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O legado modernista: recepção e desdobramentos nas décadas de 1960 e 1970

RESUMO

Ao longo dos últimos 100 anos, o ideário modernista foi objeto de numerosas releituras, atualizações e revisões críticas. A partir de meados do século XX, artistas de diversos campos - literatura, teatro, cinema, artes visuais e canção popular, entre outros - tomaram as vanguardas da década de 1920 como matrizes de invenção e pensamento, que buscaram atualizar e radicalizar. Na fase mais dura do regime militar, movimentos então rotulados como “marginais” procuraram no modernismo as fontes de uma arte de cunho experimental, irônico e subversivo. Este artigo propõe uma reflexão sobre esses “modernismos tardios”, sem desconsiderar os estudos críticos, um tanto avessos à tradição modernista, produzidos pela Universidade no mesmo período - que, segundo fontes diversas, marca simultaneamente o ápice e o encerramento da influência do Modernismo na cultura brasileira.

PALAVRAS-CHAVE:
Modernismo brasileiro; Cinema Novo; Cinema Marginal; Poesia marginal

ABSTRACT

Over the last hundred years, modernist ideas have been the subject of numerous reinterpretations, updates and critical revisions. From the mid-twentieth century, artists from different fields - literature, theater, cinema, visual arts, and popular music,among others - took the vanguards of the 1920’s as matrices of invention and thought, and sought to update and radicalize them. In the toughest phase of the military regime, movements labeled as “marginal” sought in Modernism the sources of an experimental, ironic and subversive art. This article is a reflection on these “latter-day modernisms”, without neglecting the critical studies, somewhat averse to the modernist tradition, produced in the Academia in the same period - which, according to different sources, simultaneously marks the peak and the end of the influence of Modernism on Brazilian culture.

KEYWORDS:
Brazilian Modernism; Cinema Novo; Underground Cinema; Underground Poetry

O modernismo, seja na sua forma experimental e destruidora, associada à fase inicial do movimento, nos anos 1920, seja na sua face racional e construtiva, formuladora de um grande projeto cultural para o país, deixou marcas profundas na cultura brasileira que duram até hoje. Essa influência foi especialmente notável entre as décadas de 1950 e 1970, período em que, reivindicando sua memória, eclodiram no campo artístico diversos movimentos de renovação - estimulados, em princípio, pela onda desenvolvimentista e, depois, na fase mais aguda, acicatados pela modernização conservadora e autoritária do regime militar. Na primeira fase, dos anos 1950 até meados da década seguinte, floresceu no país um modernismo solar e construtivo, enunciador de grandes promessas, em movimentos como a Bossa Nova, a Poesia Concreta e o Cinema Novo, que vieram fazer coro ao ímpeto progressista da nossa Arquitetura Moderna, também chamada de Nova Arquitetura. Na fase seguinte, marcada pela derrota política das esquerdas e pelo esvaziamento dos projetos, o que temos, ao contrário, é uma espécie noturna e destruidora de modernismo, afeita ao deboche e à violência, de que servem de exemplo o Tropicalismo, o Cinema Marginal e a Poesia Marginal. Na denominação dos movimentos citados, a substituição do termo “novo”, usual nos anos 1950, pelo adjetivo “marginal”, que predominou na última fase, dá a medida das profundas transformações ocorridas no cenário político e cultural.

Na literatura, a influência do Modernismo se fazia notar desde a década de 1930, período em que, na expressão de Antonio Candido, houve uma “rotinização” das conquistas da geração de 1922. Além de ser um movimento de destruição e ruptura - atitude que define, afinal, o programa das vanguardas -, o Modernismo foi, essencialmente, um “movimento continuador do processo formativo da cultura brasileira”, conforme o definiu, em 1969, Ferreira Gullar (2002GULLAR, F. Cultura posta em questão; Vanguarda e subdesenvolvimento: Ensaios sobre arte. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002., p.191). Era natural, portanto, que sua “lição” - termo enfatizado por Mário de Andrade, na conclusão de sua célebre conferência, apresentada em 1942 no Rio de Janeiro, no aniversário de vinte anos da Semana de Arte Moderna - se tornasse fecunda e instigante para as gerações seguintes. No decênio de 1930, os autores do romance nordestino, que se destacou no período, oscilaram entre o reconhecimento e a recusa da contribuição modernista, apresentando-se simultaneamente como continuadores e opositores de Mário de Andrade e Oswald de Andrade. A incorporação das inovações formais e temáticas do Modernismo foi acompanhada, paradoxalmente, de um forte espírito “anti-Macunaíma”, que predominou na década de 1930. De acordo com Luís Bueno (2006BUENO, L. Uma história do romance de 30. São Paulo; Campinas: Edusp; Editora da Unicamp, 2006., p.59), a euforia do “projeto nacional” da geração modernista, confiante no futuro do “país novo”, foi substituída pela consciência disfórica do subdesenvolvimento.

