acontecimentos diversos. O segundo se detém, com especial atenção, sobre as contribuições para repensar as relações estabelecidas entre presentes, com foco no estudo das apropriações do nosso clássico no campo da História da Educação, tendo em consideração os artigos publicados na Revista Brasileira de História da Educação (RBHE) de 2001 a 2021. No terceiro ato, elaborado a título de considerações finais, procuramos considerar os usos variados de enunciados instaurados em cadeias discursivas complexas e infinitas e, com isso, sinalizar a potencialidade de outras (de)formações que podem, ainda, emergir.

A história genealógica: sobre acidentes, imprevistos e proveniências

“Papai, então me explica para que serve a história?” (Bloch, 2001BLOCH, M. Apologia à história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p.41). Essa indagação, que à primeira vista pode soar demasiadamente ingênua, reveste-se de dramaticidade se for entrelaçada a algumas informações adicionais. Preso e torturado pela Gestapo,2 2 Criada por um decreto do ministro do Interior da Prússia, Hermann Göring, em 1933, a Gestapo surgiu da necessidade de o regime nazista controlar seus adversários políticos, funcionando, igualmente, para vigiar e punir seus próprios pares. Marc Bloch principiou a elaboração de anotações que tinham como propósito destacar - também para o filho - algumas das características envolvidas no ofício do historiador.3 3 Essas anotações vieram à lume em 1949 numa reunião elaborada por Lucien Febvre. Posteriormente, seu filho Étienne Bloch organizou uma nova publicação. Neste texto, trabalhamos com a versão para o português (Bloch, 2001). Nessas reflexões que não puderam ser finalizadas,4 4 Em 16 de julho de 1944, Marc Bloch foi fuzilado pela Gestapo. enfatizava a argumentação de que a História necessitava ser compreendida como aquela ciência que investiga as ações dos sujeitos sociais no tempo. Por isso mesmo, sentenciava que a atenção dos historiadores deveria ser direcionada para essas ações em intervalos de duração variados. Desse modo, como o “ogro da lenda”, caberia aos historiadores procurar a “carne humana”, farejando-a nas diversas temporalidades (curtas, longas, simultâneas, concorrentes) que interferiam (e, a de certa forma, continuam interferindo) nas relações, permanências e transformações dos mais diversos fenômenos sociais e culturais (Bloch, 2001, p.54).

Relembrar as circunstâncias do exercício autoral de Bloch se configura em condição necessária para comentar o teor de suas anotações, o que sinaliza para a estratégia escriturária que adotamos, com o anseio de ressaltar duas principais dimensões. A primeira diz respeito à questão de que o campo historiográfico, há bastante tempo, vem se interessando, cada vez mais, pelos debates relacionados à construção de narrativas e à fixação de determinados sentidos. A segunda, em contraponto aos inúmeros revisionismos e negacionismos que têm assombrado a nossa contemporaneidade,5 5 A alusão, aqui, é para certas discursividades que vêm sendo acionadas, especialmente a partir da ascensão de plataformas alinhadas com a extrema-direita que conquistaram espaço em diferentes países (Alemanha, Brasil, Chile, Espanha, Estados Unidos, para ficarmos em alguns exemplos). Nessa linha, os revisionistas investem em “reinterpretações distorcidas” de acontecimentos com o objetivo de (re)significá-los. Já os negacionistas colocam sob suspeita a ocorrência de acontecimentos como a ditadura, o holocausto, o nazismo, escravidão, o aquecimento global, a contundência do surto pandêmico da Covid-19 etc. Por vezes, no caso da História, os dois conceitos aparecem como sinônimos Valin e Chauvin (2019). aponta para a necessidade de que nunca nos esqueçamos das atrocidades e horrores que já foram empreendidos para que, quem sabe, assim, aceitemos o desafio de não deixar que despontem novamente.

Em sua tessitura argumentativa condizente às artes de fazer dos historiadores, Bloch (2001BLOCH, M. Apologia à história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p.56) advoga que a História deveria evitar a “idolatria” ou “obsessão” das origens, visto que, via de regra, “as origens são um começo que explica. Pior ainda: que basta para explicar. Aí mora a ambiguidade; aí mora o perigo” (ibidem, p.57).

A rigor, essa crítica à busca/obsessão pelas origens na reflexão histórica conheceu diferentes matizes (Funari; Silva, 2008FUNARI, P. P. A.; SILVA, G. J da. Teoria da história. São Paulo: Brasiliense, 2008.). Em um esforço de síntese - que precisa ser compreendido como incompleto e provisório - pode-se afirmar que, sob diferentes angulações, foi-se fortalecendo a perspectiva de que a investigação sobre o passado deveria voltar suas atenções para acontecimentos inesperados, imprevistos e desestabilizadores que, junto com as permanências e continuidades, acarretaram interferências nas necessidades e exigências sociais em diferentes períodos históricos (Silva; Lemos, 2013).

No que tange aos diferentes matizes, nos recortes efetivados nesta reflexão, um nos interessou de modo particular. A alusão, neste ponto, é para a história genealógica escrutinada por Foucault a partir de um profícuo diálogo com Nietzsche (Foucault, 2008b_______. Nietzsche, a Genealogia e a História. In: MACHADO, R. (Org.) Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008b.; 2018). De partida, realçou que a genealogia se opunha à pesquisa da origem, posto que, para ele, o que se encontrava no começo histórico das coisas não era a identidade ainda preservada da origem. Ao contrário, os começos são marcados por discórdias entre as coisas, disparates. Em seguida, ironicamente, pontuou que “a história ensina também a rir das solenidades da origem” (Foucault, 2008b, p.18); para, finalmente, destacar que “fazer genealogia [...] é se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos”, já que seria “preciso saber reconhecer os acontecimentos da história, seus abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas” (ibidem).

