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O Brasil e os brasis de Mário de Andrade: o fim do turista aprendiz?

RESUMO

O artigo descreve a ideia de Brasil do modernismo de Mário de Andrade e avalia qual é a sua atualidade passados 100 anos da Semana de 22, evento marcante do movimento de vanguarda. Tendo em vista a rapsódia Macunaíma e os diários de viagens de O turista aprendiz, expõe-se como Mário de Andrade pensou a unidade do Brasil colhendo a diversidade dos “brasis”. Esse projeto de país, formulado por meio da arte, confiava na mistura étnica e cultural, levando em conta elementos não-europeus da formação nacional. Isso marcou o século XX. Contemporaneamente, porém, tal projeto imaginado foi posto em questão por sua dificuldade de realizar-se concretamente, crescendo a exigência de determinação de diferenças étnicas e culturais não misturadas, que permitam o enfrentamento político direto de injustiças e desigualdades do país.

PALAVRAS-CHAVE:
Brasil; Modernismo; Mistura

ABSTRACT

This article describes the idea of Brazil in the Modernism of Mário de Andrade and assesses its relevance one hundred years after the Week of 22, a landmark event of the avant-garde movement. Analyzing the Macunaíma rhapsody and the travel diaries of O turista aprendiz, this article exposes how Mário de Andrade conceived the unity of Brazil by reaping a diversity of “Brazils”. This project, formulated through art, relied on ethnic and cultural admixture, and considered non-European elements of the national formation. This marked the 20th century. Today, however, this imagined project was called into question due to the difficulties of concretely carrying it out, given the growing demand for determining unmixed ethnic and cultural differences, which would allow for the direct political confrontation of the country’s injustices and inequalities.

KEYWORDS:
Brazil; Modernism; Mixture

Mário de andrade não foi somente o nome de uma pessoa e nem mesmo apenas de um artista. É claro que ele também foi tudo isso: uma pessoa que nasceu em 1893 e morreu em 1945; um artista cuja obra provavelmente viverá para sempre, com poemas, romances, contos, críticas, revistas, manifestos, cartas. Mas, além de tudo isso, Mário de Andrade tornou-se o nome por meio do qual se cristalizava um projeto original de Brasil. “É no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei”, escreveu em 1924, por carta, ao poeta Carlos Drummond de Andrade (Andrade, 2002, p.51). O valor do sacrifício pessoal estava atrelado ao sentido de missão que Mário sentia ter diante do Brasil. Essa missão, precipitada em sua participação no modernismo, pretendia pesquisar o Brasil, entender o Brasil e construir o Brasil, articulando o passado que fomos, o presente que éramos e o futuro que ainda poderíamos vir a ser.

Desde 1917, Mário engajara-se na construção do primeiro movimento coletivo e autoconsciente de vanguarda cultural no Brasil, que depois ganharia o nome de modernismo. Partindo da defesa da pintura moderna de Anita Malfatti, Mário foi, aos poucos, agregando inúmeras parcerias na causa da atualização estética da cultura brasileira, que deveria se familiarizar com movimentos artísticos do mundo, especialmente europeus. Tal proposta foi coroada na Semana de Arte Moderna de 1922, a famosa Semana de 22. Logo, porém, esse ímpeto cosmopolita de incorporar as linguagens estrangeiras ao repertório da arte no Brasil foi acompanhado da consciência de que também era necessário melhor conhecer o próprio Brasil, cujas vastidão territorial e diversidade cultural não eram familiares. Para Mário, por exemplo, tão enraizado na sua São Paulo, seria preciso um esforço para compreender o Brasil e seus brasis. Desse modo, a Semana de 22 - que agora completa seu centenário - passou à história portando um duplo sentido na cultura do Brasil: de um lado, consumava o impulso cosmopolita de internacionalização; de outro lado, depois dela começava o esforço de pesquisa da nacionalidade (Jardim, 2016JARDIM, M. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Ponteio; PUC-Rio, 2016.). Daí derivou não apenas uma aventura estética, mas a formulação do mais duradouro ideário de Brasil que conhecemos, o ideário modernista. Mário foi seu protagonista.

Desde pelo menos 1923, como se pode constatar pelo volume de poemas de Clã do jabuti, publicado em 1927, mas que recolhe poemas anteriores, o Brasil era a preocupação central de Mário. Há poemas que falam do Carnaval no Rio de Janeiro ou então do noturno de Belo Horizonte. Especialmente, contudo, fala-se do Brasil.

Brasil amado não porque seja minha pátria, Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der... Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso, O gosto dos meus descansos, O balanço das minhas cantigas amores e danças. Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada, Porque é o meu sentimento pachorrento, Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir. (Andrade, 1993b_______. Poesias completas. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993b., p.161)

Esse Brasil era também o que Mário tentaria alegorizar em sua mais famosa obra, Macunaíma, publicada em 1928, mas começada desde 1926. Entre um ano e outro, Mário fez uma viagem ao Norte do país. Subiu pelo rio Amazonas até Iquitos, no Peru. Essa era uma viagem planejada com amigos, como o empresário, historiador e ensaísta Paulo Prado, que tinha sido o principal articulador financeiro da Semana de 22 e que em breve, também no ano de 1928, publicaria Retrato do Brasil. Mário lê antes esse texto e usa o que ali pode depreender da história do Brasil, como a presença da sexualidade, na composição do personagem Macunaíma. Sua rapsódia seria dedicada ao amigo. Mas, Prado, assim como Afonso Taunay, desiste da viagem. Fazem-na, finalmente: Mário; dona Olivia Guedes Penteado, por ele chamada, numa mistura de afeto e ironia, de “Rainha do Café”; sua sobrinha Margarida Guedes Nogueira, a Mag; Dulce do Amaral Pinto, a Dolur, filha de Tarsila do Amaral; e uma criada. Para além do episódio biográfico relevante, tal viagem geraria dois conteúdos na obra de Mário: fotografias tiradas com uma Kodak de fole que tinha objetivo documental (Carnicel, 1993CARNICEL, A. O fotógrafo Mário de Andrade. São Paulo: Editora Unicamp, 1993.); e, especialmente, um diário, revisto em 1943 e publicado apenas postumamente em 1976 junto com os relatos de uma segunda viagem ao Nordeste de 1928, sob o título de O turista aprendiz. O título é significativo. Revela que Mário considerava que precisava aprender o Brasil, deixar-se ensinar por lugares, culturas, ritos, festas, falas, imagens, crenças, hábitos, costumes.

