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Felipe Recondo. Tanques e togas: O STF durante a ditadura

Recondo, Felipe. Tanques e togas: o STF durante a ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 334

Na Argentina, em julho e em novembro de 2017, juízes das Províncias de Mendoza e Córdoba, respectivamente, foram julgados, condenados e levados à prisão por terem colaborado com a repressão praticada durante a ditadura (1976-1983). No Chile, em julho de 2018, oito agentes da repressão envolvidos na detenção, tortura e morte do cantor e compositor Victor Jara, assassinado poucos dias após o Golpe de Estado que iniciou a ditadura comandada por Augusto Pinochet de 1973 a 1990, foram condenados pela justiça chilena por sua participação no crime. Poucos dias antes da sentença chilena ser proferida, o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), organismo vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), por não investigar, identificar, processar e punir os agentes da repressão que participaram da prisão, tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida em 1975.

Fatos como esses que foram mencionados podem parecer, para algumas pessoas, questões menos importantes diante da instabilidade e das incertezas presentes no contexto político brasileiro pós-2016, bem como quando comparados a outros problemas existentes em qualquer um dos países da região. O passado recente brasileiro, assim como o dos seus vizinhos do Cone Sul, que também passaram por ditaduras alinhadas aos preceitos da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) no contexto da Guerra Fria, talvez possua relevância analítica e conexão com o presente muito mais profundas do que pode ser presumido à primeira vista.

No que tange à relevância analítica do tema, é visível, na última década, um incremento no que se refere ao número de estudos que estão sendo realizados sobre a ditadura no Brasil (1964-1985). Basta fazer uma rápida pesquisa na base de dados do Scielo Brasil e/ou no banco de dissertações e teses da Capes, que é possível encontrar uma quantidade significativa de novos artigos, resenhas, dissertações e teses que, oriundos das mais diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais, têm ajudado a interpretar e reinterpretar fatos e efeitos da ditadura na história política recente do país.

Algo que, em parte, talvez ajude a entender o aumento do interesse de pesquisadores e pesquisadoras pelo tema, é uma conjuntura marcada por pelo menos três acontecimentos relacionados com o regime autoritário brasileiro: (1) os trabalhos da Comissão da Anistia, que a partir de 2002 começou a avançar no que se refere à concessão de reparações simbólicas e financeiras às vítimas da repressão, percorrendo todas as regiões do país com suas “Caravanas” de julgamento dos pedidos de indenização; (2) a proposição, em outubro de 2008, da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 153, apresentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Supremo Tribunal Federal (STF), que pedia esclarecimentos sobre a validade da interpretação segundo a qual a Lei da Anistia brasileira (Lei n. 6.683/1979) teria impedido que qualquer tipo de punição dos agentes da repressão pudesse ser feita; (3) a instalação e funcionamento, entre os anos de 2012 e 2014, da Comissão Nacional da Verdade (CNV), responsável pela elaboração de um relatório final que reconheceria a responsabilidade do Estado brasileiro por um conjunto de violações aos direitos humanos entre 1964 e 1985.

Se é fato que as pesquisas sobre o tema têm avançado, ampliando uma agenda de pesquisas que é compartilhada por estudiosos e estudiosas da história, da sociologia, da ciência política, do direito e da filosofia entre outras, persistem, no entanto, e no tocante ao caso brasileiro, limites referentes à abordagem de alguns temas específicos. Uma agenda pendente, no sentido mencionado, relaciona-se com os estudos que aprofundam análises sobre as instituições que, pertencentes ao Estado, continuaram existindo e funcionando mesmo na fase mais dura do regime de exceção.

