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Notas sobre etnografia em Mário de Andrade

RESUMO

Abordamos o tema da etnografia na vida e na obra de Mário de Andrade, começando por seu apoio a atividades etnográficas quando diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, como ocorreu com as duas viagens de Claude e Dina Lévi-Strauss ao Mato Grosso e Amazônia (1936 e 1938), com a Missão de Pesquisas Folclóricas ao Nordeste (1938), e com a realização do primeiro Curso de Etnografia realizado no país (1936). Passamos em seguida à viagem realizada pelo escritor à Amazônia em 1927, e ao que chamamos de “etnografias imaginárias”, que o próprio escritor chamou de “sátiras às explorações científicas, à etnografia”. É quando ele descreve ficcionalmente duas “tribos de índios” localizadas nos arredores do rio Madeira, a dos Pacaás Novos (referência a um grupo que efetivamente existe, no que hoje é o estado de Rondônia, e que o escritor planejou sem sucesso visitar), e a dos “Dó-mi-sol”, uma “tribo” inventada, na qual a comunicação se faz através do canto, e não da fala.

PALAVRAS-CHAVE:
Mário de Andrade: crítica e interpretação; Amazônia: Literatura e etnografia; Dina Lévi-Strauss e Mário de Andrade; Modernismo e etnografia

ABSTRACT

This article discusses ethnography in the life and works of Brazilian writer Mário de Andrade (1893-1945). It begins by presenting his support, as head of the Culture Department of the city of São Paulo, of ethnographical activities, including: trips to Mato Grosso and the Amazon by Claude and Dina Lévi-Strauss (1936 and 1938); the Folklore Research Mission to the Northeast (1938); and the first course on ethnography ever taught in Brazil (1936). In the second and third parts, the article deals with Mário de Andrade’s voyage to the Amazon region in 1927, and what I call his “imagined ethnographies”, which he himself described as “satires of scientific explorations and ethnography”. He wrote fictional accounts of two “Indian tribes” near the Madeira river, the Pacaás Novos (a group which indeed exists in what is today the state of Rondônia; Mário de Andrade planned to visit them, but never did); and the “Do-mi-sol”, an invented “tribe” in which communication was based on singing, not speech.

KEYWORDS:
Mário de Andrade: criticism and interpretation; Amazon: literature and ethnography; Dina Lévi-Strauss and Mário de Andrade; Brazilian Modernism and ethnography

“E fica-se sem saber, diante dessa construção em abismo: quem fala, em tal cantar? Quem é o morto, quem o inimigo?”

(Viveiros de Castro, 2002, p.277)

I

Quando em ciências humanas e sociais falamos hoje de “etnografia”, o ponto de partida costuma ser o modelo proposto pelo antropólogo Bronislaw Malinovski nos anos 1920. Mas essa palavra esteve em uso desde meados do século XIX, com outras conotações, para se referir a diferentes modalidades de conhecimento e produção escrita sobre “povos”. No Brasil, em 1859-1861 a Comissão Científica de Exploração enviada ao Ceará pelo IHGB tinha uma “Seção Etnográfica e Narrativa”, cujo encarregado era Gonçalves Dias, o poeta da “Canção do exílio”. Ainda no século XIX, Sílvio Romero propôs o “critério etnográfico” como base da história e crítica literária no país (Matos, 1994MATOS, C. N. de. A poesia popular na República das Letras: Sílvio Romero folclorista. Rio de Janeiro: UFRJ; MinC-Funarte, 1994., p.86-99). Como escreveu James Clifford (2008CLIFFORD, J. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008., p.25), “Em termos esquemáticos, antes do final do século XIX, o etnógrafo e o antropólogo, aquele que descrevia e traduzia os costumes, e aquele que era o construtor de teorias gerais sobre a humanidade, eram personagens distintos”.

No Brasil, o Museu Nacional já contava, no início do século XX, com uma seção de “Antropologia e Etnografia”, onde atuaram figuras de imenso destaque nessas áreas, como Edgard Roquette-Pinto e Heloísa Alberto Torres. Mas a consolidação do laço entre as duas especialidades esbarrava na escassa profissionalização da antropologia no país. Essa profissionalização recebeu impulsos decisivos nos anos 1950, com a criação da Associação Brasileira de Antropologia.

Mário de Andrade, que como sabemos morreu em 1945, foi de um tempo em que era possível ser etnógrafo sem ser antropólogo. Entre 1927 e 1929 fez viagens ao norte e ao nordeste do país, com duração total de cerca de seis meses, durante as quais reuniu grande número de notas, observações, descrições, documentos, fotografias e transcrições musicais. Produziu também o que talvez seja o primeiro relato de “observação participante” no país, seu texto sobre a cerimônia de “fechamento do corpo” da qual ele próprio foi o “objeto” em Natal (Andrade, 1983, p.32-57). Nos anos 1930, também fez viagens curtas dentro do estado de São Paulo, para observação e pesquisas sobre festas populares. Seu importante artigo sobre o “Samba rural paulista” (Andrade, 1991) também é fruto de observação etnográfica, dessa vez na própria capital do estado; inclui, além de detalhadas descrições e análises, transcrições de letras, melodias em notação musical, e desenhos de coreografias.1 1 Para outros aspectos das relações entre Mário de Andrade e a etnografia que não serão aprofundados aqui, ver Travassos (1997).

Além de etnógrafo, Mário de Andrade foi um importante apoiador da etnografia. Desempenhou esse papel sobretudo na sua gestão à frente do Departamento de Cultura do município de São Paulo (1935-1938). Um dos aspectos mais conhecidos dessa gestão é a Missão de Pesquisas Folclóricas que, entre fevereiro e julho de 1938, fez pesquisas nos estados de Pernambuco e Paraíba e nas cidades de São Luís do Maranhão e Belém do Pará. O material por ela reunido inclui anotações de campo, gravações musicais, fotografias, filmes e objetos. O Departamento de Cultura era municipal, mas o gestor era nacional: graças à ampla visão político-cultural do poeta, contamos hoje com registros de incalculável valor para a compreensão e valorização das culturas populares da região.

Também é conhecido seu papel na criação da Sociedade de Etnografia e Folclore (Soares; Luz, 1983SOARES, L. G.; LUZ, S. Mário de Andrade e a Sociedade de Etnografia e Folclore, 1936-1939. Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1983.). Para isso, contou com o apoio inestimável de Dina Lévi-Strauss, professora francesa interessada no assunto. Como se sabe, a USP foi criada com a participação de diversos professores estrangeiros que vieram a São Paulo no quadro de “missões” universitárias, entre as quais a “missão francesa” teve grande destaque. Dela participaram pesquisadores das ciências humanas que se tornariam celebridades em suas áreas, como o historiador Fernand Braudel e o antropólogo Claude Lévi-Strauss. Esse último, aliás, ainda não era propriamente um antropólogo: não tinha formação acadêmica nessa área, e nem experiência em pesquisas de campo. O diploma de que dispunha quando chegou a São Paulo era a agrégation em Filosofia, diploma universitário francês que deixou de existir no final dos anos 1960. Na USP, figurava como professor de Sociologia. Para um jovem que pretendia se tornar antropólogo, a viagem ao Brasil veio a calhar, ao abrir possibilidades de realizar pesquisas no interior do país, travando contato com sociedades indígenas.