Para se aproximar desse Brasil, não bastava a Mário permanecer parado em sua cidade, ou mesmo estudar. Era preciso viajar para conhecê-lo com experiência. Consciente de seu enraizamento em São Paulo, o autor do conjunto de poemas Pauliceia desvairada, publicado no começo dos anos 1920, sabia que precisava dar à sua compreensão do Brasil uma maior amplitude. São conhecidas, por exemplo, as viagens feitas ainda nesta época para Minas Gerais. Interessavam a Mário especialmente as igrejas barrocas, “donde muito bem se poderia originar um estilo nacional” (Andrade, 1993a_______. A arte religiosa no Brasil. São Paulo: Experimento/Giordano, 1993a., p. 47). Essa busca pelo estilo nacional evidencia dois traços articulados do projeto de Brasil, de Mário: um era a necessidade de encontrar algo de próprio ao país, que não se reduzisse à cópia do modelo ocidental-europeu embora o incorporasse no processo de modernização; o outro era, por consequência, a exigência de estudar a cultura popular forjada na história do Brasil, o que demandaria viagens pelo vasto território tropical.

É bastante conhecido o papel que desempenhou, na obra de Mário, o estudo, e em especial o estudo da etnografia. Ele mesmo o declarou várias vezes. É difícil qualquer crítica de Macunaíma, por exemplo, não sublinhar a relevância que teve para seu autor a leitura do hoje clássico trabalho De Roraima ao Orinoco, escrito pelo etnógrafo alemão Koch-Grünberg, no qual muitos mitos e lendas ameríndios foram recolhidos (Proença, 1969PROENÇA, M. C. Roteiro de Macunaíma. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969., p.13). Menos comum é se chamar atenção para o quanto um saber direto e vivido, sem a mediação dos livros, contribuiu para a gênese da obra-prima do modernismo brasileiro. E, contudo, suas viagens em 1927, se não podem se situar no nascimento do livro Macunaíma pois ele começara a ser escrito em 1926, por vezes misturam-se a ele. Nem mesmo é possível discernir o quanto há de Macunaíma em O turista aprendiz e o quanto há de O turista aprendiz em Macunaíma. Nas duas obras, o mesmo ideário: abranger o Brasil em sua diversidade, procurar o que haveria de comum na brasilidade.

“Partida de São Paulo”, escrevia Mário de Andrade em 7 de maio de 1927, antes de começar sua série de viagens como “turista aprendiz” (Andrade, 2015, p.50). O que importa, aqui, não é apenas a cidade de que se parte, São Paulo, mas que ela não seja a chegada, ou seja, que é preciso ir além dela. É preciso partir: “pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega”, como Mário observa cheio de um humor típico de sua personalidade, mas também da estética adotada durante o modernismo. Mário sabia que, se ficasse parado em São Paulo, permaneceria refém de preconceitos sobre o resto do Brasil que ele só conhecia de longe e de imaginação.

Comprei pra viagem uma bengala enorme, de cana-da-índia, ora que tolice! Deve ter sido algum receio vago de índio... Sei bem que esta viagem que vamos fazer não tem nada de aventura nem perigo, mas cada um de nós, além da consciência lógica possui uma consciência poética também. As reminiscências de leitura me impulsionaram mais que a verdade, tribos selvagens, jacarés e formigões. (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015., p.50)

Para a mentalidade de um paulista, em 1927, o resto do Brasil poderia facilmente confundir-se com uma grande e terrível selva. O “receio vago” seria fruto das memórias e da imaginação que, por meio da leitura de poemas e romances, destacavam uma paisagem insólita, exótica. Daí a bengala que Mário compra, e que tem o sentido de utensílio para proteção diante dos perigos das viagens por vir pelo Brasil (em um lapso significativo, Mário quase a esquece, embora consiga voltar para pegá-la). Contudo, Mário confessa que sabe que não há nenhuma grande aventura à espreita. Só que esse saber é o da consciência lógica apenas, enquanto a consciência poética povoara a sua mente com “tribos selvagens, jacarés e formigões”, ou seja, uma natureza indomada.

Mais tarde na viagem, passando por Maceió, Mário narra um sonho significativo sobre a ambiguidade de seus sentimentos diante dos povos indígenas, uma mistura que juntava fascínio e medo, vontade de conhecimento e receio do contato, impulso para o intercâmbio e hesitação pelo temor de errar, preparação cautelosa e pressentimento da surpresa. Mais uma vez, a consciência lógica e a consciência poética se digladiavam, mas agora no interior de um enredo onírico muito revelador. Eis o sonho narrado.

Com muito cuidado, escrevi um discurso em tupi pra dizer a nossa saudação a todos, quando estivéssemos entre os índios. Encontramos uma tribo completa bem na foz do Madeira, não faltava nem escrivão nem juiz-de-paz pra eu me queixar se alguém bulisse com a Rainha do Café. Vai, recitei o meu discurso, que aliás era curto. Mas desde o princípio dele os índios principiaram se entreolhando e fazendo ar de riso. Percebi logo que era inútil e que eles estavam com uma vontade enorme de comer nós todos. Mas não era isso não: quando acabei o discurso, todos se puseram gritando contra mim: - Tá errado! tá errado! (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015., p.63)

O sonho mostra um Mário dedicado a se preparar para o hipotético encontro da sua mentalidade cultivada na erudição com a alteridade dos povos indígenas sem a instrução europeizada. O gesto é de forte desejo ante o outro povo: escreve um discurso em tupi, isto é, na língua que não é a sua, para promover a comunicação. Logo que começa, porém, repara algo estranho. Os índios entreolham-se e riem. Mário sente medo. Suspeita que seu esforço é inútil e que os índios, segundo o ritual antropofágico, poderiam devorá-lo. Mas não era nada disso, e sim algo mais simples e leve. Riam-se de que estava errado o discurso de Mário na sua língua, evidenciando, a um só tempo, a esperança na empatia amistosa e o reconhecimento da dificuldade do entendimento.

É curioso perceber, nesse sentido, que a saída de São Paulo, ou talvez do Sudeste, era, para Mário, uma viagem não apenas no espaço, mas também no tempo. Tratava-se de uma viagem ao passado que restaria ainda intacto ou menos impactado pela civilização, pela modernidade e até pela colonização, quem sabe. Imagens da natureza sem um cultivo humano pululam no inconsciente de Mário. O homem da cidade viajaria para um território que imaginava virgem. Nele, os seres humanos eram indígenas, e não europeizados. Os animais estão presentes. É claro que Mário apressa-se em evidenciar que está cônscio da caricatura esquemática na dicotomia: o presente moderno da cultura, de um lado, e o passado arcaico da natureza, de outro lado. Contudo, essa autoconsciência não é forte o suficiente para desfazer a energia do inconsciente sobre o Brasil.