Na década de 1940, por diversas razões, o legado modernista foi posto em questão. De um lado, pesava a acusação de alienação e irresponsabilidade política, que os próprios líderes do Modernismo fizeram a si mesmos. Na mencionada conferência de Mário de Andrade (1974ANDRADE, M de. O movimento modernista. In: ___. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974. p.231-55., p.241), a autocrítica assumiu um tom amargo, voltando-se contra o individualismo, o aristocratismo e a ausência de realidade daquele “tempo de festa” em que, segundo o autor de Macunaíma, atuou sua geração. De outro lado, o Modernismo foi rejeitado por parte dos poetas da Geração de 45, por ter rebaixado a poesia com uma escrita demasiado espontânea e coloquial, que desprezava a seriedade dos grandes temas poéticos em favor do “poema-piada” e de outras profanações. Em 1945, morreu Mário de Andrade, e muitos acreditaram que ali teria findado o ciclo modernista. Oswald de Andrade, porém, viveria ainda quase uma década e chegaria a afirmar, nos seus últimos anos, que, após a geração de 1922, nenhuma grande novidade aparecera na cultura brasileira e que o Modernismo continuava vivo, não por seu passado, mas por sua presença continuada tanto nas obras dos seus integrantes como na produção literária recente de autores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Em 1952, no aniversário de trinta anos do célebre evento de 1922, Oswald publicou um artigo no Correio da Manhã, dizendo que a Semana “não houve”, mas sim “está havendo” (apud Coelho, 2012_______. A semana sem fim: Celebrações e memória da Semana de Arte Moderna de 1922. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012., p.88), frase que sintetiza, como observou Frederico Coelho, o papel catalisador do movimento na história cultural brasileira.

A despeito das críticas sofridas em várias frentes, nas décadas de 1930 e 1940, cabe lembrar ainda que o ideário modernista teve um papel determinante nas políticas culturais de Getúlio Vargas, em uma época em que diversos escritores vinculados ao movimento, a começar por Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, foram cooptados pelo governo. O projeto cultural modernista foi entronizado e oficializado pelo Estado Novo - à semelhança do que ocorreria mais tarde, no regime militar, e do que foi feito, nos dois períodos ditatoriais, com a obra de Machado de Assis.

Durante o Estado Novo, a arquitetura brasileira experimentou sua fase de maior desenvolvimento - caso que é curioso e exemplar. Em menos de duas décadas, floresceu no Brasil, país malformado e inacabado, uma arquitetura moderna mundialmente reconhecida - feito extraordinário chamado de “milagre” por Mário Pedrosa e de “fenômeno”, sem comparação com outros países, pelo crítico italiano Giulio Carlo Argan (apud Xavier, 2003XAVIER, A. (Org.) Depoimento de uma geração: Arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2003., p.99 e 170). Tal milagre historiográfico, no dizer de Otília Arantes (1997ARANTES, O. B. F. Lúcio Costa e a “boa causa” da arquitetura moderna. In: ___. Sentido da formação: Três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Melo e Souza e Lúcio Costa. São Paulo: Paz e Terra, 1997., p.126), se apresenta como um “par simétrico da utopia modernista”, fornecendo boa matéria para a reflexão sobre os descaminhos da formação nacional. A construção de Brasília evidencia o descompasso entre a nova arquitetura e a realidade social do país, escancarando a um só tempo as ilusões do vanguardismo abstrato e o autoritarismo da modernização brasileira (cf. Schwarz, 1999SCHWARZ, R. Sequências brasileiras. São Paulo: Cia. das Letras, 1999., p. 200).

Em 1950, Antonio Candido escreveu o ensaio “Literatura e cultura de 1940 a 1945”, publicado em 1953 e posteriormente incluído no livro Literatura e sociedade. Nesse texto, o crítico egresso do grupo Clima - cujas influências mais marcantes, além dos professores franceses da USP, haviam sido, em razão do seu forte interesse pelo conhecimento do Brasil, Mário de Andrade e Oswald de Andrade - afirmou que havia, na literatura brasileira, “dois momentos decisivos que mudam os rumos e vitalizam toda a inteligência”, o romantismo e o modernismo. A nova crítica universitária, da qual era também representante Afrânio Coutinho, no Rio, “como se fosse a legítima herdeira intelectual dos modernistas, abraçou sua história. Foram eles que fixaram a Semana de Arte Moderna, de forma irreversível, como um marco na história vitoriosa de nossa melhor literatura” (Coelho, 2012_______. A semana sem fim: Celebrações e memória da Semana de Arte Moderna de 1922. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012., p.16).

A utopia desenvolvimentista encontrou ainda uma poderosa síntese na Bossa Nova de João Gilberto, que promoveu uma mudança qualitativa na canção por meio da modernização do samba, com o aproveitamento de elementos do jazz dos Estados Unidos. Por seu notável equilíbrio entre tradição local e estímulo externo, a Bossa Nova também foi vista como “um dos milagres que ocorrem na experiência brasileira apenas algumas poucas vezes” (Garcia, 1999GARCIA, W. Bim bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1999., p.122). Para Augusto de Campos, João Gilberto passou a integrar, juntamente com João Cabral de Melo Neto (esse, por sua vez, profundamente influenciado pelo racionalismo da nova arquitetura), uma tradição construtiva erguida “a palo seco” no país (cf. Süssekind, 2004SÜSSEKIND, F.; GUIMARÃES, J. C. (Org.) Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7Letras; Casa de Rui Barbosa, 2004., p.151). Dela também pretendiam fazer parte os próprios poetas concretistas, que inauguraram, na mesma época, e também com repercussão internacional, o segundo ciclo vanguardista da poesia brasileira. A exemplo das artes plásticas, tomadas pela invasão do abstracionismo - em oposição à pintura figurativa do período modernista -, o movimento da Poesia Concreta rejeitou a temática nacional. Não obstante, contra o neoparnasianismo da Geração de 45, os poetas de Noigandres buscavam retomar o diálogo com a poesia de 1922. Além das influências internacionais, o projeto estético de Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari também reconheceu uma filiação nacional, que, segundo o “Plano-piloto” (1958), passava por Oswald de Andrade, o primeiro Drummond e João Cabral.