Lévi-Strauss chegou ao Brasil no início de 1935, acompanhado da esposa, Dina, cujo nome de solteira era Dreyfus. Eles haviam se casado em 1932, quando ela tinha 21 anos, e ele, 24; ela também era agregée em Filosofia e, tal como o marido, começava a carreira ensinando num lycée, uma instituição francesa de ensino secundário. Diferentemente de Claude Lévi-Strauss, no entanto, ela havia estudado com Marcel Mauss no Instituto de Etnologia, em Paris, e realizado trabalhos práticos sob orientação de Paul Rivet no Museu de Etnografia do Trocadéro (Portela, 2020PORTELA, L. M. Brasil, terra vermelha: a história da antropologia e o reencontro com Dina Dreyfus. Brasília, 2020. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade de Brasília.). Mauss, Rivet e Lévy-Bruhl (esse, importantíssima referência bibliográfica de Mário de Andrade) haviam fundado em 1925 o Instituto de Etnologia de Paris, que foi até o início da guerra de 1939-1945 o principal espaço de formação institucional da antropologia francesa (cumprindo a função já mencionada de transformar a etnografia em um aspecto da atividade de antropólogos profissionais).

Outra diferença entre o marido e a esposa é que Claude Lévi-Strauss veio para o Brasil com um emprego, e Dina Lévi-Strauss não. Como revela na sua correspondência com autoridades francesas, ela “apostou” que encontraria oportunidades de trabalho em São Paulo, e assim aconteceu (Sandroni, 2002_______. Mário, Oneyda, Dina e Claude. Revista do Patrimônio, v.30, p.234-46, 2002.). As oportunidades, porém, não vieram pela USP, e sim pelo Departamento de Cultura e dos projetos ali desenvolvidos por Mário de Andrade.

Luísa Valentini (2013VALENTINI, L. Um laboratório de antropologia: o encontro de Mário de Andrade, Dina Dreyfus e Claude Lévi-Strauss. São Paulo: Alameda, 2013.) caracterizou a colaboração de Mario de Andrade, Dina Dreyfus e Claude Lévi-Strauss como um “Laboratório de Antropologia”. Essa colaboração se deu num contexto que favorecia a sinergia. A USP trouxera o casal francês, o Departamento fizera, do poeta, gestor cultural; o interesse pela etnografia os aproximaria.

Lévi-Strauss lecionou na USP durante todo o ano letivo de 1935, e em novembro partiu com Dina para o Mato Grosso, onde até março de 1936 fez pesquisas com os Bororo e os Kadiwéu. Essa viagem foi realizada com apoio do Departamento de Cultura, pois o casal ainda não tinha suficientes credenciais etnográficas na França.2 2 Fernanda Arêas Peixoto cita uma nota do Journal de la Société des Américanistes, XXVII, p.475-476, afirmando que aquela primeira viagem do casal foi também encomendada pelo Ministério da Educação francês. Peixoto, 1998. O apoio foi destinado especificamente à realização de filmes etnográficos, como se lê em ofício assinado por Mário de Andrade em 7 de novembro de 1935:

O professor Lévi-Strauss, da Universidade de São Paulo, e sua esposa, que é também notável etnógrafa, ex-assistente do professor Rivet no Museu Etnográfico do Trocadéro, vão realizar uma excursão ao estado do Mato Grosso, a fim de estudar costumes dos nossos índios [...]. O professor Lévi-Strauss prontifica-se a dar o resultado dos seus estudos para ser publicado em primeira mão pela Revista do Arquivo [publicação oficial do Departamento de Cultura]. Prontifica-se mais a [...] tirar o filme etnográfico da viagem, que ficará de posse do Departamento de Cultura. Para esta última realização faz-se necessário uma subvenção de quatro contos de réis. (apud Calil; Penteado, 2015CALIL, C. A.; PENTEADO, F. R. (Org.) Mário de Andrade - Me esqueci completamente de mim, sou um Departamento de Cultura. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Secretaria Municipal de Cultura, 2015., p.290-1)

Vê-se no mesmo ofício que o prefeito dá o OK no mesmo dia, e outras duas assinaturas necessárias para a liberação da verba são também da mesma data. (A etnografia tinha prestígio na prefeitura de São Paulo naquele momento.)

Essa primeira viagem possibilitou ao casal obter credenciais etnográficas “retrospectivas” em seu país natal (Lévi-Strauss; Éribon, 1990, p.35). Ainda em 1936, Lévi-Strauss publica seu primeiro artigo científico, “Contribution à l’étude de l’organisation sociale des indiens Bororo”, no Journal de la Société des Américanistes, com repercussão não apenas na França, mas também nos Estados Unidos (ibidem, p.38). Embora fosse assinado apenas por Claude Lévi-Strauss, o artigo foi saudado como uma contribuição “do casal” por Mauss (Portela, 2020PORTELA, L. M. Brasil, terra vermelha: a história da antropologia e o reencontro com Dina Dreyfus. Brasília, 2020. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade de Brasília., p.77), que como vimos havia sido professor de Dina.

Nas férias do ano letivo seguinte, de 1936 para 1937, o casal foi para a França onde, com apoio de Paul Rivet, que então reformulava o Museu de Etnografia do Trocadéro, apresentou uma exposição com artefatos Bororo e Kadiwéu. A boa repercussão do artigo e da exposição possibilitou obter fundos franceses para uma viagem mais ambiciosa, realizada entre maio e novembro de 1938,3 3 A data do final da Expedição à Serra do Norte varia, segundo as fontes, entre novembro e dezembro de 1938. Em todo caso, nos meses finais de 1938 Claude Lévi-Strauss e Jean Vellard encerram os trabalhos e tomam o caminho da Bolívia pelo rio Madeira (tal qual fizera Mário de Andrade em 1927), de onde Lévi-Strauss retorna a São Paulo de avião. O integrante brasileiro da expedição, Luís de Castro Farias, vai para Belém onde fica até janeiro de 1939, antes de retornar ao Rio de Janeiro. É surpreendente que em uma obra como De près et de loin, diálogos entre Lévi-Strauss e Didier Éribon, esse último afirme, sem que Lévi-Strauss o contradiga, que a expedição “durou mais de um ano”, o que é manifestamente falso (Lévi-Strauss; Éribon, 1990, p.35). a famosa “Expedição à Serra do Norte”. Essa expedição também contou com apoio financeiro do Departamento de Cultura, conforme lembrado por Lévi-Strauss em depoimentos, décadas depois, e conforme mostrado pelo ofício de 14 de fevereiro de 1938 de Mário de Andrade ao prefeito Fábio Prado:

Este Departamento de Cultura acaba de receber, por intermédio do prof. Claude Lévi-Strauss, um convite do Governo Francês, para realizarmos de colaboração este Departamento e aquele Governo, uma expedição etnográfica aos índios Pareci e Nambiquara, de Mato Grosso [...] obteríamos para o município uma documentação etnográfica preciosa [...]. São Paulo é paupérrimo de documentação etnográfica cientificamente recolhida. [...] Por tantas razões e utilidades, solicita esta diretoria a competente autorização para despender a importância de sessenta contos de réis nesta brilhante iniciativa. (apud Calil; Penteado, 2015CALIL, C. A.; PENTEADO, F. R. (Org.) Mário de Andrade - Me esqueci completamente de mim, sou um Departamento de Cultura. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Secretaria Municipal de Cultura, 2015., p.292-3)

Fábio Prado autoriza três dias depois, em 17 de fevereiro.

