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Práticas de formação e a produção de políticas de existência

Formation practices and the production of existential politics

Resumos

Considerando que somos herdeiros e estamos imersos no processamento de uma cultura - a cultura ocidental - que tem se caracterizado pelo investimento em fazer valer apenas uma política de existência, queremos partilhar algumas marcações que têm nos apoiado no exercício de deslocamento na perspectiva da criação de possíveis, da ampliação de espaços de liberdade. Entendendo as práticas de formação como importantes vetores no exercício cotidiano de civilizar, cabe aqui problematizar algumas instituições que nelas se instrumentalizam. Faremos isso chamando Nietzsche e Foucault como intercessores, para nos instalar num debate entre ciência e filosofia tencionando interrogar a primazia do referencial do direito em nosso presente.

formação; cultura; dispositivo jurídico


Considering that we are heir and immersed in a cultural process - the occidental culture - which character is based in the investment of imposing a single existential politic, we wish to share some guidelines that have been supporting us in the continuous exercise of perspective dislocation for the creation of possibles, enlargement of freedom areas. Understanding the formation practices as an important vector in the usual exercise of civilization, this article intends to question some institutions that use it as instrument. We will do that with the support of Nietzsche and Foucault as interlocutors, in a way that puts us in a debate between science and philosophy with the intention of questioning the primacy of the legal reference in our present.

formation; culture; legal dispositive


ARTIGOS

Práticas de formação e a produção de políticas de existência

Formation practices and the production of existential politics

Katia Aguiar

Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil

RESUMO

Considerando que somos herdeiros e estamos imersos no processamento de uma cultura – a cultura ocidental – que tem se caracterizado pelo investimento em fazer valer apenas uma política de existência, queremos partilhar algumas marcações que têm nos apoiado no exercício de deslocamento na perspectiva da criação de possíveis, da ampliação de espaços de liberdade. Entendendo as práticas de formação como importantes vetores no exercício cotidiano de civilizar, cabe aqui problematizar algumas instituições que nelas se instrumentalizam. Faremos isso chamando Nietzsche e Foucault como intercessores, para nos instalar num debate entre ciência e filosofia tencionando interrogar a primazia do referencial do direito em nosso presente.

Palavras-chave: formação; cultura; dispositivo jurídico.

ABSTRACT

Considering that we are heir and immersed in a cultural process – the occidental culture – which character is based in the investment of imposing a single existential politic, we wish to share some guidelines that have been supporting us in the continuous exercise of perspective dislocation for the creation of possibles, enlargement of freedom areas. Understanding the formation practices as an important vector in the usual exercise of civilization, this article intends to question some institutions that use it as instrument. We will do that with the support of Nietzsche and Foucault as interlocutors, in a way that puts us in a debate between science and philosophy with the intention of questioning the primacy of the legal reference in our present.

Keywords: formation; culture; legal dispositive.

Nas últimas décadas, a modernidade tem sido frequentemente evocada não propriamente para nomear uma época, mas para sinalizar um status a ser conquistado. Mais do que isso, poderíamos afirmar que ela tem sido um recurso utilizado por governantes para identificar nossas fraquezas, deficiências e impropriedades, justificando tomadas de decisões e de medidas, em nada provisórias, por nossa recuperação. Assim, afirmamos que os discursos se ligam a estratégias, servindo a determinadas lutas e produzindo efeitos nas práticas sociais. Os discursos e os procedimentos que hoje se impõem – diretamente na vida de cada um, sobre nossos corpos – para que, ainda que tardiamente, nos tornemos modernos, vêm ocupando lugar de destaque, tendo sido intensificados desde que entramos em tempos neoliberais. Mas a política de ajuste e de alinhamento ao que é desejável nos processos históricos de exploração é nossa velha conhecida.

