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Uma visão pessoal da Fapesp nos últimos cinquenta e poucos anos

RESUMO

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), do ponto de vista de quem chegou ao Brasil com bolsa e auxílio da Fapesp. Durante quinze anos, em posições funcionais, passa a conhecer a Fapesp por dentro. Descrevem-se as bases constitucionais, federais e estaduais, bem como os elementos infraconstitucionais que permitem à Fapesp ser uma das Agências de apoio à pesquisa mais distinguidas do mundo. O artigo descreve a mecânica de avaliação de projetos e programas. Os resultados dos investimentos da Fapesp em pesquisa científica produzem impactos intelectuais, econômicos e sociais em benefício do contribuinte paulista. Contudo, o patrimônio e o orçamento da fundação têm sido ameaçados repetidamente. Finalizando, o texto afirma que a manutenção da identidade da Fapesp requer o apoio de toda a sociedade paulista, pois a promoção da ciência e tecnologia traz benefícios que em muito excedem os seus investimentos.

PALAVRAS-CHAVE:
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo; Fapesp; Bases constitucionais e legais; Ameaças ao patrimônio; Impacto de projetos e programas

ABSTRACT

The Research Foundation of the State of São Paulo (Fapesp) as seen by a scientist who arrived in Brazil with a grant and a fellowship from the institution. For fifteen years, in functional positions, he got to know it from the inside. The constitutional bases, both at the federal and state levels, are described, as well as the infra-constitutional elements that allow Fapesp to be one of the world’s most distinguished research support agencies. This article describes the mechanics of evaluating projects and programs, and the results of Fapesp’s investments in scientific research in terms of the intellectual, economic, and social impacts for the benefit of São Paulo’s taxpayers. Harrowingly, however, the foundation’s assets and budget have been repeatedly threatened. Finally, the text states that maintaining Fapesp’s identity requires the support of the entire São Paulo society and the awareness that promoting science and technology generate benefits that far exceed the investments.

KEYWORDS:
Research Foundation of the State of São Paulo; Fapesp; Constitutional and legal bases; Threats to assets and budgets; The impact of projects and programs

Optei por uma narrativa pessoal porque acredito que os muitos sucessos da FapespFAPESP. Fapesp apoiará a modernização de 12 institutos de pesquisa. Disponível em: <https://agencia.fapesp.br/fapesp-apoiara-a-modernizacao-de-12-institutos-estaduais- -de-pesquisa/27445/>. Acesso: 21 set. 2021.
https://agencia.fapesp.br/fapesp-apoiara...
, nesses seus 60 anos certamente serão abordados em outros textos. A história que segue não se prende a nenhum fio temporal e, portanto, pode parecer desconexa, mas me reconforta a ideia de que visões pessoais do passado, ainda que descrevam instituições ímpares como a Fapesp, nem sempre são lineares.

Por que cinquenta e poucos e não sessenta? Porque a minha relação com a Fapesp se inicia um pouco antes de eu chegar ao Brasil, mais especificamente à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, graças a uma Bolsa da Fapesp, em setembro de 1969. Passando pelo Brasil, no ano anterior, graduado em Bioquímica no Chile e vindo de estágios nos Estados Unidos da América, tive um encontro inesquecível com o sempre gentil e brilhante professor Alberto Carvalho da Silva. Falar de Alberto me levaria tanto espaço quanto o permitido para me referir à Fundação, então prefiro resumir. O professor Alberto queria montar um laboratório de enzimologia no quarto andar da Faculdade, para complementar seus estudos de nutrição. Eu, no meu então espírito harvardiano, achei a ideia interessante, sempre que pudesse, ao mesmo tempo, continuar os meus projetos de pesquisa e orientar estudantes. O professor Alberto, que ocupava a Diretoria Científica da Fapesp, aceitou a proposta. Escrevi uma extensa proposta de pesquisa e voltei ao Chile esperando, pacientemente, que fosse analisada pela assessoria científica. O projeto foi aprovado no começo de 1969 e comecei a planejar uma saída não remunerada da Universidad de Chile, onde já ocupava a posição permanente de livre-docente. Em março de 1969, apresentei um trabalho de certo impacto, em colaboração com Jorge e Catherine Allende, no Annual Meeting of the Federation of Biological Societies nos Estados Unidos. Naquele momento, meu estado de espírito não podia ser mais exultante: o trabalho foi muito bem recebido e eu tinha um projeto aprovado pela Fapesp que incluía, além do equipamento necessário para montar um laboratório, uma excelente bolsa. Enfim, emigrava para o Brasil em condições excepcionais.

No final de abril, porém, o professor Alberto foi cassado. Nessa altura eu, por motivos profissionais e pessoais, já havia começado a queimar as pontes que me ligavam profissionalmente à Universidad de Chile. A cassação do professor Alberto me fez entrar em um período tão delicado que é difícil, até hoje, relembrar. Pensei que todos os planos de emigração iriam por água abaixo. Vários docentes do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina da USP me ajudaram a sair do estado de absoluta estupefação em que me encontrava naquele momento. Cito os que mais me marcaram, pois é fácil imaginar como permanecem gravados na memória os nomes que parecem salvar a nossa vida, depois de um terremoto. Cesar Timo-Iaria e Gerhard Malnic não só responderam as minhas cartas, como um deles, não lembro qual, me atendeu ao telefone - em um tempo em que uma ligação internacional para o Brasil não era nem fácil nem barata. Finalmente, me convenci de que podia retomar o projeto anterior e preparar minha mudança para o Brasil quando o material que a Fapesp tinha me concedido no Projeto se encontrasse no laboratório onde iria trabalhar.