E vale sublinhar que a dicotomia entre natureza e cultura nem sempre as hierarquiza, conferindo à primeira um lugar inferior e à segunda um lugar superior, no pensamento de Mário. Na parada inaugural da viagem, no Rio de Janeiro, isso fica claro. “Não sei, acho o Rio uma cidade mui feia, mas dizem que é bonita”, comentava criticamente Mário sobre a então capital do país, “a natureza sim é maravilhosa, eu sei, mas a cidade, a urbanidade, o trabalho do homem, o sofrimento e a glória do homem, é uma coisa detestável” (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015., p.50-1). Para além do bairrismo paulista que pode haver na observação, ela deixa claro que, para Mário, o processo de edificação da civilização humana sobre a natureza não é, por si e em si, suficiente. No caso do Rio, por exemplo, era detestável, ainda que a natureza permanecesse de fato linda. Mário antecipava, assim, a muitas vezes citada frase da poeta norte-americana Elizabeth Bishop, que moraria no Brasil e escreveria que “o Rio não é uma cidade maravilhosa, por exemplo, mas um maravilhoso cenário para uma cidade” (Bishop, 1965, p.7).

Esse aspecto da compreensão do Brasil permanece forte ainda hoje, como se na natureza houvesse abundância e plenitude, mas na civilização fôssemos pobres e carentes. Diga-se de passagem, que, nesta parada no Rio, Mário encontrou-se com seu amigo Paulo Prado, que já o havia acompanhado na conhecida viagem a Minas Gerais em 1924, junto com o poeta suíço Blaise Cendrars. Já agora, em 1927, Paulo Prado (2000, p.29) estava elaborando seu livro mais importante, Retrato do Brasil, cujas palavras de abertura anunciavam que, “numa terra radiosa, vive um povo triste”. Essa dualidade, expressa belamente, referia-se à mesma questão: a terra é radiosa quer dizer que a natureza é solar e dadivosa; o povo é triste quer dizer que é preguiçoso e passivo. Mas, a novidade da tese é que a opulência natural não apareceria para compensar a falta de cultura, como diversas vezes em nossa tradição. Pelo contrário, a tese era crítica, como se a confiança na natureza enfraquecesse o esforço de construção moral e institucional. Não era apenas a alegria de que, como diria o primeiro documento do Brasil, a carta de Pero Vaz de Caminha, aqui, em se plantando, tudo dá, mas uma tristeza de que, por isso, deixamos de trabalhar de modo constante e diligente para o progresso moderno.1 1 Essa grandeza da natureza no Brasil fez Mário qualificá-la, de acordo com um vocabulário da filosofia do século XVIII, como “sublime”. Ele comentou que “a foz do Amazonas é uma dessas grandezas tão grandiosas que ultrapassam as percepções fisiológicas do homem” (Andrade, 2015, p.68). Immanuel Kant (1995, p.93, 101) foi quem formulou, na Crítica da faculdade do juízo, o conceito. Observou que “denominamos sublime o que é absolutamente grande”, e que “isto não pode ocorrer senão pela própria inadequação do máximo esforço de nossa faculdade da imaginação na avaliação da grandeza de um objeto”.

Em outras palavras, o que estava em jogo era a formação do Brasil. Mário foi um nome também para isso, ou seja, um nome no qual convergia o desafio da formação do país, entendido como algo ainda em aberto. Melhor seria dizer que o Brasil estava formando-se, no gerúndio. Ou seja, a formação não se completara: o passado ainda não se concluíra no presente, ao qual cabia decidir seu sentido para o futuro. Esse passado era marcado, evidentemente, pela colonização e pela escravidão. Sobre a primeira, o sonho de Mário era revelador a respeito do contato com os povos indígenas, que apenas poderia fazer-se com esforço, uma vez que, em sua maioria, tinham sido ou eliminados, ou catequizados, ou empurrados para partes geográficas do país distantes das cidades. Sobre a segunda, a escravidão, Mário narra uma lembrança, quando estava passando por Fortaleza, de seu tio Pio. Esse, ainda “rapaz, estava brincando com um negrinho escravo do pai”, e o menino escravo teria feito alguma coisa inesperada e não desejada, de onde o seguinte diálogo:

- Ôh, negrinho entremetido, eu te bato, heim!

- Bata que eu corro!

- Eu corro atrás!

- Eu escapulo por debaixo de mecê!

- Eu me agacho!

- Eu pegava numa pedra e tocava uma pedrada em mecê!

- Eu desviava!

- Eu pegava num relho, dava uma relhada em mecê!

- Quedê relho!

- Eu dava uma paulada!

- Não tem pau!

- Nem num sei! pegava no que fosse e dava uma quefossada em mecê!

(Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015., p.65)

Não deixa de ser estranho o tom da geração de brasileiros não escravos, após a abolição no fim do século XIX, em relação ao passado recente. O pai de tio Pio tinha um escravo, com o qual ele “brincava”: as aspas se devem à perversão dessa brincadeira, já que ela se dava sob um pano de fundo hierárquico, com a violência estruturada apenas de um sobre o outro, sem reciprocidade que não a fuga. O diminutivo “negrinho”, ainda usado por Mário, tenta atenuar a discriminação racial com certa afetividade. Se oficialmente a escravidão tinha acabado no Brasil, isso não quer dizer que as suas ressonâncias sobre o país, especialmente tendo em vista seu critério racial de determinação, tivessem - ou tenham, ainda hoje - sido abandonadas. O racismo ainda é presente.

Para o que interessava Mário, a colonização escravocrata do Brasil havia, então, reduzido demasiadamente a incorporação dos elementos não europeus na formação do país. Isso o empobreceria e deixaria fadado a uma imitação da Europa. Mário percebe o problema não apenas como algo exterior a si, que analisa de fora. Ele o sente em si. Sua própria formação, baseada nos cânones europeus, deixava-o pouco capaz de expressar tudo que via em sua viagem pelas regiões Nordeste e Norte do Brasil. Mário se dá conta de que seus instrumentos de percepção e verbalização não são suficientes para a experiência que tem. No dia 18 de maio, Mário se detém nesta reflexão, pela qual delineava, mais uma vez, o projeto de Brasil ao qual seu nome ficaria para sempre atrelado.

