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Organização social e gestão associativa rural entre mulheres no semiárido sergipano

Social organization and rural associative management among women in the Semiarid Region of Sergipe

Resumo:

O objetivo deste trabalho é analisar os processos de gestão e as relações em torno da tomada de decisão na Associação de Mulheres “Resgatando sua História”, localizada no meio rural do Sertão de Sergipe. Com esse intuito, esta pesquisa foi desenvolvida sob uma ótica da interpretação interdisciplinar dos fatos observados, a partir da área de estudo das Ciências Sociais, utilizando uma abordagem qualitativa para a análise das informações coletadas. Para tal perspectiva analítica, os dados foram obtidos por meio de entrevistas individuais com todas as sócias e com cinco ex-integrantes da Associação; aplicação de questionário com dois técnicos de instituições parceiras; condução de grupo focal com as associadas; pesquisa documental; anotações em diário de campo; participação em reuniões ordinárias da Associação e observação sistemática. Graças às análises, verificou-se o protagonismo e a autonomia decisória das sócias na administração desse coletivo, bem como a apropriação pelas agricultoras-gestoras de instrumentos de controle, com a construção de um sistema de gestão adaptado a sua realidade e demandas. Assim, as mulheres desenvolveram uma autogestão das atividades da Associação e dos recursos endógenos de forma democrática e participativa, seguindo lógicas encontradas em literaturas sobre as formas de gestão de Empreendimentos Econômicos Solidários.

Palavras-chave:
economia solidária; associativismo; autogestão; mulheres rurais; agricultura familiar

Abstract:

The objective of this work is to analyze the management processes and the relationships around decision-making in the “Resgatando sua História” Women's Association, located in the rural area of the outback of Sergipe. With this in mind, this research was developed from the perspective of the interdisciplinary interpretation of the observed facts, from the Social Sciences area of study, using a qualitative approach to the analysis of the collected information. For such an analytical perspective, data were obtained through individual interviews with all members and with five former members of the Association; application of a questionnaire with two technicians from partner institutions; conducting a focus group with associates; documentary research; notes in a field diary; participation in regular meetings of the Association and systematic observation. Thanks to the analyses, the role and decision-making autonomy of the members in the administration of this collective was verified, as well as the appropriation by the farmer-managers of control instruments, with the construction of a management system adapted to their reality and demands. Thus, women developed a self-management of the Association's activities and endogenous resources in a democratic and participatory manner, following logics found in literature on forms of management of Solidarity Economic Enterprises.

Keywords:
solidarity economy; associativism; self-management; rural women; family farming

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho vislumbra o espaço rural para além de um setor agropecuário padronizado pela internacionalização do modelo agrícola hegemônico (o agronegócio), no qual a agricultora ou o agricultor se restringe a ser uma produtora ou um produtor especializado em algum tipo de monocultura e completamente atrelado ao mercado, com a finalidade específica de obtenção de lucro. Com esta ótica, convém voltar a atenção para pesquisas sobre as lógicas de reprodução da agricultura familiar de base camponesa no Brasil. Esta última apresenta uma grande capacidade de resistência e de adaptação às transformações sociais. Dessa forma, este estudo se inscreve nesse debate a partir dos fundamentos analíticos da agricultura familiar e do campesinato (Wanderley, 1996Wanderley, M. N. B. (1996). Raízes históricas do campesinato brasileiro. In Anais do XX Encontro Anual da ANPOCS: GT 17. Processos Sociais Agrários. Caxambu., 2010Wanderley, M. N. B. (2010). A sociologia rural na América Latina: produção de conhecimento e compromisso com a sociedade. Revista ALASRU Nueva Época, (5), 17-44. Recuperado em 20 de janeiro de 2016, de https://www.yumpu.com/es/document/view/12983661/alasru-nueva-epoca-no-5-revista-noviembre-2010
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).

As estratégias de reprodução desses atores sociais se baseiam, frequentemente, no manejo dos recursos disponíveis no lócus de produção, com muita preocupação em relação ao objetivo de oferecer bem-estar à família. Nessa medida, a agricultura familiar se organiza para garantir sua reprodução social, tendo como objetivo a sucessão pelas gerações futuras.

Nesse quadro, é notória a importância socioeconômica da agricultura familiar, principalmente para o Nordeste do Brasil, frente aos indicadores socioeconômicos observados. Um exemplo disso é a situação de pobreza que predomina nessa região. Em 2008, segundo Lavinas (2010)Lavinas, L. (2010). Pobreza: métricas e evolução recente no Brasil e no Nordeste. Cadernos do Desenvolvimento, 5(7), 126-148., 48,8% da população no Nordeste era considerada pobre, levando em consideração apenas os rendimentos oriundos do trabalho, enquanto 12% encontravam-se em situação de indigência ou pobreza extrema. Ainda segundo a autora, nesse mesmo ano, “[...] metade da população do Nordeste, considerando os rendimentos do trabalho, vive abaixo da linha da pobreza, contra menos de um terço da população brasileira” (Lavinas, 2010Lavinas, L. (2010). Pobreza: métricas e evolução recente no Brasil e no Nordeste. Cadernos do Desenvolvimento, 5(7), 126-148., p. 137-138).

Assim, torna-se pertinente para o Nordeste brasileiro a reconstrução do seu setor agrícola, fundado no fortalecimento da agricultura familiar, de modo que possa assegurar oferta importante de alimentos com objetivos de segurança alimentar. A transformação da economia agrícola da zona semiárida é fundamental nessa perspectiva (Furtado, 2009Furtado, C. (2009). O Nordeste: reflexões sobre uma política alternativa de desenvolvimento. In C. Furtado, T. B. Araújo, L. M. F. Carleial, A. Ferreira, M. C. Coutinho, M. C. Lima, V. A. Cepêda, A. N. Menezes Sá, C. Buarque, C. Cavalcanti & R. Ismael (Eds.), O pensamento de Celso Furtado e o Nordeste hoje. Rio de Janeiro: Contraponto, Centro Internacional Celso Furtado de políticas para o Desenvolvimento, Banco do Nordeste do Brasil.).

O semiárido nordestino apresenta uma área de 980.133,07km2, onde residem 12% da população brasileira e 43% da população nordestina, com as mulheres representando 51% desse grupo (Perez-Marin & Santos, 2014Perez-Marin, A. M., & Santos, A. P. S. (Eds.). (2014). O semiárido brasileiro: riquezas, diversidades e saberes. Campina Grande: INSA/MCTI.). No estado de Sergipe, onde está localizada a Associação objeto deste estudo, observa-se que 78% do pessoal ocupado no espaço rural tem parentesco com o produtor, o que explicita a predominância da mão de obra familiar, segundo o Censo Agropecuário de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2017)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2017). Censo agropecuário de 2017. Recuperado em 2 de outubro de 2020, de https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/templates/censo_agro/resultadosagro/produtores.html
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.

Outra questão relevante sobre a região rural do Nordeste brasileiro diz respeito à vulnerabilidade (econômica, material e simbólica) das mulheres da agricultura familiar, visto que passam por discriminação e desigualdades, inclusive no que diz respeito ao acesso a políticas públicas (Schefler, 2013Schefler, M. L. N. (2013). Gênero, autonomia econômica e empoderamento, o real ao aparente: sistematização de processos de investigação-ação e/ou de intervenção social. Revista Feminismos, 1(3), 1-20.). Tal marginalização pode ser constatada quando se observa a distribuição da posse de terras entre homens e mulheres, pois apenas 23% dos estabelecimentos agropecuários apresentam titularidade feminina, segundo o Censo Agropecuário de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2017)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2017). Censo agropecuário de 2017. Recuperado em 2 de outubro de 2020, de https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/templates/censo_agro/resultadosagro/produtores.html
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Diante dessa realidade, observa-se como importante o aumento da participação das mulheres em organizações coletivas, principalmente as vinculadas à agricultura de base ecológica, visto que a agroecologia valoriza os atores sociais envolvidos em suas práticas, bem como aborda a importância do papel da mulher para a sustentabilidade social. Tal constatação favorece o protagonismo das mulheres na construção da sua própria categoria política e social, assumindo acrescidas responsabilidades familiares e coletivas (Said & Moreira, 2015Said, M. A., & Moreira, S. L. S. (2015). Mulheres e agroecologia: multiplicadoras agroecológicas transformando o semiárido. In K. Hora, G. Macedo & M. Rezende (Eds.), Coletânea sobre estudos rurais e gênero: Prêmio Margarida Alves (4ª ed., pp. 171-190), Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário.; Siliprandi, 2013Siliprandi, E. (2013). Mulheres agricultoras: sujeitos políticos na luta por soberania e segurança alimentar. Recuperado em 8 de junho de 2020, de http://www.rimisp.org/wp-content/uploads/2013/05/Paper_Emma_Siliprandi-12.pdf
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), o que acaba proporcionando a participação das mulheres nos processos decisórios, devido à gestão democrática desses coletivos.

Vale ainda ressaltar a finalidade social das associações e de outras formas de organizações coletivas. Sobre o tema, Chayanov (2017)Chayanov, A. V. (2017) A teoria das Cooperativas Camponesas (R. Vargas, Trad.). Porto Alegre: UFRGS. Obra original publicada em 1919. destaca a importância do cooperativismo para conceber formas sociais de organização democrática da produção agroalimentar.