Antes de prosseguir, a menção a um acontecimento que estabelece interlocuções com os aludidos sorrisos irônicos em relação às solenidades das origens se torna operatório para que melhor compreendamos as articulações da história genealógica com os acasos do começo. Se concordamos que a História é a ciência que estuda as ações dos sujeitos sociais no tempo, os seus nascimentos poderiam ser caracterizados como “ocasiões originárias” e, portanto, disparadoras do fazer historiográfico. É, justamente, aí que a perspectiva genealógica nos faz sorrir dessa ordem explicadora que acompanha a mitologia das origens. Afinal, nunca é demais recordar que:

Fomos gerados pela união de um único espermatozoide que atingiu o óvulo antes de milhões de competidores. Houvesse sido outro, nós não seríamos nós. Teria havido neste caso um outro filho em nosso lugar, habitando nossa casa e tendo os mesmos pais, provavelmente com o mesmo nome que o nosso e que, no entanto, seria outra pessoa. Mais ainda, se nossos pais houvessem se casado com mulheres diferentes, teriam sido outros genes e outro o filho gerado. E nossos pais só se casaram com nossas mães porque os pais de nossos pais se casaram com as mães de nossas mães, e assim por diante, por todas as gerações. (Horowicz; Py, 2018HOROWICZ, R.; PY, L. A. Fracasso e acaso: uma reflexão sobre erros, acertos e o papel do aleatório em nossas vidas. Rio de Janeiro: Rocco, 2018., p.32-3)

Como se observa, os autores questionam as ocasiões que, com frequência, permanecem ainda sendo interpretadas como “originárias” ou “seminais”. No entanto, esses esforços de análise que tencionam empreender um curso previsível aos nascimentos terminam por subsumir os imprevistos, os acidentes e os desvios que estiveram (e permanecem) nos momentos que antecedem e acompanham esses acontecimentos. Precisamente por abrir margem para a problematização desses aspectos, para Foucault (2008b_______. Nietzsche, a Genealogia e a História. In: MACHADO, R. (Org.) Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008b.), a história genealógica se constitui como de importância fundamental para o exercício de produção de sentidos para os tempos pretéritos. Bastante distante da pretensão de “recuar no tempo para restabelecer uma grande continuidade” (ibidem, p.21), ela vai se interessar pelas proveniências que devem ser investigadas como marcas sutis, aqueles erros, aquelas falhas e dobras que “deram nascimento ao que existe e tem valor para nós” (ibidem).

Desse quadro geral, se até os nascimentos podem (ou, mais ainda, devem) ser perscrutados a partir, também, da impossibilidade de se vislumbrar uma inequívoca “origem” - o que nos possibilita refletir sobre o que esteve fora do ordenamento, da coerência, do esperado e do contínuo -, o que pensar das relações de força, das disputas, das negociações, das tensões que atravessam e interferem as necessidades e exigências sociais em diferentes períodos históricos? Para essas indagações, com Foucault, é possível firmar o seguinte encaminhamento: no horizonte de interesses de uma óptica genealógica deve ser incluída a preocupação em estabelecer um recorte problematizador que se encarregue de explicitar, especialmente, os parâmetros que balizaram a sua delimitação; as dimensões consideradas; o que elas concorreram por fazer emergir; o que não foi possível abarcar.

Nesse ponto, muito mais do que algo que possa assinalar para uma estabilidade que antecede às intencionalidades da investigação - que se encontraria dado pela “solenidade da origem” -, as próprias dificuldades envolvidas em estipular essas emergências - sempre plurais, desordenadas, incertas, incompletas - podem e devem integrar o repertório daquilo que necessita também ser esmiuçado pelo genealogista. A saber, esses pontos de emergência e despontamentos não são dados, mas, sobretudo, se afiguram como construções que dizem respeito à artesania da pesquisa da proveniência. Pelas palavras de Foucault (2008b_______. Nietzsche, a Genealogia e a História. In: MACHADO, R. (Org.) Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008b., p.21):

A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido, ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo.

Na tessitura argumentativa orquestrada por Foucault, essa ênfase acentuada no desarranjo e na desestabilização foi empregada como uma estratégia para sublinhar uma viragem nas maneiras de se pensar a produção do conhecimento histórico. Naquilo que denominou como história efetiva, junto aos realces conferidos à genealogia, à proveniência e à emergência, dedicará atenção à questão de que os sentidos históricos são, sobretudo, saberes perspectivos.

Quer isso significar que, no lugar de sonhar com uma produção sobre o passado livre das interferências daqueles responsáveis por suas elaborações - algo que sinalizaria para uma pretensa “neutralidade” do discurso histórico -, a história efetiva perspectiva, reinstaura e, fundamentalmente, valoriza os recortes, as angulações prestigiadas, as apreciações, enfim, as incompletudes e tomadas de posição dos historiadores (Foucault, 2008b_______. Nietzsche, a Genealogia e a História. In: MACHADO, R. (Org.) Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008b., p.30).