Quero resumir minhas impressões desta viagem litorânea por nordeste e norte do Brasil, não consigo bem, estou um bocado aturdido, maravilhado, mas não sei... Há uma espécie de sensação ficada da insuficiência, de sarapintação, que me estraga todo o europeu cinzento e bem-arranjadinho que ainda tenho dentro de mim. Por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida destes lugares foram feitos muito às pressas, com excesso de castro-alves. E esta pré-noção invencível, mas invencível, de que o Brasil, em vez de se utilizar da África e da Índia que teve em si, desperdiçou-as, enfeitando com elas apenas a sua fisionomia, suas epidermes, sambas, maracatus, trajes, cores, vocabulários, quitutes... E deixou-se ficar, por dentro, justamente naquilo que, pelo clima, pela raça, alimentação, tudo, não poderá nunca ser, mas apenas macaquear, a Europa. Nos orgulhamos de ser o único grande (grande?) país civilizado tropical... Isso é o nosso defeito, a nossa impotência. Devíamos pensar, sentir como indianos, chins, gente de Benin, de Java... Talvez então pudéssemos criar cultura e civilização próprias. Pelo menos seríamos mais nós, tenho certeza. (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015., p.67-8)

O projeto de Brasil delineado por Mário a partir daí exigiria extravasar o cinza da Europa para acolher as cores tropicais, desprender-se do arranjo que impede a integração do que há de maravilhoso e o deixa aturdido. O Brasil desperdiçou o seu melhor, e que Mário chama de África e Índia. Forçou o que tinha origem aí a permanecer somente na superfície, sem que penetrasse no que haveria de essencial. Resulta daí uma espécie de desacerto. Expulsando elementos africanos e indígenas, que constituíram o Brasil, da nossa formação, ficamos reféns de um ideal europeu que não poderia senão ser imitado, ao qual se refere Mário, criticamente, como “macaquear”. Daí viria a nossa impotência, ou seja, um entrave passado à nossa formação que deveria se realizar no futuro.

Repare-se que, assim, Mário invertia um raciocínio consagrado em muitas interpretações do Brasil, para as quais, ao contrário, a dificuldade da modernização almejada pelo país estava justamente na insistente presença de elementos selvagens e bárbaros, como eram concebidos tanto africanos quanto indígenas. Enquanto, para essa vertente, tratava-se de acelerar o passo histórico do Brasil pela modernização europeizada, liquidando aspectos que não estavam identificados com o Ocidente, para Mário, por sua vez, tratava-se de pensar uma modernização que incluísse elementos africanos ou indígenas, pois só assim criaríamos não uma civilização qualquer, e sim uma civilização própria.

Em suma, buscava-se uma integração original ao mundo ocidental, o que para se realizar exigia, de um lado, a modernização contemporânea com ênfase no futuro, mas, de outro lado, a pesquisa histórica da cultura com ênfase no passado, embora esse passado, à época, estivesse várias vezes ainda presente. Por isso, as viagens eram, como já disse, não apenas no espaço, mas no tempo. Do Sudeste ao Nordeste e ao Norte, Mário procurava despir-se do arranjo moderno e entrar em contato com uma outra cultura. O signo da viagem, portanto, era decisivo para a sorte da formação do Brasil. Diríamos que Mário já sentia que o Brasil estava longe do Brasil; ou melhor, o Brasil de São Paulo e do Rio de Janeiro, já no começo do século XX, desconhecia boa parte do que era o Brasil, e confiava em que a fisionomia do país deveria ser fundamentalmente a sua. Mário, viajando, suspende temporariamente o lugar de professor que lhe era tão caro, e se coloca como aluno. Ele é o aprendiz do que a cultura que desconhece tem a ensinar. Só o deslocamento - geográfico, mas também de perspectiva - poderia mudar a enraizada maneira paulista de situar o país. Isso foi o que Mário fez em 1927, como um “turista aprendiz” do Brasil, e depois relatando o que passou em seu diário assim nomeado.

O crítico Silviano Santiago destacou o quanto viajar foi, para Mário, um deslocamento não apenas territorial para o conhecimento, mas também um deslocamento de si. Viajando, Mário via coisas diferentes, mas sobretudo tornava diferente o seu próprio modo de ver. Longe da casa na Rua Lopes Chaves em São Paulo e da casa do tio Pio em Araraquara, locais onde trabalhava com prazer na familiaridade, sua sensibilidade alterava-se, abria-se para outro acesso ao mundo. Com isso, novas forças criativas poderiam ser despertadas na personalidade de Mário, distintas daquelas que dominava enquanto bem situado na “pauliceia desvairada” em que se sentia confortável em casa.

Levam-no a propor diferente automodelagem (self-design) para si mesmo e para o poema. A metamorfose libera o ser humano da repetição, bem como o vocabulário, o estilo e o tema já materializados. O cidadão e o sujeito poético passam a percorrer desvios insuspeitos e suspeitos, à procura de outras e, paradoxalmente, aguardadas aventuras semânticas. Ao descer do meio de transporte, o garimpeiro na vida e na arte se presta ou se dispõe a ser ressemantizado pela liberdade que concede ao desempenho da curiosidade intelectual. (Santiago, 2021_______. Viagem pelas viagens de Mário de Andrade. Quatro Cinco Um, n.49, set. 2021., p.24)

Belém do Pará é uma das paradas mais interessantes da viagem, e demonstra a ambiguidade de Mário. Sobre o dia 20 de maio, quando estivera junto à elite da cidade, confessa que mentiu ao dizer que lá se sentia em casa e que parecia que os limites entre os estados tinham sido eliminados (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015., p.73-4), mas depois, no dia 23, tem outra sensação, comenta que tinha “gozado por demais” e conclui: “Belém foi feita pra mim e caibo nela que nem mão dentro de luva” (ibidem, p.76). Vale dizer que, para além dos interesses de pesquisa e investigação do Brasil, a viagem é permeada por uma espécie de “sensacionismo”. O Mário cerebral e articulador de ideias abandona-se às sensações e seus relatos falam do calor, da sonolência, dos bichos, da noite com estrelas, dos mosquitos. “Dança-se demais, pra tanto calor e tanto jejum de amor”, anota em uma rima do dia 29 de maio (ibidem, p.76).