Nesse sentido, Wanderley (2009b)Wanderley, M. N. B. (2009b). Em busca da modernidade social: uma homenagem a Alexander V. Chayanov. In M. N. B. Wanderley (Ed.), O mundo rural como espaço de vida: reflexões sobre a propriedade da terra, agricultura familiar e ruralidade. Porto Alegre: UFRGS. realça a perspectiva de Chayanov, segundo a qual o processo de autocoletivização permitiria ao campesinato aspirar deter maior controle sobre as dinâmicas econômicas. Wanderley (2009bWanderley, M. N. B. (2009b). Em busca da modernidade social: uma homenagem a Alexander V. Chayanov. In M. N. B. Wanderley (Ed.), O mundo rural como espaço de vida: reflexões sobre a propriedade da terra, agricultura familiar e ruralidade. Porto Alegre: UFRGS., p. 145) ainda destaca que através da cooperação Chayanov “[...] pretendia, de fato, propor a constituição de uma nova estrutura social”.

Nesse sentido, esses empreendimentos econômicos tendem a ser administrados pelas agricultoras e pelos agricultores familiares de maneira a caracterizar uma forma de gestão autônoma e democrática. Desenvolvem-se, assim, práticas de autogestão com enfoque no bem-estar das pessoas a partir de suas racionalidades, sem uma orientação exclusiva pela maximização do lucro (Faria & Faria, 2006Faria, J. H., & Faria, J. R. (2006). Poder e controle em organizações solidárias. In S. Pimenta, L. Saraiva & M. Corrêa (Eds.), Terceiro setor: dilemas e polêmicas. São Paulo: Saraiva.; Roesler, 2009Roesler, D. A. (2009). Racionalidades e práticas administrativas do agricultor familiar no contexto ambiental: um estudo em três comunidades rurais no sul da Região Metropolitana de Curitiba – Paraná (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba.; Singer, 2002Singer, P. (2002). Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.).

Sob essa perspectiva, a organização coletiva das famílias rurais, por meio do cooperativismo social agroecológico, “[...] no es solamente un asociativismo económico entre los participantes, va más allá, siendo un modelo de producción, consumo, autogestión, independencia, organización democrática, horizontalidad en la toma de decisiones, autoformación e integración al território [...]” (Nascimento et al., 2020Nascimento, F. S., Calle-Collado, Á., & Benito, R. M. (2020). Economía social y solidaria y agroecología en cooperativas de agricultura familiar en Brasil como forma de desarrollo de una agricultura sostenible. C.I.R.I.E.C. España, (98), 189-211. Recuperado em 20 de junho de 2021, de https://www.researchgate.net/publication/340379116
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, p. 199). Destarte, a autogestão leva a adotar diversos outros princípios da economia solidária, como solidariedade, equidade, cooperação e desenvolvimento humano. Com efeito, a economia solidária é concebida como forma de ruptura com uma divisão social injusta do trabalho (Nobre, 2003Nobre, M. (2003). Mulheres na economia solidária. In A. Cattani (Ed.), A outra economia. Porto Alegre: Veraz e Unitrabalho. Recuperado em 3 de setembro de 2018, de http://www.sof.org.br/wp-content/uploads/2015/07/MULHERES-NA-ECONOMIA-SOLIDARIA-Miriam-Nobre.pdf
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).

Assim, é importante salientar o protagonismo das mulheres na economia solidária, o que oferece o desenvolvimento de um espaço em que há o “[...] despertar da agroecologia, da permacultura, e o revigoramento das formas familiares de produção agrícola, expressões do contramovimento de defesa da sociedade diante do fundamentalismo de mercado [...]” (Lisboa, 2005Lisboa, A. M. (2005). Economia solidária e autogestão: imprecisão e limites. Revista de Administração de Empresas, 45(3), 109-115., p. 114). Essa construção segue um sentido de racionalidade ambiental, na qual a natureza faz parte do patrimônio da família rural, sendo de fundamental importância para a reprodução social, econômica e cultural desses atores (Roesler, 2009Roesler, D. A. (2009). Racionalidades e práticas administrativas do agricultor familiar no contexto ambiental: um estudo em três comunidades rurais no sul da Região Metropolitana de Curitiba – Paraná (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba.).

Contudo, a construção de um referencial que contemple a racionalidade ambiental na lógica reprodutiva das agricultoras e agricultores familiares esbarra num cenário predominante, no qual as tentativas de implantação de ferramentas de controle e de análise de gestão se fundamentam, quase que exclusivamente, nos instrumentos da racionalidade econômica do modelo empresarial (baseado exclusivamente na lucratividade da produção). Assim, não “[...] seria um exagero dizer que a pequena-burguesia letrada usa cinicamente a linguagem revolucionária como um instrumento de exploração [...] que tem interesse na burocratização [...]” (Bourdieu & Sayad, 2006Bourdieu, P., & Sayad, A. (2006). A dominação colonial e o sabir cultural. Revista de Sociologia e Política, 26, 41-60., p. 57).

A respeito disso, Abramovay (1992)Abramovay, R. (1992). Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo/Campinas: Hucitec/Anpocs., Bourdieu & Sayad (2006)Bourdieu, P., & Sayad, A. (2006). A dominação colonial e o sabir cultural. Revista de Sociologia e Política, 26, 41-60., Chayanov (1974Chayanov, A. V. (1974). La organización de la unidad económica campesina. Buenos Aires: Nueva Visión., 1966Chayanov, A. V. (1966). Peasant farm organization. In D. Thorner, B. Kerblay & R. E. F. Smith (Eds.), The theory of peasant economy: with a new introduction by Teodor Shanin. Wisconsin: The University of Wisconsin Press. Obra original publicada em 1925., 2017Chayanov, A. V. (2017) A teoria das Cooperativas Camponesas (R. Vargas, Trad.). Porto Alegre: UFRGS. Obra original publicada em 1919.), Mendras (1984)Mendras, H. (1984). La fin des paysans (2ª ed.). Paris: Actes Sud., Wanderley (2003)Wanderley, M. N. B. (2003). Agricultura familiar e campesinato: rupturas e continuidade. Estudos Sociedade e Agricultura, 11(2), 42-61., entre outros pesquisadores das sociedades rurais, expõem que não são estranhos às famílias agricultoras a gestão e o controle das diversas atividades desempenhadas na sua unidade produtiva ou nas associações e nas cooperativas. Assim, a agricultora gestora e o agricultor gestor continuam aprendendo e se adaptando diante das exigências da sociedade contemporânea. Dessa forma, passam a desempenhar mais esse papel e se apropriam de técnicas para realizar os registros contábeis, integrando-as às suas atividades cotidianas.

Desse modo, a autonomia camponesa passa a depender de competências em organizar o processo produtivo, consistindo na capacidade de assumir múltiplas atividades, com distintas tarefas de controle sobre instrumentos de trabalho e meios de produção (Wanderley, 2010Wanderley, M. N. B. (2010). A sociologia rural na América Latina: produção de conhecimento e compromisso com a sociedade. Revista ALASRU Nueva Época, (5), 17-44. Recuperado em 20 de janeiro de 2016, de https://www.yumpu.com/es/document/view/12983661/alasru-nueva-epoca-no-5-revista-noviembre-2010
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).

Thiago et al. (2020)Thiago, F., Kubo, E. K. M., Pamplona, J. B., & Farina, M. C. (2020). Estilo de gestão de produtores rurais. Revista de Economia e Sociologia Rural, 58(2), e188254. http://dx.doi.org/10.1590/1806-9479.2020.188254
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ressaltam que a gestão pode ser considerada como um limitante para melhorar o desempenho das propriedades rurais. Em sua pesquisa, a gestão das produtoras e dos produtores rurais brasileiros é caracterizada “[...] pelos elevados níveis de aplicação das atividades de liderança, decisão, controle, motivação e tecnologia, menor relevância nos aspectos planejamento e comunicação [...]” (Thiago et al., 2020Thiago, F., Kubo, E. K. M., Pamplona, J. B., & Farina, M. C. (2020). Estilo de gestão de produtores rurais. Revista de Economia e Sociologia Rural, 58(2), e188254. http://dx.doi.org/10.1590/1806-9479.2020.188254
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, p. 14).

É nesse permanente confronto entre racionalidade camponesa e exigências racionais da sociedade capitalista “[...] que pode elaborar-se uma cultura autêntica, sistema de modelos de comportamento econômico e social simultaneamente coerente e compatível com as condições objetivas [...]” (Bourdieu & Sayad, 2006Bourdieu, P., & Sayad, A. (2006). A dominação colonial e o sabir cultural. Revista de Sociologia e Política, 26, 41-60., p. 59).

Com essas referências, busca-se compreender modos de gestão específicos do campesinato, cujas lógicas não desapareceram do meio rural, mas se adaptaram a diferentes contextos. Então, torna-se evidente a pertinência de se construir um referencial analítico condizente com o modo de vida das camponesas e dos camponeses. Efetivamente, ocorrem experiências de apropriação de instrumentos de gestão ajustados à realidade socioeconômica dessa última categoria. Os dispositivos de controle de gestão atendem, via de regra, à lógica empresarial capitalista, o que permite levantar interrogações sobre as adaptações à realidade de grande parte da população rural (Brandenburg, 1999Brandenburg, A. (1999). Agricultura familiar: ONGs e desenvolvimento sustentável. Curitiba: UFPR.).