Nas duas expedições, os documentos de Mário de Andrade davam destaque para Claude Lévi-Strauss em relação à sua esposa, o que não chega a parecer chocante para leitores contemporâneos, dada a brilhante carreira que, sabemos retrospectivamente, seria trilhada pelo antropólogo. Dina Lévi-Strauss não chegou a concluir a segunda expedição por causa de um problema de saúde, tendo voltado para a França antes do marido. Meses depois, os dois se separaram. Com a eclosão da guerra, Lévi-Strauss vai para os Estados Unidos, enquanto Dina, de novo “Dreyfus” (nome com o qual seria conhecida em seu país após a guerra, até falecer em 1999), fica na França ocupada, e mesmo sendo judia, escapa da sanha nazista, recorrendo a um nome falso. Após a guerra, fez importante carreira como professora de filosofia, e não retornou jamais à antropologia, nem ao Brasil (Portela, 2020PORTELA, L. M. Brasil, terra vermelha: a história da antropologia e o reencontro com Dina Dreyfus. Brasília, 2020. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade de Brasília.).

Como Dina não era professora da USP, teve mais tempo para trabalhar com Mário de Andrade. A principal colaboração dos dois foi a realização do que deve ter sido o primeiro curso de etnografia realizado no país, um “curso livre” do Departamento de Cultura, ocorrido em 1936, cuja professora foi ela. O discurso inaugural desse curso foi feito por Mário de Andrade, e já tem sido citado na literatura sobre o tema. Sinto-me à vontade para citá-lo mais uma vez, já que fui o primeiro pesquisador a publicar esse discurso, com o qual deparei na pesquisa para minha dissertação de mestrado sobre Mário de Andrade e o Departamento de Cultura, defendida em 1987 (e publicada em 1988):

Senhores,

O Departamento Municipal de Cultura inicia agora o primeiro de seus cursos livres, propondo como objeto de vossas cogitações a ciência da Etnografia. Não foi ao acaso que escolhemos a Etnografia, ela se impôs. Quem quer que [...] se dedique a estudos etnográficos e procure na bibliografia brasileira o conhecimento da formação cultural do nosso povo, muitas vezes desanima pensativo, diante [...] da ausência muitas vezes total de orientação científica que domina a pseudoetnografia brasileira. [...] Colher, colher cientificamente nossos costumes, nossas tradições populares, nossos caracteres raciais, esta deve ser a palavra de ordem de nossos estudos etnográficos; e num sentido eminentemente prático vão se orientar os trabalhos deste Curso de Etnografia, que o Departamento Municipal de Cultura está iniciando. (apud Sandroni, 1988SANDRONI, C. Mário contra Macunaíma: cultura e política em Mário de Andrade. São Paulo: Vértice, 1988., p.122)4 4 O mesmo discurso foi reproduzido na íntegra em Calil e Penteado (2015, p.294).

Entre os alunos de Dina Lévi-Strauss nesse curso de 1936 estavam Oneyda Alvarenga e Luís Saia. Esse viria a se tornar o chefe da Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938, e aquela, a responsável, como diretora da Discoteca Pública Municipal de São Paulo (que hoje leva seu nome) pela guarda, organização e publicação dos materiais etnográficos reunidos.

II

Se em 1936 a etnografia representava para Mário de Andrade uma chave científica de conhecimento do Brasil, nos anos 1920 essa chave etnográfica também acionava o motor da poesia e da prosa poética. Isso é óbvio, sobretudo no Macunaíma, cujo personagem-título foi, como se sabe, apresentado a Mário de Andrade por suas leituras do etnógrafo Koch-Grünberg. Mas as duas viagens do escritor, nos anos 1920, ao Norte e ao Nordeste, prestam-se a conexões com o tema da etnografia.

Embora apresentadas juntas no livro O turista aprendiz, as duas viagens são profundamente diferentes, entre outras razões, pela maneira como articulam literatura e etnografia. A primeira durou mais de três meses, saindo de São Paulo dia 7 de maio de 1927 e retornando à cidade no dia 15 de agosto. As escalas no Nordeste foram rápidas, pois o foco da viagem foi a Amazônia, indo pelo grande rio até Iquitos, no Peru, e depois de voltar até Manaus, indo pelo Rio Madeira e por um trecho de estrada de ferro até a fronteira com a Bolívia, no que hoje é o estado de Rondônia.

O objetivo assumido de todo esse périplo não era fazer pesquisas, mas “escrever um livro modernista” (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.48). Mário de Andrade estava ainda no processo de revisão de Macunaíma, cujas primeiras versões foram escritas no final de 1926 e no início de 1927, e que seria ampliado e revisado até o ano seguinte, tendo a publicação acontecido apenas em julho de 1928. A viagem certamente contribuiu para com o processo de finalização da rapsódia, mas o “livro modernista” referido como objetivo da viagem seria outro. Afinal, se o escritor quisesse saber mais sobre seu famoso personagem, não deveria, ao continuar de Manaus em diante, subir o Solimões em direção ao Peru, como fez. Deveria, bifurcando mais para o norte, subir o Rio Negro em direção ao Rio Branco, que o levaria até Boa Vista, e dali, em direção ao Uraricoera e ao monte Roraima: à região de fronteira entre o Brasil e a Venezuela, onde Koch-Grünberg registrara vinte anos antes os mitos do “Makunaima”.

Ao contrário do inicialmente planejado, no grupo em que Mário viajou havia, além dele, só mulheres: Dona Olívia Guedes Penteado, filha de barões do café e incentivadora das artes, e duas jovens, uma sobrinha de Dona Olívia e a outra, filha da amiga de ambos, a pintora Tarsila do Amaral. Essa companhia exclusivamente feminina impôs a Mário, segundo a etiqueta da época, o papel de “o homem da comitiva”; foi tomado até, em alguns momentos, por “secretário” de Dona Olívia (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.156). As exigências desses papéis, reais ou imaginados, também impuseram limites à liberdade do escritor para realizar pesquisas no trajeto.

Na viagem seguinte, Mário partiu de São Paulo em novembro de 1928 para o Nordeste, com estadas em Pernambuco, Paraíba e, especialmente, no Rio Grande do Norte, retornando em fevereiro de 1929. Dessa vez, viajou sozinho, e com a firme intenção de pesquisar. Essa sim, foi por ele considerada uma “viagem etnográfica”; teria sido mais exato, porém, chamá-la de “viagem etnomusicológica”, se essa palavra já existisse (foi inventada apenas nos anos 1950). Quando Mário parte de São Paulo, diferentemente da vez anterior, Macunaíma e o Ensaio sobre a música brasileira já tinham sido publicados. A importância dessas publicações, no plano literário e no plano da pesquisa musical, talvez ajude a explicar a mudança de tom que se opera no escritor, entre uma viagem e outra.