É a “vida de bordo” que toma conta. “É uma delícia estirar o corpo nestas cadeiras confortáveis da proa, e se deixar viver só quase pelo sentido da vista”, escreve Mário, para arrematar com um neologismo: “sem pensamentear, olhando o mato próximo, que muitas vezes bate no navio” (ibidem, p.87). Sem o pensamento da mente, mas com a vista e as sensações: eis um Mário que se abandona à viagem. O perfil de pesquisador interessado com sabença analítica, para o qual todo acontecimento da vida devia ser compreendido, nem sempre predominava, embora seja a marca de seu papel como intelectual. Por vezes, entregava-se desinteressadamente pela abundância da sensibilidade, como se estivesse ao sabor da correnteza do rio em que navegava.

Isso dito, contudo, a situação de Mário, paulista, no Norte explicitava um desafio do próprio Brasil que fica emblemático em uma brincadeira anotada no dia 15 de junho. Estaria ele em casa no Norte? Como Mário se identificava e era identificado durante essa viagem? Ou ainda, em outras palavras, o paulista Mário no Norte era reconhecido, genuinamente, como brasileiro? Frei Diogo, com quem Mário se encontra na viagem, diz-lhe taxativamente que não. Para o frei, Mário filia-se mais às origens europeias e faltar-lhe-ia justamente a familiaridade com o Amazonas. Da perspectiva do Norte, o ser muito paulista de Mário o distanciava do Brasil e o filiava, antes, à Itália: “- Vocês são paulistas... Vocês não são brasileiros não! Pra ser brasileiro precisa vir no Amazonas, aqui sim! Você (apontou pra mim) tem pronúncia própria de italiano” (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015., p.113).

Nesse sentido, há uma entrada no diário de viagem de Mário reveladora. No dia 11 de julho, ele fala do Brasil no plural. “Éramos um grupo de amigos paulistas, curiosos de conhecer outros brasis”, admite o poeta modernista (ibidem, p.156). Havia sedimentada em Mário, portanto, a consciência de que São Paulo - “comoção da minha vida”, conforme escrevera em um verso de juventude (ibidem, p.77) - não era todo o Brasil e nem poderia, sem mais, arrogar-se o direito de representar o país. Se boa parte do projeto do modernismo que ficou atrelado indelevelmente ao nome de Mário de Andrade residia em encontrar algum tipo de unidade do Brasil pela qual fizesse sentido referir-se à totalidade do país com uma só palavra, Brasil, então aqui reconhece-se a dificuldade do projeto, uma vez que há “brasis” no plural a serem conhecidos. E esses “brasis” são outros, ou seja, diferentes daquele Brasil com o qual Mário tinha familiaridade em São Paulo. Do mesmo modo como, durante a famosa Semana de 22, o modernismo buscava integrar o Brasil ao Ocidente, agora se tratava de integrar os “brasis” em um só Brasil. Mário tinha em vista, portanto, dois movimentos de inclusão que eram, de certa forma, complementares: um, que em 1927 já estava em pleno curso nas artes, era voltado para a questão internacional, e outro, ainda se fazendo, era voltado para a questão nacional. O Brasil que pretendia fazer parte do mundo ocidental precisava reunir em si as partes de “brasis” que o compunham, inclusive aquelas desconhecidas para a Europa, pois elas seriam uma contribuição original no panorama cosmopolita.

O próprio poeta modernista, de certo modo, compreende a tarefa então que lhe é conferida: abrasileirar seu ser paulista. Pois o que o modernismo buscava era o Brasil, ainda que sua origem estivesse em São Paulo. Os esforços de Mário de Andrade tinham um sentido expansivo. Trocar cartas com Joaquim Inojosa no Recife ou com Câmara Cascudo, fortalecer seus elos com os amigos do Rio de Janeiro, convidar Villa-Lobos para a Semana de 22, fazer etnografia, pesquisar o folclore, fazer viagens como “turista aprendiz”, bem como tantas outras atitudes, tinham em vista alargar a perspectiva do Modernismo para que se falasse do país, e não somente de uma região. Daí que Mário seja, a um só tempo, artista e pensador do Brasil, poeta e teórico do país. Nas suas várias atuações, queria recolher os brasis no Brasil, a fim de compreender qual unidade resultaria dessa pluralidade, qual identidade surgiria dessa diversidade.

Isso também era uma preocupação para Mário na composição de sua obra literária no final dos anos 1920. “Por intermédio desta tribo, poderei criar todo um vocabulário de pura fantasia, mas com palavras muito mais sonoras e de alguma forma descritivamente expressivas, onomatopaicamente expressivas, dos seus sentidos” (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015., p.136). Havia aqui, portanto, um projeto artístico em pleno andamento, que visava a incorporar a linguagem - de qualidades sonoras, musicais e rítmicas sempre sublinhadas por Mário - indígena. Mais uma vez, como nas primeiras viagens em Ouro Preto para ver de perto as igrejas barrocas, o que estava em jogo era a construção de um estilo nacional cuja originalidade dependia da absorção dos elementos não puramente europeus. Tratava-se - na obra de arte de vanguarda brasileira, e não apenas feita em território brasileiro - de um vocabulário de fantasia no qual se escutaria a sonoridade indígena. Como não flagrar, aqui, parte do próprio processo de criação de Macunaíma?

Mário elaborava desde 1926 sua obra-prima publicada em 1928: a primeira redação, de acordo com o autor, ocorreu “em seis dias ininterruptos de rede”, na casa do tio Pio (Batista; Lopez; Lima, 1972BATISTA, M. R.; LOPEZ, T. P. A.; LIMA, Y. S. de. Brasil: 1º tempo modernista - 1917/29 Documentação. São Paulo: IEB-USP, 1972., p.291). Ler os diários de O turista aprendiz é testemunhar várias passagens que aparecem em Macunaíma. O exemplo mais marcante é o da frase que descreve a morte do herói da nossa gente, quando ele vira o “brilho inútil das estrelas” (Andrade, 1996_______. Macunaíma. Madri; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA, 1996., p.165). Essa expressão surge no relato do turista aprendiz de 26 de maio de 1927. Mário faz o seu elogio pela ordem dos vocábulos, que adere à forma do português falada no Brasil, ao invés de reproduzir, artificialmente, a maneira lusa. “Nota a diferença do sabor brasileiro ou português entre ‘o brilho inútil das estrelas’ e o ‘inútil brilho das estrelas’”, escrevia Mário (Andrade, 2015, p.81).