Nascemos há mais ou menos quinhentos anos, em meio à aventura na qual haviam se lançado homens e mulheres desde que abandonaram o mundo fechado da Antiguidade, com sua fixidez e fatalismo, em busca do universo infinito (Koyré, 1962). As descobertas nos campos da ciência, da navegação e das artes haviam impulsionado a exploração de novas terras e, entre o espanto e o horror, colocavam os desbravadores frente a uma diversidade de mundos. De uma vida sublunar previamente organizada e presa de outro mundo, o humano, como experiência, ganha a forma à semelhança de Deus num mundo do outro. Talvez a mais importante e preciosa descoberta daqueles tempos, tenha sido a do próprio humano: antes um ser a mais submetido às intempéries do natural e do sobrenatural, se descobre senhor de seu destino e inventor de seus caminhos.

Enormes desafios se impuseram aos exploradores-desbravadores, ou melhor, colonizadores-exploradores, mas, cada vez mais fortalecido e certo de sua superioridade, o ser humano iria rapidamente povoar o mundo. Muitos relatos e estudos sobre nossa descoberta procuram um acerto de contas seguindo os meandros das tensões e dos embates travados entre a tal suposta humanidade e os habitantes inclassificáveis que aqui viviam e que viriam a viver. Um desses relatos nos fala que os povos daqui eram chamados negros, por não serem brancos como os colonizadores e por lembrarem os africanos e que, com o passar do tempo, a nomeação desses povos iria variar de acordo com o lugar ou com os traços físicos de cada um e, acrescentaríamos, segundo sua atividade – os povos escravizados para tirar pau-brasil, por exemplo, eram chamados de brasis (Jecupé, 2000).

Poderíamos então afirmar que, desde nossa descoberta, fomos nomeados pela utilidade, pela localização e pela semelhança, inscritos em discursos que implicavam, ainda, nossa construção em negativo. Ao perguntar a nós, brasileiros, por que conservamos o mesmo ponto de vista dos colonizadores ou por que adotamos com tanto fervor sua maneira de olhar o Brasil, o autor do referido relato parece sugerir que coloquemos em questão nossas estratégias civilizatórias. E essas, com certeza, se sofisticaram à medida que avançava a modernidade e que, com ela, uma nova racionalidade se forjava; nela, o tempo passou a ser administrado em favor de certos métodos, com o objetivo de alcançar determinados fins. Segundo as regras, o sucesso seria alcançado contanto que fossem seguidos passos acertados, num caminho previsível de progresso e de desenvolvimento. Para fechar as prescrições, uma regra de ouro: basta querer, já que as conquistas dependem da vontade, do esforço e da competência de cada um. O mérito foi conferido ao esclarecimento, à consciência crítica e determinada, que deveria expulsar e controlar as paixões.

Uma dicotomia tão antiga quanto os velhos filósofos foi (re)editada, e seus derivados – afetos, emoções, desejos –, se não podiam mais ser negados, excomungados ou exorcizados, seriam contidos e confinados; garantia do exercício das ideias claras, do pensamento correto, do cálculo exato. Com o artifício da dicotomia, a cisão entre dois mundos foi aprofundada (Fuganti, 2008). A diversidade de ser humano nas formas de viver foi, no curso dessa história, submetida a modelos de expressão desejáveis e aceitáveis. Para os que não se enquadravam, os que teimavam em dissidências, na afirmação da diferença – não a diferença legislada que acaba por ratificar a lógica das exclusões em seus próprios territórios, mas a diferença anárquica que tem sua potência num devir Outro –, para esses não adaptados foram criados rótulos, espaços apropriados, atividades específicas, tutelas. Penso em nossas crianças e as pedagogias, nossos loucos e os manicômios, nossos índios e suas reservas ecoturísticas, os passeios guiados pelas exóticas favelas do Rio, a hora de fazer arte nas escolas...

Foram, e ainda são, inúmeras as tentativas de controlar aquilo que parece fora da ordem, o que pode incomodar, trazer confusão e conflito. As crianças, os loucos, os índios, como formas de manifestação do humano, traçam experiências singulares, portadores de modos específicos de relação com o mundo e, portanto, de outros afetos, pensamentos, sensibilidades. Experiências que poderiam interrogar, no limite, as naturalizações que tornaram quase óbvio nosso modo de existir.