Esse é o caso, por exemplo, do Poder Judiciário e seus organismos. Uma narrativa excessivamente abstrata da ditadura pode facilmente incorrer (e isso não significa que se trate de uma escolha deliberada ou perversa dos e das pesquisadoras) no ocultamento e/ou no silenciamento de um fato importante vinculado a todo e qualquer período autoritário: as ditaduras não se sustentam sozinhas. Dito de outra forma, as ditaduras se mantêm no poder porque estabelecem bases de apoio tanto nas instituições como junto à população. Seja por medo (e/ou omissão), seja por adesão voluntária e convicta à ideologia do regime, é fato que ditaduras têm sua capacidade de manutenção diretamente relacionada com o contingente de apoiadores que mantêm em curto, médio e longo prazo.

O mesmo pode ser observado quando se pensa particularmente nas instituições e poderes estatais. Isto é, embora seja recorrente elaborar análises com assertivas tais como “o Legislativo fez isto”, “o Executivo agiu assim” ou “o Judiciário definiu tal questão”, é mais do que necessário observar que esses poderes são compostos por pessoas. Ou seja, quando se pretende identificar padrões de atuação dos poderes, seja agindo individualmente, seja interagindo entre si, o que está imbricado a esses estudos é a identificação de padrões comportamentais dos indivíduos que representam cargos e instituições públicas.

Analisando o funcionamento do Poder Judiciário durante as ditaduras de Segurança Nacional encontra-se, por exemplo, o estudo de Anthony W. Pereira (2010) PEREIRA , Anthony W . ( 2010 ), Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina . Rio de Janeiro , Paz e Terra . , no qual são comparadas as instituições judiciais argentinas, brasileiras e chilenas. Em linhas gerais, Pereira identificou que cada um dos países analisados gerou um tipo de “legalidade autoritária” diferente, que repercutiu, inclusive, na letalidade que o regime de exceção produziu. Na Argentina, país no qual houve uma maior tendência à desconsideração dos ritos processuais e a maioria das prisões políticas se deu de forma clandestina, o saldo letal da repressão é alto comparado aos seus vizinhos do Cone Sul: organizações de direitos humanos e de familiares de vítimas indicam a existência de 30 mil desaparecidos políticos durante a ditadura. No Chile e no Brasil, países nos quais, ainda conforme Pereira, houve uma maior instrumentalização do Judiciário processando e punindo as pessoas identificadas como “subversivas” e, por consequência, dando uma maior legitimidade à perseguição política, o número de mortos e desaparecidos é menor do que no caso argentino: organizações chilenas identificaram aproximadamente 5 mil casos, enquanto no contexto brasileiro teriam sido, conforme consta no Relatório Final da CNV, menos de 500 casos (sem considerar, nesse número, vítimas da violência no campo e indígenas mortos na construção da Transamazônica).

Análises específicas sobre as supremas cortes e suas relações com o regime autoritário na região, contudo, ainda são poucas. Sobre o caso argentino, para dar um exemplo, encontram-se alguns estudos recentes na coletânea “Usted también, Doctor? – Complicidad de jueces, fiscales y abogados durante la dictadura”, organizada por Juan Pablo Bohoslavsky (2015) BOHOSLAVSKY , Juan Pablo ( ed .) . ( 2015 ), ¿Usted también, Doctor? Complicidad de jueces, fiscales y abogados durante la dictadura . Buenos Aires , Siglo Veintiuno . . Sobre o caso brasileiro, análises interessantes (e recentes) sobre o STF, e que tangenciam em maior ou menor grau o tema do livro de Recondo, são os estudos de Siddharta Legale Ferreira e Eric Baracho Dore Fernandes (2013) FERREIRA , Siddharta Legale & FERNANDES , Eric Baracho Dore . ( 2013 ), “O STF nas ‘Cortes’ Victor Nunes Leal, Moreira Alves e Gilmar Mendes” . Revista Direito GV , 9 ( 1 ): 22 - 45 . , Andrés Del Río (2014) DEL RÍO , Andrés . ( 2014 ), “Dictadura, democracia y justicia transicional en Brasil: trayectoria y legados del Supremo Tribunal Federal” . Dados – Revista de Ciências Sociais , 57 ( 4 ): 1169 - 1201 . , Vera Karam de Chueiri e Heloísa Fernandes Câmara (2015) CHUEIRI , Vera Karam de & CÂMARA , Heloísa Fernandes . ( 2015 ), “(Des)ordem constitucional: engrenagens da máquina ditatorial no Brasil pós-64” . Lua Nova , 95 : 259 - 288 . , e de Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho (2017) CARVALHO , Alexandre Douglas Zaidan de . ( 2017 ), “Entre o dever da toga e o apoio à farda: independência judicial e imparcialidade no STF durante o regime militar” . Revista Brasileira de Ciências Sociais , 32 ( 94 ). . O que é apresentado, então, na análise do livro ora resenhado? Em linhas gerais, Recondo realiza uma narrativa histórico-jornalística sobre o STF, apresentando dados e fatos que permeiam a trajetória da instituição desde os primeiros anos da República, no final do século XIX, até os primeiros anos do século XXI. O foco, evidentemente, é o período compreendido entre as décadas de 1960 e 1980, mas, ao longo dos capítulos, o autor faz questão de tentar estabelecer conexões entre passado e presente. Na pesquisa que deu origem ao livro, o autor acessou fontes inéditas, como diários de ex-integrantes da Corte e documentos confidenciais que foram produzidos pelos órgãos de segurança, além de ter realizado entrevistas com ex-ministros, advogados, bem como com familiares e outras pessoas próximas aos membros do STF no período ditatorial.