Portanto, com o intuito de analisar formas de organizações sociais coletivas visando incluir e fortalecer agricultores e agricultoras familiares em contexto de pobreza e de exclusão socioeconômica e política das mulheres rurais do Nordeste brasileiro, a pesquisa que fundamente este artigo buscou examinar os processos de gestão e os processos de tomada de decisão na Associação de Mulheres “Resgatando sua História”. Especificamente, tratou-se de analisar os instrumentos de gestão utilizados pelas mulheres na organização em questão.

2. METODOLOGIA

Este artigo é fruto de parte da pesquisa de doutorado, intitulada “Associação de Mulheres ‘Resgatando sua História’: organização social e gestão no rural nordestino – Porto da Folha – Sergipe”, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas, estando em conformidade com o protocolo do Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa, número 3.016.225, aprovado em 12 de novembro de 2018. O trabalho contou com aprofundamento de análises sobre organização social e instrumentos de gestão de empreendimentos econômicos solidários no meio rural no Nordeste brasileiro.

O universo de pesquisa se refere, portanto, à Associação de Mulheres “Resgatando sua História”, localizada na zona rural do povoado de Lagoa da Volta, no município de Porto da Folha, no Alto Sertão do estado de Sergipe. Essa organização social, criada em 2003, é composta por 21 mulheres rurais que exercem diversas atividades agrícolas e não agrícolas. Hoje, tornaram-se referência agroecológica no semiárido sergipano.

A pesquisa se funda em abordagem qualitativa de análise dos dados. A opção por realização do estudo de caso se justifica pela possibilidade de penetrar na realidade social dessas mulheres, proporcionando uma profundidade adequada para melhor identificar, descrever e avaliar os fenômenos sociais envolvidos (Gil, 2009Gil, A. C. (2009). Estudo de caso. São Paulo: Atlas.; Martins, 2008Martins, G. A. (2008). Estudo de caso: uma estratégia de pesquisa (2ª ed.). São Paulo: Atlas.).

A construção teórica da pesquisa baseou-se em instrumentos de análise acerca da dinâmica dos processos decisórios e das relações de gestão das associadas, principalmente a autogestão das mulheres rurais. Observaram-se os limites e as potencialidades descritos na teoria, tendo como fundamentos-chave as discussões sobre gestão da agricultura familiar de base camponesa, agroecologia, associativismo no meio rural, economia solidária e autogestão.

Para coletar informações sobre a gestão e a organização coletiva das mulheres rurais, em 2018 e em 2019, foram realizadas: (1) observações sistemáticas na sede da Associação; (2) anotações no diário de campo; (3) participação em reuniões ordinárias da Associação; (4) pesquisa documental na sede da entidade (com acesso às fichas cadastrais de todas as sócias, às atas, aos relatórios e demonstrativos e aos documentos utilizados nos controles administrativos); (5) entrevistas semiestruturadas com todas as 21 mulheres rurais participantes da Associação em 2019, além de outras cinco, indicadas pelas sócias, que deixaram de participar da organização; (6) aplicação de questionário semiestruturado respondido por e-mail por dois mediadores de instituições parceiras indicados pelas gestoras da Associação e (7) condução de grupo focal com temas norteadores sobre a gestão da instituição, ao qual compareceram 13 sócias (Backes et al., 2011Backes, D. S., Colomé, J. S., Erdmann, R. H., & Lunardi, V. L. (2011). Grupo focal como técnica de coleta e análise de dados em pesquisas qualitativas. O Mundo da Saúde, 35(4), 438-442.; Gil, 2009Gil, A. C. (2009). Estudo de caso. São Paulo: Atlas.; Martins, 2008Martins, G. A. (2008). Estudo de caso: uma estratégia de pesquisa (2ª ed.). São Paulo: Atlas.; Richardson,1999Richardson, R. J. (1999). Pesquisa social: métodos e técnicas (3ª ed.). São Paulo: Atlas.; Whitaker, 2002Whitaker, D. C. A. (2002). Sociologia rural: questões metodológicas emergentes. Presidente Venceslau: Letras à. Margem.).

É importante ressaltar que foram realizadas transcrições dos áudios das entrevistas individuais com todas as sócias e com as entrevistadas que não fazem mais parte da Associação, assim como das manifestações das associadas durante as reuniões do grupo focal. Por fim, com o objetivo de preservar o anonimato de todas as mulheres entrevistadas, foram utilizadas espécies de flores no lugar de seus nomes (Richardson, 1999Richardson, R. J. (1999). Pesquisa social: métodos e técnicas (3ª ed.). São Paulo: Atlas.; Whitaker, 2002Whitaker, D. C. A. (2002). Sociologia rural: questões metodológicas emergentes. Presidente Venceslau: Letras à. Margem.).

3. MULHERES RURAIS E A GESTÃO DE EMPREENDIMENTOS ECONÔMICOS SOLIDÁRIOS

Diante do modelo hegemônico de “desenvolvimento econômico”, os chamados movimentos alternativos, como aqueles fundados na defesa da agroecologia, por exemplo, propõem uma reflexão em torno da temática do desenvolvimento sustentável. Com efeito, economistas com olhar ecológico estão convencidos da insustentabilidade do modelo capitalista (Lipietz, 1991Lipietz, A. (1991). Audácia: Uma alternativa para o século 21. São Paulo: Nobel.).

Nesse contexto, as mulheres associadas desenvolvem atividades fundadas em lógica não hegemônica: “a gente não está preocupada com a quantidade, como os empresários grandes; a gente quer saber da qualidade daquele produto” (Margarida, Grupo Focal, 2019). Efetivamente, as manifestações do grupo considerado estão alicerçadas em princípios do cooperativismo dos empreendimentos solidários.

3.1 Gestão socioeconômica da Associação

Convém inicialmente aqui destacar que o Art. 3 do Estatuto Social da Associação de Mulheres “Resgatando sua História” estabelece o seguinte objetivo: “[...] formar uma convivência amiga, partilhando experiências e conhecimentos, alegrias e dificuldades, a fim de criar um senso crítico diante da realidade em que vivem, para que possam crescer numa cidadania consciente, atuante e responsável”.

Essa orientação evidencia que a finalidade dessa organização não é obter ganhos econômicos, mas está em consonância com os princípios da economia solidária e com preceitos do cooperativismo. Com efeito, os Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) não possuem finalidade lucrativa, mas refletem uma perspectiva de resolução de problemas sociais através de experiências de autogestão dos recursos disponíveis (França Filho, 2002França Filho, G. C. (2002). Terceiro setor, economia social, economia solidária e economia popular: traçando fronteiras conceituais. Bahia Análise & Dados, (1), 9-19.; Metello, 2007Metello, D. G. (2007). Os benefícios da associação em cadeias produtivas solidárias: o caso da justa trama: cadeia solidária do algodão agroecológico (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Nascimento et al., 2020Nascimento, F. S., Calle-Collado, Á., & Benito, R. M. (2020). Economía social y solidaria y agroecología en cooperativas de agricultura familiar en Brasil como forma de desarrollo de una agricultura sostenible. C.I.R.I.E.C. España, (98), 189-211. Recuperado em 20 de junho de 2021, de https://www.researchgate.net/publication/340379116
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). Além desse norte, a agroecologia compõe as bases da construção da organização em questão.

A análise do modo de gestão da Associação se apoia notadamente nos seguintes autores: Brandão (2016)Brandão, T. F. B. (2016). Mulheres empoderadas: uma experiência de gestão no Sertão Nordestino (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, Araras., Brandenburg (1999)Brandenburg, A. (1999). Agricultura familiar: ONGs e desenvolvimento sustentável. Curitiba: UFPR., Chayanov (2017)Chayanov, A. V. (2017) A teoria das Cooperativas Camponesas (R. Vargas, Trad.). Porto Alegre: UFRGS. Obra original publicada em 1919., Costa e Silva (2018)Costa e Silva, L. (2018). As racionalidades da agricultura familiar agroecológica na gestão de seus estabelecimentos: um estudo no assentamento contestado – Lapa/PR (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba., Lamarche (1993)Lamarche, H. (1993). Introdução Geral. In H. Lamarche (Ed.), A agricultura familiar: comparação internacional (Vol. 1). Campinas: Unicamp., Ploeg (2006Ploeg, J. D. V. (2006). O modo de produção camponês revisitado. In S. Schneider (Ed.), A diversidade da agricultura familiar. Porto Alegre: UFRGS., 2008Ploeg, J.D.V. (2008). Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização (R. Pereira, Trad.). Porto Alegre: UFRGS. Obra original publicada em 2008., 2015Ploeg, J. D. V. D. (2015). El campesinado y el arte de la agricultura: un manifesto chayanoviano. México, D.F: Universidad Autónoma de Zacatecas, Red Internacional de Migración y Desarollo.), Roesler (2009)Roesler, D. A. (2009). Racionalidades e práticas administrativas do agricultor familiar no contexto ambiental: um estudo em três comunidades rurais no sul da Região Metropolitana de Curitiba – Paraná (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba. e Wanderley (2009aWanderley, M. N. B. (Ed.). (2009a). Diversificação dos espaços rurais e dinâmicas territoriais no nordeste do Brasil. João Pessoa: Zarina Centro Cultural., 2010Wanderley, M. N. B. (2010). A sociologia rural na América Latina: produção de conhecimento e compromisso com a sociedade. Revista ALASRU Nueva Época, (5), 17-44. Recuperado em 20 de janeiro de 2016, de https://www.yumpu.com/es/document/view/12983661/alasru-nueva-epoca-no-5-revista-noviembre-2010
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, 2014Wanderley, M. N. B. (2014). O campesinato brasileiro: uma história de resistência. Revista de Economia e Sociologia Rural, 52(Suppl. 1), 25-44. Recuperado em 20 de março de 2020, de https://www.scielo.br/pdf/resr/v52s1/a02v52s1.pdf
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). Para tal, é importante apresentar a forma de organização da Associação de Mulheres “Resgatando sua História”.