Dito de outra maneira, os historiadores não estariam do “lado de fora” da trama histórica que, porventura, almejam narrar - e isso, sob hipótese alguma desabonaria as costuras argumentativas empreendidas. Antes, sublinhar as escolhas, as seleções e as opções utilizadas fortalece a posição de que nada que concerne aos tempos pretéritos nos foi dado. Essas ponderações concorreram por produzir (re)significações - e nem poderia ser diferente - nas relações mesmas estabelecidas entre a História e os documentos:

O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações. (ibidem, p.7)

Investir na ideia de que os historiadores não se encontram do “lado de fora” da narrativa e, igualmente, na concepção de que os documentos não são “matérias inertes”, que facultariam as condições para a reconstituição do que se sucedeu, aponta para uma direção particular. Nesse caso, estamos nos referindo a um distanciamento da chamada história efetiva em relação à outras miradas históricas que teriam, segundo a perspectiva crítica de Foucault (2008b_______. Nietzsche, a Genealogia e a História. In: MACHADO, R. (Org.) Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008b., p.26): “por função recolher em uma totalidade bem fechada sobre si mesma a diversidade [...]; [ou] que nos permitiriam nos reconhecermos em toda parte e dar a todos os deslocamentos passados a forma da reconciliação”.

Acontecimentos inesperados, imprevistos e desestabilizadores; acasos do começo; disparates; abalos e surpresas. Ao sublinhar a imprescindibilidade de atentarmos para essas dimensões, Foucault coloca em xeque muitas das certezas que permaneciam sendo trabalhadas por aquilo que denominou de história tradicional. Em relação a isso, enfatiza que o debate sobre os diferentes sentidos históricos pode “tornar-se um instrumento privilegiado da genealogia se ele não se apoia sobre nenhum absoluto. Ele deve ter apenas a acuidade de um olhar que distingue, reparte, dispersa, deixa operar as separações e as margens” (ibidem, p.27).

Dessa perspectiva, no que se refere às possíveis serventias da História - para retornarmos à epígrafe - Foucault (2008b_______. Nietzsche, a Genealogia e a História. In: MACHADO, R. (Org.) Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008b.) defenderá três principais usos: o paródico e destruidor da realidade; o dissociativo e destruidor da identidade; o sacrificial e destruidor da verdade. A insistência na destruição justifica-se. Afinal, a história genealógica não “busca o reconhecimento de continuidades em que se encontra o começo de nosso presente, num processo contínuo de preservação; ao contrário, [...] propicia a quebra de nossas identidades, mostrando múltiplas possibilidades e a heterogeneidade” (Resende, 2020RESENDE, H. A genealogia de Michel Foucault e a história como diagnóstico do presente: elementos para a História da Educação. Cadernos de História da Educação, v.19, n.2, p.335-44, 2020., p.340).

Não é o caso, portanto, de promover um retorno ao passado com o fito de tentar encontrar as origens, as causas e as explicações que justifiquem o que nos tornamos. Antes mais, trata-se de incidir o foco nas (in)suficiências, nas (in)certezas, nas (im)previsibilidades e (in)completudes que, junto aos planejamentos e prospecções, foram experienciadas por diversos sujeitos sociais (mulheres, homens e crianças) que nos antecederam em seus diferentes presentes e que não poderiam ter total certeza para onde os seus (des)caminhos trilhados, suas expectativas imaginadas e suas angústias vivenciadas os levariam (Silva; Lemos, 2013SILVA, J. C. S.; LEMOS, D. C. de A. A História da Educação e os desafios de investigar outros presentes: algumas aproximações. In: FERREIRA, M. S.; XAVIER, L. N.; CARVALHO, F. G. (Org.) História do currículo e história da educação: interfaces e diálogos. Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2013.).

Como se pode notar, as características da história genealógica ocuparam lugar especial em nossa argumentação. Esse foi o expediente que mobilizamos com a pretensão de demonstrar o porquê de termos escolhido esse clássico para balizar as reflexões em torno da circulação, apropriação e alguns dos efeitos dos trabalhos de Foucault no campo da História da Educação.

“Agitar o imóvel”: as histórias da educação em destaque

As postulações de Foucault têm sido objeto de uma ampla difusão em diferentes domínios, na Europa e em outros continentes.6 6 A respeito das relações de Foucault com os historiadores na França: Chartier (2002a; 2002b; 2010); Revel (2009; 2010), Le Goff (2003) e Veyne (1998; 2008), para ficarmos em alguns exemplos. Para o caso dos Estados Unidos: Coloma (2011). No Brasil, nos campos da História7 7 Albuquerque Jr. (2007) e Rago (1995; 2020); dentre outros. e da Educação, esse fenômeno também pode ser observado, notando-se, nesse caso, apropriações muito heterogêneas, recobrindo um conjunto impreciso de modos de pensar e produzir conhecimento nesses vastos domínios. Por suposto, não se trata de uma especificidade do campo educacional, pois algo assemelhado se processa no universo do direito, da medicina e da psicologia, para ficarmos em alguns exemplos.8 8 Sobre a circulação dos trabalhos de Foucault no Brasil: Machado (2017); Rodrigues (2012; 2016), dentre outros.

Neste texto, retomamos alguns investimentos9 9 A esse respeito, ver Gondra (2011, 2020) e Gondra e Kohan (2006). para pensar aproximações, agenciamentos e potencialidades das proposições assumidas por Foucault no debate historiográfico, a partir do campo da História da Educação no Brasil.