Teria nossa humanidade/invenção sucumbido aos apelos dos mercados que diluem qualquer dissidência? Como escapar das forças civilizatórias que capturam, regulam e padronizam a variabilidade da vida?

Entendendo as práticas de formação como importantes vetores no exercício cotidiano de civilizar, cabe aqui problematizar algumas instituições que nelas se instrumentalizam. Faremos isso chamando Nietzsche e Foucault como intercessores, para nos instalar num debate entre ciência e filosofia tencionando interrogar a primazia do referencial do direito em nosso presente.

O modelo da ciência moderna, que nega caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautem por sua epistemologia e metodologia, traça o que é considerado nos debates sobre o presente como o paradigma dominante (Santos, 1987, p. 10). É contra ele que observamos os esforços no sentido de enfrentamento de uma crise que, há mais de um século, vem sorrateiramente se instalando e se generalizando, diante das sucessivas constatações de seu fracasso.

Poderíamos localizar em Descartes não propriamente a origem do referido modelo, mas o fortalecimento de uma linha já presente desde a Antiguidade e que tecerá as condições da atualidade, delimitando nossa experiência. Referimos a linha de matematização como caminho para salvação: como forma de entender o mundo, salvar a condição humana, melhorar a pólis ou a sociedade, harmonizá-la. A procura pela ordem se compunha, naqueles tempos, com a almejada dissipação das dúvidas e a conquista da unidade, da clareza e do consenso, postos como utopias para o ocidente:

Salvar-se enquanto pessoa, enquanto indivíduo, salvar seu grupo, sua cidade, sua família, sua coletividade. Salvar o mundo e a sociedade através da descoberta de um caminho de pensar e dizer tão justo e perfeito que consiga eliminar as discórdias, fazer a união dos espíritos e chegar a uma espécie de consenso universal. O paraíso não é isso? A paz desejada? A introdução da harmonia desde já aqui na terra? E não se pode conseguir isso claramente, demonstrativamente, através de uma linguagem e de uma construção matemática? (Peçanha, 1997, pp. 17-18)

A matematização, aliada à metodologia experimental, forjou o modelo de desenvolvimento – baconiano-cartesiano – das ciências exatas. A esse respeito, Peçanha destaca a força do mito da clareza a partir do qual a modernidade se constituiu, tomando-o como mito da Identidade e da Verdade e revelando "a pretensão de dar ou de tornar a dar ao homem uma dimensão de pureza" (Peçanha, 1997, p. 21). O autor aponta ainda que, desde Platão, a prova analítica e a linguagem que aparece sob a forma de encadeamento do portanto – portanto – portanto, se dá, ao mesmo tempo, como fascinação e como possibilidade de alguma garantia, diante do caráter contingencial e transitório da condição humana. Uma visão que "alimenta não apenas a produção científica, mas o próprio imaginário do homem a respeito da humanidade" (Peçanha, 1997, pp. 21-22).

A extensão desse modelo ao campo das chamadas ciências humanas e sociais consolidará a perspectiva de um tempo espacializado, cronológico, e sua especialização em campos de saber e nos encargos de seus peritos – especialismos/especialistas. O aparecimento de novos espaços e a modificação de outros já existentes seguiram aquela racionalidade investindo no individual e em sua inscrição na totalidade, através da funcionalidade e do equilíbrio. Uma formulação que privilegiou as constâncias e as regularidades, extraindo delas leis deterministas e universais, que têm sido referidas como macroteorizações. Como superteorias, elas se pautaram numa visão teleológica, voltada para a previsibilidade e para a definição de uma finalidade para a história. Uma economia que investe na organização da realidade, em torno de problemas que pretendem a redução das instabilidades, a estruturação de soluções lógicas e dedutíveis (Rocha & Aguiar, 2003).