Em poucos anos, outros movimentos artísticos também dialogaram com o ideário modernista, seja reivindicando o direito à experimentação, seja valorizando a autêntica cultura brasileira, afinada aos valores do projeto “nacional-popular”. Na década de 1960, o Modernismo conheceu sua plena consagração. Se nos anos 1940, o que estava em pauta era a “superação do Modernismo”, nessa nova quadra histórica o que se discutia era a “atualização” daquele espírito vanguardista, sem prejuízo da consciência do subdesenvolvimento e em sintonia com o horizonte da revolução social.

A exemplo da nova arquitetura e da Bossa Nova, o Cinema Novo também foi visto como uma espécie de “fenômeno” ou “milagre”, um salto qualitativo após uma longa e interminável história de formação. Uma das bases dessa revolução estética foi encontrada na literatura moderna do país, de onde saíram, além de títulos e enredos adaptados às telas, o imaginário “bárbaro” e o “miserabilismo” que inspiraram a “estética da fome” proposta por Glauber Rocha. O intuito dos cineastas era “descolonizar” a produção de filmes, retratar a “verdade” do Brasil, filmar o povo usando uma linguagem condizente com a realidade do país, exatamente como propunha Mário de Andrade. Entretanto, se o interesse pela cultura popular ecoava as pesquisas etnográficas do autor de O turista aprendiz, o desejo dos integrantes do Centro Popular de Cultura de convertê-la em instrumento ideológico, visando à disseminação da mensagem política, estava muito distante das reflexões sobre a problemática relação dos intelectuais com o povo, levada a cabo em diversas passagens da obra marioandradiana. No cinema, do curto-circuito entre “a retomada criativa do Modernismo e a pedagogia política”, resultou, no juízo de Ismail Xavier, “o enorme saldo positivo do movimento”, pois foi “a adoção do princípio de autoria que definiu - em nítida tensão com as cobranças pela ‘correção’ do recado político urgente - a forma dos seus melhores filmes, sua estética” (Xavier, 2007, p.7).

Nos primórdios do Cinema Novo, também em sintonia com a experiência do cinema neorrealista italiano, o diálogo privilegiou o romance realista dos anos 1930. Eis a conhecida formulação do manifesto glauberiano:

O que fez do cinema novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi agora fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. (Rocha, 1981ROCHA, G. Uma estética da fome. Arte em Revista, São Paulo, n.1, p.15-17, 1981., p.16)

Depois do golpe de 1964, entretanto, o malogro da experiência política e do nacionalismo populista provocou nos cineastas um movimento fortemente autocrítico e iconoclasta, conduzindo à destruição das formas e reconsideração dos valores inicialmente defendidos. Apenas nesse segundo momento, ocorreu pela primeira vez uma relação direta com o ideário de 1922.

A partir de 1964, e da instauração da nova ordem política que decretou o fim das ilusões, o diálogo com o Modernismo não sofreu interrupção. Ao contrário, foi intensificado e radicalizado. Superados historicamente os ideais do construtivismo, do desenvolvimentismo e da arte engajada, desenvolveu-se um novo surto de propostas artísticas, entre as quais se destacou o Tropicalismo, movimento inspirado tanto pela Bossa Nova como pela Antropofagia. A montagem de O rei da vela, peça de Oswald inédita nos palcos desde os anos 1930, com direção de José Celso Martinez Corrêa; a obra Tropicália, de Hélio Oiticica; as canções do grupo baiano liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil; os filmes alegóricos realizados pelos diretores do Cinema Novo, destacando-se a adaptação de Macunaíma por Joaquim Pedro de Andrade - tudo parecia estar contaminado pela influência de Mário e, especialmente, de Oswald de Andrade, visto então como o espírito mais anarquista, “dadaísta”, da geração de 22. Em 1969, Glauber Rocha considerou “o Tropicalismo, a Antropofagia e seu desenvolvimento a coisa mais importante na cultura brasileira”. Apesar da sua preferência anterior pelo romance regionalista de 30, passou a ver na Semana de 22 “o início de uma revolução cultural no Brasil”, tendo sido Oswald, a seu ver, o expoente principal do Modernismo, com sua obra “verdadeiramente genial” (apud Paranaguá, 2014PARANAGUÁ, P. A. A invenção do cinema brasileiro: Modernismo em três tempos. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014., p.157).

Na nova situação histórica, marcada pela “crise das totalizações históricas” - expressão de Ismail Xavier (2001XAVIER, I. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001., p.64-5) para definir a inflexão de Terra em transe -, em que se redefinia a discussão sobre as relações entre arte e política, o legado modernista mostrou-se ainda mais vivo e atual. Se depois de 1964, em contexto adverso, o aproveitamento dessa herança ficou ainda mais evidente, isso não se deve a nenhuma bandeira nacionalista ou a ideais de comunhão nacional, àquela altura superados, mas ao fato de a crença no futuro e mito da identidade também terem sido postos em questão pela geração de 1922, especialmente pelo autor de Macunaíma.