Sua estrutura organizacional é constituída por um Conselho Fiscal, órgão consultivo formado por três conselheiras; por assembleias ordinárias e extraordinárias, com caráter deliberativo, e pela Administração da Associação, formada pelas titulares e vices da coordenação geral, da secretaria e da tesouraria. As eleições que definem os nomes das ocupantes dessas funções ocorrem a cada dois anos.

Em uma área de apenas um hectare, as mulheres estruturaram a sede da Associação em edificação para a realização de reuniões e cursos, com cozinha comunitária e local para a estocagem de geleias, doces em compota, balas e picles em conservas. Já na parte externa, encontram-se duas cisternas de alvenaria, um terreno para a criação de galinhas, um canteiro para cultivo de hortaliças, um viveiro de mudas e um minhocário para a produção de adubo orgânico. Há também três hectares de uma das associadas que, por meio de contrato de comodato, foram destinados à atividade de apicultura e à estocagem de um banco de sementes crioulas.

Sobre o perfil das atuais 21 associadas, verifica-se que nove são sócias-fundadoras da organização, das quais sete têm experiência associativa de 16 anos, pois participaram de atividades prévias em torno de sua concepção. No caso das 12 outras integrantes, três ingressaram entre 2009 e 2011, quatro em 2012 e cinco em 2018. Nesse universo, 14 sócias participam ou já ocuparam cargos de gestão na instituição, conforme o Quadro 1.

Quadro 1
Perfil das integrantes da Associação de Mulheres “Resgatando sua História”, Porto da Folha, 2019

A análise das fichas cadastrais permite encontrar um perfil heterogêneo das associadas, com a grande maioria das mulheres sertanejas sendo casadas. Suas idades variam entre 26 e 69 anos (em 2019), com um terço das sócias com mais de 60 anos. Todas são alfabetizadas: duas possuem diploma de ensino superior, duas cursavam faculdade no momento da pesquisa de campo e sete concluíram o Ensino Médio. No que se refere à ocupação profissional, a maioria das mulheres se reconhecem como agricultoras.

É relevante observar que o tamanho médio de 15 estabelecimentos agropecuários das associadas é de aproximadamente 11,27 hectares, com sete unidades produtivas dispondo de menos que cinco hectares e três apresentando área maior que 25 hectares. Os dados obtidos também revelam que duas sócias têm posse da terra, enquanto o título de 13 propriedades rurais pertence ao casal. Quanto às demais integrantes, duas associadas trabalham nas terras da mãe (que também é sócia), uma agricultora cultiva terras pertencentes ao irmão e, enfim, três mulheres só trabalham nas terras da Associação (duas sendo funcionárias públicas).

Portanto, as famílias rurais das associadas detêm a posse e cultivam pequenas parcelas de terra, enquadradas como minifúndios. Assim, trata-se de agricultoras familiares tradicionais, que se organizaram socialmente com escolha por produzir de forma agroecológica no sertão de Sergipe.

As famílias agricultoras que optam por práticas ecológicas tendem a se engajar em organizações coletivas para melhor desenvolver seus propósitos, como é o caso da Associação de Mulheres “Resgatando sua História”. Segundo Carmo (2008)Carmo, M. S. (2008). Agroecologia: novos caminhos para a agricultura familiar. Revista Tecnologia & Inovação Agropecuária, 1(1), 28-41. Recuperado em 20 de janeiro de 2021, de http://docplayer.com.br/14044710-Agroecologia-novos-caminhos-para.html
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, as agriculturas de base ecológica ou as agriculturas alternativas (agricultura natural, orgânica, biológica, biodinâmica, entre outras) incorporam práticas ecológicas à produção, com maior ou menor grau de integração de dimensões culturais e filosóficas. Nesse sentido, Brandenburg (2010Brandenburg, A. (2010). A colonização do mundo rural e a emergência de novos atores. Ruris, 4(1), 167-194., p. 186) observa que o movimento ecológico no espaço rural brasileiro dissemina práticas nas quais a “[...] natureza e tradição se complementam de forma ajustada, visando à manutenção da sobrevivência conforme as comunidades tradicionais”.

Em grande medida, o sistema produtivo agroecológico inscreve-se no quadro da economia solidária. De fato, a agroecologia tem como princípio articular em seu processo produtivo e gerencial particularidades ecológicas, sociais, culturais do território em torno dos estabelecimentos rurais. Dessa forma, tende a gerar melhores níveis de condições de vida para as famílias rurais a partir dos limites e das potencialidades existentes em seu lócus de produção.

Brandão et al. (2016)Brandão, T. F. B., Borges, J. R. P., & Barbosa, L. C. B. G. (2016). O protagonismo feminino: um caso de convivência sustentável com o Semiárido nordestino no Brasil. Sustentabilidade em Debate., 7, 169-181. estudam o protagonismo de mulheres na gestão do sistema produtivo agroecológico, considerando a conservação dos recursos naturais e da biodiversidade da caatinga. Nessa ótica, o empoderamento feminino se associa a um maior equilíbrio de seus agroecossistemas, bem como à convivência sustentável com o semiárido.

Nesse cenário da caatinga, não se pode deixar de vislumbrar o manejo da água, pois se trata de escasso recurso ambiental na região em estudo. A gestão do uso da água na Associação tem como parâmetros o valor da conta devida à companhia de abastecimento e o manejo da água destinada à produção agrícola e à criação de galinhas. Com efeito, observa-se que as cisternas vêm se mostrando uma tecnologia social eficaz para a produção e para a convivência das mulheres com o semiárido.

Ressalta-se, ainda, a importância de uma gestão produtiva com responsabilidade social, econômica e ambiental, permitindo, assim, uma reprodução sociocultural sustentável a longo prazo. Nesse contexto, o diálogo entre Economia Social e Solidária (ESS) e Agroecologia possibilita um espaço de constante aprendizado, no qual “[...] la viabilidad y sostenibilidad también se potencian por medio de la organización de los agricultores y de los consumidores en grupos, asociaciones o cooperativas” (Nascimento et al., 2020Nascimento, F. S., Calle-Collado, Á., & Benito, R. M. (2020). Economía social y solidaria y agroecología en cooperativas de agricultura familiar en Brasil como forma de desarrollo de una agricultura sostenible. C.I.R.I.E.C. España, (98), 189-211. Recuperado em 20 de junho de 2021, de https://www.researchgate.net/publication/340379116
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, p. 199).

No caso da organização estudada, sua produção varia de acordo com os períodos de chuva, aumentando no período de inverno no Nordeste brasileiro, bem como depende da disponibilidade de mão de obra. Vale destacar que a produção agrícola da Associação não tem objetivo comercial: sua prioridade é o autoconsumo das famílias das agricultoras, com o excedente comercializado na sede da Associação ou de “porta a porta” no povoado local, o que contribui para a geração de renda monetária pelas mulheres. Ressalta-se que a opção dessas últimas por um sistema produtivo agroecológico lhes permite o acesso ao mercado de orgânicos.

Por outro lado, destaca-se que é tímida a participação das mulheres na comercialização, visto que, “[...] em geral, a comercialização (negociação de compra e venda de produtos) tem sido responsabilidade dos homens, assim como decidir sobre o destino da renda da família [...]” (Said & Moreira, 2015Said, M. A., & Moreira, S. L. S. (2015). Mulheres e agroecologia: multiplicadoras agroecológicas transformando o semiárido. In K. Hora, G. Macedo & M. Rezende (Eds.), Coletânea sobre estudos rurais e gênero: Prêmio Margarida Alves (4ª ed., pp. 171-190), Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário., p. 172).

Diversas pesquisas, como as realizadas por Butto & Dantas (2011)Butto, A., & Dantas, I. (2011). Autonomia e cidadania: políticas de organização produtiva para as mulheres no meio rural. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário., Butto et al. (2014)Butto, A., Dantas, C., Hora, K., Nobre, M., & Faria, N. (2014). Mulheres Rurais e Autonomia: formação e articulação para efetivar políticas públicas nos Territórios da Cidadania. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário. e Siliprandi (2013)Siliprandi, E. (2013). Mulheres agricultoras: sujeitos políticos na luta por soberania e segurança alimentar. Recuperado em 8 de junho de 2020, de http://www.rimisp.org/wp-content/uploads/2013/05/Paper_Emma_Siliprandi-12.pdf
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, realçam a importância e a reivindicação de uma maior inclusão das mulheres rurais nas políticas públicas. Sobre o tema, Emma Siliprandi e Rosangela Cintrão argumentam que a participação das mulheres na comercialização da produção impacta positivamente na sua renda, na sua sociabilidade, na sua autoestima e no seu papel social, inclusive na família. Por outro lado, “[...] essas mudanças não são necessariamente bem assimiladas no núcleo familiar, em função da perda do monopólio dos homens no gerenciamento da renda obtida, de alterações na divisão sexual do trabalho e de uma maior presença nas mulheres na vida pública” (Siliprandi & Cintrão, 2011Siliprandi, E., & Cintrão, R. (2011) As mulheres agricultoras e sua participação no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). In A. Butto, & I. Dantas (Eds.), Autonomia e cidadania: políticas de organização produtiva para as mulheres no meio rural. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário., p. 156).