O que daí decorre aparece na concepção de realidade considerada como o conjunto de tudo aquilo a que se pode ter acesso, que se dá à observação como matéria concreta, e que também adotamos em nossa vida cotidiana. Para pensar as modificações dessa realidade, nos apoiamos nas possibilidades que se encontram reguladas e limitadas por leis naturais, por princípios não contraditórios. Ou seja, o possível que permeia a realidade concreta e que é nascedouro de suas mudanças já estaria inscrito na ordem do existente, enquanto potencialidade, ainda que ocultada. Nesse caminho, onde acessamos as previsões e projetos de futuro, a transformação habita uma região de criatividade limitada pelo cotidiano sendo uma possibilidade, desde que estejam dadas as condições ou os meios para a realização de um potencial já presente; a emancipação está no descobrimento de fatores pré-determinados.

Podemos considerar que a racionalidade científica possibilita apenas uma forma de conhecimento verdadeiro, ligando seu exercício à quantificação e à redução da complexidade e que, em sua extensão, terá de forjar defesas contra os conhecimentos não científicos e eliminar os incidentes de seu percurso (Rocha & Aguiar, 2003; Santos, 1987).

Mas os debates sobre o presente retomam outras linhas que nos incitam a avançar no traçado dessa cartografia. A constatação do engodo da precisão que constituiu a mentalidade totalitária nas ciências, da falácia cultural da modernidade, é acompanhada pelo fortalecimento de outras linhas mais tênues, mas não menos importantes, no curso dessa história. Acolhendo a ideia de que a denominada crise da racionalidade moderna abriga a opção do ocidente pela exclusividade do modelo matemático, abrimos a discussão para as alternativas que daí decorrem. Podemos, por exemplo, reencontrar as ponderações de Bacon que, ao aprimorar o método experimental, atribuiu sua utilidade à dominação da natureza, à necessidade de submeter o mundo físico e de operar sobre as coisas, mas que desautoriza sua utilidade quando a tarefa é a de atuar sobre pessoas. Segundo o filósofo, para subjugá-las, mudar-lhes a cabeça e interferir em seus pensamentos, não se deve recorrer à indução, nem à experimentação, mas à dialética (Peçanha, 1997, p. 19).

Ao retomar essa linha para propor uma outra aproximação com aquilo que não se dá à matematização e questionando os relativismos e os emocionalismos que cada vez mais se apresentam como alternativas, Peçanha aponta para a coexistência de diferentes racionalidades próprias ao campo do contingente, do concreto e do histórico e os agrega sob o referencial do Direito. O modelo jurídico, necessariamente dialógico, é o modelo da disputa, do litígio e, com ele, podemos reaver a tensão própria da transitoriedade; podemos desmontar a linguagem dura e autoritária do portanto – portanto – portanto, por aquela do se, e se e se, aberta às configurações, sempre provisórias.

O filósofo enfrentava, assim, o que considerava um dos grandes problemas postos pelo paradigma da redenção e o que dele se desdobra: "o abandono das vivências mais simples e mais imediatas do cotidiano" (Peçanha, 1997, p. 4) e um pensamento investido na representação e na imaginação. Seguindo seus passos, poderíamos afirmar que, com o deslocamento proposto, opera-se a restituição da dimensão humana ao exercício filosófico, considerando sua capacidade de "usar a linguagem que estamos usando e com ela persuadir, conquistar, seduzir, comandar, dirigir, e subjugar os outros" (Peçanha, 1997, p. 26). Remexendo a lixeira de Descartes, encontramos então a abertura à pluralidade, ao relacional, às mutações da razão atribuídas ao modelo jurídico dialógico. Mas, com o intuito de avançar um pouco mais em nossa problematização, gostaríamos de agregar outras indagações que para nós permanecem latejantes.

Alinhada à lógica do fundamento, a racionalidade jurídica estabelece a justiça para todos pressupondo o um que é justo e naturalizando a impossibilidade de qualquer intervenção coletiva – morte à potência de agir. Como efeito, encontramos inversões fatais para os movimentos inventivos. Frente a um modo certo e justo de viver, a impotência e a inatividade se tornam equivalentes da paz, enquanto qualquer deslocamento para fora dos padrões, dos limites tolerados, será visto como violência e ameaça à vida. Nesse sentido, tal racionalidade apontará sempre para uma falta, gerando problemas a serem solucionados pelos especialistas sob a forma de reparação, de restauração ou de restituição.