A produção escrita da segunda viagem se divide em dois conjuntos bem diferentes: por um lado, há uma série de crônicas publicadas no Diário Nacional, jornal paulista que funcionou como “financiador” da viagem, anunciando o escritor como seu “correspondente” em deslocamento pelo Nordeste (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.246). Por outro lado, há um expressivo conjunto de notas de pesquisa, que diferentemente das notas literárias tomadas na viagem anterior, não visavam alimentar um futuro “livro modernista”, mas se associavam às transcrições musicais realizadas no período, tendo como horizonte um futuro livro de caráter “técnico” sobre a música do Nordeste. Como se sabe, o escritor morre antes de poder realizar esse projeto, e caberá à musicóloga Oneyda Alvarenga, que com ele desenvolvera importante colaboração, a edição póstuma, em diversos livros, dos materiais então reunidos.

Se essa segunda viagem é a que recebeu o nome de “viagem etnográfica”, a viagem anterior, de 1927, dialoga frequentemente com a etnografia, mas sob o signo da invenção e da paródia. Isso é especialmente claro nas referências aos “índios” ali encontradas.

O início do diário da primeira viagem, datado de São Paulo, 7 de maio de 1927, é: “Partida de São Paulo. Comprei para a viagem uma bengala enorme, de cana da índia, ora que tolice! Deve ter sido algum receio vago de índio...” (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.50). Nas frases iniciais do Turista aprendiz vemos, assim, aparecer o “índio”, associado ao tema do “receio”. E continua:

Sei bem que esta viagem que vamos fazer não tem nada de aventura nem perigo, mas cada um de nós, além da consciência lógica possui uma consciência poética também. As reminiscências de leitura me impulsionaram mais que a verdade, tribos selvagens, jacarés e formigões. E a minha alminha santa imaginou: canhão, revólver, bengala, canivete. E opinou pela bengala... (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.50)

Há várias fotos do escritor com a bengala “enorme” no Turista aprendiz. Em uma delas, Mário de Andrade aparece com típico traje colonial, com chapéu de abas largas, manga comprida e botas, e com sua bengala de cana da índia (Andrade, 2015, p.18. Ver também p.8 e p.42-3). Note-se que a bengala, inocente utensílio de apoio ao viajante-caminhante, é introduzida no texto no meio de uma lista que inclui objetos menos amigáveis, como canhão, revólver e canivete. Pode-se pensar que a lista vai do mais letal ao menos letal: começa no canhão e acaba no canivete. Mas a bengala não é o último item: na série construída por Mário, ela aparece antes do canivete, ou seja, é suposta proteger, melhor do que o canivete, dos “índios” seu portador.

No início do livro está, pois, a primeira aparição dos “índios”. E a segunda é um sonho do autor, datado de 14 de maio, ou seja, uma semana depois da partida.

Com muito cuidado, escrevi um discurso em tupi para dizer a nossa saudação a todos, quando estivéssemos entre os índios. Encontramos uma tribo completa bem na foz do Madeira, não faltava nem escrivão nem juiz de paz para eu me queixar se alguém bulisse com a Rainha do Café [apelido de Dona Olívia Guedes Penteado, com quem o autor viajava]. Vai, recitei o meu discurso, que, aliás, era curto. Mas desde o princípio dele, os índios principiaram se entreolhando e fazendo ar de riso. Percebi logo que era inútil e que eles estavam com uma vontade enorme de comer nós todos. Mas não era isso não: quando acabei o discurso, todos se puseram gritando para mim: - Tá errado! Tá errado! (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.63)

A reação ao discurso é proposta inicialmente como ameaça, a ameaça arquetípica dos “índios”, o canibalismo: “eles estavam com vontade de comer todos nós”. Para possível alívio, porém, o escritor descobre que estavam era rindo do seu péssimo tupi onírico. A ameaça inicial, para a qual a bengala era a proteção, se transforma em problema de comunicação. O medo já não era mais de que os “índios comessem gente”, mas de não ser capaz de se comunicar com eles. Nos dois casos, a boca está em questão, e esse não é, talvez, o único ponto de contato entre os dois temas...

Ideias em torno do contato e da comunicação com indígenas da Amazônia atravessam o diário da viagem de 1927, ora de maneira pontual, ora com algum desenvolvimento. Em 20 de junho, o escritor anota, pouco depois de adentrar em território peruano: “Primeiro índio nu adulto avistado” (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.120). A frase sugere que havia expectativa de avistar uma série deles. Mas o contato nem sempre dependia da vista. Num texto de 1941, “Romantismo musical”, o escritor insere uma passagem sobre a viagem amazônica que não tem, salvo engano, correspondente direto no Turista aprendiz:

No Amazonas, em certas regiões mais despidas do homem branco e de seringais, quando o navio de fundo chato subia arquejando, junto à margem, buscando os remansos por lhe ser impossível vencer a corrente do meio do rio, às vezes eu escutava frágeis mas penetrantes assobios humanos, nascidos do mato sem ninguém. Outros assovios secundavam longe. Me explicaram serem tapuios mestiços semicivilizados, totalmente inofensivos, se entrecomunicando a respeito do navio que vinha. [...] se, por um lado, essa música era uma real conversa econômica de vida social, por outro lado, ela me falava [...] com uma violência associativa enorme, em que [eu] era muito Hans Staden, I-Juca-Pirama [...]. (Andrade, 1975ANDRADE, M. Romantismo musical. In: ___. O baile das quatro artes. São Paulo; Brasília: Martins; INL, 1975. p.34-66., p.38, grifo meu)

A especificação de que os “tapuios” eram “totalmente inofensivos” mostra que a possibilidade de que fossem, ao contrário, ameaçadores rondava o pensamento do autor. Pela mesma razão, ele se imagina Hans Staden e I-Juca-Pirama: o primeiro, personagem histórico, e o segundo, de poesia, mas ambos marcados pela ameaça da antropofagia. São essas talvez as “reminiscências de leituras” de que se falava na nota inicial do diário, citada acima; a “violência associativa” a que o autor se refere aqui, pode não ser apenas a violência com que a associação se impõe à mente, mas também a violência do conteúdo associativo, isto é, ainda uma vez, o temor da antropofagia, ponto extremo da alteridade segundo a tradição ocidental. É curioso, ainda uma vez, que o tema possa emergir num contexto em que se fala da comunicação.

Ideias sobre os indígenas da região, incluindo os temas da antropofagia e da dificuldade de comunicação, são desenvolvidas nos trechos do Turista aprendiz que podemos caracterizar como “etnografias imaginárias”. Tais ideias ligam-se talvez à possibilidade real de visitar uma aldeia indígena no ponto “mais distante” (por assim dizer) da viagem: a fronteira com a Bolívia, alcançada pela navegação do Rio Madeira, e depois por um trecho da famosa estrada de ferro Madeira-Mamoré. A ideia de que o encontro com “índios” iria acontecer nas proximidades do Rio Madeira aparece no já citado sonho de 14 de maio (“encontramos uma tribo completa bem na foz do rio Madeira”). A visita real acaba não acontecendo, mas em certo sentido, é em torno dela que se organiza a viagem inteira.

“O passeio da tarde aos [índios] pacaás novos gorou” (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.160). Era 13 de julho de 1927, e o escritor estava em Guajará-Mirim, no que hoje é o estado de Rondônia, às margens do Rio Mamoré, na fronteira com a Bolívia, cerca de 300 km ao sul de Porto Velho. No dia seguinte, o escritor anota: “14 de julho - Partida de Guajará-Mirim, 6 horas. Enfim, estamos definitivamente ‘voltando’” (ibidem, p.161).