Como observou Frederico Coelho (2012_______. A semana sem fim: Celebrações e memória da Semana de Arte Moderna de 1922. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012., p.99), “foi contraditoriamente na ascensão de um governo ditatorial que a Semana de Arte Moderna e seu caráter iconoclasta contra uma ordem estabelecida ganharam destaque”. No filme O desafio, de Paulo César Saraceni, primeira reflexão sobre o malogro da esquerda, um dos personagens desabafa: “Somos destruidores como os escritores da Semana de Arte Moderna”. A destruição, essa pulsão tão associada ao Modernismo (a despeito de o movimento ter sido também construtivo), agora se impunha como algo dominante, voltando à cena porque os filmes mencionados eram obras de vanguarda que nasceram “impedidas, constrangidas”. De acordo com Sylvie Pierre (1993PIERRE, S. O Cinema Novo e o Modernismo. Trad. José Carlos Avellar. In: PIERRE, S. et al. O Eureka! das artes puras: Mário de Andrade e o cinema. Rio de Janeiro: UERJ, 1993. p.8-27., p.22), “toda a dinâmica modernista verdadeira é uma dinâmica de explosão das formas”, que teria se instalado no Cinema Novo como resultado da violência da ditadura, presente em filmes como Terra em transe, Macunaíma, Os inconfidentes, Azyllo muito louco, entre outros.

Na verdade, embora tenham sido consideradas como realistas e pedagógicas, as obras iniciais do Cinema Novo revelam um uso acentuado da alegoria, como se pode constatar em filmes seminais como Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, e Os fuzis, de Ruy Guerra. Como observaram Robert Stam et al. (1995STAM, R.; VIEIRA, J. L.; XAVIER, I. The shape of Brazilian Cinema in postmodern age. In: JOHNSON, R.; STAM, R. (Ed.) Brazilian Cinema. New York: Columbia University Press, 1995., p.419), o Cinema Novo foi sempre alegórico, um discurso fragmentário que, a partir de situações microcósmicas, evoca a totalidade do país. Antes de Terra em transe, o diagnóstico da “nação-problema” já se faz presente Deus e o diabo, filme que precede o golpe militar. Assim, desde a primeira fase, dita otimista, do Cinema Novo, observam-se em embrião as características que serão radicalizadas depois da desilusão histórica, a saber, a tendência ao discurso alegórico, fragmentado, e à problematização do destino nacional.

Entre as trajetórias do Modernismo e do Cinema Novo, podemos dizer então que há uma diferença importante e uma notável inversão: o Modernismo que veio antes, o de 1922, ficou para depois na trajetória do Cinema Novo, para a fase mais dilacerada e aguda do movimento. A guinada dos jovens diretores, deixando o “neorrealismo” em favor de um discurso francamente vanguardista, põe às avessas o sentido da evolução histórica do Modernismo entre as décadas de 1920 e 1930, fazendo a experimentação suceder à mimese realista do romance de 30, e a “rotinização” (institucionalização) do Modernismo aparecer antes da recuperação de seu “heroísmo”, de seu espírito de ruptura.

O grande acontecimento veio em 1967: a agressiva e arrebatadora montagem do Teatro Oficina, com sua “estética de choque”, que visava afrontar a todos e ao próprio grupo, com vistas à destruição de seus preconceitos burgueses, colocou a peça O rei da vela e a antropofagia na ordem do dia, tornando Oswald a grande referência popular do movimento. Foi no Oficina que Caetano Veloso conheceu a obra oswaldiana, que se tornou um dos fundamentos do Tropicalismo musical. Para ele, Oswald era o elo que unia os diversos grupos em atuação na época, dos “irracionalistas” (José Celso, José Agrippino de Paula, Jorge Mautner) aos “super-racionalistas” (os poetas concretos, os músicos dodecafônicos). O tropicalismo, em sua visão, seria um “neoantropofagismo”: “A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos ‘comendo’ os Beatles e Jimi Hendrix” (Veloso, 1997, p.245-7).

Em entrevista recente, o compositor baiano declarou que, na ocasião, chegou a ler e reler os romances modernistas de Oswald, Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), mas que continuou “sem aguentar Macunaíma” (Leal; Sombra, 2017LEAL, C.; SOMBRA, R. “O Brasil é desafinado, tem as sílabas tônicas fora dos tempos fortes”, afirma Caetano Veloso. Folha de S.Paulo, 9 abr. 2017.). Mário e Oswald passaram então a ser vistos como representantes de duas tradições opostas. Enquanto Mário foi o inspirador da busca identitária que movera a arte engajada do período anterior, Oswald, símbolo de rebeldia, tornou-se o guru das artes, da poesia e do cinema que eclodiram a partir do final dos anos 1960, vinculados à produção cultural que se chamou por diferentes rótulos: “marginal”, “udigrudi”, “alternativa”, “antiartística”, “pós-tropicalista” etc. Os diversos artistas que compuseram essa cena contracultural brasileira, à qual também se vincularam as expressões “desbunde” e “estética do lixo”, fizeram questão de pôr em evidência suas conexões com a vertente iconoclasta do movimento modernista. Um bom exemplo foi Torquato Neto, que incorporou a poética oswaldiana nas letras das canções “Geleia geral” e “Marginália II”, ambas compostas em parceria com Gilberto Gil. A herança modernista foi reivindicada também pelos poetas Waly Salomão, Cacaso, Francisco Alvim, Chacal, entre outros nomes associados à chamada Poesia Marginal.