O exercício realizado consistiu em converter a Revista Brasileira de História da Educação (RBHE) em arquivo. A respeito disso, cabe registrar que o periódico em questão é uma iniciativa patrocinada pela Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE),10 10 A SBHE foi criada em 1999. A respeito da SBHE, ver: <www.sbhe.org.br>. tendo sido publicado o primeiro número em 2001, contando, até o momento, com 51 edições,11 11 A partir de 2018, a revista passou a adotar o sistema de publicação contínua. Desse modo, o número 51, de 2021, tem 19 artigos publicados. com um total de 331 artigos,12 12 Computamos os artigos, desconsiderando as resenhas, notas de leitura e entrevistas. 19 dossiês (com um total de 116 artigos) e presença de autores de várias instituições do Brasil e do exterior.13 13 Sobre a história da RBHE, ver Vieira e Gondra (2015).

Quanto ao universo temático da RBHE, nota-se a produção de recortes bem específicos, como a questão da história do livro e da leitura, ideias pedagógicas, profissão docente, disciplinas escolares, debates teórico-metodológicos, educação de negros, público e privado e ensino de História da Educação, por exemplo. Nesse caso, a recusa às explicações monocausais e geométricas também se constitui em uma marca da produção disseminada nesse periódico. No que se refere à presença foucaultiana, entre os números 1 (2001) e 51 (2021), há 100 artigos que empregam as contribuições deste autor, em 32 números.14 14 Trata-se dos números 1, 3, 5, 7, 8, 9, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 20, 23, 26, 28, 29, 30, 31, 33, 35, 36, 37, 38, 40, 44, 45, 47, 48, 49, 50 e 51. Agradecemos imensamente a Eliane Reis, Luana Goulart e Mariane da Silva, alunas do Curso de Pedagogia da UERJ e bolsistas de IC o cuidadoso levantamento na coleção da RBHE.

A título de exemplificação, o primeiro artigo em que se verifica tal presença é o de David Hamilton (n.1, 2001), professor na Universidade de Umea, Suécia, intitulado “Notas de lugar nenhum: sobre os primórdios da escolarização moderna”. Nesse texto são abordadas as iniciativas inovadoras dos métodos de ensino no século XVII e a referência a Foucault se dá por meio do livro Discipline and punish, de modo a apoiar a tese de que a disciplina e a didática poderiam promover uma disciplina mental ou inculcar uma disciplina corporal, prefigurando a modelagem de corpos dóceis, passíveis de serem ensinados.

Em outro artigo, Antônio Basílio Novaes Thomaz de Menezes e Juliana da Rocha e Silva (n.40, 2016) remetem a um livro de Foucault e a duas coletâneas, organizadas por seus estudiosos: A ordem do discurso; Microfísica do poder e Foucault: uma trajetória filosófica - para além do estruturalismo e da hermenêutica. Nesse caso, a visibilidade é conferida a um livro do autor, a uma coleção de textos reunidas por Roberto Machado e, por fim, a um livro de dois estadunidenses: Hubert Dreyfuss e Paul Rabinow. Ao lado desses sinais preliminares, nos três casos, o que se consome é um Foucault traduzido, aspecto ao qual voltaremos para caracterizar a biblioteca dos autores em seus diálogos.

O último artigo em que Foucault é referido também é de um estrangeiro (n.51, 2021). Nesse caso, o autor mobiliza um livro e uma coletânea, ambos traduzidos para a língua materna do autor: Historia de la sexualidade I e Microfísica del poder. Como se sabe, o primeiro integra uma série composta por quatro volumes, sendo o último publicado em 2020, e o segundo corresponde a uma coletânea que tem arranjos variados, a depender do país e da editora responsável pela publicação.

Nesses três casos, selecionados com um alto nível de aleatoriedade, o que se observa é um modo de uso dos autores, processado em um nível celular, seja para apoiar a reflexão relativa a uma questão bem específica, seja para indicar um tipo de compreensão do problema que se encontra em análise: a escolarização, a higiene mental e um saber a ser escolarizado.

Menos arbitrário que esse primeiro nível de aproximação, realizamos um mapa dos textos utilizados, tornando visível a série de escritos de Foucault - nosso clássico - que os historiadores da educação têm recorrido para fertilizarem seus estudos. Esse investimento incidiu o foco na RBHE, analisando os artigos publicados entre 2001 e 2021, como recurso para explorar uma dupla interrogação: qual e por que Foucault?15 15 Para um estudo anterior com essa preocupação, mas recobrindo o período entre 2001 e 2004, ver Gondra (2011).

No arquivo constituído a partir dessa dupla interrogação, Foucault aparece de vários modos. Uma primeira classificação consiste em distinguir os que citam os trabalhos de Foucault e os que recorrem a alguns de seus inúmeros comentaristas.

Pela via direta, temos um mapa com 62 textos. Há interlocuções com livros integrais, coletâneas e textos avulsos, alguns em língua francesa, espanhola, inglesa e portuguesa. As remissões ao Foucault em outros idiomas integram os textos de autores de outros países, como Portugal, México, Espanha e Argentina, e de dois artigos de brasileiros. Prevalece, assim, o Foucault na língua materna dos autores, explicável pela barreira da língua; não apenas da parte dos brasileiros, algo que aponta, inclusive, para o tipo de produção que é apropriada, isto é, aquelas traduzidas, o que ajuda a compreender a rarefação dos escritos em francês e, sobretudo, a larga difusão de textos em diversos idiomas. Mas, afinal, qual Foucault vem sendo consumido pelos historiadores da educação que publicaram na RBHE ao longo dos seus vinte anos de existência?