Segundo Barbosa (2013)Barbosa, L. C. B. G. (2013). A pluriatividade na agroecologia como uma alternativa de desenvolvimento para o ambiente rural (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba., as agricultoras e os agricultores organizam suas lógicas reprodutivas socioeconômicas alicerçadas na obtenção de renda monetária (decorre do recebimento de valores monetários oriundos da comercialização de produtos ou de serviços agrícolas e não agrícolas) e de renda não monetária (decorre do consumo de produtos e/ou serviço agrícolas e não agrícolas desenvolvidos pela família). No entanto, a priorização do autoconsumo não significa que a família em questão não interaja com o mercado. Com grau importante de autonomia alimentar, seu acesso ao mercado pode se ajustar a diferentes lógicas adotadas pela família. No caso estudado, o autoconsumo é abordado pelas mulheres como uma estratégia de não dependência do mercado e de segurança alimentar para as famílias das associadas, também contribuindo para a obtenção de recursos não monetários pelas agricultoras.

Efetivamente, a comercialização da produção é favorecida pela organização das agricultoras e dos agricultores em associações ou cooperativas. Podem, assim, concentrar esforços na gestão familiar da produção e reduzir os custos operacionais ligados à comercialização. Segundo Santos et al. (2009)Santos, G. J., Marion, J. C., & Segatti, S. (2009). Administração de custos na agropecuária (4ª ed.). São Paulo: Atlas., essas organizações coletivas favorecem o acesso aos mercados, possibilitam agregar valor aos produtos e ampliar o nível tecnológico, melhorando a lucratividade das produções agrícolas.

Também foi constatado que uma das dificuldades enfrentadas pelas sócias é a falta de mão de obra, sendo essa questão exposta por ex-integrantes da instituição. Citado por 10 associadas e detalhado por outras três, esse problema é decorrente do envelhecimento da força de trabalho das mulheres, da perda de sócias por falecimento e de pouco engajamento, principalmente de agricultoras mais jovens.

Tal dificuldade interfere diretamente no desempenho das atividades da Associação. Todavia, as sócias avaliam que não há descontinuidade das atividades: “Diminui o ritmo, mas parar, não” (Grupo Focal, 2019).

Convém aqui salientar o fenômeno generalizado de envelhecimento da população rural. Com efeito, 46,48% dos estabelecimentos agropecuários brasileiros pertencem a pessoas acima de 55 anos, segundo o Censo Agropecuário de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2017)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2017). Censo agropecuário de 2017. Recuperado em 2 de outubro de 2020, de https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/templates/censo_agro/resultadosagro/produtores.html
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Trata-se de uma problemática contemporânea do espaço rural, conforme estudos sobre a masculinização e o envelhecimento da população rural realizados por Bourdieu (2006)Bourdieu, P. (2006). O camponês e seu corpo. Revista de Sociologia e Política, 26, 83-92., Froehlich et al. (2014)Froehlich, J. M., Rauber, C. da C., & Carpes, R. H. (2014). Êxodo seletivo, masculinização e envelhecimento da população rural na Região Central do RS. Ciência Rural, 41(9), 1674-1680., Melo & Kreter (2016)Melo, H. P., & Kreter, A. C. (2016). Quem são? Como vivem os idosos brasileiros do século XXI? Uma análise a partir da perspectiva de gênero. Revista da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 1(1), 1-18. e Simonato & Bergamasco (2018)Simonato, D. C., & Bergamasco, S. M. P. P. (2018). O que eles e elas produzem? A correlação entre envelhecimento e produção de alimentos: estudo de caso do assentamento gleba XV de novembro - SP. In Anais do II Congresso Nacional de Envelhecimento Humano, Campina Grande, PB. Recuperado em 18 de agosto de 2020, de https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/50390
https://editorarealize.com.br/artigo/vis...
. Portanto, tais fenômenos devem ser considerados em análises sobre a participação das mulheres nos espaços coletivos, tal como sugerido por Ferrante & Duval (2009)Ferrante, V. L. S. B., & Duval, H. C. (2009). Vozes e ações das mulheres na trajetória dos assentamentos rurais. Retratos de Assentamentos, 12(12), 391-418., Paulilo (2003Paulilo, M. I. S. (2003). Movimento de Mulheres Agricultoras: terra e matrimônio. In M. Paulilo & W. Schmidt (Eds.), Agricultura e espaço rural em Santa Catarina. Florianópolis: UFSC., 2016Paulilo, M. I. S. (2016). Mulheres rurais: quatro décadas de diálogo. Florianópolis: UFSC.) e Siliprandi (2013)Siliprandi, E. (2013). Mulheres agricultoras: sujeitos políticos na luta por soberania e segurança alimentar. Recuperado em 8 de junho de 2020, de http://www.rimisp.org/wp-content/uploads/2013/05/Paper_Emma_Siliprandi-12.pdf
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De toda forma, muitas famílias do sertão de Sergipe buscam alternativas de renda monetária. No caso focalizado, trata-se de construção de uma racionalidade arraigada em projeto de empreendimento econômico solidário, autogerido pelas associadas, visando ao fortalecimento e à autonomia das mulheres rurais.

Quanto ao manejo das atividades produtivas na Associação, as mulheres se organizam em grupos de trabalho de acordo com seus interesses, aptidões e experiências, bem como mantêm trabalhos em mutirão, desempenhado, principalmente, nos canteiros de hortaliças. Em paralelo às atividades agrícolas, além de outras para-agrícolas ligadas à comercialização da produção e à gestão da Associação, as sócias participam de cursos e de intercâmbios, bem como fornecem serviços de turismo pedagógico. Nesse contexto, observa-se que as atividades para-agrícolas são “caracterizadas pela ampliação das ocupações na unidade produtiva que permanecem diretamente vinculadas à atividade agrícola”, segundo Nobre de Lacerda & Moruzzi Marques (2008Nobre de Lacerda, T. F., & Moruzzi Marques, P. E. (2008). A agricultura, representação territorial e reprodução social da agricultura familiar. RURIS, 2(2), 137-158. Recuperado em 6 de outubro de 2021, de https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ruris/article/view/675.
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, p. 156-157).

Sobre a gestão do trabalho, há um controle das horas trabalhadas mensalmente pelas sócias, de acordo com uma divisão em grupos das participantes. Esse controle serve para distribuir os rendimentos proporcionalmente às horas laboradas por cada integrante.

Para o acesso aos alimentos produzidos comunitariamente na Associação, todas as sócias que exercem atividades produtivas no âmbito dos grupos de trabalho podem levar uma cesta alimentar para suas famílias, não havendo controle sobre a quantidade requerida e sem qualquer tipo de cobrança. Portanto, em primeiro plano dos objetivos se encontram as necessidades de consumo das famílias, correspondendo como já indicado a um modo de vida camponês compatível com lógicas de solidariedade.

Essas lógicas orientam a autogestão das mulheres rurais sobre os recursos patrimoniais da Associação. No grupo focal (2019), as sócias relataram, por exemplo, que para utilizar a cozinha basta verificar a disponibilidade do espaço e comunicar às demais. No caso de empréstimo de bens, a decisão é tomada em assembleia, com importante controle sobre o estado de conservação nos momentos do empréstimo e da devolução.

O objetivo desse controle não é restringir o acesso e a utilização de bens pelas sócias, nem pela comunidade, mas se trata de zelo com o patrimônio do empreendimento.

Com tais medidas, a comunidade local acaba por usufruir da estrutura da sede da Associação, principalmente para o desenvolvimento de atividades da Igreja Católica e de grupos de jovens, como no caso de um projeto musical apoiado pela entidade destinado exclusivamente à juventude. A visão sobre esse papel associativo se reflete no seguinte depoimento: “[...] essa sede também é nossa e da comunidade [...]. Na reunião a gente passa: ‘Tal dia vem um grupo de tantas pessoas’. Aí eles organizam e depois entregam a chave direitinho” (Rosa, Grupo Focal, 2019). Essa postura de cooperação e de solidariedade permeia não só os objetivos dessa organização coletiva, mas também o dia a dia de suas associadas.

Apesar de a educação infantojuvenil não ser uma finalidade da Associação, são importantes as ações pela educação. De fato, como salienta Paulilo (2016)Paulilo, M. I. S. (2016). Mulheres rurais: quatro décadas de diálogo. Florianópolis: UFSC., educação e saúde são objetos maiores de mobilização e reivindicação das mulheres.