Fui recebido com grande carinho em um ambiente extremamente lúgubre. O peso da cassação de docentes pairava em muitos dos corredores do prédio central da Faculdade de Medicina. Por outro lado, todos os equipamentos e reagentes contemplados no projeto estavam no laboratório, e ainda me esperavam alunos de iniciação e um de pós-graduação que veio a ser o primeiro doutor formado sob a minha orientação.

Os meus 53 anos vividos no Brasil têm, assim, raízes pessoais no professor Alberto e na Fapesp. A minha transferência para o Instituto de Química da USP em 1970 e a ruptura definitiva com os laços restantes com a Universidad de Chile são partes de outra história.

A partir de 1969 a Fapesp, de várias formas e tipos de projetos, financiou a pesquisa, e boa parte dos estudantes, do grupo de trabalho que supervisionei até a minha aposentadoria compulsória em 2009. Hoje, aposentado da USP, continuo na condição de professor sênior e professor emérito do Instituto de Química, fazendo pesquisa, orientando estudantes e supervisionando um pós-doutorado com o auxílio Fapesp. Desde 1969, minha relação com a Fapesp tem sido a de responsável por bolsas para estudantes e por apoio em projetos de pesquisa. Em contrapartida, como qualquer outro pesquisador, sigo prestando serviços como assessor ad hoc em propostas de pesquisa e solicitações de bolsas.

Na transição entre as Diretorias Científicas de J. F. Perez e Carlos Henrique de Brito Cruz, em 2005, fui convidado para ser coordenador adjunto da Fapesp com a responsabilidade de me ocupar, exclusivamente, dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid).

Enfrentar o universo dos Cepid foi um aprendizado que encarei com interesse e entusiasmo, certamente cometendo os erros habituais que, apesar de ter passado por uma série de cargos acadêmicos executivos, dentro e fora do Brasil, sempre acabam acontecendo no início de um novo desafio. Pela primeira vez, porém, tive um chefe para corrigi-los rapidamente. Se bem eu conhecia Brito Cruz há anos, trabalhar com ele foi uma das mais marcantes e privilegiadas experiências de vida.

A partir daquele momento, comecei a conhecer a Fapesp por dentro, e somente a minha autocrítica me faz ser comedido para descrever o que é essa organização. Ocupei várias posições na instituição até me afastar, em 2015, para assumir a Presidência do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Voltei à Fapesp como coordenador adjunto em 2017 e continuei trabalhando na fundação por mais dois anos.

As Bases Legislativas da Fapesp e as finalidades da Pesquisa Científica

Descrita essa parte do percurso pessoal, passo a especificar algumas das características das Agências públicas de fomento à pesquisa e logo comento parte dos marcos legais que fazem desta Fundação uma instituição tão ímpar.

A Fapesp faz parte de um conjunto global de organizações conhecidas como Agências de Fomento à Pesquisa. Em muitos países há múltiplas agências de fomento, com missões distintas, o que permite especialização e eficácia. O Brasil já teve um sistema diferenciado de agências, sistema que foi desaparecendo aos poucos, especialmente no último quinquênio, e dramaticamente durante o atual governo. Em todo o mundo, essas agências são muitas vezes entidades públicas de direito privado, algumas financiadas exclusivamente com recursos públicos, que definem e executam uma grande parte da política científica e tecnológica do Estado. Essas organizações respondem pela intermediação entre o governo e os executores de pesquisa. As Agências de Fomento à Pesquisa são atores públicos que fazem a mediação entre a política e a comunidade científica. A proximidade com o governo, com a comunidade científica e com a sociedade costumam moldar seu espaço político, afetando seus objetivos e estratégias, reagindo e adaptando-se às pressões e limitações externas e tentando, dentro de determinada margem de manobra, mediar as necessidades externas e os interesses internos, tanto das agências de financiamento quanto da comunidade científica.

No estado de São Paulo a ideia de estruturar institucionalmente o apoio à pesquisa numa Agência precede a criação do CNPq e da Capes em 1951. A origem de uma fundação de amparo à pesquisa se encontra no Artigo 123 da Constituição Estadual Paulista de 1947: “O amparo á pesquisa científica será propiciado pelo Estado, por intermédio de uma fundação, organizada em moldes que forem estabelecidos por lei”.

Como discutirei em detalhes adiante, a expressão “pesquisa científica” não pode, no sentido estrito, ser restringida à pesquisa fundamental, que por definição não tem uma aplicação como objetivo, mas busca somente entender a natureza, nem pode, por outro lado, excluir a pesquisa aplicada (ou tecnológica) pois ambas procuram inovar usando o método científico.

A autonomia financeira dessa Fundação está descrita no parágrafo único do Artigo 123: “Anualmente o Estado atribuirá a essa fundação, como renda especial de sua privativa administração, quantia não inferior a meio por cento do total da sua receita ordinária”.

Cada palavra desse parágrafo do artigo 123 tem de ser analisada, e a análise conduz a um enorme respeito pelos constituintes de 1947. A beleza desse texto tem implicações que garantem financiamento previsível e continuado a uma fundação com autonomia de gestão, pois os recursos, assegurados como uma porcentagem da receita do Estado, são de sua “privativa administração”. É evidente, porém, que, lidando com recursos públicos provenientes dos contribuintes, os dispêndios da fundação seriam, como são até hoje, auditados por todas as instâncias de controle do Estado.

Da inclusão em 1947, de uma fundação de amparo à pesquisa, até a efetiva implementação da disposição constitucional, passaram-se quinze anos. Em 1962, o governador Carvalho Pinto promulgou a lei que efetivamente deu vida à Fapesp. A inclusão constitucional garantiu a inserção dessa fundação no pacto social constitutivo do Estado. A Lei Orgânica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Lei Estadual n.5.918, de 18 de outubro de 1960) também é uma peça essencial para a compreensão do êxito da Fapesp. A leitura integral do texto legislativo é instrutiva. Cabe destacar o Artigo 2º como ponto de partida às descrições de pontos essenciais da Lei Estadual 5.918 pois nele se descreve a única finalidade da Fapesp.