Os mais rarefeitos, com até cinco remissões, compõem uma subcoleção na qual encontramos os seguintes trabalhos: As palavras e as coisas; O sujeito e o poder; Em defesa da sociedade; História da sexualidade II; História da sexualidade III; O que é um autor?; Power/Knowledge: selected interviews & other writings; 16 A escrita de si; Os anormais; A hermenêutica do sujeito; O governo de si e dos outros; A coragem da verdade; Tecnologías del yo; O belo perigo; Os intelectuais e o poder; Les techniques de soi; Sobre as maneiras de escrever a história e Nietzsche, la généalogie, l’histoire.

Entre 6 e 9 ocorrências, localizamos: A ordem do discurso; Segurança, território, população e História da sexualidade I. Os mais regulares recobrem os que foram referidos mais de 10 vezes. Nesse caso, temos: Arqueologia do saber (10) Microfísica do poder (14) e Vigiar e punir (20).

Uma primeira aproximação com essa biblioteca permite perceber que o foco da recepção se dá em torno dos estudos que incidem, com mais centralidade, nas temáticas da verdade e do poder e, menos, em torno da temática da estética da existência, possível de ser atestado pela recorrência significativa ao curso Segurança, território, população, à coletânea Microfísica do poder e ao livro Vigiar e punir, concentrados na questão do poder. No que se refere ao debate relativo à verdade, esse pode ser associado aos livros Arqueologia do saber, História da sexualidade I e As palavras e as coisas, bem como ao texto A ordem do discurso, conferência inaugural de ingresso no College de France, em 1970.

Se a disponibilidade do texto em língua portuguesa se constitui em elemento a ser considerado, ele permite compreender parte da visibilidade. Outro ponto a ser sublinhado para analisar o jogo da circulação-apropriação se relaciona às temáticas consagradas e emergentes no campo da História da Educação, bem como à renovação historiográfica operada dos domínios da História, a partir dos finais dos anos 1980.17 17 A esse respeito, ver Carvalho e Nunes (2005). No que se refere às temáticas tratadas nos artigos que operaram com algumas das ferramentas da caixa de Foucault, arriscamos uma taxonomia dessa coleção,18 18 Ainda que um dos objetivos fundamentais de qualquer taxonomia seja o de estabelecer uma circunscrição estável para cada grupo, consideramos a margem do arbitrário desse tipo de exercício, seja pelas zonas de exclusão que instituem, mas seja também pelas zonas de interseção que não são consideradas. Apenas um exemplo: um estudo sobre um sujeito, pode estar associado às políticas, impressos, disciplinas e instituições, dentre outras possibilidades. O esforço, portanto, consistiu em localizar a nervura central do artigo, mesmo reconhecendo a existência das nervuras radiais. associada aos textos mobilizados no tratamento das respectivas temáticas.

Tabela 1
Foucault na RBHE (2001-2021)

Esse censo indicia a centralidade dos temas associados ao poder e saber, ou melhor, ao entrelaçamento dessas duas instâncias como condição para pensar uma série de problemas distintos e conectados no campo da História da Educação. Essa evidência parece confirmar o deslocamento operado no campo, mesmo quando se trabalha com documentação distinta desta, como é o caso do estudo desenvolvido por Horta (2012HORTA, J. S. B. A pesquisa e o ensino de história da educação no Brasil: onde fica a política? In: SIMÕES, R. H. S.; GONDRA, J. G. (Org.) Invenções, tradições e escritas da história da educação. Vitória: Edufes, 2012.).

Um caso para o qual gostaríamos de chamar a atenção se refere à temática da historiografia, cuja emergência pode ser compreendida no âmbito da mutação operada nas últimas três décadas. No entanto, à exceção do texto em que Foucault problematiza a questão da autoria, os demais em que aborda questões vinculadas às teorias da história se encontram mais rarefeitos.19 19 Exceto o texto Nietzsche, a genealogia, a história, citado na versão francesa dos Ditos & escritos (DE) e Sobre as maneiras de escrever a história (DE II, versão brasileira). No entanto, há outras intervenções nesta linha que integram a vasta coletânea dos DE, a saber: Retornar à história (DE II); A propósito daqueles que fazem a história (DE VI); O estilo da história (DE VIII); Espaço, saber, poder (DE VIII); O jogo de Michel Foucault (DE IX), para ficarmos em alguns exemplos. No mesmo registro, cabe assinalar a invisibilidade conferida aos historiadores que têm dialogado de forma regular e pública com os postulados de Foucault.20 20 Ver Albuquerque Jr. (2007) e Rago (1995; 2020), dentre outros. O que isso pode sinalizar? Desconhecimento da série de trabalhos de Foucault a respeito da historiografia? Dificuldades de articular a referida série com a produção do campo da História da Educação? Reconhecimento da não necessidade de mobilizar estes estudos? Nos limites deste artigo não é possível avançar nessa direção, cabendo apontar a existência de bibliotecas plurais, com visibilidades bem determinadas.

No sentido de dar seguimento ao censo, pelo caminho da remissão indireta, localizamos 13 artigos que dialogam com comentaristas de Foucault. Sobre esse específico, foram realizadas remissões a 23 textos, com uma única repetição.21 21 Trata-se da coletânea organizada por Silva (1994). Diferente dos textos assinados por Foucault, nos quais observamos concentração em torno de alguns títulos, como já apontado, o que marca o regime do comentário é a dispersão. Dispersão de textos, autores, procedências institucionais, geográficas e disciplinares. Nesse último caso, observam-se pertencimentos no campo da filosofia, da pedagogia, da sociologia e da educação física. Esse conjunto disperso se constitui em pista lateral que indicia consumos em muitos campos disciplinares e empregos específicos dos mesmos no campo da História da Educação, posto que são mobilizados para sustentar estudos sobre impressos, profissão docente, instituições, políticas educacionais, historiografia, currículo, tecnologias de ensino e disciplinas escolares.