Em 1967, ano da montagem do Oficina, Hélio Oiticica, em seu texto “Esquema geral da nova objetividade”, afirmou identificar no país uma “vontade construtiva geral”, segundo ele, ancorada no Modernismo, devido à nossa formação ainda em processo (cf. Bosi, 2018BOSI, V. Sobrevoo entre as artes (à volta das décadas de 1960 e 1970). In: ___. Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970. São Paulo: Humanitas, 2018., p.48). Cinco anos depois, entretanto, em protesto contra as comemorações oficiais do cinquentenário da Semana de Arte Moderna, o artista plástico apresentou a instalação “Nada”, um quadrado com três metros de altura e chão metálico. As celebrações feitas pelos artistas marginais tinham como objetivo não permitir que o aniversário da Semana, cujo legado vinha sendo atualizado pelos novos movimentos de vanguarda, fosse totalmente apropriado pela visão oficial do Estado, marcada pelo ufanismo do regime militar.

Em 1972, em conferência apresentada nos Estados Unidos, Antonio Candido enfatizou duas características da literatura brasileira surgida no início daquela década, em meio à aguda repressão política e cultural. Uma era a dessacralização, de que deu como exemplo a “literatura violentamente anticonvencional” de Me segura qu’eu vou dar um troço, de Waly Salomão, livro feito com “sucata de cultura” e na base da confusão de gêneros: “É a literatura antiliterária, traduzindo uma espécie de erupção inconformista” (Candido, 1981, p.25), observou o crítico. O outro traço que lhe chamou a atenção foi a “renovação da influência dos grandes modernistas”. Na visão de Antonio Candido, as comemorações do cinquentenário da Semana de Arte Moderna, além de pôr em evidência o que havia de envelhecido e arquivado no movimento, também tinham revelado a curiosa “presença” de Mário de Andrade e Oswald de Andrade “como grandes figuras vivas e atuantes, fazendo parte do panorama literário”. A razão disso, segundo ele, era o fato de o Modernismo, meio século depois, ser considerado “ponto de partida de uma revolução literária permanente, que ainda não cessou de abalar e transformar os gêneros e sua linguagem” (Candido, 1981, p.26).

A conexão entre os dois traços observados pelo crítico foi estampada na apresentação do próprio livro de Waly Salomão. Publicado em 1972, Me segura qu’eu vou dar um troço trazia na orelha o seguinte comentário: “Viva a Banda Viva/ Do Brasil/ Alimento para/ As novas gerações/ Por ocasião das/ Retrospectivas/ Da Semana de Arte/ Moderna de 22/ Um livro prospectivo/ incremento para as/ Novas gerações” (Salomão, 2014, p.466). Não bastasse a referência explícita à Semana, marcando um contraponto às celebrações oficiais, o breve texto também fazia eco à famosa dedicatória do livro Pau-Brasil: “A Blaise Cendrars por ocasião da descoberta do Brasil”. Promovendo uma espécie de dupla homenagem, o poeta baiano também deixava claro seu objetivo de estabelecer uma identificação entre os dois momentos - o primeiro tempo modernista, da década de 1920, e o das “novas gerações”. Com seu “humor rabelaisiano” e uma “alegria quase circense”, para emprestar expressões usadas por Antonio Cicero e Alexei Bueno (apud Salomão, 2014, p.486 e 494), Waly parecia quase reencarnar o espírito anárquico e antropofágico de Oswald de Andrade. “Tenho fome de me tornar em tudo que não sou”, diria o poeta em um dos seus versos mais famosos, do livro Gigolô de bibelôs (Salomão, 2014, p.123).

Para a geração que, no início dos anos 1970, produziu “formas agressivas de espetáculo, canção e mesmo poesia”, no dizer de Antonio Candido (1981CANDIDO, A. A literatura brasileira em 1972. Arte em Revista, n.1, maio 1981., p.26), a montagem de O rei da vela, em 1967, exerceu uma influência decisiva, transformando Oswald de Andrade em “bandeira de vanguarda”. Se nos anos 1950 o retorno à poética oswaldiana, promovido pelo Concretismo, ficara restrito à poesia, agora sua projeção se estendia a diversas artes. No caso dos artistas ligados ao Tropicalismo, Silviano Santiago (2000SANTIAGO, S. Os abutres. In: ___. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p.128-45., p.139) também apontou, em texto datado de 1972, o fato de a rejeição da cultura institucionalizada seguir “os passos de Oswald nos manifestos dos anos 20”.

No dia 8 de janeiro de 1972, em sua coluna “Geleia Geral”, publicada pelo jornal Última Hora, ao comentar Muito prazer, Ricardo (1971), o livrinho (mimeografado) de estreia de Chacal, Torquato Neto o considerou um legítimo herdeiro de Oswald de Andrade. “Vejo cada dia mais Oswald de Andrade tornado patrimônio da civilização brasileira”, escreveu o compositor. Segundo Torquato, o poema “Papo de índio” demonstrava um ótimo uso da “contribuição milionária de todos os erros”, celebrada no Manifesto Pau-Brasil (1924). Ao concluir o texto, retomou o paralelo: “Questão de método: em 72 vejo, prevejo, veremos a restauração do pior espírito Semana de Arte Moderna 22 comemorado em retrospectiva. Chacal é o melhor espírito: aquele que sabe que a poesia é a descoberta das coisas que ele não viu” (Neto, 2004, p.343-4).