Conforme Mário viaja, várias anotações lembram o Macunaíma. Ele fala da “Ursa maior” (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015., p.106), título do último capítulo do livro (Andrade, 1996, p.158). Menciona “Vei, a sol” (Andrade, 2015, p.145), como aparece diversas vezes em Macunaíma (Andrade, 1996, p.27). E, claro, disserta sobre a preguiça, a relacionando aos indígenas, mas não ao modo do preconceito colonizador que nela vê somente a resistência ao trabalho e ao esforço, e sim identificando aí “um conhecimento muito mais íntimo da vida e da relatividade da afobação” (Andrade, 2015, p.168). O famoso bordão de Macunaíma exclamava precisamente “Ai! que preguiça!” (Andrade, 1996, p.5). Mais uma vez, a preocupação de Mário era de integrar na modernização do Brasil, e com ganhos, o elemento não europeu: uma ética do prazer, e não só da produção.

De maneira geral, o que chama a atenção em Macunaíma e em O turista aprendiz é a admissão de que falta ao Brasil um caráter definido, para o bem ou para o mal, e que se trata, então, de formá-lo. Em um dos prefácios publicado postumamente para rapsódia, Mário escreveu que “o brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional”, enquanto, por outro lado, “os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos” (Batista; Lopez; Lima, 1972BATISTA, M. R.; LOPEZ, T. P. A.; LIMA, Y. S. de. Brasil: 1º tempo modernista - 1917/29 Documentação. São Paulo: IEB-USP, 1972., p.289). Nos diários das viagens, em 22 de julho, ele também escreve, sobre os estrangeiros que estão junto, “que eles têm uma tradição multimilenar”, mas já “nós é esta irresolução” e isso é o que justifica “uma dor permanente, a infelicidade do acaso pela frente” (Andrade, 2015_______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015., p.173). Para Mário, o Brasil ainda não estava formado, e sim por se formar. Cabia a ele, e à cultura que ele pesquisava e criava, conferir, em pensamento ou ação, em imaginação ou intervenção, a formação que ainda faltava. Macunaíma não era, para seu autor, uma solução para os problemas do Brasil, devendo ser apenas celebrado pelas suas virtudes, era antes o impasse diante do qual estaríamos, em sua radical ambiguidade, com as suas virtudes, mas também com os defeitos de sua cínica esperteza malandra.

Na obra de Mário de Andrade, seja em seus diários de viagem, seja em sua poesia ou em Macunaíma, está definido um projeto de Brasil que tem como propósito encontrar para o país uma unidade na diversidade. Tratava-se, para ele, de achar o que teríamos em comum na vastidão territorial e cultural que nos abarca. Por isso, sua obra está à procura mais de convergências do que de divergências. Não quer ser visto como italiano, ao visitar o Norte do país, só porque é paulista. Não quer, tampouco, como muitos amigos modernistas, só privilegiar São Paulo no espírito de brasilidade. Por isso, Macunaíma não poderia ser somente índio, ou negro ou branco, mas deveria não ser nada disso puramente, ou tudo isso misturadamente. Por isso, na literatura de Mário, “o país aparece desgeograficado” (Batista; Lopez; Lima, 1972BATISTA, M. R.; LOPEZ, T. P. A.; LIMA, Y. S. de. Brasil: 1º tempo modernista - 1917/29 Documentação. São Paulo: IEB-USP, 1972., p.291). Para além das particularidades do autor, fixava-se assim a direção de um projeto de modernização do país, e sua duração foi muito além do modernismo dos anos 1920, alcançando ao menos até o tropicalismo no fim dos anos 1960, ainda que com variações. Será, entretanto, que ainda é essa a ideia de Brasil que temos? O Brasil do século XXI se pensa culturalmente como o modernismo? Ou, em outras palavras, Mário de Andrade ainda vive?

Essa pergunta foi colocada pela antropóloga Yvonne Maggie em artigo de 2005MAGGIE, Y. Mário de Andrade ainda vive? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.20 n.58. 2005. Disponível em: <https://pdfs.semanticscholar.org/a7f2/8927a86f0f010a35616058a64fd4ade34fef.pdf>.
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, no qual o nome Mário de Andrade aparece não tanto como o de um literato, poeta ou crítico, e sim como a cifra de um projeto de Brasil referido ao ideal modernista. O emblema desse projeto - que a autora ressalta em sua dimensão positiva e propositiva, e não na dimensão negativa e crítica - seria a impureza de Macunaíma, que no enredo fabulado por Mário nasce negro em uma tribo indígena e depois fica branco; vai da mata à cidade; transforma-se em animais; traveste-se de francesa; vai a um terreiro; faz seus pedidos a Exu. Nada aqui é puro: racial, étnica, religiosa e culturalmente. O Brasil seria uma mistura. Miscigenado, o país teria como seu trunfo civilizatório aquilo que também se percebia em Macunaíma. O herói era sem caráter, e o seu país idem: o Brasil não teria um caráter ontológico fixo, uma identidade essencial pura. Essa ideia de país aberto e permeável é, para Yvonne Maggie, a de “nossos heróis fundadores” (Maggie, 2005, p.6), como Mário, Oswald de Andrade e outros; “e algumas gerações depois deles continuaram pensando e inventando um país que não teme esta mistura e faz dela a delícia e a dor de ser o que somos” (Maggie, 2005, p.10). Imagino, até pela dica sobre “a dor e a delícia”, que as gerações posteriores sejam aquelas, por exemplo, de Caetano Veloso e dos tropicalistas que falavam do Brasil como uma “geleia geral”.

No começo do século XXI, entretanto, a tese de Yvonne Maggie era de que a ideia de Brasil oriunda de Mário de Andrade sofria um abalo profundo. Não é simples detectar o abalo em sua radicalidade, uma vez que a história das críticas ao modernismo é quase tão antiga quanto o próprio modernismo. Em 1942, quando Mário foi convidado a fazer uma conferência comemorativa da Semana de 22, confessou seu individualismo, sugeriu que o movimento não poderia servir de exemplo para ninguém, mas sim de lição e ainda expôs: “o meu passado não é mais meu companheiro” (Andrade, 1974, p.254). Para o Mário de 1942, o Mário de 1922 já era passado e sofria um abalo. Mais amplamente, se tivermos em vista não só Mário e o modernismo estético, e sim uma geração de ensaístas simbolizada por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, que na década de 1930 interpretou de modo novo a formação do Brasil, também essa linha teórica sofreu abalo com as críticas que a geração posterior, já na academia e sintetizada na figura de Florestan Fernandes, faria a ela nos anos 1950, exigindo mais cientificidade e rigor na abordagem do Brasil. De resto, do ponto de vista literário, o crítico Silviano Santiago (2002SANTIAGO, S. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002., p.85) declarara o modernismo “fechado para balanço” em 1982.

