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Memórias do despotismo

BRASIL: DILEMAS E DESAFIOS III

Memórias do despotismo

Francisco de Oliveira

O ESTADO brasileiro é velho de quase 200 anos, se se toma a transferência da família real como o evento que marca a inversão das relações entre a antiga metrópole e a colônia americana, instalando-se o aparato estatal português no Rio, espraiando-se pelo imenso território. Mais rigorosamente, na metade dos oitocentos o Estado brasileiro já estava plenamente constituído, sendo-lhe indisputado, externa e internamente, o monopólio legal da violência. Que, aliás, exerceu ao longo e ao largo do território nacional com a mais implacável determinação, e em poucas aventuras internacionais bem sucedidas do ponto de vista de seus interesses: Guerra do Paraguai e anexação do Acre, para exemplificar.

O paradoxo é que desde a Independência o regime de dominação estatal foi, com as exceções conhecidas, constitucional. Talvez esteja mesmo entre os regimes constitucionais mais precoces e de longa duração. Mas aí, todas as exceções comparecem e quase se transformam em regra. Ao ponto em que uma outra inversão pode se ver autorizada: o regime tem sido estavelmente despótico com breves períodos de abertura ou relaxamento; democráticas propriamente seria uma temeridade, ainda quando o formalismo reinante nas ciências da política e da sociologia não tenha muitos pruridos em chamá-las assim.

Os 200 anos de solidão - empréstimo a Garcia Márquez - são compactados, para nossos fins, nos últimos 60 da história nacional, o período que vai desde a Revolução de 30 aos nossos dias - a República Velha já foi tratada como o da hegemonia oligárquica e basta, por enquanto. A inversão já é mais nítida: nestes 60 anos, 35 foram de ditaduras abertas e declaradas, contando-se os 15 do primeiro período varguista e os 20 da ditadura militar. Estabilidade da exceção e instabilidade da forma dita democrática, nitidamente à la brasileira, pois mesmo a ditadura de 1964-1984, manteve, salvo durante o breve período do AI-5, as duas casas do Congresso abertas e funcionando. Que não foi o caso da ditadura varguista.

Nos 60 anos assinalados ocorreu um golpe plenamente realizado, ou tentativas de golpe parcialmente frustradas, a cada três anos, em média. Executados pelos militares, sugeridos e caucionados pelos civis representantes mais acabados do domínio vigente; em apenas dois casos, o de 1935 com a Aliança Nacional Libertadora que passou à história como Intentona Comunista, e o de 1937, o putsch integralista, estiveram envolvidas frações militares notoriamente minoritárias. Uma outra característica da exceção como regra: as forças armadas, recurso de última instância do poder para manter o monopólio legal da violência, são utilizadas, sempre, em primeira instância. Nomeando: Revolução de 30, Revolução Constitucionalista paulista de 1932, eleição indireta de Vargas em 1934, revolta da Aliança Nacional Libertadora em 1935, putsch integralista de 1937, Estado Novo varguista em 1937, deposição de Vargas em 1945, cassação do Partido Comunista do Brasil em 1947/48, deposição de Vargas pelo suicídio em 1954, tentativa golpista de impedir a posse de Juscelino Kubistchek em 1955, golpe frustrado de Jacareacanga em 1956, golpe frustrado da renúncia de Jânio Quadros em 1961, parlamentarismo como solução para a posse de João Goulart ainda em 1961, golpe militar definitivo em 1964, inaugurando a segunda ditadura do período, AI-2 dissolvendo os partidos políticos pré-64, impedimento da posse do vice-presidente Pedro Aleixo e Junta Militar em 1967, AI-5 em 1968 com o fechamento do Congresso, impedimento da posse de Ulysses Guimarães como sucessor temporário de Tancredo Neves, com a solução de posse de José Sarney, em 1984. Fazendo-se as contas: 60 / 18 = 3,3 anos. Diferirá, de um para outro autor, de uma para outra interpretação, a aritmética da "exceção permanente" e mesmo alguns dos eventos aqui listados, mas dificilmente poderá ser negada a permanência de soluções extraconstitucionais, para sermos mais suaves.

Há, certamente, um lastro histórico para sustentar essa "exceção permanente", uma espécie de "antidemocracia na América", sobejamente conhecida para necessitar ser relembrada aqui; desde o lugar central do trabalho escravo na economia e na reprodução social, passando pelo patriarcalismo da formação social e pelo patrimonialismo prebendatário. Essas fórmulas, dos clássicos dos anos 30 - formulações que surgem, não por acaso, quando essas mesmas formas começam a perder a capacidade de processar os conflitos de uma sociedade que ganhava em complexidade pela entrada de uma nova classe social no centro da estrutura social, o operariado - devem ser reinterpretadas na chave da "revolução passiva" ou como uma modalidade subdesenvolvida da "via prussiana" ou, ainda, na sugestão de Werneck Vianna, como "iberismo".

Embora existam fortes resistências entre os historiadores para aceitar "acelerações" na história, forçoso é convir que os últimos 60 anos da história brasileira condensam transformações tão intensas que dificilmente as estruturas políticas poderiam suportar. Mesmo que não se faça a interação mecânica entre movimentos da estrutura social e a institucionalidade política, é quase impossível conceber uma funcionalidade tão plástica: moldes pelos quais a política institucionalizada poderia adequar-se a mudanças de monta nos modos da produção e reprodução material da sociedade.