Essa aproximação permite explorar a indagação: qual Foucault está sendo “consumido” no território da História da Educação? Em uma tentativa de síntese, poderíamos assinalar a presença mais forte de três referências: Vigiar e punir, Microfísica do poder e Arqueologia do saber. Presenças explicáveis em dois níveis. O primeiro se refere à facilidade de acesso, tendo em vista que tais livros se encontram traduzidos em inglês, espanhol e português. Elemento que ajuda compreender, por exemplo, a rarefação dos Ditos e escritos que foram traduzidos e publicados no Brasil, em dez volumes, sendo o último de 2004.22 22 Os seminários-cursos também são pouco citados, ainda que alguns incidam nas temáticas do poder e do saber. Muito provavelmente isto se deve ao gênero de texto e à questão de que sua publicação em língua portuguesa ter sido iniciada em 1999 com o livro Em defesa da sociedade, referido pela primeira vez na RBHE em um artigo de 2007. Um segundo nível pode ser associado à problemática tratada em cada artigo e à renovação pela qual a História da Educação vem passando, especialmente após o término da ditadura militar e o consequente “arejamento” verificado em diferentes níveis, o que terminou por criar condições para se problematizar as convenções que, de modo dominante, sustentavam o trabalho histórico.23 23 Certamente esse movimento também guarda relações com o chamado declínio das experiências do “socialismo real”, o que instituiu novas possibilidades de se pensar, em diferentes domínios. Agregável a esses elementos, como condição para tornar pensável a renovação no campo da História da Educação, encontram-se também a expansão e a consolidação da pesquisa na área da Educação, via programas de pós-graduação, criação de agências de financiamento e associações de diferentes alcances, bem como o assentamento do ensino de História da Educação na graduação e na pós-graduação e a realização de eventos regulares específicos, dentro e fora do país. O exame do movimento verificado no domínio da História da Educação não pode ser apartado dessas condições mais gerais e uma compreensão rigorosa dessa história recente se encontra associada, portanto, a um compromisso para compreender a vitalidade do campo, inscrevendo-o em uma arena de forças complexa e móvel.

Isso posto, como e em que graus tais elementos podem auxiliar na compreensão das inflexões teórico-metodológicas que vêm sendo operadas no domínio da História da Educação? Tais indícios são sugestivos para que se possa apontar para uma busca e uma disposição em renovar tanto a pesquisa educacional quanto a histórica, problematizando os modelos de inteligibilidade dominantes até então, revolvendo seus fundamentos e instituindo uma forma de reflexão que procura compreender o fenômeno da educação inscrito em ambientes complexos, composto por forças distintas e desiguais, que termina por redesenhar o próprio campo de um modo indeterminado e provisório. Deslocamento que passou a exigir a revisão dos protocolos estabilizados, com efeitos na redefinição de objetos, fontes, periodização, bibliografia e na escrita, para ficarmos em alguns exemplos. De um fenômeno cuja explicação já se encontrava contida na História Econômica e/ou Política e na História da Ideias Pedagógicas e/ou na Filosofia, a História da Educação passou a reivindicar uma certa autonomia do fenômeno educacional, atenta às diversidades das experimentações, fazendo com que a tradição historiográfica determinista ou de matriz filosófica cedesse lugar à problematização de velhos problemas e à emergência de novas abordagens e questões.

Considerações finais

Certamente não há um Foucault único e original, a ser consumido sem glosa, sem (de)formações, desinteressadamente. A ser constantemente explorada, permanece a necessidade de se pensar os critérios e motivos que terminam por promover a eleição de determinado autor na pesquisa em História da Educação. Que tipo de encadeamentos têm presidido as seleções? Que conexões vêm sendo estabelecidas com o conjunto dos autores selecionados entre si e com os demais estudos da área? Que relações as bibliotecas visibilizadas guardam com o pesquisador e com sua posição no campo? Como a coleção é articulada com os demais domínios do saber? Por meio de que suportes e segundo quais regras a bibliografia vem sendo composta, lida e apropriada?

Esse repertório de indagações, por um lado, estabelece interlocuções com aquelas preocupações que remontam à perspectiva genealógica, posto que contribui para que pensemos as emergências, as agitações do que parecia imóvel, os saberes perspectivos que interferem nas tramas e produções de sentido sobre acontecimentos diversos. Por outro lado, e em concomitância, concorre para tornar mais densa a reflexão acerca da formação, das artes de fazer e dos rumos que a pesquisa em História da Educação tem tomado. Para avançar nessa direção, como sugerido por Chartier (2010_______. Escutar os mortos com os olhos. São Paulo. Estudos Avançados, v.24, n.69, 2010.), novos investimentos precisam ser realizados, mobilizando alguns princípios de análise, os quais, em alguma medida, orientaram este estudo.