Entre outros jovens poetas, estreados um pouco antes, no final dos anos 1960, já se faziam notar as influências de Oswald, Drummond e Manuel Bandeira. A palavra cerzida e Sol dos cegos, primeiras obras de Antônio Carlos de Brito, o Cacaso, e Francisco Alvim, segundo esse, eram “ambas saídas do legado modernista”, partindo da tradição brasileira e não de uma ruptura com essa tradição, como haviam feito os concretistas (apud Brito, 2020, p.421). De um lado, a linguagem manhosa, irônica e despretensiosa de Cacaso; de outro, os poemas minimalistas e aparentemente sem artifícios de Alvim, flashes do cotidiano revelando, com notação crítico-realista, segundo Roberto Schwarz (2001_______. Elefante complexo. In: Jornal de Resenhas, 10 fev. 2001.), “a pesquisa modernista da peculiaridade brasileira”. Também no caso de Armando Freitas Filho, em princípio vinculado ao construtivismo, a tendência coloquial rebaixada se tornou predominante. Assim, a poesia brasileira procurava romper com o estilo mais elevado derivado do alto Modernismo, ou Modernismo reclassicizado, de meados do século, “atualizando em parte o primeiro Modernismo” (Bosi, 2018BOSI, V. Sobrevoo entre as artes (à volta das décadas de 1960 e 1970). In: ___. Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970. São Paulo: Humanitas, 2018., p.41).

Entre essas duas gerações de poetas, todavia, também seria possível apontar significativas diferenças. A tomar por base as críticas feitas por Iumna Maria Simon e Vinicius Dantas à produção poética dos anos 1970, a expressão banalizada do cotidiano e a ausência de um projeto renovador ou utópico na chamada Poesia Marginal deveriam nos levar a inseri-la em um campo oposto ao Modernismo. “O que está sendo socializado é uma experiência de poesia afetada no mais íntimo de sua capacidade de formular e revelar ao mundo as promessas do novo”, escreveram os autores (Simon; Dantas, 1987, p.106). Com efeito, se o poema curto, o prosaísmo sintético e o gosto pela piada faziam lembrar Oswald de Andrade, a descrença em ideários progressistas e a perda de confiança em um futuro promissor podem ser identificadas em poemas de diversos autores. Na nova circunstância histórica, a ironia teria se tornado ainda mais negativa, tendo se convertido numa das tônicas da poesia do período. O caso de Francisco Alvim é emblemático. Na opinião de Roberto Schwarz, o poeta mineiro teria sido, naquela geração, o que mais assimilou a lição dos modernistas, sem prejuízo da constatação de que “a diferença dos horizontes é total”. No lugar do deslumbramento com as potencialidades brasileiras, em sua obra vislumbramos “o encontro com o problema que estava escondido no pitoresco” (Schwarz, 2012, p.142).

Em detrimento de Mário de Andrade, os poetas e artistas do período elegeram como principal referência a obra oswaldiana, o que se explica, segundo Silviano Santiago, pelo fato de o interesse na pesquisa da linguagem ter sido bem maior do que a preocupação com a língua nacional. Os projetos de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gramiro de Matos e Waly Salomão estariam “teoricamente mais próximos do arrojo cubo-futurista da prosa de Oswald de Andrade” e bem distantes das discussões marioandradinas em torno de uma possível gramatiquinha da fala brasileira” (Santiago, 2000, p.137).

Em poetas como Antonio Carlos de Brito (Cacaso) e Ana Cristina Cesar, entretanto, a identificação parece ter sido bem maior com as lições de Mário de Andrade, que evidentemente não se esgotaram no magistério linguístico. Nos ensaios escritos pela autora de A teus pés, há frequentes alusões ao pensamento estético de Mário, destacando-se tópicos como a discussão sobre sinceridade e fingimento na obra literária e as distinções entre intenção pessoal e intenção estética, lirismo e arte. Em 1976, no lançamento da antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, em vez de ler poemas seus ou de seus colegas de geração, Ana Cristina causou surpresa ao optar pela leitura de trechos de “O movimento modernista”, de Mário de Andrade.

Dois anos depois, Cacaso publicou, na revista Encontro com a Civilização Brasileira, o artigo “Atualidade de Mário de Andrade”, motivado pelo aparecimento do livro O banquete. “Além de ser uma síntese madura e consequente do espírito modernista”, o poeta qualificou essa obra como “uma arma, um instrumento vivo de combate para os dias que correm” (Brito, 1997BRITO, A. C. de. Atualidade de Mário de Andrade; Alegria da casa. In: ___. Não quero prosa. Org. Vilma Arêas. Campinas; Rio de Janeiro: Editora da Unicamp; Editora da UFRJ, 1997., p.155). Os pontos destacados são a atitude modernista de “desoficialização da literatura”, o espírito de pesquisa e inovação, a defesa do “direito de errar”, o “salto no abismo”, as “técnicas dinâmicas do inacabado”, a expressão livre - apta a expressar as misturas do “país de contrastes”, segundo as palavras de Antonio Candido, citadas no texto. Na visão de Cacaso, o concretismo, por ter abolido o direito ao erro e por não guardar relação temática com a experiência local, havia completado a liquidação do legado modernista iniciada pela Geração de 45. Já a poesia engajada dos anos 1960, por sua despreocupação com a forma, também teria se afastado da lição modernista, que o articulista desejava incorporar. A tarefa imposta aos novos poetas, segundo Cacaso, era manter o combate ao oficialismo, “aproveitando o essencial da experiência modernista, tão atual hoje como ontem”. No encerramento do texto, sentenciou o poeta: “Trinta anos depois de sua morte, Mário de Andrade continua a crescer” (Brito, 1997, p.172). Em outro ensaio, “Alegria da casa”, Cacaso reitera a forma aberta do pensamento de Mário de Andrade, que se redefinia a cada momento, sem formar sistemas: “Mário faz a bola rolar, põe as questões em marcha, desencadeia processos” (Brito, 1997, p.184).