“É finalidade da Fundação o amparo à pesquisa científica no Estado de São Paulo”.

Uma sucinta análise do que vem a ser pesquisa científica é necessária, sobretudo para dirimir dúvidas que se apresentam com certa frequência, em que o termo “pesquisa científica”, ao ser compreendido como investigação básica (ou fundamental), exclui a pesquisa tecnológica e a inovação que, certamente, podem usar o método científico.

Dentre as muitas definições de pesquisa e desenvolvimento experimental é conveniente utilizar a do Manual Frascati,1 1 Disponível em: <https://www.oecd.org/publications/frascati-manual-2015-97892642- 39012-en.htm>, onde se podem encontrar, além da definição de pesquisa e desenvolvimento experimental, traduzida livremente neste texto, outras análises essenciais para distinguir o que é, e o que deixa de ser, investimento relacionado a pesquisa. amplamente utilizado pelos países que escolhem por apresentar os dados de investimento em pesquisa e desenvolvimento de forma uniforme.

A pesquisa e o desenvolvimento experimental (P&D) compreendem o trabalho criativo e sistemático realizado com o intuito de aumentar o estoque de conhecimento - incluindo o conhecimento da humanidade, da cultura e da sociedade - e de conceber novas aplicações do conhecimento disponível. 2.6 Um conjunto de características comuns identifica as atividades de P&D, mesmo que sejam realizadas por diferentes executores. As atividades de P&D podem ter como objetivo atingir objetivos específicos ou gerais. O P&D visa sempre a novas descobertas, a partir de conceitos originais (e sua interpretação) ou hipóteses. É amplamente incerto sobre seu resultado final (ou pelo menos sobre a quantidade de tempo e recursos necessários para alcançá-lo), é planejado e orçado (mesmo quando realizado por indivíduos), e visa a produzir resultados que poderiam ser livremente transferidos ou negociados em um mercado. Para que uma atividade seja uma atividade de pesquisa e desenvolvimento, ela deve satisfazer cinco critérios básicos. A atividade deve ser: Nova, criativa, de resultado incerto, sistemática, transferível e/ou reproduzível.

Uma das informações centrais nessa definição é a noção do novo, seja para gerar conhecimento, descrever fenômenos, seja para usar conhecimentos existentes de maneira criativa. Os métodos são os meios pelos quais esses objetivos serão alcançados. E, se o método escolhido for o método científico, a pesquisa definida nos termos acima constituir-se-á em uma pesquisa científica. Dessa forma o problema a ser resolvido, a observação a ser explicada, o desconhecido a ser descoberto, compreendido, melhorado ou criado pode ser de natureza básica (ou fundamental) ou tecnológica (ou aplicada); e a forma de compreendê-lo, descrevê-lo, ou solucioná-lo que até hoje se mostrou mais eficiente é a pesquisa científica. A seguir, ao descrever as competências da Fundação, o legislador afirma que projetos de pesquisa, individuais ou institucionais, oficiais ou particulares podem ser custeados se os órgãos competentes da Fundação assim recomendarem. Cabe destacar e reafirmar que essa forma de definir as competências deixa claro que cabe à Fundação se manifestar sobre propostas de pesquisa, e que o julgamento cabe, exclusivamente, a órgãos internos da Fundação. É necessária uma avaliação técnica para dizer o que é método científico e o que pode ser considerado novo. Em razão disso a Fapesp foi constituída como órgão técnico a ser populada por membros da comunidade científica e dotada de competências para realizar essa avaliação internamente.

O Artigo 3º esclarece que a Fapesp, como mediadora entre os interesses do financiador, o estado de São Paulo, e a comunidade que realiza a pesquisa, o fará respeitando os critérios de julgamento de órgãos internos da Fundação: “I - custear total ou parcialmente, projetos de pesquisas, individuais ou institucionais, oficiais ou particulares, julgados aconselháveis por seus órgãos competentes”. A faculdade de interromper o financiamento de um projeto por recomendação de órgãos internos da Fundação também é claramente contemplada na lei.

Outro aspecto presciente desta lei, que em muito antecede iniciativas e pressões recentes na relação entre a Fundação e o Governo Estadual, determina que a instituição identifique as áreas do conhecimento que devam receber prioridade de fomento. Se de um lado a avaliação do mérito das propostas individuais é técnica, de outro, a eleição dos temas que podem constituir Programas da Fapesp não é puramente técnica, mas determinado por meio de um diálogo entre a Fapesp, o Estado e a sociedade. O diálogo entre o Estado a sociedade e a Fundação deve existir e, ao mesmo tempo, são os mecanismos e decisões internas da Fundação que devem implementar as decisões.

A internacionalização é essencial para o desenvolvimento da ciência, e desde o início a Lei Orgânica já indicava essa preocupação A Fapesp é estimulada a realizar uma política de internacionalização através de “intercâmbio de pesquisadores nacionais e estrangeiros”. No começo da década de 1960, a formação de pessoal fora do país foi uma prioridade da Fapesp. O desenvolvimento da densidade de pesquisadores em São Paulo, em essencialmente todas as áreas do saber, permitiu, mais tarde, estender o conceito de internacionalização além do mero intercâmbio de pesquisadores, contemplando, ademais, projetos internacionais de pesquisa conjunta, colaborativa e muitas vezes cofinanciada; bem como participação em grandes empreendimentos multinacionais como nas áreas de cosmologia, astrofísica e física de altas energias.