Dessa forma, a gestão dos bens patrimoniais da organização associativa se orienta, principalmente, pela finalidade de promover o bem-estar das associadas e da comunidade local. Essa perspectiva de economia solidária, como sugere Nobre (2003Nobre, M. (2003). Mulheres na economia solidária. In A. Cattani (Ed.), A outra economia. Porto Alegre: Veraz e Unitrabalho. Recuperado em 3 de setembro de 2018, de http://www.sof.org.br/wp-content/uploads/2015/07/MULHERES-NA-ECONOMIA-SOLIDARIA-Miriam-Nobre.pdf
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, p. 3), “[...] é muito próxima do trabalho comunitário, território das mulheres [...]”.

Efetivamente, a lógica da economia solidária prevalece na organização social das mulheres e torna o grupo um meio de diálogo, de solidariedade e de cooperativismo para o enfrentamento coletivo da opressão e das desigualdades. Nesse sentido, ações educativas das associadas constituem meios para o alcance de seus objetivos, de tal modo que possa ocorrer a apropriação de processos (Bourdieu & Sayad, 2006Bourdieu, P., & Sayad, A. (2006). A dominação colonial e o sabir cultural. Revista de Sociologia e Política, 26, 41-60.).

Os empreendimentos cooperativos, como é o caso da associação estudada, podem ser analisados como forma de gerar capital social, pois inserem os atores e as atrizes implicados em redes de contatos e de relações sociais que favorecem a construção de laços de confiança, de suporte, de reconhecimento, de informação e de influência. Assim, esses recursos podem ser transformados em outras formas de capitais, simbólicos, culturais ou econômicos (Baptista, 2014Baptista, V. F. (2014). A solidariedade na economia e a Economia Solidária das cooperativas. Otra Economía, 8(15), 128-140.; Silva & Oliveira, 2009Silva, M. K., & Oliveira, G. L. (2009). Solidariedade assimétrica: capital social, hierarquia e êxito em um empreendimento de “economia solidária”. Revista Katálysis, 12(1), 59-67.).

A partir dessa ótica, o engajamento associativo das mulheres reflete em construção de capital social. Então, a organização coletiva dessas mulheres rurais pode favorecer “[...] relações horizontais de cooperação, reciprocidade e ação coletiva, no caso, construídas com base em estratégias autônomas dos pequenos agricultores, que podem ser facilitadas pela existência do chamado ‘capital social’” (Maluf, 2002Maluf, R. S. (2002). Produto agroalimentares, agricultura multifuncionalidade e desenvolvimento territorial no Brasil. In R. Luiz & F. Costa (Eds.), Mundo rural e cultura. Rio de Janeiro: Mauad., p. 247).

Com efeito, é notória a importância da organização coletiva para o empoderamento dessas mulheres. Trata-se de um meio de gestão democrática para alcance de suas convicções e necessidades, especialmente no que tange às demandas femininas por maior ocupação de espaços de decisão nas esferas pública, social, produtiva e familiar.

3.2. Processos de tomada de decisão e de (auto)gestão adotados

Uma importante característica da forma de gestão desse grupo de mulheres refere- -se ao processo de tomada de decisão, pois é unânime entre as associadas, entre as entrevistadas que fizeram parte da Associação e entre os interlocutores de instituições parceiras a visão segundo a qual as deliberações referentes ao coletivo ocorrem de maneira participativa. A propósito, o mediador da Empresa de Desenvolvimento Agropecuário de Sergipe estima que “desde a formação do primeiro grupo, todas as decisões foram tomadas pelo grupo, apenas acompanhada pela assistência técnica [...]”.

Esse processo coletivo de tomada de decisão incita todas as sócias a se informarem sobre as questões internas e externas que interferem direta ou indiretamente na Associação. A associada Margarida, por exemplo, afirma que a tomada de decisão na organização ocorre “na reunião do mês; ou, se for algo urgente, a gente faz uma reunião extraordinária [...]” (Margarida, Grupo Focal, 2019). A ex-sócia Canafístula também aborda o assunto e ressalta que as informações sobre os projetos são repassadas para as associadas durante as reuniões.

Os processos decisórios têm início com a apresentação dos pontos de pauta pelas coordenadoras nas assembleias ordinárias mensais (na primeira quarta-feira de cada mês), seguem com o debate entre as mulheres acerca das temáticas expostas e, após esclarecimentos e discussões, culminam com a deliberação de forma participativa, com votação pelas associadas.

Durante as reuniões, também ocorrem prestação de contas, discussões sobre as atividades que serão desenvolvidas e composição de grupos de trabalho para encaminhamentos das deliberações. Posteriormente, as informações mais pertinentes da reunião são lavradas em ata, que será lida no início da próxima assembleia.

Esse ambiente democrático é propício para a consolidação da autogestão, tal como concebido para empreendimentos de economia solidária: “[...] é preciso que todos os sócios se informem do que ocorre na empresa e das alternativas disponíveis para a resolução de cada problema [...]” (Singer, 2002Singer, P. (2002). Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo., p.19).

Convém destacar que as entrevistadas consideram que essa construção democrática de gestão ocorreu por meio da interação das mulheres com algumas instituições parceiras. Os conhecimentos adquiridos por meio de cursos também contribuíram nesse sentido. Observou-se, ainda, que não ocorreram mudanças relevantes na organização dos processos de tomada de decisão desde os primeiros passos propostos pelas fundadoras.

Sobre a adaptação das mulheres a esse formato de autogestão, Araçá, que ingressou na instituição em 2018, expõe que: “Eu acho um pouco difícil. Às vezes a gente tem alguma coisa para decidir [...] a gente faz por votação. Se tivesse uma pessoa para falar o que a gente tem que fazer todo dia, seria mais interessante, menos trabalho e não precisava se reunir tanto. Seria mais produtivo”. Já a sócia-fundadora Rosa avalia como positiva a opção pelo modelo de autogestão da associação, exigindo muitos encontros (Grupo Focal, 2019).

Desse modo, constata-se uma necessidade de adaptação das associadas a esse formato de trabalho em grupo, que, sem dúvidas, exige mais tempo e maior dedicação das envolvidas. Todavia, as associadas não renunciam ao protagonismo em todas as etapas do processo decisório em torno das atividades da organização. Com efeito, o poder de decisão acaba por contribuir para uma maior autonomia das associadas.

Cabe salientar que essa configuração é construída de tal maneira que permite considerar seus fundamentos como aqueles de uma racionalidade ambiental. Trata-se de lutar por direitos graças ao fortalecimento de capacidades das comunidades à autogestão, com vistas a direcionar “[...] seus recursos ambientais para satisfazer suas necessidades e orientar suas aspirações a partir de diferentes valores culturais, contextos ecológicos e condições econômicas [...]”. Nessa perspectiva, o objetivo consiste em “[...] autodeterminação tecnológica dos povos, com a produção de tecnologias ecologicamente adequadas e culturalmente apropriáveis [...]” (Leff, 2006Leff, E. (2006). Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 256-257).

Assim, a determinação das mulheres na condução das atividades produtivas e de gestão da Associação vem contribuindo com seus objetivos, permitindo a preservação do modo de vida das associadas com melhores condições. Ressalta-se que essa forma coletiva e democrática de tomada de decisão contribui para que ocorra um alto grau de confiança entre as associadas, devido à transparência das informações e à gestão participativa.

A respeito disso, Rosa relata a forma como ocorre o processo de prestação de contas desde a fundação da organização associativa: “[...] Por exemplo, a prestação de contas de um dos projetos [...] trazia tudo ao grupo, mostrava como era, tudo direitinho, contava como foi a prestação de contas, [...] e nisso ficou até hoje”. Ainda mais, “quando nós começamos, tivemos capacitação em relação à contabilidade [...] eram feitas reuniões aqui na Associação com a presença do Conselho Fiscal, e todas participavam porque era uma oportunidade de aprender mais sobre a gestão” (Depoimentos no Grupo Focal, 2019).

Sobre a prestação de contas, existem divergências a partir de uma insatisfação em relação aos limites acerca da participação no processo. De fato, os procedimentos nesse âmbito são justificados da seguinte maneira: “Hoje já estamos muito ocupadas [...]. Tem a prestação de contas, sim, mas não com todas as integrantes [...]. Mas a prestação de contas daqui eu acho que tá legal, porque a gente manda para o contador todos os meses. Isso aí nós estamos seguindo ainda o ritmo” (Rosa, Grupo Focal, 2019).

Todavia, apesar da constatação de insatisfação de algumas associadas em relação ao formato da prestação de contas, essas divergências não abalam o sentimento de confiança entre as associadas. A demora na resolução de desacordos torna desgastante os processos de gestão democráticos. A importância da difusão das informações sobre o que acontece na instituição, permitindo transparência e colaboração para a resolução de cada problema, é evidente, reforçando a consolidação da autogestão de empreendimentos solidários (Singer, 2002Singer, P. (2002). Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.).

Por outro lado, há um reconhecimento de que a coordenadora e a vice-coordenadora, Margarida e Rosa, respectivamente, representam adequadamente as mulheres e a organização. De fato, ambas são sócias-fundadoras com muita experiência nas tarefas de coordenação da Associação. Trata-se de uma liderança “[...] que se constrói, pelo exemplo, pela admiração [...]” (Cortella & Mussak, 2009Cortella, M. S., & Mussak, E. (2009). Liderança em foco. Campinas: Papirus 7 Mares., p. 8).