E o que fica evidente a partir do estudo? Primeiramente, fica demonstrado que o ocorrido durante a ditadura não se tratou, propriamente, de uma exceção na história da Corte. Ao contrário, em vários momentos da história política brasileira presidentes da República tentaram controlar os ministros. O autor narra, no capítulo inicial do livro, vários acontecimentos que demonstram as tentativas de tornar a cúpula do Judiciário submissa ao Poder Executivo. Um exemplo disso foi a ameaça, realizada em 1892 por Floriano Peixoto, que coagiu os integrantes do STF a votarem negando um habeas corpus impetrado pelo advogado Rui Barbosa em defesa de generais que se rebelaram contra o governo. Outra situação que corrobora a afirmação ocorreu em 1931, quando Getúlio Vargas, via decreto, interviu na Corte aposentando seis ministros.

Se não foi excepcional a tentativa de coagir e controlar o Judiciário ao longo da história republicana brasileira, também não foi exceção o apoio, às vezes contido, às vezes explícito, de seus integrantes para com determinados governantes, tenham eles chegado ao poder pela via democrática ou mediante ruptura institucional. Não surpreende os e as leitoras do livro de Recondo, portanto, que ao apresentar um relato dos primeiros momentos pós-Golpe de 1964, o autor relembre o papel desempenhado pelo ministro Ribeiro da Costa, à época presidente do STF, que, em rápido “exame de consciência” (p. 26), legitimou, com sua presença, a posse de Ranieri Mazzilli na presidência da República (supostamente abandonada pelo presidente João Goulart). Dias depois, Ribeiro da Costa saudaria, em nota pública, Castelo Branco, primeiro ditador-presidente do regime ditatorial que se estenderia por mais de duas décadas no país.

Outro aspecto que é evidenciado pela pesquisa de Recondo é que, e com isto corrobora-se o estudo de Carvalho (2017) CARVALHO , Alexandre Douglas Zaidan de . ( 2017 ), “Entre o dever da toga e o apoio à farda: independência judicial e imparcialidade no STF durante o regime militar” . Revista Brasileira de Ciências Sociais , 32 ( 94 ). , ao contrário do que poderia ser intuído, o funcionamento do STF durante a ditadura é marcado por nuances, tensões internas e contradições. Ter respaldado, através dos atos de Ribeiro da Costa, a posse de Mazzilli e, depois, de Castelo Branco na presidência, não significou uma adesão necessária e irrevogável da Corte à “Revolução”. Ao contrário, tanto Ribeiro da Costa assim como outros ministros alinhados à direita e favoráveis à deposição de Jango foram responsáveis por manifestações e decisões que desagradariam à ditadura em mais de uma ocasião. O livro comenta, nesse sentido, e especialmente nos capítulos 2 e 3, os desdobramentos de dois julgamentos tensos: do caso Mauro Borges, governador de Goiás, e do habeas corpus de Plínio Coelho, governador do Amazonas, ambos políticos alinhados ao governo Jango e depostos com o Golpe de 1964. Em suas decisões, os integrantes do Supremo demonstraram que, ainda que muitos não se opusessem à ocupação do poder pelas Forças Armadas, isso não era sinônimo de adesão total ao regime, tampouco condescendência com atos que representassem esvaziamento da autonomia do Poder Judiciário.