Para garantir que os recursos fossem efetivamente empregados em pesquisa, buscando a efetividade do fomento, a lei Orgânica, além de indicar a forma de financiamento e os fins da Fapesp, veda investir mais do que cinco por cento da receita na administração interna da Fundação.

A presciência do legislador já observava que as instituições que iriam receber investimentos para apoiar projetos de pesquisa deveriam possuir uma organização interna que as qualificasse, para que os pesquisadores dessa entidade pudessem trabalhar nos Projetos financiados pela Fapesp sem usar recursos com fins distintos à pesquisa.

A descrição do financiamento da Fapesp na Lei Orgânica da Fundação é precisa, abrangente e contempla, separadamente, diversas fontes de aporte de recursos. Com o objetivo de garantir a estabilidade e perpetuidade do fomento à pesquisa, a Constituição previu o aporte de 0,5% da receita do Estado, e também a criação de um patrimônio, cuja rentabilidade garantiria a manutenção das atividades da Fapesp.

Destacam-se também como fonte de financiamento as “rendas de seu patrimônio”, aspecto que implica a existência de patrimônio definido. O patrimônio da Fapesp foi constituído inicialmente por uma transferência de recursos do Estado, visto o hiato de mais de uma década entre a descrição constitucional e a promulgação da Lei Orgânica. Os saldos do exercício, bem como doações e produto do licenciamento de patentes, também podem ser incorporados ao patrimônio da instituição. A resolução do legislador estabelece que “A Fundação deverá aplicar recursos na formação de um patrimônio rentável”.

Essa decisão condicionou uma gestão cuidadosa do patrimônio da fundação que, apesar de estar definida em lei, sempre foi cobiçado por governos que, avaliando somente o montante total, não atentam para a importância que o patrimônio financeiro da fundação tem para o planejamento estratégico do investimento em pesquisa, que visa a melhorar as condições de vida do contribuinte paulista.

Durante algumas décadas tive o privilégio de representar a Fapesp em foros internacionais. A descrição das características do financiamento da Fapesp sempre causou assombro e uma ponta de inveja em outras agências. A Fapesp era a única, dentre muitas outras instituições de amparo à pesquisa de países de maior grau de desenvolvimento, que podia traçar/realizar planejamento de investimento em prazos de até onze anos, com segurança e de forma estável. Ainda que dependesse, e ainda dependa, de oscilações da economia do estado de São Paulo, sempre é possível corrigir o planejamento usando os rendimentos ou o próprio patrimônio da fundação.

A adequada atuação de uma agência de financiamento à pesquisa não depende, exclusivamente, dos seus recursos financeiros, mas, e sobretudo, da sua organização funcional e das pessoas que operam a instituição, tanto em termos de linhas estratégicas quanto da organização de suas estruturas executivas. A lei orgânica da Fapesp também tratou desses aspectos com rara precisão. As linhas estratégicas da Fundação são traçadas por um Conselho Superior de doze membros, nomeados pelo governador do Estado. Na história da Fapesp, o Conselho sempre foi composto por pessoas do mais alto nível vindo das universidades, dos Institutos de Pesquisa, do meio empresarial e político. A função de conselheiro não é remunerada, e o mandato de seis anos é suficientemente extenso para que cada integrante tenha a oportunidade de entender, na prática, os rumos e mecanismos da Fundação.

A leveza do órgão executivo, composto por três diretores que exercem mandatos limitados e por terem dedicação integral à Fundação são remunerados, é essencial para que as diretrizes determinadas pelo Conselho Superior sejam implementadas de forma célere.

Em 23 de maio de 1962, o governador do estado de São Paulo Carlos Alberto A. de Carvalho Pinto assinou o decreto, nos termos da Lei n.5.918 de 18 de outubro de 1960, aprovando os Estatutos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. No exame do Estatuto, tão interessante de analisar na sua totalidade quanto a Lei Orgânica, repito observações de pontos que me parecem centrais para justificar minha visão sobre a Fapesp. O diálogo entre o estratégico Conselho Superior, enriquecido pelas propostas do Conselho Técnico Administrativo, é profícuo e se sustenta nas decisões de ação, tomadas pela Assessoria científica da Fundação liderada pelo diretor científico.

O diretor científico é um dos executivos centrais de toda a atividade da fundação pois a ele cabe a direção da Assessoria Científica.

A Assessoria Científica, dirigida pelo Diretor Científico, será constituída de especialistas de reconhecido valor, contratados pelo Conselho Técnico-Administrativo. Na Assessoria Técnico-Científica deverão estar representados os diversos setores de pesquisas das ciências e da tecnologia.

O sistema de assessoria científica, apoiado por uma estrutura administrativa e informática de alta eficiência, recebe as propostas de pesquisa, submete cada uma delas à assessoria, avalia as propostas e os pareceres dos assessores ad hoc e emite, no final de um processo com diversas etapas de verificação de qualidade, uma recomendação que, se aprovada pelo diretor científico, vai a deliberação pelo Conselho Técnico-Administrativo (CTA) ad referendum do Conselho Superior. Nas raras ocasiões em que o CTA não homologa uma proposta recomendada pela direção científica, o projeto é reanalisado antes de voltar para o CTA. Propostas de grandes Programas da fundação são apresentados e deliberados no Conselho Superior

Na vigência da Lei Orgânica de criação da Fapesp, bem como do seu Estatuto, a Constituição Estadual Paulista, promulgada em 1989, trouxe mudança significativa na missão da Fapesp e aumento da alocação de recursos à fundação.