A poesia brasileira, cultivando naquele período uma “estética do inacabado”, via-se, assim, bastante inclinada ao diálogo com o movimento literário e artístico da década de 1930. No entender de Armando Freitas Filho (1988), “o Modernismo nunca ditou fórmulas de trabalho. Por isso foi bem-sucedido. O Modernismo convocou falas”. A conexão parecia tão espontânea e inevitável que, para Cacaso, logo se formou o projeto de estudar sistematicamente o movimento modernista, ao mesmo tempo em que empreendia seus ensaios sobre a produção poética dos anos 1970, que ele via como um vasto poema coletivo.

A presença obstinada do Modernismo foi também marcante na produção cinematográfica “marginal” que emergiu no final da década de 1960. Em protesto contra os rumos “comerciais” tomados pelo Cinema Novo, jovens diretores como Rogério Sganzerla e Júlio Bressane resolveram retomar a discussão formal e radicalizar a proposta de um “cinema de autor” ou “de invenção”. Com o desmoronamento das ilusões políticas do período anterior, o momento histórico propiciou a reativação da “linguagem maldita do Cinema Novo”, dessa vez sem o imperativo da militância política que era próprio do cinema “de conteúdo” (Ramos, 1983RAMOS, F. Cinema marginal (1968-1973): A representação em seu limite. São Paulo: Embrafilme; Brasiliense, 1983., p.28-48; Coelho, 2010COELHO, F. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: Cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010., p.165 e 236). Nessa fase de explosão das formas e de criação de um “novo Cinema Novo”, no qual os parâmetros do realismo e do didatismo deram lugar ao deboche agressivo e ao “choque profanador”, o Modernismo “destruidor” dos anos 1920 teve um peso decisivo, ao lado das influências que chegavam das correntes da vanguarda internacional.

Se os filmes da primeira fase do Cinema Novo constituam “alegorias do subdesenvolvimento”, as produções marginais, como O bandido da luz vermelha (1968), se revelaram alegóricas em um sentido mais “modernista”, isto é, enquanto “discursos fragmentários” expressando uma “crise na representação” (Stam et al., 1995STAM, R.; VIEIRA, J. L.; XAVIER, I. The shape of Brazilian Cinema in postmodern age. In: JOHNSON, R.; STAM, R. (Ed.) Brazilian Cinema. New York: Columbia University Press, 1995., p.394). A temática da violência estava presente tanto no filme de Sganzerla como nas primeiras obras de Júlio Bressane, Cara a cara (1968), O anjo nasceu (1969) e Matou a família e foi ao cinema (1969). O filme Câncer, de Glauber Rocha, rodado na mesma época e muito próximo dessa estética marginal, foi definido pelo próprio diretor como “ensaio sobre a violência” (cf. Coelho, 2010COELHO, F. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: Cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010., p.165). Enquanto a informalidade e a instantaneidade da poesia dos anos 1970 visavam a uma aproximação empática com o público, a provocação agressiva dos filmes marginais caminhava em direção contrária.

“Quando a gente não pode fazer nada a gente avacalha e se esculhamba” - a fala cômica do protagonista de O bandido da luz vermelha resume com precisão a atitude irônica e descompromissada desses dissidentes do Cinema Novo, que não admitiam qualquer vínculo com ações construtivas. Por outro lado, em contraste com a geração anterior, os novos cineastas expunham nas telas uma sexualidade isenta de pecados e culpas e uma atitude de deglutição estética, sem preconceitos, abarcando uma gama ampla de referências da alta e da baixa cultura. Tudo isso pode ser associado ao estilo mesclado e à postura paródica, irreverente e “carnavalesca” dos artistas modernistas, da qual estava muito distante a seriedade dos filmes cinemanovistas do início da década de 1960. Não por acaso, uma das vozes do rádio que soam ao longo do filme de Sganzerla menciona diretamente Oswald de Andrade - “o brasileiro à toa na maré alta da última etapa do capitalismo”, citação extraída da obra Serafim Ponte Grande.


Capa da 1ª edição do livro Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade (1893-1945), publicado pela Casa Mayença, em 1922.