Reproduzindo sumariamente: de forma acelerada, a sociedade brasileira passou de agrária a industrial e desta para os serviços, inclusive eletrônicos. Isto se expressa na formação do pib, no qual a contribuição das atividades primárias já não alcança 15%; a indústria chega, hoje, ao máximo de 25% - no seu auge foi até 34% - e os serviços compõem a outra parte, maior. O local de residência e atividades mudou também radicalmente: de uma sociedade 80% rural e 20% urbana, para o oposto: 80% urbana e 20% rural. Mas esse rural é urbano, pois as atividades são quase totalmente mercantilizadas, com a interferência ou mediação de procedimentos urbanos: bancos, corretoras, bolsas de mercadorias, centrais de abastecimento, o agrobusiness, em suma, para não descrevermos monotonamente.

É necessário levar em conta que a economia brasileira acusou, no mundo capitalista, a taxa mais alta e mais persistente de crescimento a longo prazo no século que foi de 1870 a 1980. A partir daí entrou em oscilação e desaceleração, sem uma direção claramente perceptível. Tal crescimento se fez "por cima", sendo decisivo nesse desempenho, a mudança do papel do Estado na economia, cuja visibilidade é notável desde a década de 30. O período de 1870 até 1930 abriu-se com uma intervenção do Estado, no estilo do far west norte-americano, de implacável acumulação primitiva, pouco reportada pela nossa historiografia econômica e pela teorização sobre a economia. Que cedeu o passo à golden age do liberalismo, sob a égide da política cambial para o café: abundância de divisas e comércio livre, cujo desastre já estava prenunciado no Acordo de Taubaté, inaugurando as políticas de sustentação do preço de nossa praticamente única exportação e, pois, denunciando sua insustentabilidade.

A partir dos anos 30, fazendo parte da transição mundial do capitalismo concorrencial para o oligopolista, a acumulação primitiva estatal entra de novo em curva ascensional, realizando o trânsito para a economia industrial. Seu intérprete mais notável será Celso Furtado, cuja teorização a respeito é carregada da dramaticidade de O Dezoito Brumário de Marx. Uma poderosa e regionalmente diversificada classe dominante rural é varrida para um lugar secundário e, em seu lugar, a nova burguesia industrial assume papel protagônico; um deslocamento desse porte não pode menos que desacreditar as formas da representação. Mas a transformação é lampedusiana, pois o novo poder não se resolve de forma revolucionária: o compadrio é sua marca. O partido da revolução industrial é agrário, o Partido Social Democrático. O setor produtivo estatal cresce sem interrupção até os dias da agonia de Sarney e da ascensão do bufão Collor de Mello, para entrar em declínio com o príncipe Cardoso.

Entre as tenazes da subordinação imperialista e a nova contestação surgida das entranhas da "questão social", o capitalismo tupiniquim se resolve numa "melancolia da impotência", e apela recorrentemente para a força bruta. Acossada permanentemente pelos "trabalhos de Sísifo" dos dominados, que buscam, por fortuna e virtú, acessarem os meios públicos, logo políticos, para complementarem a própria reprodução, a dominação perde sua capacidade revolucionário-hegemônica. E se refugia no simulacro de constitucionalidade, que mal disfarça uma dominação que, outra vez, inverte a fórmula, gramsciana, de 80% de consenso e 20% de violência, para as proporções opostas.

As conseqüências sobre a sociabilidade não poderiam ser insignificantes. O favor como moeda de troca e o patriarcalismo como forma de organização social, nucleada na família, não conseguem processar as novas relações. Uma sociedade tradicional, cuja reprodução se dava com a regularidade dos ciclos do tempo - já muito abalada desde o boom do café no núcleo mas ainda conservada na periferia - vê-se, em curto período, atravessada e trabalhada pelos novos símbolos e signos das massas, da industrialização da cultura, de um simulacro do individualismo possessivo, da nova regra de consumo, do homem-massa, anônimo, da feroz disputa do trabalho, do lugar da mulher no mercado de trabalho, da ascensão e queda da família nuclear, do opróbrio de Capitu à liberação sexual. Estava aberta a chance para o mérito e a escolha.

Mas a conjunção, em outra quadra histórica, das necessidades da acumulação sustentada pelas novas formas do fundo público projeta um cone de sombra sobre as relações entre o público, nunca constituído, e o privado, tampouco formado. O deslocamento no campo das forças burguesas tem a carga total das bombas não jogadas na Guerra Fria: nada menos que 30% do patrimônio burguês mudou de mãos nos últimos cinco anos. Não há institucionalidade que possa resistir. A corrupção como forma endêmica desse cone de sombra e os Eduardos Jorges tornam-se a marca desse capitalismo periférico, bandido, incapaz de erguer e sustentar sua própria institucionalidade, incapaz de impor o monopólio legal da violência. As permanentes exceções tornam-se a exceção permanente. Transita-se da chance da hegemonia, rápida e constrangida pelo novo ciclo da terceira revolução industrial, da regulação para o ad hoc.

No âmbito da sociabilidade, os efeitos não podem ser menos que desagregadores. Jogada dos ritmos e tempos tradicionais ao vórtice de poderosas transformações das quais não é o sujeito, o que poderia ser o surgimento do privado na sociedade transforma-se em privatismo, fuga desesperada do informal, do azar e sorte, do medo do outro, dos gradis aos carros blindados da alta burguesia. Nos ghettos dos ricos, o isolamento, baseado numa sociabilidade antipública; nos ghettos dos pobres, fome, miséria e criminalidade violenta.

Chamei a isso de totalitarismo neoliberal; os gramscianos mais rigorosos chamam-no de "sociedade regulada". Epitáfio de um despotismo, poucas, pouquíssimas vezes, iluminado.

Francisco de Oliveira, professor titular, aposentado, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania, da mesma Faculdade. É autor, entre outros, dos livros Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita (Vozes, 1977) e Sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global (Vozes, 1999).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2000
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