Fica demonstrado no livro que, ao tomarem decisões que confrontavam interesses do regime (sobretudo os da linha dura), os ministros adotaram, nos primeiros anos da ditadura, uma estratégia: quando havia indícios de que a decisão proferida seria cumprida, por mais que desagradasse às Forças Armadas, decidia-se de uma forma, se era provável que o governo iria intervir e/ou impedir o cumprimento da sentença, decidia-se de outra. Evitava-se, conforme o pensamento de alguns membros da Corte, uma situação que demonstraria fraqueza do STF, caso desautorizado pela ditadura. Nas palavras do autor, era um comportamento estratégico que garantia, em curto prazo, alguma autonomia para a instituição, embora, em uma análise retrospectiva, tenha significado que por reiteradas vezes o pragmatismo se impunha à Justiça (p. 101).

É difícil não formular, com base na narrativa de Recondo, algum tipo de juízo de valor sobre essa estratégia adotada por muitos integrantes do STF ao longo do período autoritário. O autor da análise não emite, nas quase trezentas páginas do livro, sua interpretação sobre o acerto ou erro dos cálculos que eram feitos antes da deliberação de um caso polêmico. Isso hoje não impede, a ele e aos leitores, de reconhecerem que os ministros possuíam alguma razão ao temerem que a Corte fosse fechada arbitrariamente devido a algum julgamento que desagradasse à ditadura. De fato, teria sido um ato péssimo. Não deixa de ser possível pensar, igualmente, que a estratégia de minimização de tensões por parte dos membros do Supremo com alguns setores da coalizão civil-militar no poder gerou, entretanto, resultados contraditórios.

Afinal, e paradoxalmente, a manutenção do STF funcionando durante a vigência do autoritarismo seguramente ajudava na sustentação do discurso da ditadura, segundo o qual, salvo exceções justificadas pelos Atos Institucionais, havia normalidade no funcionamento das instituições. Ademais, e como aparece em “Tanques e togas”, com o passar dos anos a ditadura não pouparia a instituição e seus agentes. Fossem eles apoiadores da deposição de Jango, fossem supostamente “contrários à Revolução”. Assim, se nos primeiros momentos pós-Golpe, e por influência direta de Castelo Branco e setores a ele alinhados, uma intervenção no Supremo foi impedida, o tensionamento das relações do regime autoritário com a Corte, que tentava manter parte de sua autonomia, aos poucos iria culminar na modificação discricionária da sua composição. Tudo isso independente de sua colaboração ou condescendência com o regime.

