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Ver a cidade

CRIAÇÃO / FOTOGRAFIA

Ver a cidade

Uma viagem pelas fotos de João Musa

Paulo Bastos

HÁ VÁRIAS formas de procurar entender a cidade de São Paulo. Poderá ser através do conhecimento e da análise de indicadores quantitativos — quilômetros de vias pavimentadas ou congestionadas, carência de infra-estrutura e equipamentos, níveis de desigualdade social, entre outros — lidando e raciocinando objetivamente com números na busca de significados.

Certamente, no entanto, grande parte da compreensão do que seja a cidade nos virá do olhar da sensibilidade, posto que os suportes materiais da vida que o homem vai edificando não cumprem só papéis de caráter utilitário, mas são elementos impregnados de significados e valores culturais que se mantêm, mesmo quando sua utilidade enquanto função desaparece, ou se transforma, e o homem esteja ausente deste cenário.

Quando aqui se fala na sensibilidade do olhar, está em causa o processo de captação e expressão visuais da realidade objetiva e subjetiva, de modo profundo, abrangente, agudo e direto, característico da arte nas suas diversas dimensões.

A leitura e registro expressivo de imagens da paisagem urbana e do homem que a povoa constituem, assim, poderoso e percuciente elemento de uma outra forma de conhecimento da cidade e dos processos sociais que abriga, e pelos quais ela própria é produzida.

As fotos de João Musa são exemplos desta leitura, a um tempo crítica e arguta, sensível às formas, espaços e contrastes de luz e textura da urbanização paulistana, atenta ao homem nela presente, paradoxalmente quase estranho a ela.

Conceitos e categorias urbanísticos, abstratos quando utilizados na linguagem técnica, passam a assumir forma concreta diretamente apreensível através das imagens, bem como o grau dos conflitos cidade/homem e cidade/ambiente, resultantes da patologia social que nos envolve.

Assim, "adensamento", do ponto de vista volumétrico, espacial, pode ser visualizado e avaliado tanto na muralha dos edifícios verticalizados, onde a paisagem fica reduzida a canyons — logo obstruídos visualmente pela massa edificada — quanto na ocupação horizontal compacta, características das periferias, nas quais nem mesmo para a circulação há espaços visíveis.

O significado da referência freqüente a "padrões diversificados e contraditórios de urbanização", indicativos de momentos distintos de concepção da cidade e de assentamento em seu território, fica evidente quando se observa a contraposição abrupta de um "Bairro-Jardim", de baixa densidade, ocupação reduzida, volumetria horizontal e alto índice de arborização, com a massa verticalizada da zona limítrofe, sem qualquer elemento planejado de transição no desenho urbano, que mitigue o impacto negativo de tal descontinuidade.

De outro lado, a expulsão das populações de baixa renda para as periferias, por força do custo da terra, da crise social e da ausência, tanto de políticas públicas abrangentes e consistentes de uso e ocupação do solo, quanto de oferta de habitações para estes segmentos nas áreas centrais desocupadas, dotadas de infra-estrutura, desemboca no fenômeno do transbordamento dos limites da cidade, à custa da invasão e do desmatamento das reservas naturais, com a imediata implantação de um modelo repetitivo de retalhamento fundiário que comparece como um recorte brutal na fisionomia do território, destituído da mínima qualidade urbana a que qualquer assentamento humano tem direito.

Um olhar ao interior do complexo urbano revela uma diversidade de situações característica de São Paulo, como um grande acampamento que sobrepõe e amontoa estilos arquitetônicos de épocas distintas no centro, compactando o casario de baixa renda, de tipologia homogênea, nos terrenos acidentados, refugo das ocupações das classes de maior poder aquisitivo.

A terra de ninguém do espaço público (?) é de quem a invada e nela se instale de várias maneiras, sendo uma delas pela publicidade de grande porte, indiferente à escala humana na busca da visibilidade, ou então na indigência da pichação, mesmo nos recantos mais desolados e áridos.

A chamada cidade legal, onde se apresenta a face cosmopolita, das grandes calçadas, dos granitos polidos e das fachadas de cristal — presentes todos os serviços e infra-estrutura urbana — coexiste com a clandestina, na qual mesmo sob a chuva é necessário que haja manifestação e pressão para conquistar um pouco do que a outra usufrui com fartura.

A desigualdade social, expressa por estas duas cidades, a um tempo juntas e apartadas, também se revela, simbolicamente, na indiferença mútua dos que habitam regularmente a cidade legal e aqueles que têm por moradia as suas ruas.

Na escala do habitante, os espaços são delimitados pelo alcance de sua visão, determinado pelas barreiras visuais dos edifícios, dos elementos naturais e da própria topografia do sítio onde ele, como observador, se encontra.

Este cenário envolvente constitui, em tal escala, a paisagem urbana, tanto mais qualificada quanto mais alto o seu grau de organização, tranqüilidade visual, articulação, beleza e significação dos elementos dela componentes.

Historicamente, em vários momentos, distintas sociedades humanas foram capazes de encontrar e promover a unidade estética de seus espaços públicos, na diversidade de estilos e modos de ocupar a terra, legando prodigiosos exemplos de equilíbrio e beleza à fruição de seus sucessores.

Embora se reconheça em alguns dos recintos urbanos paulistanos, ou elementos referenciais de sua arquitetura, a persistência de traços de uma cidade que já foi mais humana e bela, seu processo acelerado de crescimento, desacompanhado de medidas de planificação das infra-estruturas e dos programas sociais que deveriam suportá-lo, promoveu o estado de degradação que hoje conhecemos.

Sob o império do valor de troca, em detrimento do valor de uso, e sem obediência a qualquer legislação reguladora dos usos urbanos, São Paulo é um exemplo mundial da apropriação privada dos espaços públicos: das ruas, pelo automóvel particular, pelos camelôs e tipos diversos de negócios; dos parques e praças — áreas livres por definição — pelo próprio poder público, que historicamente sempre as tratou como reserva barata à espera de ocupação por suas construções; do espaço de domínio visual público, por cartazes, anúncios, totens e telões de todos os portes, além das pichações, criando uma nova e caótica paisagem que reveste e oculta as edificações e, também, as mazelas, na celebração do triunfo do dinheiro, do mercado e das mercadorias, sobre todos os demais valores, em um mundo no qual o homem, individualmente, é insignificante e apenas peça anônima do sistema produtivo.

Ao mesmo tempo, alguns espaços intersticiais, sobreviventes das privilegiadas obras viárias em constante implementação, são tidos pelo Poder Público como "praças" e, não obstante sua desolação e aridez, consideradas dignas de batismo com nomes significativos da cultura brasileira e caros à nossa memória.

Mas, mesmo a parte mais pobre e marginalizada da população, verdadeiro estranho no baile da grande metrópole, consegue se agrupar e reunir seus pequenos e simbólicos tesouros familiares, recomeçando pela casa a recuperação do tipo de valores humanos sobre os quais a cidade, que é a casa de todos, deveria estar edificada.

Paulo Bastos, arquiteto, é professor-titular da Faculdade de Arquiteura da Universidade Católica de Santos.

João Musa, engenheiro, é professor-doutor da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 2001
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