Ao lado de Sganzerla, Júlio Bressane teve um papel central nessa “ruptura rumo à experimentação”, e sua poética, ao incorporar por meio da colagem e da montagem os mais variados repertórios - Godard, Brecht, Artaud, Machado de Assis, o filme B americano, a chanchada e o cancioneiro popular, entre outros -, constitui, nas palavras de Ismail Xavier, um “exercício renovado da antropofagia como princípio de criação”. Conforme observou o crítico, “foi enorme o impacto gerado pela ‘metáfora da antropofagia’ naquele ambiente de crise de valores” (Xavier, 2006, p.6). Impulsionada pelos movimentos artísticos do final da década de 1960, sobretudo pela montagem de O rei da vela, a obra de Júlio Bressane teve como principal fundamento a compreensão da “antropofagia como um impulso de longo prazo dentro da cultura brasileira, vigente como um marco de invenção até hoje” (Xavier, 2006, p.7).

Os traços essenciais do cinema de Bressane - o “estilo disjuntivo”, as mesclas, a descontinuidade, a citação irônica e as diversas “estruturas de agressão” voltadas contra a arte ilusionista - revelam parentesco com a linhagem de Machado de Assis e Oswald de Andrade, escritores que não apenas forneceriam a base para alguns filmes, como Tabu (1982), Brás Cubas (1985) e Miramar (1996), mas estariam presentes na obra do cineasta desde o começo. De acordo com Ismail Xavier (2006_______. Roteiro de Júlio Bressane: apresentação de uma poética. Alceu, v.6, n.12, jan./jun. 2006., p.15), em Tabu, graças ao encontro imaginário entre Oswald, Lamartine Babo e João do Rio, “o modernismo literário se aproxima do mistério e da potência do samba, num diálogo que a obra de Bressane celebra de começo a fim”.

Na Universidade, simultaneamente, houve também uma revalorização do Modernismo, que motivou investigações de fôlego e pesquisas importantes, como as que foram realizadas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, sob a liderança de José Aderaldo Castello, a respeito dos periódicos literários da década de 1920. O movimento modernista ocupou também no debate cultural uma posição de centralidade, tendo emergido ainda algumas vozes em favor do ideário antropofágico atualizado pelos tropicalistas, como foram os casos de Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Silviano Santiago, Gilberto Vasconcellos e Celso Favaretto. Paralelamente, também saiu do meio universitário uma série abundante de estudos e artigos que, em contradição com a sucessão de releituras e citações que ocorriam na produção artística, problematizavam a herança modernista e sentenciavam sua inatualidade. Se nos tempos de Clima houve um acolhimento respeitoso do ideário de 1922, a partir dos anos 1970 o que proliferou no pensamento de esquerda foram as revisões críticas desse legado, bem como do projeto “nacional-popular”, que havia sido derrotado em 1964. Incorporado pelo regime autoritário e pela indústria cultural, o ideário nacionalista, por escamotear a luta de classes e a diversidade social, passou a ser enfaticamente rejeitado, assim como a visão do intelectual como guia do povo e arauto da revolução - valores que haviam predominado até os anos 1960.

A visão que hoje se tem do movimento modernista foi construída nesse período, tendo como origem tanto as retomadas ocorridas no campo artístico como as leituras críticas produzidas no meio universitário. Por essa razão, é imprescindível examinar também, ao lado das produções culturais, as intervenções da crítica literária, cultural e sociológica que elegeu como objeto o debate sobre o Modernismo. Roberto Schwarz, Nelson Werneck Sodré, Marilena Chauí, Sergio Miceli, Renato Ortiz, Alfredo Bosi e outros nomes poderiam ser aqui destacados. O caráter de classe do Modernismo, apadrinhado pelas elites, alinhado à “revolução burguesa” e, posteriormente, cooptado pelo Estado, foi um dos traços ressaltados. A superação da “utopia” modernista, causada pela perda de sua base histórica, tem sido desde então uma consideração recorrente. Outras críticas têm sido endereçadas à visão positiva da mestiçagem cultural e, por parte de intelectuais de outras regiões do país, à pretensão do Modernismo paulista de exercer um papel central, “decisivo”, na definição dos rumos da moderna cultura brasileira. Formou-se um consenso segundo o qual o ciclo modernista se teria encerrado - em virtude tanto da oficialização do Modernismo e da expansão da indústria cultural, como do colapso definitivo do grande “projeto nacional” concebido nos anos 1920 e retomado nas décadas de 1950 e 1960.

Tornou-se frequente, desde então, associar o Modernismo a uma constelação de mitos ultrapassados (a modernização brasileira, a identidade nacional, o papel dos intelectuais etc.), sem considerar a dinâmica complexa do movimento que também produziu, entre os polos da construção e da destruição, reflexões críticas sobre o país. Outras vozes, porém, têm procurado identificar, no próprio “fracasso” do movimento modernista, as razões de suas constantes retomadas na cultura brasileira. Em 1992, em evento comemorativo no Rio de Janeiro, Waly Salomão afirmou que o Modernismo jamais teria sido um “bloco monolítico” e que a Semana “vive porque não se esgotou, vive porque não existiu completamente” (apud Coelho, 2012_______. A semana sem fim: Celebrações e memória da Semana de Arte Moderna de 1922. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012., p.133 e 139). Considerar as apropriações e releituras do Modernismo ocorridas nos anos 1960 e 1970 é um modo de pôr em evidência a riqueza e a diversidade das contribuições da vanguarda de 1922 para a cultura e o pensamento brasileiros. E, curiosamente, também somos levados a refletir sobre sua incompletude, isto é, seu caráter de movimento aberto, plural e dinâmico, sempre por ser refeito, repensado e atualizado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2021
  • Aceito
    28 Dez 2021
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