A Constituição do estado de São Paulo de 1989 deve ser analisada à luz da Constituição Federal. Somente assim dúvidas quanto ao destino dos investimentos da Fapesp em apoio à pesquisa científica podem ser dirimidas.

A Constituição do estado de São Paulo, em 1947, determinava que o estado atribuiria à fundação, como renda especial de sua privativa administração, quantia não inferior a meio por cento do total da sua receita ordinária. O Artigo 271 da Constituição Estadual de 1989 difere do Artigo 123 da Constituição de 1947.

O Estado destinará o mínimo de um por cento de sua receita tributária à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, como renda de sua privativa administração, para aplicação em desenvolvimento científico e tecnológico.

A nova redação é clara quanto (i) ao montante, (ii) à administração privativa à Fundação dos recursos recebidos e (iii) à forma de repasse dos recursos a serem transferidos anualmente à Fapesp. O parágrafo único do Artigo 271 descreve, diretamente, a forma de repasse.

A dotação fixada no “caput”, excluída a parcela de transferência aos Municípios, de acordo com o artigo 158, IV, da Constituição Federal, será transferida mensalmente, devendo o percentual ser calculado sobre a arrecadação do mês de referência e ser pago no mês subsequente.

A interpretação precisa do Artigo 271 da Constituição Estadual requer que se considere o Artigo 218, parágrafo V, da Constituição Federal que descreve, ao mesmo tempo, a possibilidade de vincular recursos orçamentários para fins específicos, bem como as condições em que a vinculação é possível.

É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica.

É evidente, pois, que a expressão “desenvolvimento científico e tecnológico” que consta no Artigo 271 da Constituição Estadual de 1989 somente pode se referir à pesquisa científica e tecnológica, pois, de outra forma, se estaria violando a regra da Constituição Federal que permite a vinculação de recursos nessas hipóteses. Isso não quer dizer que a Fapesp não possa apoiar atividades de desenvolvimento tecnológico e científico diferentes de “pesquisa científica e tecnológica”, tais atividades só podem ser apoiadas com recursos obtidos fora e além da vinculação constitucional (e a Fapesp tem feito isso, por exemplo com recursos obtidos da Finep).

Tal interpretação é muito relevante, especialmente considerando que já houve situações em que se interpretou a letra da Constituição Paulista esquecendo da lei maior, isto é, a Constituição Federal. Assim, repetidamente, parte dos recursos da Fapesp, além de serem investidos na pesquisa, científica ou tecnológica e na formação de pessoal, poderiam ser utilizados na compra de máquinas para fins distintos da pesquisa, construção de plantas piloto para produção, bem como para outros tantos investimentos que nada têm a ver com os fins determinados pela Constituição Federal que claramente se referem à pesquisa científica e tecnológica.

O orçamento da Fapesp em risco

Mesmo que, em geral, o governo estadual paulista respeite a Constituição e os instrumentos legais, houve recentemente episódios em que a lei foi posta em xeque. Num deles o governo estadual promoveu um confisco de recursos do orçamento da Fapesp para ser destinado a aplicação pela Secretaria de C&T. Esse nem foi um caso de diferença de interpretação, mas de tentativa de descumprimento da vinculação estabelecida constitucionalmente.

Fatos alternativos, inverdades ou mentiras, palavras com significados muito semelhantes, caracterizam a atual Presidência do Brasil. Mas as vezes também aparecem em declarações de membros do Executivo paulista. Não é verdade, por exemplo, que a Fapesp financia projetos que visam a criação de conhecimento inútil. Quando a Fundação decide financiar um projeto, espera que os resultados tenham impacto intelectual, econômico ou social. E esses impactos são notórios na sociedade paulista e no mundo. Escolher exemplos desses impactos é sempre injusto, pois certamente muitas descobertas significativas deixam de ser citadas. Mas não é demais lembrar que a vacina contra a dengue do Instituto Butantã foi obtida porque, em 2008, a Fapesp, em parceria com o Ministério da Saúde, financiou seu desenvolvimento. Também é bom não esquecer que o impacto das descobertas e das influências legislativas no estado de São Paulo decorrentes do Programa Biota,2 2 Disponível em: <https://www.biota.org.br/>. financiado pela Fapesp. E bom também lembrar que o sucesso de aviões da Embraer muito deve a resultados de Projetos financiados pela Fapesp.

Outra inverdade, muito comum em meios diversos - inclusive em partes de alguns membros de diversos governos paulistas - acusam a Fapesp de usar somente critérios acadêmicos ao analisar propostas. Seriedade e isenção no julgamento, e respeito à lei de criação da Fapesp, não podem ser confundidos com palavras usadas fora de contexto. O fato de os critérios serem acadêmicos não diminuem a utilidade e o impacto do projeto. Pelo contrário, garantem a sua qualidade. Vale lembrar que a pesquisa científica básica pode ter utilidade no longo prazo, que a pesquisa científica fomentada também pode ser aplicada, e que os temas prioritários são definidos não apenas pelos pesquisadores ou pela própria Fapesp, mas também em conjunto com o Governo e sociedade (vide comentários acima sobre o papel de intermediador).

É claro que um projeto de pesquisa a ser desenvolvido em uma universidade ou em um Instituto de Pesquisa deve ser avaliado por critérios que diferem de uma proposta de pesquisa numa empresa nascente ou uma grande empresa. E é justamente pela análise criteriosa, diferenciada e isenta que o financiamento da Fapesp tem o reconhecido impacto intelectual, social e econômico na sociedade paulista.