Mas a falta de alternância na coordenação é percebida de forma negativa por Crisântemos, que fez parte da Associação de 2014 a 2016. Essa entrevistada julga que, apesar de as associadas discutirem e opinarem sobre as atividades da organização, a longa permanência de uma mesma coordenação acaba por direcionar as decisões. Por outro lado, as demais associadas não manifestam disposição para ocupar a coordenação, o que revela poucos estímulos para renovação nesse âmbito.

Esse direcionamento das decisões não foi observado durante a participação nas assembleias, no convívio com as associadas ou mesmo nas entrevistas com outros informantes. Ao contrário, notou-se que os grupos de trabalho exercem grande influência sobre o funcionamento das atividades. De toda maneira, é nítido o empenho das sócias para que haja a continuidade do empreendimento, bem como a vontade de que os jovens integrem a Associação.

Efetivamente, os preceitos da economia solidária e da agroecologia se fundam na democratização da gestão, com processos de tomada de decisão participativa e com participação de jovens e de mulheres. Trata-se, assim, de um meio para o enfrentamento do machismo, rompendo com a hierarquia patriarcal. Convém aqui destacar que, historicamente, principalmente as mulheres jovens “[...] se deparam com sérios bloqueios culturais para participarem dos processos decisórios sobre a gestão econômica das propriedades e se beneficiarem dos frutos do trabalho familiar em condições de igualdade com os homens adultos” (Almeida et al., 2008Almeida, S. G., Petersen, P., Freire, A. G., & Silveira, L. (2008). Caminhos da inclusão social no Agreste da Paraíba. Revista Agriculturas: Experiências em Agroecologia, 5(4), 18-22., p. 19).

Para Singer (2002)Singer, P. (2002). Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo., o aporte da democracia política para as conquistas feministas se refere notadamente à supressão da opressão do pai sobre a mulher e os filhos. Dessa forma, as lutas emancipatórias femininas favorecem a introdução de práticas democráticas nas instituições.

3.3 Apropriação dos instrumentos de controle utilizados na gestão da Associação

Boa parte da literatura hegemônica sobre gestão afirma que a agricultura familiar geralmente não utiliza controles formais como planilhas ou anotações: “As formas de cálculo e controle são realizadas mentalmente. [...] A não utilização de formas de controle mais organizadas é justificada, pelo agricultor familiar, em virtude da complexidade da sua UPF e por não existirem formas de controle adaptadas a esta realidade” (Roesler, 2009Roesler, D. A. (2009). Racionalidades e práticas administrativas do agricultor familiar no contexto ambiental: um estudo em três comunidades rurais no sul da Região Metropolitana de Curitiba – Paraná (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba., p. 226).

Entretanto, o emprego desses instrumentos na gestão dos estabelecimentos e organizações rurais pode ser muito útil, mesmo que a contabilidade rural seja “[...] quase sempre conhecida por suas finalidades fiscais, não possuindo grande interesse por uma aplicação gerencial” (Crepaldi, 2012Crepaldi, S. A. (2012). Contabilidade rural: uma abordagem decisorial (7ª ed.). São Paulo: Atlas., p. 52). Dessa forma, acaba sendo pouco utilizada como ferramenta administrativa, o que poderia favorecer a tomada de decisão em torno das atividades realizadas.

De outra parte, estudiosos da sociologia rural apontam que os cálculos econômicos não são estranhos à população camponesa, pois

[...] são suficientemente versados na prática do cálculo econômico para medir espontaneamente a quantidade do trabalho fornecido (segundo a sua qualidade) em relação à remuneração recebida [...] como se pode exigir dele, sem uma longa educação prévia, que compreenda e manipule noções tão complexas e tão profundamente estranhas à sua tradição cultural como as de cooperação e de lucro coletivo, que saiba distinguir entre custos operacionais, investimentos na agricultura coletiva e os investimentos de interesse comum, ou mesmo, mais simplesmente, entre a renda obtida pela venda das colheitas e o lucro líquido? (Bourdieu & Sayad, 2006Bourdieu, P., & Sayad, A. (2006). A dominação colonial e o sabir cultural. Revista de Sociologia e Política, 26, 41-60., p. 56).

Destarte, agricultoras e agricultores familiares não só compreendem, mas se apropriam dos controles de gestão a ponto de readequá-los para atender aos seus objetivos e para utilizar em suas atividades diárias (Brandão, 2016Brandão, T. F. B. (2016). Mulheres empoderadas: uma experiência de gestão no Sertão Nordestino (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de São Carlos, Araras.; Costa e Silva, 2018Costa e Silva, L. (2018). As racionalidades da agricultura familiar agroecológica na gestão de seus estabelecimentos: um estudo no assentamento contestado – Lapa/PR (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba.; Lima, 1991Lima, A. J. P. (1991). Situações administrativas e a complexidade dos processos de decisão-ação. In Anais do Encontro Anual da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Administração, Belo Horizonte, MG.; Roesler, 2009Roesler, D. A. (2009). Racionalidades e práticas administrativas do agricultor familiar no contexto ambiental: um estudo em três comunidades rurais no sul da Região Metropolitana de Curitiba – Paraná (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba.; Wanderley, 2010Wanderley, M. N. B. (2010). A sociologia rural na América Latina: produção de conhecimento e compromisso com a sociedade. Revista ALASRU Nueva Época, (5), 17-44. Recuperado em 20 de janeiro de 2016, de https://www.yumpu.com/es/document/view/12983661/alasru-nueva-epoca-no-5-revista-noviembre-2010
https://www.yumpu.com/es/document/view/1...
).

Com essas referências, focalizou-se as formas de gestão adotadas na Associação de Mulheres “Resgatando sua História” a partir da percepção das associadas sobre a utilização das ferramentas de controle administrativo.

Entre elas, os instrumentos mais utilizados na Associação são: (i) o caderno de horas trabalhadas, para o registro da contribuição laboral de cada associada em cada um dos grupos de trabalho e (ii) o controle dos estoques dos produtos prontos para a comercialização e do banco de sementes crioulas. Também é empregado como instrumentos de gestão o fluxo de caixa, as planilhas de orçamento e de custos, o controle dos estoques dos insumos produtivos, bem como dos produtos em elaboração. Outras formas de controle informadas foram o registro das datas de plantio, o caderno de plantações e as atas das reuniões.

Assim, as mulheres realizam diversos tipos de controles formais com adaptações de técnicas hegemônicas empregadas para controlar fluxo de insumos produtivos (como anotações referentes à mão de obra, estoques de materiais utilizados na produção até a comercialização dos produtos) para os seus objetivos. Trata-se de conhecer a quantidade de itens disponíveis para a comercialização, além de manter controle sobre o tempo de armazenagem e sobre os tipos das diversas sementes crioulas estocadas.

Da mesma forma, as mulheres utilizam caderno de plantio para o registro das datas de semeadura de cada um dos itens plantados. Dessa maneira, podem prever o dia e a quantidade da colheita de cada espécie.

A previsão orçamentária e o relatório de sua aplicação são reconhecidos como peças essenciais de gestão na Associação. É importante salientar que essa essencialidade se refere ao levantamento, ao planejamento e ao acompanhamento dos gastos previstos, não tendo por objetivo a otimização dos lucros. Do mesmo modo, o fluxo de caixa é empregado na gestão financeira da Associação, considerando que “o Regime Caixa (ou Regime Financeiro) é comum nas empresas sem fins lucrativos (associações religiosas, filantrópicas etc.) e nas pequenas e microempresas [...]. Todavia, todas as empresas, independentemente do tamanho, fazem seu fluxo de caixa como instrumento gerencial e de controle” (Marion, 2003Marion, J. C. (2003). Contabilidade empresarial (10ª ed.). São Paulo: Atlas., p. 96).

Assim, o fluxo de caixa é mais uma ferramenta utilizada periodicamente pelas associadas para a prestação de contas realizada nas assembleias ordinárias. Constitui, então, um instrumento de transparência das informações financeiras da organização, visto que esses dados são registrados nas atas das reuniões. Ademais, toda a movimentação financeira e seus respectivos recibos e comprovantes são registrados com as devidas anotações diárias de receitas e despesas de caixa.

Os dados obtidos apontam que a forma mais usual de realização de controles, adotada pela maioria das associadas, é o registro manual por meio de anotações em cadernos ou agendas. Porém, oito interlocutoras se valem apenas da memória para esses controles. De toda maneira, não é um maior tempo de vínculo com a Associação que contribui para a explicação sobre a utilização das ferramentas de gestão.

A realização de registro e de controles pelas associadas parece confirmar os resultados da pesquisa de Costa e Silva (2018Costa e Silva, L. (2018). As racionalidades da agricultura familiar agroecológica na gestão de seus estabelecimentos: um estudo no assentamento contestado – Lapa/PR (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba., p. 2), que verificou que: “[...] as atividades relacionadas aos controles de gastos, vendas e das atividades produtivas e ao trabalho doméstico são empreendidas, predominantemente, por mulheres [...]”. Tal constatação leva à interpretação de que as mulheres rurais desempenham papel de controle e de gestão dos recursos nas famílias, o que favorece a realização desses procedimentos no nível da Associação.