O primeiro grande golpe deflagrado pela ditadura contra o STF, nesse sentido, é abordado no capítulo 4, no qual o autor analisa o contexto em que foi editado o Ato Institucional n. 2 (AI-2) e seus efeitos. Editado em outubro de 1965, o AI-2 alterava sumariamente o número de integrantes da Corte de onze para dezesseis ministros. De algum modo, o que foi previsto no AI-2 representava uma tentativa de conciliar os diferentes interesses e posicionamentos existentes, dentro do governo autoritário, sobre as pessoas que compunham o Supremo. Não seriam (ainda) discricionariamente retirados de seus cargos, portanto, os ministros Victor Nunes Leal (nomeado por Juscelino Kubitschek) e Hermes Lima e Evandro Lins e Silva (ambos nomeados por João Goulart), que eram vistos como “subversivos” e “antirrevolucionários” pelos órgãos de segurança (pp. 161-169). Seriam nomeadas para as novas vagas criadas pessoas que, pelo menos, fossem alinhadas ideologicamente à direita e/ou manifestamente favoráveis à ditadura. Tal tentativa, no entanto, não foi necessariamente exitosa. Em curto e médio prazo, verificou-se que os novos membros do STF estabeleceram um padrão decisório muito mais alinhado ao que já vinha sendo decidido pelos colegas de Corte mais antigos do que, de fato, fatalmente atrelados aos interesses do regime de exceção (pp. 120-121).

O segundo grande golpe contra o Supremo, que é analisado pormenorizadamente no capítulo 5, ocorreria numa conjuntura diferente. Isso porque as disputas internas dos setores das Forças Armadas que chegaram ao poder a partir do Golpe de 1964, repercutiriam também na forma de lidar com o STF. Em 1968, quando a linha dura havia chegado ao poder com o início do governo Costa e Silva, a tolerância dos “revolucionários” com a mais alta instituição judicial do país chegaria ao seu fim. Insatisfeita com os limites decorrentes da edição do AI-2, que não garantia a adesão total dos novos ministros aos interesses da “Segurança Nacional”, e, comandada pelo ditador-presidente Arthur da Costa e Silva, que desde 1964 defendia uma intervenção profunda no STF, a ditadura iria radicalizar a partir dos desdobramentos do caso Moreira Alves (Deputado Federal de oposição ao regime que foi perseguido por criticar, em seus discursos parlamentares, a violência utilizada contra estudantes da UnB).

Com a edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, e como é repetido à exaustão, a ditadura escancarou-se. Foram arbitrariamente suspensos direitos civis e políticos e o regime ampliava suas prerrogativas de afastar de seus cargos parlamentares e servidores públicos, incluindo magistrados. Com base no novo Ato Institucional, em janeiro de 1969 foram aposentados compulsoriamente os já referidos ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Num ato de solidariedade com os colegas e, de certo modo antecipando-se à possibilidade de que lhes ocorresse o mesmo, por estarem sendo investigados a pedido do governo, Lafayette de Andrada e Gonçalves de Oliveira pediram suas aposentadorias da Corte.

A despeito da decisão dos colegas que se solidarizaram com os atingidos pelo arbítrio, o fato é que, com as cinco baixas na composição da instituição, a ditadura fez o que lhe parecia mais fácil (e que, segundo fontes confidenciais da época, era pretendido pelo governo Costa e Silva): não nomeou ninguém para as vagas abertas, reduzindo o número do pleno do STF de dezesseis para onze ministros. Menor, sem habeas corpus para julgar, com apenas um integrante nomeado por governos anteriores ao Golpe em atividade (Luiz Gallotti, nomeado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, permaneceu no cargo até 1974) e com a demonstração inequívoca de que o regime não estava disposto a aceitar sua autonomia em qualquer caso, o Supremo sentiu os efeitos daquilo que, gostando ou não, ajudara a legitimar desde 1964.

Mesmo a partir dos acontecimentos que culminaram na violenta intervenção da Corte, no início de 1969, sua trajetória perante a ditadura seguiu um caminho marcado por recuos, tensões e contradições. Nos capítulos 6, 7 e 8, Recondo irá demonstrar, então, que nem mesmo a retirada dos ministros “subversivos” foi capaz de satisfazer aos setores que estavam no poder. Assim, e ao longo da década de 1970, mesmo com restrição dos casos para julgamento (afinal, desde o AI-5 fora suspenso o direito ao habeas corpus), outros desgastes foram gerados inclusive com integrantes indicados por terem afinidade com os preceitos da “Revolução”.