Se o passeio “gorou”, então esteve nos planos. Os pacaás novos que não foram visitados são o tema da primeira etnografia imaginária, cuja escrita parece ter se dado mais de um mês antes, em 8 de junho, em Manaus (ibidem, p.98-102):

A tribo dos pacaás novos - Ontem, no passeio de lancha, tivemos ocasião de visitar a tribo dos pacaás novos, bastante curiosa pelos seus usos e costumes. [...] O traje deles, se é que se pode chamar aquilo de traje, era assim: estavam inteiramente nus e com o abdome volumosíssimo pintado com duas rodelas de urucu [sic] [...]. No pescoço, porém, uma corda forte de tucum sarapintado amarrava um tecido de curauá muito fino, ricamente enfeitado [...]. Com isso formavam uma espécie de saia, que em vez de cair sobre os ombros e cobrir o corpo, se erguia suspendido por barbatanas oscilantes. Assim erguida pro céu, a saia tapava por completo as cabeças dos índios, tendo apenas na frente um orifício minúsculo dando saída à visão. Para eles o som oral e o som da fala são imoralíssimos e da mais formidável sensualidade. [...] As vergonhas deles não são as que nós consideramos como tais. De forma que se um pacaá sente vontade de espirrar sai numa disparada louca, entra no mato, mete a cabeça na serrapilheira mais folhuda e espirra só, com muita educação.

O tema do estranhamento, cujo limite é a inversão, é um ponto de contato entre a etnografia e o surrealismo, como bem notou James Clifford (2008CLIFFORD, J. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.). É também um lugar-comum da literatura sobre “outros povos”, de Heródoto a Montesquieu, passando por Marco Polo. A inversão é intrínseca ao encontro etnográfico, pois, por maior que seja a assimetria entre pessoas que observam e pessoas que são observadas, existe sempre, entre elas, um plano de observação simétrica, especular: pessoas observam-se entre si. Essa simetria foi amplamente explorada na literatura etnográfica, e no comentário sobre ela.

Na etnomusicologia, um excelente exemplo é a descrição feita por Gilbert Rouget (1990ROUGET, G. La musique et la transe. Paris: Gallimard, 1990., p.434-7), em La musique et la transe, de um espetáculo de ópera em Paris do ponto de vista de um etnomusicólogo do Bénin. Em resumo, o etnomusicólogo africano, na etnografia imaginária de Rouget, descreve a ópera como se fosse uma cerimônia de possessão por espíritos, similar às que conhece em seu país natal. Se Mário de Andrade, porém, imaginou os dados de sua etnografia, Rouget partiu de dados empíricos que conhecia bem (tanto na França como no Benin), para imaginar não as observações, mas o próprio observador, e a análise etnomusicológica por essa proposta. Tal análise tem, como no caso do escritor paulista, efeito de paródia e de humor (como quando Rouget compara as “crises de possessão” dos neófitos do vodum no Bénin, com as “crises de nervos” das “divas” ocidentais (ibidem, p.437)).

Mas a “paródia” de Rouget também produz conhecimento sobre o tema, e assim foi tomada por seus inúmeros leitores. Não por acaso, quinze anos depois de Rouget, Bruno Nettl se propôs a entender uma escola universitária de música norte-americana como uma sociedade movida por impulsos religiosos, com rituais, celebrações, divindades - os “grandes compositores”, como Mozart e Beethoven - e textos sacros - suas partituras (Nettl, 1995, p.24). Para isso, em vez de imaginar um etnomusicólogo do Bénin (ou do Irã, onde ele próprio havia feito pesquisas de campo), foi ainda mais longe e imaginou um “etnomusicólogo marciano” (Nettl, 1995, p.11-12). Pensar num “etnomusicólogo marciano” em visita a uma escola de música do mid-west norte-americano tem certamente algo de paródico e humorístico, e o próprio Nettl reconhece que suas pesquisas “em casa” foram chamadas de “excêntricas”, “controversas”, e que alguns acreditaram que talvez não fossem “sérias” (ibidem, p.1). Em meados dos anos 1990, porém, ele sugere que o estudo etnomusicológico da música ocidental se tornou “uma obviedade”, pelo menos no âmbito da disciplina. A produção de conhecimento se impôs à paródia.

Nas etnografias imaginárias de Mário de Andrade, tal como nos casos de Rouget e de Nettl, estamos num tipo de interface entre etnografia e literatura, mas agora, sob o signo da última.

No relato sobre os pacaás novos, as inversões são ligadas em primeiro lugar, como vimos, ao que Bakhtin (1999BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo; Brasília: Hucitec; UnB, 1999., especialmente p.323-31) chamou de “baixo corporal”, associado segundo o crítico russo à carnavalização e à renovação. Em vez de cobrir a parte “baixa” do corpo, os pacaás novos cobrem a cabeça, deixando o “baixo” à mostra, do mesmo modo que, em Rabelais, Gargântua “destrona” chapéus, bonés e cachecóis, associados ao “alto”, à cabeça, transformando-os em “limpa-cus” (Bakhtin, 1999, p.327; ver também Wisnik, 1980WISNIK, J. M. Dança dramática (poesia/música brasileira). São Paulo, 1980. Tese (Doutorado em Teoria Literária) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p.2-28).

Inversão similar, segundo a qual as funções da excreção poderiam ser públicas, e as da alimentação, privadas, aparece também no filme de Luís Buñuel, O fantasma da liberdade (1974), o que reforça a filiação surrealista do tema. Mário acrescenta a isso a inversão de papéis entre as funções sexuais e as da fala:

Existe entre eles uma instituição, assimilável ao sacramento do matrimônio [...]. Um belo dia o namorado chega na casa do pai da pequena e diz que veio pedir a voz dela [...]. Se o pai concede [...] o casal novo segue pra sua casa e de portas fechadas principiam numa falação que não acaba mais. [...] No outro dia, ali por volta do meio-dia, os pais da noiva chegam na porta do casal e sacudindo as paredes dão aviso da chegada. Então, se a recém-casada bota a boca numa fendazinha do pau a pique e solta um assobio, é que está consumado o matrimônio. Em caso contrário, comem o marido. (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.101)

De novo, o canibalismo surge, como ameaça ou sanção. O tema retorna em diversas outras passagens do diário amazônico. Como no trecho sobre a dançarina pacaá que fazia “espetáculos de nu artístico, aparecendo inteiramente vestida mas com a boca de fora”, e que acabou castigada e comida pelas “cunhãs [...] despeitadíssimas” (ibidem, p.102). Ou no trecho sobre o hábito de enfeitar-se com flores: por causa do tabu envolvendo a cabeça, foram “devoradas na praça pública uma quatro ou cinco senhoras mais audazes que, de cabeças floridas, tinham resolvido enfrentar a opinião pública” (ibidem, p.171).

