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À quoi sert un économiste

RESENHAS

Mariana Heredia, À quoi sert un économiste. Paris, La Découvert, 2014. 246 pp.

Márcia Pereira Cunha

Doutora em sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da usp (fflch).

De seu título, o que o livro mais reflete é o tom provocador. Isso porque não é um estudo sobre economistas, no sentido da caracterização de percursos acadêmico-profissionais; tampouco faz parte das revisões sobre o papel dos economistas nos últimos anos, como a lembrança de À quoi servent les economistes (Boissieu e Jacquillat, 2010) poderia sugerir. A provocação - ou o desafio, talvez - não é feita aos economistas, ressalva que uma pergunta logo na apresentação do livro sugere ser necessária: "[...] é possível desenvolver um olhar crítico sobre essas transformações e esses experts sem, ao mesmo tempo, estabelecer rivalidade com eles?" (p. 7). Dirige-se, antes, à própria sociologia: seria ela capaz de explicar a imbricação de dois fenômenos que, no mais das vezes, são tratados separadamente pelas literaturas especializadas, a saber, a ascensão dos economistas (em poder e em visibilidade pública) e as transformações sociais experimentadas pelo mundo a partir da década de 1970? O processo de mudança em questão é tratado com base na produção reunida sob a chancela - maltratada pelo debate brasileiro - do neoliberalismo, e os economistas são considerados centrais na construção dessa - segundo a autora - nova ordem social.

Seu esforço de resposta organiza o livro em duas partes. A primeira é dedicada a definir "o que é" um economista, tarefa que justifica como sendo pré-requisito para sua questão principal, seu objeto na segunda parte. Nos primeiros três capítulos predomina a literatura sobre economistas e economia - com referências a Verónica Montecinos, John Markoff e David Colander -, organizada pela autora em três formas de compreensão da evolução dos atores, da disciplina e do campo de atuação: a "tese profissionalista", o "contra-ataque crítico" e a "razão tecnoeconômica". A tese profissionalista (neologismo para, provavelmente, distanciar-se de alguns argumentos dos próprios autores compreendidos sob esse nome) aborda a escalada dos economistas como efeito do processo de crescente racionalização do mundo ocidental. Ou seja, diante de problemas econômicos cada vez mais complexos, os profissionais da economia teriam se tornado os mais bem (quiçá os únicos) preparados para entendê-los e propor-lhes soluções. Os elementos reunidos nessa tese permitem que a autora apresente problemas caros ao campo, como o estatuto científico da disciplina, sua epistemologia, seu reconhecimento social e sua recente matematização. A abordagem designada como contra-ataque crítico indica a reação a um movimento anterior: a investida pelos próprios economistas. Nessa chave, eles são tomados como intelectuais engajados em uma causa e, estando essa causa relacionada com os interesses da classe dominante, sua ascensão tende a ser investigada não como um processo contínuo, mas como resultado de uma ruptura que ocorre no contexto-referência do pós-1970. Do mesmo modo que na primeira tese, a autora mobiliza outra série de temas recorrentes na construção dessa abordagem, como a origem ideológica das tradições econômicas, as disputas e as trajetórias institucionais e as relações de poder. Como seria de se esperar, a autora propõe a superação das dicotomias identificadas no confronto dos dois tipos de leitura, a se realizar por meio da identificação de uma razão tecnoeconômica, que considera o economista ator social cujo papel será mais bem compreendido se colocado na encruzilhada entre a ciência, a técnica e a política. Alguns conteúdos, assim, são retomados das teses anteriores, mas de forma integrada: as transformações do campo científico aparecem incidindo e sendo alteradas pelas transformações políticas e econômicas. Por isso, o economista não é o profissional neutro que a tese profissionalista reivindica, nem o intelectual do contra-ataque crítico. O híbrido entre eles corresponde à figura do expert.

A segunda parte do livro, então, apresenta e desenvolve essa síntese: esses experts em economia definiram um quadro de representação da sociedade em meio ao cenário de incertezas e inconstâncias que caracterizam o pós-1970. Paralelamente, participaram da criação de novos mercados e mercadorias. Os resultados dessa dupla atuação favoreceram a proeminência desse grupo, ao mesmo tempo que estimulavam, em contrapartida, sua própria necessidade e relevância social. O livro torna-se então devedor menos da bibliografia especializada em economia e nos economistas e mais daquela relativa aos experts e às transformações sociais acopladas à consolidação do neoliberalismo. A qualquer reserva, vale dizer: embora entre nós o tema do neoliberalismo seja por vezes tratado como menor, Heredia segue a linha de autores como Phillip Mirowski, Johanna Bockman, Aihwa Ong, Jamie Peck (este não citado), que desenvolveram a discussão considerando suas muitas formas de imposição/adoção em diferentes países - a não unidade programática, a variedade de experiências de incorporação e tradução de seus conteúdos, a pluralidade de geografias por ele assumidas.