No capítulo intitulado “História de uma renúncia” (cap. 6), o autor do livro mostra as diferentes formas como um regime autoritário pode intervir no funcionamento de uma instituição, como ocorreu na escolha do seu novo presidente em 1969. Embora não tenha agido diretamente sobre o STF nesse caso, houve influência indireta da ditadura sobre os integrantes da Corte. Assim, num clima marcado por desconfianças e boatos plantados pelo regime, integrantes do Supremo pretenderam não eleger para a presidência da instituição o ministro Adalício Nogueira, que, pelo costume, deveria ser eleito para o cargo. A solução costurada pelos ministros Aliomar Baleeiro e Adaucto Lúcio Cardoso (pp. 200-203) foi induzirem o colega a renunciar logo após eleito. Assim, o STF não demonstraria publicamente desconfiança para com Nogueira, ao não elegê-lo, e, na sequência, poderia ser eleito para o cargo um integrante mais “ao gosto” da ditadura (fato consumado com a eleição de Oswaldo Trigueiro).

No capítulo seguinte (“A toga de Adaucto”, cap. 7), é apresentado o caso do pedido de aposentadoria, como medida de protesto, requisitada pelo ministro Adaucto Lúcio Cardoso durante uma sessão de julgamento, em 1971. Sentindo-se acuado na Corte ao ter votado solitariamente contra um caso que tratava da aplicação da censura prévia, Cardoso simplesmente renunciou ao cargo no meio da sessão, pendurou a toga no espaldar de sua cadeira e saiu do Plenário. Indicado para o STF pelo ditador-presidente Castelo Branco, da antiga UDN e, após o AI-2, filiado à Arena, Cardoso não era visto com bons olhos por parte dos setores que comandavam a ditadura, tendo sido cogitada sua aposentadoria na leva de cassações ocorrida pós-AI-5. Quando pediu sua aposentadoria de forma performática, não se sabe se o que pesou mais foram questões pessoais ou o aprofundamento de suas divergências para com o regime que legitimara e que, pouco a pouco, havia encurralado o Supremo, seja modificando sua composição, seja alterando suas competências.

No capítulo final, bem como na conclusão do livro, Recondo irá fazer uma breve análise sobre o processo de autonomização do STF. A análise é intercalada pela história dos prédios que o acolheram desde o início da República, no final do século XIX, até à construção dos anexos ao prédio construído em Brasília no final da década de 1950. Mostra como a instituição foi avançando até se firmar como um Poder que pudesse fazer frente aos excessos do Executivo e do Legislativo, ganhando sedes e orçamento próprios, bem como conquistando prerrogativas impossíveis em outros momentos da história política do país.

Perguntas que ficam sem resposta ao final da leitura (não que estas tenham sido formuladas como problemas de pesquisa pelo autor) são: Por qual razão os ministros nomeados pelos ditadores-presidentes permaneceram nos seus cargos mesmo após o fim da ditadura? Como é possível que a mais alta instância judicial do país transite para a democracia com uma composição totalmente formada por pessoas nomeadas pelo regime autoritário sem que isso seja objeto de debate? O que pensaram os próprios integrantes da Corte, no contexto da transição, sobre a sua permanência nos cargos? Consideraram conveniente sua transição silenciosa da ditadura à democracia?

Trata-se, é certo, de questionamentos que podem parecer meramente retóricos do ponto de vista da realidade política, mas, na prática, não o são. Basta observar o modo como os países vizinhos, que também passaram por experiências autoritárias no mesmo contexto, têm lidado com a temática na nova conjuntura democrática. Na Argentina e no Uruguai, por exemplo, as supremas cortes foram totalmente recompostas após o fim das ditaduras, sendo nomeado um conjunto de novos magistrados para a sua formação e afastados dos cargos aqueles e aquelas que haviam sido nomeados no período de exceção. No Chile, os ministros nomeados por Pinochet permaneceram nos cargos após o final da transição à democracia. Anos depois, contudo, a Suprema Corte chilena emitiu uma nota pública, em 2013, reconhecendo o papel que seus integrantes tiveram no período autoritário.