Quero agora notar que no trecho sobre o matrimônio, os costumes dos pacaás novos são relatados ao autor por meio de um intérprete, que traduz oralmente, com toda a discrição possível, uma linguagem que no contexto não poderia, sem ferir a decência, ser oral. Os pacaás novos não falam pelos cotovelos, falam talvez pelos joelhos, mas em todo caso, pela parte “baixa” do corpo:

Quando ia chegando, uns curumins brincando no trilho deram o alarme de maneira muito estranha, sem um grito. Saltavam, movendo as perninhas no ar com enorme rapidez e variedade de gestos pernis [isto é, gestos das pernas] [...] moviam os dedinhos desses mesmos pés com habilidade prodigiosa de desenvoltura. Por causa da minha profissão de professor de piano, me pus observando principalmente o movimento do quarto dedo, era assombroso. Creio que nem um por cento dos pianistas de São Paulo (e sabemos que são milhões) possui semelhante independência de dedilhação. (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.98-99)

O “quarto dedo” é como se chama, no jargão pianístico, o dedo anelar, tanto da mão direita quanto da mão esquerda (em ambos os casos, convenciona-se que o “primeiro dedo” é o polegar). Considera-se que é o dedo que tem menos força e independência de movimentos em relação aos outros dedos, e por isso recebe especial atenção nos estudos. As associações aqui se desenvolvem de “falar com as pernas” para “falar com os pés”, e daí passam a “falar com os dedos dos pés”; a cada uma destas etapas, parece que o vocabulário dos pacaás novos vai ganhando mais possibilidades e sutilezas de expressão. A ênfase na independência dos dedos dos pés, que leva a pensar na independência, ou falta dela, dos dedos das mãos dos pianistas de São Paulo (e de alhures), encaminha o escritor para sua segunda etnografia imaginada, onde a música desempenhará o principal papel.

Mas antes de chegar lá, vamos ainda nos deter nos pacaás novos, e no que os etnólogos brasileiros têm a nos dizer sobre eles. Para o que se segue, baseio-me na importante dissertação de mestrado da antropóloga Aparecida Vilaça (2017VILAÇA, A. Comendo como gente: formas do canibalismo Wari (Pakaa Nova). Rio de Janeiro: MauadX, 2017 [1992).) sobre esse grupo, publicada em livro em 1992, com segunda edição em 2017, da qual me sirvo.

Os pacaás novos foram registrados por escrito pelos brancos pela primeira vez em 1798. Eles foram avistados nas proximidades do rio de mesmo nome, um afluente do Mamoré, nas proximidades de onde hoje se encontra Guajará-Mirim (RO), cidade, como vimos, visitada em 1927 por Mário de Andrade. É por causa do Rio Pacaás Novos que foram assim chamados, e esse nome lhes foi dado pelos não índios. A questão da sua autodenominação é, porém, um intrincado problema etnológico e linguístico; embora eles chamem a si mesmos de Wari, essa palavra não é, como explica Aparecida Vilaça (2017VILAÇA, A. Comendo como gente: formas do canibalismo Wari (Pakaa Nova). Rio de Janeiro: MauadX, 2017 [1992)., p.42), um gentílico. “[...] wari’, que significa ‘nós’, ‘gente’, não é uma autodenominação, mas um classificador amplo que define os seres humanos em oposição aos não-humanos (animais, inimigos etc.)”. Como mostraram Eduardo Viveiros de Castro e seus colaboradores, porém, as posições de “humano” e “não-humano”, no perspectivismo ameríndio, não são dadas de uma vez por todas, mas contextuais e mutáveis; assim, “se eles costumam dizer ‘eu sou wari’, podem dizer também ‘o queixada é wari’, a ‘onça é wari’, etc.” (ibidem, p.42). Tal perspectivismo, aliás, pode ser ilustrado por uma passagem do próprio Turista aprendiz, quando Mário de Andrade registra o sentido de palavra até então desconhecida:

Embiara: comida. “Vou buscar minha embiara no mato”. O sujeito que tem outro que o domina (dono, patrão, inimigo mais forte) diz que este é “a onça dele”. O dominado é chamado “embiara” pelo dominador: “Este aqui é minha embiara”. (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.108)

Compare-se com a seguinte passagem de Viveiros de Castro (2002, p.384):

Alguém é um pai apenas porque existe outrem de quem ele é o pai: a paternidade é uma relação, ao passo que a peixidade ou a serpentitude é uma propriedade intrínseca dos peixes e cobras. O que sucede no perspectivismo, entretanto, é que algo também só é peixe porque existe alguém de quem este algo é o peixe.

“Embiara”, palavra que segundo Nascentes (1966NASCENTES, A. Dicionário etimológico resumido. Rio de Janeiro: INL-MEC, 1966., p.263) deriva do tupi “mbiara”, é a presa - de caça ou pesca - obtida para comer, por ação direta de um predador. A ontologia amazônica da predação foi extensamente discutida por Viveiros de Castro (2002, especialmente p.163-80), mas a menciono aqui apenas para notar que a relação “social” de dominação evocada por Mário de Andrade na passagem que acabei de citar (“dono, patrão, inimigo mais forte”) é traduzida, na conversa reportada pelo autor, em termos de predação: “onça”, “embiara”.

Guajará-Mirim era nada menos que o ponto extremo da famosa estrada de ferro Madeira-Mamoré. A chegada de seringueiros, castanheiros, trabalhadores da ferrovia e outros não índios à região trouxe doenças e mortes aos pacaás novos e outros indígenas, forçando-os a se retirar para regiões de acesso mais difícil aos brancos. Nesse contexto dramático, embora os pacaás novos não fossem do tronco tupi, e a palavra “embiara” não lhes fosse necessariamente conhecida, momentos houve em que eles foram onça, e os brancos, sua embiara. Assim, o jornal Alto Madeira, de Porto Velho, anota, em 19.9.1926 que em Guajará-Mirim...

Os índios atacaram um trabalhador rural [...] a poucos minutos do centro da cidade, fazendo-lhe sete gravíssimos ferimentos de flechas [...] Ciente do fato, o encarregado do posto indígena do [rio] Pacanova dirigiu-se à residência da vítima [...] [onde] apreendeu grande quantidade de flechas deixadas pelos silvícolas. [...] A população indignada espera providências no sentido de cessar de vez esta situação que está provocando o terror, além de prejuízos aos lenheiros, agricultores e outras classes pobres. A vítima está em estado desesperador. (Artigo anônimo, disponível em linha através da Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional)

O possível conhecimento de Mário de Andrade sobre situações como essa, meses antes de sua planejada viagem, talvez tenha contribuído, tanto quanto suas leituras de Hans Staden e Gonçalves Dias, para o difuso “medo de índios” que transparece em passagens do diário amazônico. Não se pode deixar de notar, porém, que o escritor não parece atinar com a situação mais geral, responsável, nesses tempos e lugares, pelo verdadeiro “terror”, usando a palavra do jornal Alto Madeira, ou “horror”, para falar como Kurtz, o sinistro personagem colonial do romance O coração das trevas, de Joseph Conrad.