Sem dúvida o modelo jurídico dialógico, e sua acolhida à diversidade, pode operar tanto o resgate da "instância criadora que nos tira do fatalismo mecanicista" quanto o da "ética como normatividade que se legitima a partir da indignação e do espanto diante da ausência de justiça" (Peçanha, 1997, p. 32). Mas pensamos que, naquele modelo, a consideração da diversidade apoia-se no alargamento do campo da razão que, agora transmutada, parece oferecer novas garantias ao necessário afastamento dos riscos impostos pela irracionalidade. O que se pretende é menos a afirmação da imponderabilidade ou do inominável que se espreita na diversidade (da vida) do que a busca de novas fronteiras que possam delimitar, conter nossas zonas obscuras, aquelas atribuídas às paixões e identificadas como possíveis barbáries. Entendemos que, mesmo reconhecendo as contingências e nossa precariedade, o mero reconhecimento da existência de diferentes racionalidades não nos parece suficiente para desmontar o mito do progresso da razão unificadora. Ainda permanecemos inscritos, no exercício do pensamento, nos impasses próprios aos tensionamentos entre razão e paixão, entre o dever ser e o devir, impasses esses que também se fazem presentes nas lutas sociais. O que nos parece mais inquietante é a ligação que pode ser estabelecida entre irracionalidade e violência ou, melhor, a atribuição da violência à ausência da razão, o que permite alimentar a ideia de que o modelo jurídico dialógico ofereceria as condições (ideais) para sua necessária contenção.

Estaríamos nós reeditando a crença na pacificação redentora que já nos oferecera o saber metódico? Não corremos o risco de, além de imputar soberania ao modelo, agora outro, desenraizar o relacional de sua materialidade, tornando inócua qualquer indignação?

Passando a um novo deslocamento, agora do domínio da ciência para o da filosofia, sugerimos outros desdobramentos em nossa cartografia. Também seguindo linhas que migram da Antiguidade, podemos observar a constituição de uma filosofia e de um saber que lhe é próprio, interessado em "governar a cidade e tutelar a alma dos cidadãos" (Larrosa, 1997, p. 37). Sob a forma de um saber sobre os saberes, a filosofia instalará uma regulamentação que, segundo Larrosa (1997), funcionará numa tripla normativa, como uma tripla exclusão: a normativa epistemológica (crítica aos sofistas), a normativa moral (expulsão dos poetas) e a normativa pedagógica (da escritura).

Diante dessas normativas que tetanizam o desassossego inaugural ao exercício filosófico, o autor evidencia uma linha de conexão Sócrates – Descartes – Kant – Carnap, dela depreendendo "uma mesma preocupação jurídica pela demarcação do território do saber e pela cuidadosa delimitação de zonas legítimas e ilegítimas". E acrescenta: "mediante esta primeira operação política, o âmbito neutro ou mesmo anárquico do saber acaba convenientemente compartimentado em zonas nobres, zonas menos nobres e zonas proibidas" (Larrosa, 1997, p. 38). O que se instala, assim, é uma estrutura de inclusão/exclusão no próprio saber, convertendo a filosofia numa instância legisladora, num tribunal do saber.

De Platão à censura e a queima de livros dos estados totalitários de todos os tempos, passando pelo Índice da Igreja Católica e por todas as exclusões pedagógicas dos saberes perversos ou pouco edificantes, o filósofo legitimou a seleção moral do conhecimento desde o ponto de vista da lei e da ordem. E a filosofia se converteu em uma espécie de polícia moral dos discursos e das consciências que consiste em colocar os saberes sob vigilância e as pessoas sob rigorosa tutela. Há que classificar os saberes em mais ou menos perigosos, conhecer quais são seus efeitos para a alma, acompanhar atentamente as pessoas para protegê-las do que poderia significar um risco para elas. (Larrosa, 1997, pp. 39-40)