No caso brasileiro, até abril de 2003, quando se aposentou o ministro Sydney Sanches, o STF possuía em seus quadros integrantes nomeados pela ditadura, exercendo normalmente suas funções. Outros colegas de Corte indicados ao cargo durante o período presidiram a instituição nos primeiros anos da Nova República, aposentaram-se entre a década de 1990 e o início dos anos 2000 e, com alguma frequência, seguem sendo lembrados elogiosamente em votos dos atuais membros do plenário da Corte.

A despeito dessas questões, deve ser destacado que o estudo de Felipe Recondo supre uma lacuna importante ao avançar não apenas na pesquisa sobre o papel do STF durante a ditadura, mas também por lançar luz na (salvo exceções) desconhecida lista de ministros da Corte que exerceram seus cargos no período, conciliando ou não suas próprias trajetórias com os interesses do regime. Talvez a principal contribuição da obra de Recondo seja ajudar a evidenciar as nuances no comportamento dos agentes que compuseram a mais alta instância do Judiciário brasileiro a partir de 1964 e até a saída dos militares da Presidência da República, em março de 1985. Se, por um lado, fica evidente que não há uma linearidade inequívoca nas decisões emitidas no período mencionado, nota-se, por outro, que apesar dos posicionamentos menos submissos ao regime, é fato que houve um predomínio de submissão das togas aos tanques.

Para encerrar, cabe dizer que se trata de um livro que compila dados que certamente ajudarão pesquisadoras e pesquisadores a elaborarem novas análises e hipóteses sobre o tema. Não chega a explicar precisamente como o STF se tornou o poder altamente “politizado” atual, cujos integrantes não se eximem de aparecer nas mídias e entrarem em polêmicas recorrentes. Dá pistas importantes para que se compreenda, no entanto, por qual razão o Judiciário brasileiro ainda não avançou no tocante à punição dos crimes cometidos pela ditadura. “O Supremo de hoje não é o Supremo de ontem”, diz Recondo em mais de uma passagem do livro. De fato, o STF não é o mesmo, sobretudo se observadas as suas competências previstas na Constituição de 1988 e a sua composição. No que tange à memória do período compreendido entre 1964 e 1985, contudo, há algo que aproxima passado e presente. Ontem, deixa evidente o livro, cederam algumas togas às armas. Hoje, cedem ao esquecimento e à impunidade.

Referências Bibliográficas

  • BOHOSLAVSKY , Juan Pablo ( ed .) . ( 2015 ), ¿Usted también, Doctor? Complicidad de jueces, fiscales y abogados durante la dictadura . Buenos Aires , Siglo Veintiuno .
  • CARVALHO , Alexandre Douglas Zaidan de . ( 2017 ), “Entre o dever da toga e o apoio à farda: independência judicial e imparcialidade no STF durante o regime militar” . Revista Brasileira de Ciências Sociais , 32 ( 94 ).
  • CHUEIRI , Vera Karam de & CÂMARA , Heloísa Fernandes . ( 2015 ), “(Des)ordem constitucional: engrenagens da máquina ditatorial no Brasil pós-64” . Lua Nova , 95 : 259 - 288 .
  • DEL RÍO , Andrés . ( 2014 ), “Dictadura, democracia y justicia transicional en Brasil: trayectoria y legados del Supremo Tribunal Federal” . Dados – Revista de Ciências Sociais , 57 ( 4 ): 1169 - 1201 .
  • FERREIRA , Siddharta Legale & FERNANDES , Eric Baracho Dore . ( 2013 ), “O STF nas ‘Cortes’ Victor Nunes Leal, Moreira Alves e Gilmar Mendes” . Revista Direito GV , 9 ( 1 ): 22 - 45 .
  • PEREIRA , Anthony W . ( 2010 ), Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina . Rio de Janeiro , Paz e Terra .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2018
  • Aceito
    25 Set 2018
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