A despeito desses e outros abalos sofridos pelo modernismo e Mário de Andrade, no entanto, eles não pareciam desligar a mentalidade e a imaginação do país do ideário ali forjado. Em especial, esses abalos não pareciam ter tido a força de reorientar energias culturais do Brasil em direção diversa daquela que o modernismo apontara, inventando outras imagens, representações e identificações. Em suma, apesar de tudo, o Brasil, em sua cultura popular, continuava a se pensar, positivamente, pela força da mistura. Hélio Oiticica, em 1967, escrevera na entrada da obra Tropicália que “toda pureza é um mito”. Era ainda o orgulho modernista da impureza brasileira que dava as cartas na cultura, mesmo dentro da ditadura começada desde 1964 com um golpe militar. Entre o fim do século XX e o começo do XXI, contudo, viria um outro tipo de abalo para o modernismo enquanto projeto de Brasil, e nós ainda permanecemos, hoje, nesse abalo.

Pela primeira vez na nossa história desde os anos de 1920, a elite brasileira parece ter lançado por terra as bases do pensamento que permitiu a criação de nossa cultura mais radicalmente nacional e cosmopolita. O ideário de brasilidade modernista de Mário e Oswald de Andrade, de Paulo Prado e Sérgio Buarque de Holanda, de Gilberto Freyre e Di Cavalcanti, de Tarsila do Amaral e Anita Malfatti está sob suspeita. Todo o esforço empreendido nos anos de 1930 para positivar a mestiçagem parece estar sendo posto abaixo. (Maggie, 2005MAGGIE, Y. Mário de Andrade ainda vive? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.20 n.58. 2005. Disponível em: <https://pdfs.semanticscholar.org/a7f2/8927a86f0f010a35616058a64fd4ade34fef.pdf>.
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, p.6)

O episódio que, para Yvonne Maggie (2005MAGGIE, Y. Mário de Andrade ainda vive? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.20 n.58. 2005. Disponível em: <https://pdfs.semanticscholar.org/a7f2/8927a86f0f010a35616058a64fd4ade34fef.pdf>.
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, p.2), suscitaria “um terremoto na maneira pela qual o Brasil pensa o Brasil no alvorecer do século XXI” era a adoção do sistema de cotas raciais, institucionalizadas como política pública. Com as cotas, os brasileiros seriam obrigados a se entenderem pela dualidade que separa negros e brancos, sem ter em conta o gradiente de cores entre uma e outra, tão variado e matizado no caso do Brasil. Introduzia-se assim, na visão da antropóloga, um critério de distinção racial pura em meio a uma população etnicamente impura e misturada. Não cabe, aqui, entrar no mérito do debate das cotas, mas assinalar que sua adoção, nesse sentido, contrariava a expectativa de um ideário de Brasil que - desde 1836, por meio de Como se deve escrever a história do Brasil, de Carl F. von Martius - apostava que a melhor forma de combater o racismo era superar a identificação racial pura dos indivíduos, em negros e brancos, por exemplo, sublinhando, em vez disso, a miscigenação.

Hoje, o mito Macunaíma está sob severa crítica, pois inventando uma nação dividida entre negros e brancos, e destruindo aquele herói misturado e plástico com políticas de Estado que exigem a classificação bipolar, apresenta-se em seu lugar um outro conceito de nação. [...] Essa mudança de rumo de um projeto de nação não se faz sem riscos. A mudança é radical porque toma o que era próprio da nossa maneira de tratar a diferença como algo espúrio e que deve ser extirpado mediante políticas públicas como, por exemplo, com as cotas para negros no serviço público e em instituições públicas de ensino superior. A versão que dá origem a esta política de combate à desigualdade parece não só suspeitar de Macunaíma. Ela aniquila Macunaíma porque sendo política de Estado obriga as pessoas a se definirem não nos moldes de nosso herói fundador, mas como negro ou branco, e sendo política de Estado afeta a sociedade como um todo. (Maggie, 2005MAGGIE, Y. Mário de Andrade ainda vive? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.20 n.58. 2005. Disponível em: <https://pdfs.semanticscholar.org/a7f2/8927a86f0f010a35616058a64fd4ade34fef.pdf>.
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, p.11)

O que se cristalizava então no debate público do século XXI eram duas maneiras diferentes de pensar a questão racial que, por sua vez, revelavam duas formas distintas de compreender o Brasil. Por um lado, no qual se situa a própria autora Yvonne Maggie, havia quem defendesse que a definição de uma identidade fixa de cada indivíduo, como negro ou branco, por exemplo, importaria para o país um tipo de divisão opositiva estranha ao modo como se constituiu a compreensão cultural de nós mesmos, e que teria em Macunaíma sua alegoria literária predileta. Por outro lado, havia quem atacasse essa compreensão cultural tradicional pelo efeito ideológico que ela teria na realidade social do país, adiando por exemplo eternamente medidas mais concretas de reparação histórica frente ao racismo, e aqui novamente Macunaíma seria a principal alegoria, embora a ser criticada por contribuir decisivamente para a falsa consciência do país.

Desse modo, o nome Mário de Andrade, autor de Macunaíma e O turista aprendiz, está no centro do debate contemporâneo do Brasil, mas agora não mais porque em torno dele orbitam projetos de país, mas porque separa dois caminhos de futuro. De um lado, há a aposta cultural na mistura e na miscigenação como formas de integração igualitária de diferenças que não são puras. De outro lado, há o imperativo político das definições de identidade que reconhecem a oposição e a divisão como formas de lutar pela democratização social. Se aquela aposta cultural prevaleceu na modernidade do século XX, este imperativo político ganha força na contemporaneidade do século XXI.

Mário de Andrade, em suas viagens, buscava como integrar em uma unidade comum de Brasil tudo que encontrava de diversidade. O modo de fazê-lo, para esse ideário modernista, era pela mistura. Era uma estratégia de sincretismo: as diferenças não seriam mantidas, cada uma, na sua identidade, convivendo apenas lado a lado. Elas entrariam em algum tipo de fusão ou confusão. Entre os signos de realização cultural da estratégia estaria o Carnaval, celebrado no Modernismo por Oswald de Andrade no Manifesto da Poesia Pau-Brasil e por Mário de Andrade no poema “Carnaval carioca”. Não é posta em dúvida a força cultural popular que, do samba ao futebol, advém desse ideário no Brasil. O problema, cerca de um século depois da Semana de Arte Moderna de 1922, o mais famoso marco do modernismo, é saber se o que colhemos artisticamente no país a partir desse ideário foi capaz de cumprir, não simbolicamente na imaginação, mas socialmente na realidade, a tarefa de aprofundamento da democracia, ou se, ao contrário, serviu ideologicamente para adiar sempre mais o enfrentamento de seu déficit.