Um conflito entre o Governo do Estado a Fapesp, cheio de fatos alternativos vindos do executivo, colocou em risco, em 2017, o respeito ao financiamento da Fapesp. Esse conflito representaria um confisco de recursos vinculados, que iriam ser aplicados diretamente por uma das Secretarias do Governo Estadual. A tentativa governamental de passar por cima das normas legais e constitucionais, forçando o investimento sem passar pelo rito de avaliação de propostas da Fapesp, dessa vez não foi bem-sucedida. Depois de muita negociação, a FapespFAPESP. Fapesp apoiará a modernização de 12 institutos de pesquisa. Disponível em: <https://agencia.fapesp.br/fapesp-apoiara-a-modernizacao-de-12-institutos-estaduais- -de-pesquisa/27445/>. Acesso: 21 set. 2021.
https://agencia.fapesp.br/fapesp-apoiara...
lançou o Programa Modernização de Institutos Estaduais de Pesquisa (PDIP).3 3 Disponível em: <https://fapesp.br/11021/edital-para-selecao-de-propostas-de-planos-de-desenvolvimento-institucional-de-pesquisa-dos-institutos-estaduais-de-pesquisa-no-estado-de-sao-paulo>. Acesso em: 21 set. 2021. O Programa atendia, em parte, as demandas do governo paulista e dos Institutos Estaduais de Pesquisa com um montante equivalente ao que, em algum momento, se pretendeu retirar do orçamento da Fapesp. Contudo, e formando parte da negociação, o Programa foi lançado na forma de um Edital e as regras de avaliação da Fapesp foram plenamente respeitadas. Nesse, como em outros episódios similares, o apoio da comunidade acadêmica defendendo com força a Fapesp foi essencial para que o impasse entre o governo, responsável pelo aporte dos fundos, os Institutos Estaduais de Pesquisa e a Fapesp, instituição responsável pela mediação e implementação das políticas de ciência, tecnologia e inovação, fosse resolvido.

Coube a mim a responsabilidade de implementar o PDIP, com o apoio inestimável da Dra. Glenda Mezarobba, na época assistente acadêmica da Fapesp. Segundo o então presidente do Conselho Superior da Fapesp, professor José Goldemberg, “O objetivo (do PDIP) é modernizar os institutos de pesquisa do Estado. Além de contemplar a aquisição de equipamentos modernos, o edital deu grande ênfase à capacitação de pessoal de alto nível científico e tecnológico, capaz de utilizar esses equipamentos adequadamente”.4 4 Disponível em: <https://agencia.fapesp.br/fapesp-apoiara-a-modernizacao-de-12-institutos-estaduais-de-pesquisa/27445/>. O julgamento do PDIP foi feito com o cuidado necessário a um Programa que, além de contar com um orçamento total equivalente a mais de dez por cento dos recursos orçamentários da Fapesp, a ser investido ao longo de três anos, esteve, desde o começo sob os atentos olhares da comunidade científica, de integrantes do governo estadual e de diretores de institutos de pesquisa paulistas. Com um total oferecido de R$ 120 milhões e uma demanda máxima de R$ 20 milhões por instituto, era de esperar que alguns dos vinte institutos não fossem contemplados. A comunidade científica expressava a preocupação de que a Fapesp renunciasse ao rigor científico, enquanto outros atores pensavam que a “cientificação” dos critérios não atenderia as necessidades de certos institutos. Todas as propostas foram objeto de pareceres de assessores ad hoc, posteriormente analisados por uma comissão de cientistas e técnicos de alto nível e comprovada experiência que se reuniram para discutir detalhadamente propostas e pareceres. Ao término do processo, a recomendação dessa Comissão ao CTA da Fapesp foi aceita pelo Conselho Superior da Fundação e, assim, o PDIP pôde entrar em operação no prazo previamente estipulado.

A Fapesp tem uma tradição de avaliar Programas.5 5 Disponível em: <Informação disponível em: www.fapesp.br/avaliação. Acesso: 21.09.2021. Eu julgo que a Fapesp e o contribuinte paulista merecem, por motivos que incluem transparência e accountability, que o Programa PDIP passe por uma avaliação para julgar os resultados de iniciativa que, nascida de conflito entre o governo paulista e a Fundação, pode ter produzido impactos positivos nos institutos que receberam apoio do PDIP.

Operação da Fapesp

Passo agora a narrar a forma de operar da Fapesp, pois creio ser necessário mostrar, para o leitor que pode desconhecer a maneira de operar da instituição, a forma em que a Fundação decide se propostas ou programas têm a natureza e qualidade necessárias para serem recomendados, virarem projetos e, assim, serem financiados. Destarte, é obrigatório distinguir entre proposta individual e Programa.

Proposta individual, como a designação sugere, é um plano de pesquisa apresentado por um indivíduo. Tal proposta pode se referir à formação de pessoal (desde bolsa de iniciação científica até estágio de pós-doutoramento) e é sempre baseada em um plano de investigação científica. A proposta pode, também, se referir a uma solicitação de investimento em um plano de pesquisa, apresentada por um pesquisador que, nesse caso, deve demonstrar, entre outros requisitos, vínculo funcional com uma Instituição de pesquisa, universitária ou não, pública ou privada, no estado de São Paulo.

Em todos os casos, a proposta de pesquisa (de bolsa ou financiamento), após a confirmação que todos os requisitos formais foram contemplados, é encaminhada para assessores externos, cujo número varia em função da natureza da proposta, e que podem ser brasileiros ou estrangeiros. Assim que os pareceres sobre a proposta são recebidos, um colegiado de Coordenadores de Área analisa, com regularidade e coletivamente, as propostas e os pareceres dos assessores ad hoc, e elabora pareceres recomendando, ou não, cada proposta.