Os Wari estavam na ponta da estrada de ferro Madeira-Mamoré, estrada de ferro planejada desde os anos 1860, construída por empresários norte-americanas na virada do século, e inaugurada em 1912. A principal motivação para o empreendimento foi a extração do látex da Amazônia, via porto de Manaus, para a indústria internacional da borracha, incluindo a nascente e promissora indústria dos pneus de veículos automotores. Cito novamente Aparecida Vilaça (2017VILAÇA, A. Comendo como gente: formas do canibalismo Wari (Pakaa Nova). Rio de Janeiro: MauadX, 2017 [1992)., p.46), que nessa passagem se baseia por sua vez na tese de doutorado de Beth Conklin (1989CONKLIN, B. A. Images of health, ilness and death among the Wari (Pakaas Novos) of Rondônia, Brazil. San Francisco, 1989. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade da Califórnia.) sobre os Wari:

[...] até a segunda metade do século XIX, quando ocorreu o primeiro boom da borracha, o rio Ouro Preto [um afluente do rio Pacaás Novos] era o centro geográfico dos territórios Wari. A partir de então esse rio se tornou uma via importante de penetração dos seringueiros. [...] Com a ocupação da Malásia (que ao produzir um látex mais barato que o brasileiro, provocou o fim do primeiro boom da borracha na segunda década do século XX) pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial, ocorreu o segundo boom da borracha, no início dos anos 1940, quando a região de Guajará Mirim foi intensamente ocupada por exploradores. Se antes ocorriam ataques isolados aos Wari pelos seringueiros, eles se tornaram verdadeiros massacres, com uso de espingardas e possivelmente de metralhadoras.

III

A segunda etnografia imaginária de Mário de Andrade é bem mais extensa que a primeira, da qual deriva, mais uma vez, por associação de ideias.

Eu creio que com os tais índios que encontrei e têm moral distinta da nossa, posso fazer uma monografia humorística, sátira às explorações científicas, à etnografia e também social. Seria a tribo dos índios dó-mi-sol. Será talvez mais rico de invenções humorísticas, dizer que eles, em vez de falarem com os pés e as pernas, como os que vi, no período pré-histórico de separação do som, em som verbal como palavras compreensíveis, e som musical inarticulado e sem sentido intelectual, fizeram o contrário: deram sentido intelectual aos sons musicais e valor meramente estético aos sons articulados e palavras. O nome da tribo, por exemplo, eram os dois intervalos ascendentes, que em nosso sistema musical, chamamos dó-mi-sol. [...] É na subida do Madeira que encontro os índios dó-mi-sol. (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.133-4)

É curioso notar que em 1927 Mário de Andrade fazia sátiras à etnografia, quando menos de dez anos depois, em 1936, à frente do Departamento de Cultura de São Paulo, estará promovendo, como vimos, o primeiro curso sobre o tema realizado no país. Mas a ideia de que sons musicais e sons verbais, tais como definidos na citação acima, possam ter uma origem comum, não foi, é claro, inventada por Mário de Andrade, remontando pelo menos a Rousseau no seu Ensaio sobre a origem das línguas, de 1781. Para um resumo do assunto, veja-se o capítulo de Bruno Nettl (2015_______. The study of ethnomusicology: thirty-three discussions. Urbana (IL): University of Illinois Press, 2015., p.31-46) sobre “Commonalities and the origins of music”. E para uma hipótese recente, desenvolvida pelo antropólogo especializado em pré-história, Steven Mithen (2007MITHEN, S. The singing Neanderthals: the origins of music, language, mind and body. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2007), associando a origem da música à da linguagem, veja-se The singing Neanderthals. Além disso, a ideia de que a música possa servir como meio de comunicação de tipo denotativo, enviando mensagens específicas capazes de serem decodificadas à maneira de frases ou palavras, nada tem de fantasiosa, pois existem diversas linguagens tamboriladas, assobiadas e outras, que comunicam mensagens através de sons (como as dos apitos dos guardas de trânsito, para dar um exemplo próximo). A fantasia não seria tanto pensar que a música possa servir à comunicação, pois não há dúvida de que pode; é antes a de que possa existir sociedade humana à qual a música baste, dispensando o uso de linguagem verbal.

A relação entre música e compreensão intelectual, tematizada nessas passagens do Turista aprendiz, é assunto caro à reflexão ocidental sobre o som. Não por acaso, Lévi-Strauss dedica sua obra mais importante, as Mitológicas (uma tetralogia, em referência explícita ao Anel dos Nibelungos de Wagner), “à Música”, referida como “o supremo mistério das ciências humanas, aquele contra o qual elas se chocam (elles butent), e que guarda a chave de seu progresso” (Lévi-Strauss, 1964, p.26, tradução minha). O motivo pelo qual o antropólogo atribui tal importância à música é exatamente aquele que nos ocupa aqui: o de ser “entre todas as linguagens, a única que reúne as características contraditórias de ser ao mesmo tempo inteligível e intraduzível” (ibidem).

O tema está presente no pensamento de Mário de Andrade pelo menos desde o curso de estética musical que ministra em 1921, e que revisa em 1925 para publicação (Andrade, 1995). Segundo a experiência comum, a música é algo que se compreende, embora não do mesmo modo como se compreende a linguagem verbal. O problema é que esse é o padrão usual do que seja “compreender”. “Compreender”, ao menos numa primeira aproximação, se associa a “saber traduzir em palavras”. Acreditamos compreender um tema quando expressamos em palavras seus significados. Mas é isso, justamente, que não ocorre no caso da música:

[...] a obra de arte musical aparece para nós como objeto de compreensão. Esta compreensão no entanto não é intelectual pois que não pode ser determinada por conceito expresso por palavras. Carece portanto observar a natureza dessa compreensão. (Andrade, 1995_______. Introdução à estética musical. São Paulo: Hucitec, 1995., p.46)

Na busca por tal “natureza”, Mário de Andrade parte, como Rousseau no século XVIII e Mithen no século XXI, de uma unidade inicial entre palavra e música:

[...] a palavra, irmã-gêmea da música, tendo ambas nascido do mesmo grito inicial. [...] Duas expressões que seguiram caminhos não opostos, porém diferentes. O que caracteriza esta diferença é a liberdade da música em relação à palavra. Ao passo que esta se transformava em símbolos de necessidade imediata, meio de conhecimento e de comunicação imediata, o som seguia direto em busca das necessidades superiores do espírito e procurava satisfazê-las. Isso é tão verdade que podemos imaginar o seu contrário: os sons e suas combinações como se tornando símbolos ideativos e o ruído articulado como se tornando livre de qualquer significado intelectual [...]. (ibidem, p.46)

Eis aí já, portanto, como notou Flávia Toni (que organizou a obra inédita para publicação), o “germe” dos índios do-mi-sol na mente de seu autor, com alguns anos de antecipação (Andrade, 1995_______. Introdução à estética musical. São Paulo: Hucitec, 1995., p.54, nota 18). Anos depois, no artigo já citado sobre “Romantismo musical”, publicado originalmente em 1941, a referência à linguagem assobiada dos “tapuios inofensivos” também traz de volta o tema:

O grito primitivo dos primeiros homens - esse um só grito de que provieram os sons inarticulados e os sons articulados, o ré bemol e a palavra, a música e o verbo. [...] Agora suponhamos: se quando os homens principiaram se servindo da emissão vocal para expressar as primeiras imagens e ideias [...] tivessem escolhido convencionalmente os sons musicais para dicionarizar na consciência as imagens e juízos: nós hoje estaríamos nos comunicando uns com os outros por meio de árias e cantiguinhas [...]. (Andrade, 1975ANDRADE, M. Romantismo musical. In: ___. O baile das quatro artes. São Paulo; Brasília: Martins; INL, 1975. p.34-66., p.39)