O primeiro situa a construção do sentido dos textos entre imposições transgredidas e liberdades reprimidas, admitindo-se que as formas do escrito e/ou os capitais dos leitores constrangem e delimitam as possibilidades da compreensão. Admite-se, igualmente, o caráter criativo da apropriação, capaz de produzir diferença, proposta de sentidos possíveis e inesperados. Para Chartier (2010_______. Escutar os mortos com os olhos. São Paulo. Estudos Avançados, v.24, n.69, 2010.), afastados de todas as perspectivas, por muito tempo dominantes, que relacionam o significado dos textos exclusivamente ao desdobramento automático e impessoal da linguagem, esses princípios visam reconhecer a articulação entre uma diferença e determinadas dependências. Nos usos determinados de Foucault no campo da História da Educação trata-se de considerar, portanto, que as apropriações singulares e inventivas dos responsáveis pelo exercício autoral e dos leitores dependem, a uma só vez, dos efeitos de sentido visados pelos textos, dos usos e significações impostos pelas formas de sua publicação, bem como das competências e expectativas que comandam a relação que cada comunidade de interpretação mantém com a cultura escrita.

Outro princípio de análise a reger este tipo de investimento consiste em inserir as obras singulares ou o corpus de textos, que são objeto do trabalho, no cruzamento de dois eixos. Por um lado, um eixo que permita situar cada produção escrita em seu tempo e em seu campo, colocando-a, contudo, em relação com outras que lhe sejam contemporâneas e pertencentes a diversos registros de experiência. De outra parte, um eixo diacrônico, de modo a inscrevê-la em outros presentes do gênero e/ou da disciplina. Essa contemporaneidade de presentes sucessivos se constitui em uma das características próprias dos espaços da produção e do consumo culturais, visto que toda a história do campo é imanente ao seu funcionamento e, para estar à altura de suas exigências objetivas como produtor e também consumidor, é preciso possuir um domínio prático e/ou teórico dessa história.

Por fim, na tentativa de compreender algumas das configurações que vêm sendo assumidas pela História da Educação no Brasil, recorremos a um exercício, como recurso para dar a ver uma certa orientação. Para tanto, ao constituir um arquivo procuramos pensá-lo como parte dos jogos de circulação e apropriação em andamento, bem como das lutas de representação constitutivas do campo. Nesse movimento, não consideramos a biblioteca constituída como uma coleção fria, mas como parte de uma rede discursiva que, ao tecer novas possibilidades, promove deslocamentos e algumas permanências no campo da História da Educação, assumida aqui como manifestação parcial de certa racionalidade que busca compreender outros presentes, ainda que os mesmos sejam irredutíveis a toda e qualquer forma de representação.

Desse quadro geral, as reflexões construídas neste estudo se tornam sugestivas para que pensemos algumas (de)formações que Foucault vem sofrendo, considerando os diferentes modos pelos quais foi lido e usado nos artigos colocados em circulação pela RBHE. A esse respeito, convém reafirmar que as temáticas do poder e da verdade - a partir, especialmente das interlocuções com os livros Vigiar e punir, Microfísica do poder e Arqueologia do saber - despontaram como as mais recorrentes no mapeamento realizado.

Essa recorrência pode ser compreendida como sinalizadora de algumas das maneiras pelas quais Foucault vem sendo consumido, mas, também, como um alerta referente às insuficiências deste registro para o levantamento de outras tantas formas que, bem ao gosto de nosso clássico, resultam de estratégias e táticas de se apropriar, torcer e modificar a palavra antecedente. Nessa direção, se faz necessário considerar a complexidade de esquadrinhar seus efeitos que, como bem sabemos, ultrapassam, em muito, a simples citação direta e/ou presença, ou não, dessa ou daquela obra nas referências. Do mesmo modo, é preciso ter em conta a dificuldade de se promover uma taxonomia das principais temáticas que compareceram na RBHE. Do nosso ponto de vista, a classificação que realizamos (com seus limites) indicia que o anseio por “não permanecer o mesmo” parece estar se concretizando no campo da História da Educação. Algo que pode, inclusive, estimular a emergência de diferentes (de)formações da parte dos mais diversos leitores, posto que este clássico parece ainda não ter “termin[ado] de dizer aquilo que tinha para dizer” (Calvino, 1993CALVINO, I. Por que ler os clássicos? São Paulo: Cia. das Letras, 1993., p.11).