Todas as recomendações da Coordenação de área são encaminhadas para a Coordenação Adjunta que, composta por um número reduzido de cientistas maduros e renomados, depois de analisar o conjunto de pareceres, elabora o seu próprio. Os pareceres dos adjuntos são encaminhados para o diretor científico, responsável único pela apresentação da recomendação à homologação pelo Conselho Técnico Administrativo. Esse processo de análise e julgamento, cheio de pesos e contrapesos, pode parecer longo e complexo, mas, para uma Fundação que analisa mais de vinte mil solicitações por ano, as decisões levam, em média, menos tempo do que o despendido em qualquer outra agência de financiamento de tamanho comparável no mundo.6 6 Disponível em: <https://fapesp.br/publicacoes/relat2020_tabelas.pdf O esquema do Quadro 1 mostra as etapas do processo de avaliação de propostas individuais foi retirado do Relatório Anual 2020 da Fapesp,7 7 Disponível em: <https://fapesp.br/publicacoes/relat2020.pdf onde se relatam muitas das atividades da fundação e se prestam contas de forma transparente à sociedade paulista.

Quadro 1
Forma de operar da Fapesp

A Fapesp encaminha as propostas não recomendadas para o pesquisador responsável, junto com documentação que inclui todos os pareceres, incluindo os dos assessores ad hoc. O pesquisador tem, então, a possibilidade e o direito a recorrer da decisão da Fapesp, considerando o conjunto das análises que levaram à denegação.

As solicitações de Auxílios nascem de pedidos individuais em qualquer área do saber. Os Programas são mais amplos, têm focos bem definidos que visam solucionar determinados problemas, muitas vezes importantes para o desenvolvimento do Estado, e possuem procedimentos de avaliação característicos.

Tive o privilégio de participar, logo depois da minha transferência para o Instituto de Química da USP, em 1970, de um dos primeiros Programas lançados pela Fapesp, o Bioq-Fapesp.8 8 Disponível em: <https://bv.fapesp.br/linha-do-tempo/470/os-criadores-e-avaliadores-do-bioq-fapesp/. Como em muitos outros casos, o Bioq-Fapesp nasceu de uma iniciativa da comunidade, no caso a comunidade científica que assistia a explosão de conhecimento em uma área da ciência que iria modificar os destinos da humanidade, a Bioquímica. O fenômeno global não estava sendo acompanhado pela ciência criada no Estado de São Paulo. Um pequeno grupo de cientistas, liderados pelo professor Francisco Jeronymo Salles Lara, começou a desenhar, com o então diretor científico da Fapesp, o professor Oscar Sala, um Programa que pretendia estimular a Bioquímica no Estado para não perder a inserção internacional em área de evidente impacto científico, social e econômico. Ainda não está claro, para mim, o motivo de ter sido convidado a participar do pequeno grupo de cientistas que elaboraram o Programa. Mas desde o começo estava muito claro que propostas associadas a esse programa tinham de ser internacionalmente competitivas e que, para isso, alguns assessores tinham de ser de fora do Brasil. Assim, estrangeiros passaram a integrar o comitê que, de tempos em tempos, avaliava os resultados de cada um dos projetos aprovados, além do Programa como um todo. O sucesso do Programa pode ser evidenciado pela explosão de publicações e formação de pessoal nessa área da ciência e pela presença de um prêmio Nobel na comissão que avaliou o Programa, dentre outros indicadores.

Um impacto não planejado do Bioq-Fapesp foi a ruptura da relação poder-posição acadêmica. Com a implantação do programa, pelo menos na Bioquímica do estado de São Paulo, ficou evidente que a posição de cada professor poderia ser associada à sua capacidade de ter a sua pesquisa bem avaliada e financiada e não, em contraposição, sua posição na escala acadêmica formal.

A partir daí, e com variações desse modelo, surgiram na Fapesp, sempre por demandas externas ou detecção de lacunas a partir da própria Fundação, inúmeros outros programas de sucesso, que merecem ser mencionados como exemplos. O Xylella, que além de desvendar doenças na produção de laranja do estado, conseguiu inserir a cultura da (então) nova Biologia Molecular em um amplo espectro dos grupos de pesquisa em Bioquímica e Biologia no estado. O Biota, que além da sua projeção Internacional na área da descoberta de novos produtos naturais e biodiversidade, impacta políticas públicas no estado. O Programa dos Centros de Pesquisa, Inovação e Divulgação (Cepid) que reúne grupos de pesquisadores que formam centros de referência internacional nas suas áreas de interesse, como o Núcleo de Estudo da Violência (NEV) ou o Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco. A lista dos programas é extensa e mencionar somente esses seria injusto. Adiciono um último exemplo pois representa um Programa que sem abandonar o ethos legal e constitucional da Fapesp, permite que o conceito de pesquisa se estenda até as pequenas empresas, se trata do Pipe, Pesquisa Inovadora em pequenas empresas. O Pipe-Fapesp apoia a execução de pesquisa em micro, pequenas e médias empresas no Estado de São Paulo.

Em 2000, como pró-reitor de Pesquisa da USP, participei de uma cerimônia de destaque quando o reitor organizou um almoço com todos os docentes da USP que foram pesquisadores responsáveis dos Cepid. Nessa ocasião, ficou clara a disposição da Instituição em oferecer condições, tanto instalações físicas como pessoal, necessárias para desenvolver um desafio do tamanho dos Cepid. O programa Cepid, implantado pela Fapesp em 1998, quando José Fernando Perez era diretor científico da Fundação, e posto em prática em 2000, é uma iniciativa pioneira, inicialmente inspirada em programas similares nos Estados Unidos da América. Na definição da Fapesp:

Os Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids), apoiados pela Fapesp por um período de até 11 anos, têm como missão desenvolver investigação fundamental ou aplicada, com impacto comercial e social relevante, contribuir para a inovação por meio de transferência de tecnologia e oferecer atividades de extensão para professores e alunos do ensino fundamental e médio e para o público em geral.9 9 Disponível em: <https://cepid.fapesp.br/home/.