Essa abordagem leva à defesa de que a compreensão do aumento em poder do "economista neoliberal" esteja inserida em uma sociologia da dominação. Refere-se ao quadro que os economistas apresentam como estabelecido, a um só tempo, pelo discurso produzido por eles e pela incorporação de elementos desse discurso em técnicas de governo e instrumentos de gestão. Técnicas e ferramentas, por sua vez, são entendidas como dispositivos que permitem o exercício da dominação para além do recurso à coerção ou a um conjunto de equivalências formado pelo papel mediador do direito. É assim que aparecem, na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade do controle, os temas da substituição de referências do direito pelas da economia, da cidade pelas do mercado, da nação pelas das redes transnacionais, culminando na designação do neoliberalismo como tecnologia de governo. As sociologias de Foucault, Deleuze e Desrosières são mobilizadas com apoio de trabalhos mais recentes, como os de Laval (2007), Rose e Miler (2008) e Lascoumes e Le Galès (2004).

A despeito do interesse da discussão e dos bons frutos que entrega, alguns pontos são menos bem-acabados que outros. Num nível mais detalhado, o avanço da economia e um de seus efeitos, a individualização, deixam dúvidas sobre seus conteúdos e formas de tratamento. Se a preponderância da economia é ponto de partida e não hipótese a ser comprovada, esse horizonte é interrompido quando a autora define os economistas como grupo acadêmico-profissional. Isso serve bem à argumentação, em especial na primeira parte, mas, à medida que se ampliam os limites da discussão para as minúcias que os dispositivos da nova tecnologia de poder permitem alcançar, algo semelhante poderia ter ocorrido com o fenômeno em análise. Qual seria o equivalente, nessa nova ordem, da disseminação institucional dos economistas? Uma hipótese seria a de desenvolvimento de uma nova forma de pensar e falar dos problemas públicos, ou a imposição de termos e argumentos típicos do pensamento econômico a não economistas. É verdade que essa discussão abriria nova vereda, já que seria preciso, por exemplo, desvendar por que essa racionalidade - recorrendo a uma das referências da autora, Foucault - não significa a colonização de uma esfera da vida social por outra. Passagens em que a obra utiliza exemplos circunscritos a certas áreas, como a saúde, não evoluem nesse sentido, embora guardem esta possibilidade.

Em âmbito mais geral, da estratégia de construção do trabalho, talvez coubesse a pergunta sobre a combinação de duas escolhas que, separadamente, são méritos do livro: a de propor uma interpretação abrangente e a de colocar o tema em perspectiva histórica. Heredia discute a onipresença pública dos economistas sem deter-se sobre experiência concreta: nenhuma área específica, nenhuma territorialidade específica, nenhum caso específico. É verdade que, para apreender um cenário em mudança, alguma sorte de distanciamento seja necessária. Longe de significar um pedido por dados empíricos ou um esgotamento dos estudos de caso, reconhecer a pertinência da escolha permite questionar o preço cobrado por ela. Como se equilibrar entre a exigência de não abandonar o leitor em meio a referências excessivamente genéricas e a necessidade de sustentar o argumento generalizante a partir de exemplos localizados? Os casos russo, chinês e egípcio (pp. 178 e ss.) são exemplos de resolução interessante: tanto quanto a leitura especializada - e, por isso, exata - de cenários e contextos particulares, está ali a interpretação da autora, que a alinhava com suas próprias referências e argumentos. E, embora a concordância ou não com o resultado vá continuar sempre em aberto, seu percurso estará garantido.

Esses pontos, entretanto, não fragilizam a contribuição do livro a um debate atual e necessário. A breve presença do caso brasileiro no livro de Heredia é indicadora disso e estende-se, em alguma medida, à bibliografia relativa a alguns dos assuntos tratados. Quando se fala do Brasil, com exceção dos trabalhos de Loureiro (1997), a aproximação entre os Chicago Boys chilenos e a trajetória do ex-ministro Pedro Malan, por Dezalay e Garth (2002), ou a apresentação de Fernando Henrique Cardoso como o representante brasileiro de technopol, por Domínguez (1997), seguem solitárias nesse terreno. O mesmo vale para o neoliberalismo para além das programações econômicas. O livro, portanto, se for apreendido como uma sociologia das profissões, dos experts, dos economistas, dos intelectuais, das elites ou do neoliberalismo, poderá ser visto como uma obra com lacunas. Em contrapartida, como interpretação da contemporaneidade a partir de um grupo social específico, será considerado rico em possibilidades. A provocação de Mariana Heredia é também um convite para a sociologia e seu trabalho é inspirador nesse sentido.

  • Boissieu, Christian & Jacquillat, Bertrand (orgs.). (2010), À quoi servent les économistes? Paris, Presses Universitaires de France/Descartes & Cie.
  • Dezalay, Yves & Garth, Bryant. (2002), La mondialisation des guerres des palais Paris, Seuil.
  • Domínguez, Jorge (org.). (1997), Technopols: freeing politics and markets in Latin America in the 1990s Pennsylvania, Pennsylvania State University Press.
  • Lascoumes, Pierre & Le Galès, Patrick (orgs.). (2004), Gouverner par les instruments. Paris, Les Presses de Sciences Po.
  • Laval, Christian (2007). L'homme économique: essai sur les racines du néoliberalisme Paris, Gallimard.
  • Loureiro, Maria Rita. (1997), Os economistas no poder: gestão econômica e democracia Rio de Janeiro, fgv.
  • Rose, Nikolas & Miller, Peter. (2008), Governing the present: administering economic, social and personal life Cambridge, Polity Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jul 2014
  • Data do Fascículo
    Jun 2014
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