Os dados da pesquisa revelam que 16 associadas se apropriaram das ferramentas de controle e gestão utilizadas na Associação: 13 interlocutoras as utilizam regularmente, seja em atividades da organização, seja naquelas de suas produções ou de seus outros afazeres. Portanto, as associadas integram a utilização em seu cotidiano de diversas ferramentas de gestão administrativa, com apropriação e adaptação de instrumentos de controle para diferentes atividades, o que favorece, em princípio, a produção de informações de qualidade, úteis para a tomada de decisão no âmbito da Associação. Assim, observa-se que uma “[...] qualificação técnica em gestão integrada da agricultura familiar, partindo de uma orientação multidisciplinar, é positiva, devendo ser aprofundada a sua compreensão” (Lourenzani & Souza Filho, 2005Lourenzani, W. L., & Souza Filho, H. M. (2005). Gestão integrada para a agricultura familiar. In H. Souza Filho & M. Batalha (Eds.), Gestão integrada da agricultura familiar. São Carlos: UFSCar., p. 69), o que pode complementar outros conhecimentos:

[...] O saber tradicional dos camponeses, passado de geração a geração, não é mais suficiente para orientar o comportamento econômico. O exercício da atividade agrícola exige cada vez mais o domínio de conhecimentos técnicos necessários ao trabalho com plantas, animais e máquinas e o controle de uma gestão por meio de uma nova contabilidade. [...] A modernização o transforma num agricultor, profissão, sem dúvida, multidimensional [...] (Wanderley, 2003Wanderley, M. N. B. (2003). Agricultura familiar e campesinato: rupturas e continuidade. Estudos Sociedade e Agricultura, 11(2), 42-61., p. 46).

Ocorre então, a incorporação de elementos da racionalidade empresarial na gestão das camponesas, o que pode significar uma forma de composição de racionalidade ambiental, caso se afaste das lógicas instrumentais dominantes. Nesse caso, trata-se de forma submetida a valores fundados em ética solidária, sustentabilidade, autonomia e emancipação (Costa e Silva, 2018Costa e Silva, L. (2018). As racionalidades da agricultura familiar agroecológica na gestão de seus estabelecimentos: um estudo no assentamento contestado – Lapa/PR (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba.; Leff, 2006Leff, E. (2006). Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

Apesar da satisfação com os instrumentos utilizados para o controle das atividades da Associação, as associadas relatam que gostariam de ter maior disponibilidade de tempo e de colaboradores para a sistematização dos dados, principalmente das atividades produtivas em planilhas organizadas digitalmente. Em todo caso, é possível avaliar como positivo o interesse pela melhoria e ampliação da utilização desses instrumentos, pois demostra a apropriação de dispositivos dessa natureza por parte das mulheres, o que geralmente não ocorre no âmbito da agricultura familiar (Costa e Silva, 2018Costa e Silva, L. (2018). As racionalidades da agricultura familiar agroecológica na gestão de seus estabelecimentos: um estudo no assentamento contestado – Lapa/PR (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba.; Crepaldi, 2012Crepaldi, S. A. (2012). Contabilidade rural: uma abordagem decisorial (7ª ed.). São Paulo: Atlas.; Marion, 2006Marion, J. C. (2006). Análise das demonstrações contábeis: contabilidade empresarial (3ª ed.). São Paulo: Atlas.; Roesler, 2009Roesler, D. A. (2009). Racionalidades e práticas administrativas do agricultor familiar no contexto ambiental: um estudo em três comunidades rurais no sul da Região Metropolitana de Curitiba – Paraná (Tese de doutorado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba.), principalmente no semiárido do Nordeste brasileiro.

A postura das mulheres consideradas neste estudo colabora para a gestão da Associação, visto que a implementação da digitalização dos procedimentos de controle pode agilizar ou até melhorar a interpretação das informações, tornando, assim, os processos de tomada de decisão coletiva das associadas mais embasados em conhecimentos precisos e, consequentemente, proporcionando maior grau de confiança na organização.

Os dados obtidos com a pesquisa permitem constatar que a Associação é considerada por nossas interlocutoras como um instrumento de mudança social e um lugar de troca de saberes entre as agricultoras e os agricultores, envolvendo toda a comunidade, bem como se constitui como um espaço de integração social para as mulheres rurais. Além desses papéis, esse associativismo feminino se sustenta em preceitos da autogestão, incorporando ferramentas de controle aplicadas a diversas atividades produtivas e de gestão desempenhadas na Associação. Desse modo, esse processo colabora para o aperfeiçoamento de práticas democráticas, tendo impacto direto em melhoras das condições de vida das mulheres rurais, pois promove a inclusão socioprodutiva, favorecendo a emancipação das associadas (Chayanov, 2017Chayanov, A. V. (2017) A teoria das Cooperativas Camponesas (R. Vargas, Trad.). Porto Alegre: UFRGS. Obra original publicada em 1919.; Sabourin, 2009Sabourin, E. (2009). Camponeses do Brasil: entre a troca mercantil e a reciprocidade (L. Milani, Trad.). Rio de Janeiro: Garamond. Obra original publicada em 2007.; Schneider, 2009Schneider, S. (Ed.). (2009). A diversidade da agricultura familiar (2ª ed.). Porto Alegre: UFRGS.; Singer, 2002Singer, P. (2002). Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo visa contribuir com as reflexões sobre o modo de gestão das famílias camponesas, em especial das mulheres rurais que vivem no semiárido nordestino, por meio de um olhar interdisciplinar das Ciências Sociais com foco no caso das integrantes da Associação de Mulheres “Resgatando sua História”. Verificou-se que o processo de organização coletiva das mulheres no formato de associação segue a lógica de empreendimentos econômicos solidários, visto que a gestão associativa ocorre de forma democrática e muito participativa. A perspectiva de desenvolvimento de práticas da autogestão dos recursos endógenos da organização de acordo com uma racionalidade ambiental feminina camponesa orienta as ações.

Assim, cabe salientar que a racionalidade ambiental das mulheres rurais faz parte do modo de gerir os recursos patrimoniais das famílias e da Associação. Trata-se de gestão coletiva com atitudes de cooperação e solidariedade que permeia o objetivo de promover o bem-estar das associadas e da comunidade local, ao mesmo tempo que promove maior equidade de gênero na ocupação dos espaços de decisão.

Uma importante característica observada nessa organização é que as sócias buscam tomar todas as decisões de forma coletiva, principalmente durante as assembleias. Contudo, foi verificado que os processos de organização coletiva e de autogestão apresentam dificuldades de engajamento e de participação dos agentes envolvidos, fato esse que proporciona certos limites à concretude de um processo de decisão que, de fato, contemple a participação de todas as associadas.

Assim, pode-se afirmar que há um espaço coletivo para a tomada de decisão, um ambiente decisório sem hierarquia na condução da Associação e uma gestão compartilhada. Mesmo com as dificuldades, é possível afirmar que há um protagonismo das mulheres em todas as etapas do processo decisório e de gestão da instituição, estabelecendo-se uma relação de poder horizontal entre elas.

A pesquisa permite constatar que as mulheres utilizam diversas ferramentas de auxílio ao controle patrimonial e das atividades da Associação. Consideramos que o instrumento de gestão mais importante empregado é o registro em ata das assembleias, visto que retraça a história da organização, contendo também dados de fluxo de caixa e de distribuição de rendimentos das sócias. Dessa maneira, a prestação de contas é realizada mensalmente, de forma oral, por meio da leitura da ata nas assembleias ordinárias, o que contribui para a transparência das informações e para a manutenção da confiança entre as associadas.

Contatou-se, também, que a grande maioria das associadas se apropria dos instrumentos de controles de gestão adotados na Associação, utilizando-os em seu cotidiano com adequações a suas atividades e necessidades.

Entre os problemas observados, destaca-se a percepção de escassez de força de trabalho para as diferentes atividades da Associação, o que é compensado com a sobrecarga de tarefas das associadas para que não haja descontinuidade das ações. Nossas interlocutoras consideram que a sistematização dos dados em formato digital daria uma maior agilidade no acesso às informações necessárias para a tomada de decisão, pois no momento da pesquisa o registro manual constituía a forma mais usual para a realização desses controles.

Enfim, este artigo visa contribuir para a construção de referenciais de conhecimento sobre experiências sob lógica da gestão adotada por mulheres sertanejas do semiárido do Nordeste brasileiro. Trata-se de apropriação de instrumentos de controle produtivo e patrimonial utilizados em práticas administrativas hegemônicas, mas esse emprego ocorre de modo reflexivo e crítico, seguindo valores fundados em sustentabilidade e autonomia. Tal apropriação de saberes por parte da maioria das associadas se reflete em crescimento de capital social e cultural. Apesar das limitações da pesquisa, acredita-se que as perspectivas da abordagem deste trabalho possam vir a contribuir para o aprofundamento de estudos vindouros, bem como servir de parâmetro para futuras comparações. Trata-se, assim, de colaboração para a compreensão de realidades encontradas nos processos de gestão, tendo por atores as agricultoras ou os agricultores familiares em suas organizações cooperativas ou associativas em meio rural.

  • Como citar: Brandão, T. F. B., Barbosa, L. C. B. G., & Bergamasco, S. M. P. P. (2023). Organização social e gestão associativa rural entre mulheres no semiárido sergipano. Revista de Economia e Sociologia Rural, 61(2), e249024. https://doi.org/10.1590/1806-9479.2021.249024
  • JEL Classification: A12, D70, L31, M10, Q13, Z13.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2021
  • Aceito
    27 Fev 2022
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