Nesse sentido é que, à estratégia de sincretismo cultural modernista, contrapõe-se a reivindicação multicultural contemporânea, ou seja, do reconhecimento de diferenças que não se misturam, pois se desconfia que, nessa mistura, sempre sobressai alguma nota dominante, em geral a favor daquela classe, ou etnia, historicamente no poder. Se tomarmos o exemplo paradigmático da Bossa Nova, aí temos um belo caso no qual uma cultura de origem mais negra, vinda do samba, é apropriada por brancos - em sua maioria, da zona sul do Rio de Janeiro, de Ipanema - que a colocam em contato com a música norte-americana do jazz, mas a cara do resultado e seus louros permitem ao ouvinte incauto usufruir de canções em que a questão racial desaparece. Para empregar o termo de Oswald de Andrade, há uma antropofagia, que é sincrética. Isso foi o modernismo. O século XXI, contudo, fortaleceu a exigência multicultural.

O ensaísta Francisco Bosco (2017BOSCO, F. A vítima tem sempre razão? São Paulo: Todavia, 2017., p.49), com razão, aponta os Racionais MCs como “primeiros grandes arautos dessa transformação da cultura popular vinda de dentro da própria cultura popular”, atrelando-os à tese de Chico Buarque sobre “o fim da canção”. Na tradição que vai do samba até o tropicalismo e o próprio Chico Buarque, a canção foi uma forma de expressão do Brasil que, mesmo sem pactuar com a ingenuidade ideológica de um país pacífico, atestou o valor dos encontros sincréticos. Mário de Andrade ficaria orgulhoso. Era a cultura popular como o esteio da formação de um povo e de um país misturados. Por esse prisma, os Racionais significam o fim da canção.

Bem como a maior parte dos propositores das cotas raciais na política, os Racionais, na música, filiam-se a uma tradição racialista que vem dos Estados Unidos. No caso, o rap é uma música que afirma não a vitalidade dos encontros ou das misturas, mas sim a força da cultura especificamente negra. Numa e noutra situação, a perspectiva unificadora que o modernismo inventara para o Brasil, seja pela via da antropofagia de Oswald de Andrade, seja pela via macunaímica de Mário de Andrade, cede espaço a outra perspectiva, divisora: cotas e rap. Por um lado, pode-se lamentar a perda de energia do mais extraordinário sonho de Brasil que nossos artistas ousaram, entre eles, e com uma posição de incontornável destaque, Mário de Andrade. Por outro lado, pode-se celebrar que haja um despertar para uma realidade social que, infelizmente, não está em consonância com este sonho, e que por vezes o emprega para se mascarar. Cem anos após a Semana de 22, como conjugar a generosidade plástica da sensibilidade cultural brasileira miscigenada com a consciência da necessidade empírica de igualitarismo político nacional? Como manter o elogio da mistura sem constituir uma ideologia conformista? Como fazer da democracia racial não a falsa descrição de uma realidade que nunca existiu, mas um ideal a ser buscado na construção de um futuro mais republicano?


Retrato de Mário de Andrade. 1922. Tarsila do Amaral. Óleo sobre tela, c.i.e., 46,00 cm x 54,00 cm.

Não há soluções simples para essas questões, evidentemente. Entretanto, antes da vitória de Jair Bolsonaro para presidente do Brasil em 2018, e a despeito das grandes contradições da vida política até ali, os governos nacionais no processo de redemocratização desde o final do século XX, de Fernando Henrique Cardoso até Lula, do PSDB até o PT, parecem ter mantido, curiosamente, um pé no modernismo (atestado pelo Ministério da Cultura, que foi ocupado por Francisco Weffort ou por Gilberto Gil) e outro pé na contemporaneidade pós-modernista (atestado pelo crescimento cada vez mais consensual da política de cotas, que levou muitos que se posicionaram contra ela a mudarem de posição). Embora a combinação traga tensões, é uma tentativa relevante socialmente para preservar o extraordinário sonho modernista de Brasil e, ao mesmo tempo, corrigir as desigualdades e injustiças que ele não pôde resolver. Busca-se acrescentar ao ideário cultural modernista uma companhia política a ele estranha, que permita, porém, corrigir violências concretas sem abandonar um Brasil em comum que partilhemos. Esse Brasil com brasis foi versificado por Mário de Andrade pouco antes de viajar como turista aprendiz, prefigurando o descobrimento que ele pretendia fazer para o futuro.

Descobrimento Abancado à escrivaninha em São Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De supetão senti um friúme por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando pra mim. Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus! Muito longe de mim, Na escuridão ativa da noite que caiu, Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos olhos Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu... (Andrade, 1993b_______. Poesias completas. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993b., p. 203)

Referências

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  • _______. A arte religiosa no Brasil. São Paulo: Experimento/Giordano, 1993a.
  • _______. Poesias completas. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993b.
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  • _______. Carlos & Mário. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002.
  • _______. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015.
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  • CARNICEL, A. O fotógrafo Mário de Andrade. São Paulo: Editora Unicamp, 1993.
  • JARDIM, M. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Ponteio; PUC-Rio, 2016.
  • KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
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  • _______. Viagem pelas viagens de Mário de Andrade. Quatro Cinco Um, n.49, set. 2021.

Nota

  • 1
    Essa grandeza da natureza no Brasil fez Mário qualificá-la, de acordo com um vocabulário da filosofia do século XVIII, como “sublime”. Ele comentou que “a foz do Amazonas é uma dessas grandezas tão grandiosas que ultrapassam as percepções fisiológicas do homem” (Andrade, 2015, p.68). Immanuel Kant (1995, p.93, 101) foi quem formulou, na Crítica da faculdade do juízo, o conceito. Observou que “denominamos sublime o que é absolutamente grande”, e que “isto não pode ocorrer senão pela própria inadequação do máximo esforço de nossa faculdade da imaginação na avaliação da grandeza de um objeto”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2021
  • Aceito
    21 Dez 2021
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