Referências

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Notas

  • 1
    Michel Foucault nasceu em 15 de outubro de 1926, em Poitiers. Cursou a École Normale Supérieure; aos 22 anos, licenciou-se em Filosofia e, aos 23, em Psicologia. Aos 35 anos, defendeu a sua tese de doutoramento - Folie et déraison -, posteriormente publicada com o título História da loucura (1961). Direcionou suas atenções de pesquisa para a problematização das ordens dos saberes, das engrenagens institucionais e das artes de existir, para ficarmos em alguns dos eixos principais de sua vastíssima produção intelectual que abarca múltiplas experiências de escrita, aulas, entrevistas, palestras. Em 12 de abril de 1970, aos 43 anos, foi eleito para o Collège de France. Nessa Instituição, foi o responsável pela cátedra História dos Sistemas de Pensamento de 2 dezembro de 1970 até 25 de junho de 1984, data do seu falecimento em Paris. Suas reflexões têm contribuído para a emergência de diferentes interlocuções e debates em diversas áreas do conhecimento, como a Filosofia, História, Medicina, Direito, Antropologia, Psicologia e Pedagogia.
  • 2
    Criada por um decreto do ministro do Interior da Prússia, Hermann Göring, em 1933, a Gestapo surgiu da necessidade de o regime nazista controlar seus adversários políticos, funcionando, igualmente, para vigiar e punir seus próprios pares.
  • 3
    Essas anotações vieram à lume em 1949 numa reunião elaborada por Lucien Febvre. Posteriormente, seu filho Étienne Bloch organizou uma nova publicação. Neste texto, trabalhamos com a versão para o português (Bloch, 2001).
  • 4
    Em 16 de julho de 1944, Marc Bloch foi fuzilado pela Gestapo.
  • 5
    A alusão, aqui, é para certas discursividades que vêm sendo acionadas, especialmente a partir da ascensão de plataformas alinhadas com a extrema-direita que conquistaram espaço em diferentes países (Alemanha, Brasil, Chile, Espanha, Estados Unidos, para ficarmos em alguns exemplos). Nessa linha, os revisionistas investem em “reinterpretações distorcidas” de acontecimentos com o objetivo de (re)significá-los. Já os negacionistas colocam sob suspeita a ocorrência de acontecimentos como a ditadura, o holocausto, o nazismo, escravidão, o aquecimento global, a contundência do surto pandêmico da Covid-19 etc. Por vezes, no caso da História, os dois conceitos aparecem como sinônimos Valin e Chauvin (2019).
  • 6
    A respeito das relações de Foucault com os historiadores na França: Chartier (2002a; 2002b; 2010); Revel (2009; 2010), Le Goff (2003) e Veyne (1998; 2008), para ficarmos em alguns exemplos. Para o caso dos Estados Unidos: Coloma (2011).
  • 7
    Albuquerque Jr. (2007) e Rago (1995; 2020); dentre outros.
  • 8
    Sobre a circulação dos trabalhos de Foucault no Brasil: Machado (2017); Rodrigues (2012; 2016), dentre outros.
  • 9
    A esse respeito, ver Gondra (2011, 2020) e Gondra e Kohan (2006).
  • 10
    A SBHE foi criada em 1999. A respeito da SBHE, ver: <www.sbhe.org.br>.
  • 11
    A partir de 2018, a revista passou a adotar o sistema de publicação contínua. Desse modo, o número 51, de 2021, tem 19 artigos publicados.
  • 12
    Computamos os artigos, desconsiderando as resenhas, notas de leitura e entrevistas.
  • 13
    Sobre a história da RBHE, ver Vieira e Gondra (2015).
  • 14
    Trata-se dos números 1, 3, 5, 7, 8, 9, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 20, 23, 26, 28, 29, 30, 31, 33, 35, 36, 37, 38, 40, 44, 45, 47, 48, 49, 50 e 51. Agradecemos imensamente a Eliane Reis, Luana Goulart e Mariane da Silva, alunas do Curso de Pedagogia da UERJ e bolsistas de IC o cuidadoso levantamento na coleção da RBHE.
  • 15
    Para um estudo anterior com essa preocupação, mas recobrindo o período entre 2001 e 2004, ver Gondra (2011).
  • 16
    Optamos por manter a referência em língua estrangeira apenas nos casos da inexistência de alusões em língua portuguesa. No caso da coletânea Ditos & escritos indicamos os textos citados, considerando a existência de soluções editoriais distintas, nos idiomas em que a mesma foi traduzida.
  • 17
    A esse respeito, ver Carvalho e Nunes (2005).
  • 18
    Ainda que um dos objetivos fundamentais de qualquer taxonomia seja o de estabelecer uma circunscrição estável para cada grupo, consideramos a margem do arbitrário desse tipo de exercício, seja pelas zonas de exclusão que instituem, mas seja também pelas zonas de interseção que não são consideradas. Apenas um exemplo: um estudo sobre um sujeito, pode estar associado às políticas, impressos, disciplinas e instituições, dentre outras possibilidades. O esforço, portanto, consistiu em localizar a nervura central do artigo, mesmo reconhecendo a existência das nervuras radiais.
  • 19
    Exceto o texto Nietzsche, a genealogia, a história, citado na versão francesa dos Ditos & escritos (DE) e Sobre as maneiras de escrever a história (DE II, versão brasileira). No entanto, há outras intervenções nesta linha que integram a vasta coletânea dos DE, a saber: Retornar à história (DE II); A propósito daqueles que fazem a história (DE VI); O estilo da história (DE VIII); Espaço, saber, poder (DE VIII); O jogo de Michel Foucault (DE IX), para ficarmos em alguns exemplos.
  • 20
    Ver Albuquerque Jr. (2007) e Rago (1995; 2020), dentre outros.
  • 21
    Trata-se da coletânea organizada por Silva (1994).
  • 22
    Os seminários-cursos também são pouco citados, ainda que alguns incidam nas temáticas do poder e do saber. Muito provavelmente isto se deve ao gênero de texto e à questão de que sua publicação em língua portuguesa ter sido iniciada em 1999 com o livro Em defesa da sociedade, referido pela primeira vez na RBHE em um artigo de 2007.
  • 23
    Certamente esse movimento também guarda relações com o chamado declínio das experiências do “socialismo real”, o que instituiu novas possibilidades de se pensar, em diferentes domínios. Agregável a esses elementos, como condição para tornar pensável a renovação no campo da História da Educação, encontram-se também a expansão e a consolidação da pesquisa na área da Educação, via programas de pós-graduação, criação de agências de financiamento e associações de diferentes alcances, bem como o assentamento do ensino de História da Educação na graduação e na pós-graduação e a realização de eventos regulares específicos, dentro e fora do país. O exame do movimento verificado no domínio da História da Educação não pode ser apartado dessas condições mais gerais e uma compreensão rigorosa dessa história recente se encontra associada, portanto, a um compromisso para compreender a vitalidade do campo, inscrevendo-o em uma arena de forças complexa e móvel.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2021
  • Aceito
    29 Jun 2021
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