Mário de Andrade desenvolve o tema da relação entre música e fala em seus “índios” imaginários, como vimos, por seu potencial de paródia, e mais uma vez, por seu caráter de inversão: “nós” demos valor intelectual às palavras, e valor estético aos sons inarticulados; “eles” fizeram o contrário. Diferentemente dos pacaás novos imaginados, os dó-mi-sol usam a boca; mas não a usam para falar, e sim para cantar. A passagem do gesto (“gestos pernis”) ao som e à música se faz através do quarto dedo dos pés dos índios pacaás novos. E Mário de Andrade imagina “traduzir” frases e palavras musicais dos dó-mi-sol, usando os recursos de que dispunha - os termos técnicos do seu cotidiano como professor no Conservatório de São Paulo:

Dar um vocabulário também ficava engraçadíssimo, se prestando a efeitos muito humorísticos, mas só poderiam perceber isso os que soubessem música. E os músicos em geral são tão pouco perspicazes... É melhor desistir do vocabulário. (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.135)

Mas ele não desiste. Em vez disso, descreve as palavras e expressões dos do-mi-sol com vocabulário de pianista clássico: “fusas rápidas, e um salto de oitava descendente” (ibidem, p.146), “intervalo descendente de quinta diminuída” (ibidem, p.147), “os fortes, os pianos, os crescendos e decrescendos” (ibidem, p.165), “fermatas agudíssimas” (ibidem, p.169).

Para alguém com formação musical escolar, tudo isso é bastante vago - limites talvez da perspicácia... Mas, tendo ou não tal formação, o efeito cômico vem da percepção de que se está falando de “índios” da Amazônia como estivéssemos em O Guarani de Carlos Gomes: mais inversão, portanto.

Em todo caso, a ideia permite também que o escritor vá mais longe em suas fantasias sobre os “índios”. É como se essa “alteridade” expressa em música fizesse dele, que também era músico, alguém um pouco mais próximo dos índios dó-mi-sol, e por extensão, dos pacaás novos imaginados, e talvez também dos reais: um seu “afim”, por assim dizer.

Eduardo Viveiros de Castro (2002, p.87-180) escreveu um importante artigo sobre “O problema da afinidade na Amazônia”. Ali encontramos uma frase, “A necessidade da afinidade é a necessidade do canibalismo”, cuja filiação modernista parece evidente: “Só a antropofagia nos une”, escreveu Oswald de Andrade no início do Manifesto antropófago. Percebe-se que, ao aproximar-se dos dó-mi-sol pela música, Mário de Andrade podia estar correndo mais riscos do que jamais imaginou.

[A] combinação de uma diferença e uma semelhança igualmente necessárias cristaliza-se, frequentemente, na identificação dos inimigos a afins: os cunhados-inimigos tupinambá (H. Clastres 1972) são apenas o exemplo mais célebre de uma configuração ameríndia muito geral, em que a tensão característica da afinidade - relação que tem a semelhança como base e a diferença como princípio - é utilizada para pensar a categoria do inimigo e reciprocamente, isto é, onde os valores da exterioridade predatória formam o subtexto da aliança matrimonial. (Viveiros de Castro, 2002, p.289)

É curioso notar que Mário de Andrade percebeu à sua maneira, na “etnografia” dos índios dó-mi-sol, a mesma conexão entre “inimigo” e “afim” (“seres humanos do mesmo sexo e não da mesma família”):

Os dó-mi-sol não tinham nenhuma palavra para indicar o amigo, o companheiro, o chefe, o proprietário, o escravo, nada disso. Só tinham mesmo uma palavra pra designar a relação entre os seres humanos do mesmo sexo e não da mesma família, e essa palavra era [...] “inimigo”. Mas se pronunciada em fortíssimo, por exemplo, sem deixar de significar fundamentalmente “inimigo”, a palavra tomava as nuanças da conceituação do “chefe”, ao passo que, em pianíssimo, significava “amigo”, sem por isso perder a noção preliminar de “inimigo”. (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.165)

Os materiais produzidos por Mário de Andrade na segunda viagem, a viagem ao Nordeste de 1928-1929, a que foi chamada, sem paródia, de “Viagem etnográfica”, não falam de índios imaginados, mas falam como eles. Esses materiais estão cheios de fusas, saltos de oitava, intervalos descendentes de quinta diminuída. A “afinidade musical” de Mário de Andrade com as pessoas que observou e imaginou em suas viagens de etnógrafo aprendiz ecoa até hoje em centenas de pentagramas.

A mim, logo de início, desque botei atenção naquela semântica ativa, notei que todos me tratavam num mezzoforte que ia em decrescendo, o que significava, mais ou menos, “inimigo curioso, desprezível por ser de raça inferior”. Mas no fim das nossas relações já quase todos, com exceção de uns quatro ou cinco, me tratavam em pianíssimo com tendência crescente, o que não deixou de me sensibilizar. (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. [Esta edição do Turista aprendiz está disponível também em versão eletrônica, on-line no site do Iphan.], p.165)

Referências

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  • TRAVASSOS, E. Os mandarins milagrosos: arte e etnografia em Mário de Andrade e Bela Bartók. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Funarte, 1997.
  • VALENTINI, L. Um laboratório de antropologia: o encontro de Mário de Andrade, Dina Dreyfus e Claude Lévi-Strauss. São Paulo: Alameda, 2013.
  • VILAÇA, A. Comendo como gente: formas do canibalismo Wari (Pakaa Nova). Rio de Janeiro: MauadX, 2017 [1992).
  • VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac&Naïf, 2002.
  • WISNIK, J. M. Dança dramática (poesia/música brasileira). São Paulo, 1980. Tese (Doutorado em Teoria Literária) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

Notas

  • 1
    Para outros aspectos das relações entre Mário de Andrade e a etnografia que não serão aprofundados aqui, ver Travassos (1997).
  • 2
    Fernanda Arêas Peixoto cita uma nota do Journal de la Société des Américanistes, XXVII, p.475-476, afirmando que aquela primeira viagem do casal foi também encomendada pelo Ministério da Educação francês. Peixoto, 1998.
  • 3
    A data do final da Expedição à Serra do Norte varia, segundo as fontes, entre novembro e dezembro de 1938. Em todo caso, nos meses finais de 1938 Claude Lévi-Strauss e Jean Vellard encerram os trabalhos e tomam o caminho da Bolívia pelo rio Madeira (tal qual fizera Mário de Andrade em 1927), de onde Lévi-Strauss retorna a São Paulo de avião. O integrante brasileiro da expedição, Luís de Castro Farias, vai para Belém onde fica até janeiro de 1939, antes de retornar ao Rio de Janeiro. É surpreendente que em uma obra como De près et de loin, diálogos entre Lévi-Strauss e Didier Éribon, esse último afirme, sem que Lévi-Strauss o contradiga, que a expedição “durou mais de um ano”, o que é manifestamente falso (Lévi-Strauss; Éribon, 1990, p.35).
  • 4
    O mesmo discurso foi reproduzido na íntegra em Calil e Penteado (2015, p.294).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2021
  • Aceito
    23 Dez 2021
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