Na visão da Fapesp, os Cepid, além de constituídos por um grupo relativamente grande de pesquisadores principais, estudantes de graduação e pós-graduação bem como pós-doutores e técnicos, deveriam, durante a época em que eram financiados, constituírem-se em centros de referência mundiais na sua área de investigação.

Além dessa definição, pode-se dizer que a atitude de Jacques Marcovitch, reitor da USP (1997-2001), ao receber dessa forma os professores da USP responsáveis por Cepid, mostrou que as instituições que aceitam se tornar sedes de iniciativas desse porte têm uma responsabilidade estrutural que vai bem além da assinatura do dirigente máximo ao aceitar sediá-las. A tensão entre a instituição que financia grandes projetos de pesquisa e a instituição que sedia o projeto se mantém até hoje.

As restrições orçamentárias em 2021, e a negativa atitude do atual governo federal frente às Universidades públicas em particular e à ciência em geral podem fazer que a discussão de tema (a tensão entre financiador e sede) seja hoje inconveniente. As atuais circunstâncias, porém, demonstram que a reflexão sobre as responsabilidades de uma Universidade de pesquisa frente a seus docentes é urgente. É essencial discutir com objetividade quais devem ser as contrapartidas da Universidade no futuro frente a professores que, por exemplo, chegam a liderar grandes projetos de pesquisa, bem como os docentes que, recém-contratados, devem se tornar membros de destaque no ambiente universal de criação. Estratégias para enfrentar esses problemas caracterizam Universidades que efetivamente valorizam pesquisa e nem sempre pressupõem investimentos vultuosos. Políticas de contratação de docentes e técnicos relacionados também a pesquisa e a gestão de projetos, e não somente a disciplinas de graduação são um começo. O tema da contrapartida Institucional continua a ser um entrave para o melhor aproveitamento tanto do dinheiro investido em pesquisa quanto do tempo que o professor universitário tem para se dedicar a pesquisar, a ensinar e a transmitir conhecimento.

Finalizando

Longe de mim, ao encerrar esta narrativa, deixar o leitor supondo que os conflitos entre o Executivo, o Legislativo e o ethos da Fapesp terminaram com o PDIP. Apesar do meu espanto, mesmo que a sociedade paulista tenha claramente incorporado e compreendido o valor de uma agência de apoio à C&T como a Fapesp (como se viu em episódios recentes pelas manifestações nas redes sociais, mídia escrita e televisiva) ainda acontece de lideranças políticas - e às vezes até acadêmicas - deixarem de compreender a contribuição intelectual, econômica e social das ações e das iniciativas da fundação. Tal distanciamento se revelou nas várias oportunidades em que a Fapesp somente conseguiu se livrar de pressões que a desviariam dos seus mandatos constitucionais e legais por pressão da comunidade científica, muitas vezes acompanhada por artigos na imprensa. Tenho me manifestado continuamente, defendendo a Fapesp que eu conheço e cujo funcionamento e relevância compreendo, por meio de artigos e de entrevistas. Impressionantemente, em ocasiões recentes, como quando da tentativa de transferir recursos do Fundo Patrimonial da Fapesp para ações do Executivo que nem mesmo consideravam os procedimentos internos, setores da sociedade beneficiados diretamente por ações e Programas da Fapesp não chegaram a se manifestar, ou se o fizeram, a ação nunca foi transparente.

Interpretando livremente a frase “Se você pensa que pesquisa é cara, experimente a doença”, atribuída a Mary Lasker, é claro para mim que sem pesquisa mal poderemos formar melhores quadros, melhorar a inteligência da população, diminuir a iniquidade e estimular a inovação no estado de São Paulo. Manter a Fapesp como a instituição ímpar de apoio à pesquisa cientifica e a inovação que é há sessenta anos, requer dos responsáveis pela condução da Fapesp, da comunidade científica e de todos aqueles que se beneficiaram e continuam a se beneficiar das suas ações, vigilância para manter o ethos da fundação e capacidade de negociação que atenda às demandas sem alterar os princípios que criaram esta Instituição.

Referências

Notas

  • 1
    Disponível em: <https://www.oecd.org/publications/frascati-manual-2015-97892642- 39012-en.htm>, onde se podem encontrar, além da definição de pesquisa e desenvolvimento experimental, traduzida livremente neste texto, outras análises essenciais para distinguir o que é, e o que deixa de ser, investimento relacionado a pesquisa.
  • 2
    Disponível em: <https://www.biota.org.br/>.
  • 3
    Disponível em: <https://fapesp.br/11021/edital-para-selecao-de-propostas-de-planos-de-desenvolvimento-institucional-de-pesquisa-dos-institutos-estaduais-de-pesquisa-no-estado-de-sao-paulo>. Acesso em: 21 set. 2021.
  • 4
    Disponível em: <https://agencia.fapesp.br/fapesp-apoiara-a-modernizacao-de-12-institutos-estaduais-de-pesquisa/27445/>.
  • 5
    Disponível em: <Informação disponível em: www.fapesp.br/avaliação. Acesso: 21.09.2021.
  • 6
    Disponível em: <https://fapesp.br/publicacoes/relat2020_tabelas.pdf
  • 7
    Disponível em: <https://fapesp.br/publicacoes/relat2020.pdf
  • 8
    Disponível em: <https://bv.fapesp.br/linha-do-tempo/470/os-criadores-e-avaliadores-do-bioq-fapesp/.
  • 9
    Disponível em: <https://cepid.fapesp.br/home/.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2021
  • Aceito
    15 Dez 2021
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