Esse procedimento, operado por filósofos e por historiadores, foi abordado por Nietzsche (1998) como uma inversão que instituiu valores morais como superiores à vida, tornando os eventos fatalidades por arrancar-lhes das relações de forças que os constituem e neles se expressam. Ao afirmar que todo o saber e todo conhecimento encontra-se inscrito em relações de forças e que o que está em jogo é uma luta de poder, o filósofo abala o mito que dominou o Ocidente de que a verdade nunca pertence ao poder político. Sua crítica radical permite afirmar que aquela inversão é um ato em si despontencializador que nos torna coadjuvantes de um drama escrito, atuado, narrado e sempre interpretado por forças reativas; forças que separam as forças ativas daquilo que elas podem, ligando-as à regulação e à adaptação (Deleuze, 1976, p. 70). A partir de suas contribuições, se torna imperiosa a discussão do valor dos valores subjacentes à produção do conhecimento e o questionamento da ideia geral de uma humanidade, sugerindo sua invenção como resultante de articulações, de montagens, de improvisações. Além disso, elas anunciam a existência de outras linhas e outras ligações não evidenciadas no curso de nossa história.

Em Nietzsche encontramos uma inflexão na problematização das condições sobre as quais se assentam os pilares da formação da sociedade moderna. Entendendo que o destino do homem não é a verdade e que a estabilidade é apenas uma dimensão da vida, o filósofo restitui o caráter disruptivo e criador da linguagem. Tratando da conexão entre valores, filosofia e linguagem na obra do filósofo, Wischke comenta: "Se o homem faz para si uma imagem do mundo através da linguagem, por meio da qual, por assim dizer, tem previamente confiança nesse mundo, então as opiniões linguisticamente sedimentadas sobre o mundo devem ser transmutadas" (Wischke, 2005, p. 42).

Será a partir dessas linhas, por essa entrada de inspiração nietzscheana na problematização do pareamento história/verdade, que Foucault retomará o modelo jurídico (dialógico) apresentado como caminho de emancipação e proteção dos saberes tornados menores e submetidos. Tais saberes, na perspectiva genealógica adotada pelo autor, serão considerados históricos, reveladores de fraturas e descontinuidades que abrigam questões obscurecidas e silenciadas pelas teorias universais. O que se evidencia nos estudos foucaultianos é a dimensão de contestação e de resistência presente nesses saberes sujeitados e que afirmam o Outro na história. Essa potência insurgente o levará a abordar o modelo jurídico desde baixo, interpelando a relação poder-direito-verdade, e perguntando: "quais são as regras de direito de que lançam mão as relações de poder para produzir discursos de verdade?" (Foucault, 1979, p. 28).

Sua investigação apontará não apenas para a transformação das velhas práticas, mas também para o que, segundo ele, se constituiu na reinvenção do Direito, na invenção de novas formas de práticas e procedimentos judiciários; para aquilo que, nos combates e nas lutas, provocaram deslocamentos, cortes e transformações no saber. Gostaríamos de fazer destaque, de forma bastante sintética, a dois desses momentos de corte no saber que foram focalizados por Foucault (1979) e que se tornaram relevantes tanto por sua penetração em domínios de práticas bastante distintas quanto por sua difusão para além do território europeu.

O primeiro corte refere-se ao aparecimento de novas formas de justiça a partir da segunda metade da Idade Média, quando o direito estabelecerá sua fronteira mais precisa com a guerra, e o judiciário se fortalecerá em sua ligação com a lei do Estado monárquico. Nesse período, aparece a figura do infrator como aquele que, por seu ato danoso, atinge, além do outro indivíduo diretamente envolvido, o próprio soberano. Será nessas novas condições, nas quais o modelo belicoso, da prova, não pode ser mais aplicado, que o Inquérito aparecerá como uma determinada maneira de saber ou uma condição de possibilidade de saber, reorganizando as práticas judiciárias até a época moderna. No entanto, Foucault (1979) adverte que essa novidade não foi fruto do progresso da racionalidade, mas um procedimento que surgiu como necessário em meio a transformações políticas, sendo:

Forma de saber situada na junção de um tipo de poder e de um certo número de conteúdos de conhecimentos. Aqueles que querem estabelecer uma relação entre o que é conhecido e as formas políticas, sociais ou econômicas que servem de contexto a esse conhecimento costumam estabelecer essa relação por intermédio da consciência ou do sujeito do conhecimento. Parece-me que a verdadeira junção entre processos econômico-políticos e conflitos de saber poderá ser encontrada nessas formas que são, ao mesmo tempo, modalidades de exercício de poder e modalidades de aquisição e transmissão do saber. O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício de poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autenticar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. (Foucault, 1979, p.61)

O segundo corte que aqui destacamos é localizado por Foucault na passagem dos séculos XVIII e XIX, e se refere à emergência da denominada sociedade disciplinar, cujo marco é o aparecimento da prisão e as modificações na legislação penal que, se desviando do que é socialmente útil, se voltará cada vez mais para o indivíduo. Para Foucault, a penalidade a partir daquele período "tem menos em vista a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos" (Foucault, 1979, p. 67). A figura que surge aqui é a da periculosidade estabelecida a partir do controle sobre aquilo que os indivíduos podem ou são capazes de fazer. Eles passam a ser considerados não por seus atos ou por aquilo que efetivamente fizeram, mas por aquilo que podem vir a fazer, ao nível das virtualidades de comportamento que as leis representam. Segundo o autor, o exercício desse controle

não pode ser efetuado pela própria justiça, mas por uma série de outros poderes laterais, à margem da justiça, como a polícia e toda uma rede de instituições de vigilância e de correção – a polícia para a vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, psicológicas para a correção. (Foucault, 1979, p. 68)

O que se abriga na emergência da sociedade disciplinar é a passagem para uma nova forma de saber, a passagem do Inquérito (no qual se procurava saber sobre o ocorrido, reatualizando o acontecimento por testemunhos) ao Exame, que permitirá, desde as instituições, enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência; rede de um poder que visa não só punir, mas vigiar permanentemente, corrigir virtualidades. Um controle que se organiza em torno da norma, sendo a "forma de saber-poder que vai dar lugar não às grandes ciências de observação como no caso do inquérito, mas ao que chamamos ciências humanas" (Foucault, 1979, p.70).

Foucault assinalou uma transição, um deslocamento nas formas jurídicas de poder que estabeleceram ligações com o capitalismo emergente, ainda que com ele não se confundissem. Com elas identificou como traço distintivo das sociedades modernas novas tecnologias de poder que investiam na promoção da vida, pelo desenvolvimento de uma política do corpo humano (disciplina) e de uma biopolítica das populações (biopoder). Evidenciava, assim, a constituição de um processo complexo de governamentalização que visa a cultivar indivíduos dóceis e úteis e, ao mesmo tempo, administrar e gerir as populações, por medidas definidas como sociais. Foucault apoiou seus estudos no reconhecimento da importância da hierarquização científica dos saberes e de suas relações com os métodos de governo na consolidação da distinção falso/verdadeiro que teve, como um de seus efeitos, a desqualificação das formas de saber de nível básico, local e popular (Smart, 1989).

A noção de poder disseminado e microfísico, abordado enquanto exercício em sua positividade, evidenciou seu agenciamento aos códigos de relações, da circulação e das falas, redimensionando as análises acerca do aparelho de Estado. A dicotomia Estado/Sociedade Civil dá lugar à análise da governamentalização, ao desenvolvimento de técnicas e práticas individualizantes não redutíveis nem à ideia de força, nem à de consentimento, nos possibilitando afirmar que nenhum dispositivo, nem mesmo os mais críticos, está imune às relações de poder: "O dispositivo panóptico não é simplesmente uma charneira, um lugar de troca entre um mecanismo de poder e uma função; é uma maneira de fazer funcionar relações de poder numa função, e uma função através de relações de poder" (Foucault, 1977, p. 182).

As modificações operadas no saber e as regulamentações/normatizações que referimos anteriormente interrogam as vias de uma racionalidade ou de um saber que, se opondo ao poder, permitiria o acesso à Verdade. Ao invés de conhecimento verdadeiro, Foucault afirma que o que é produzido são regimes de verdade (Foucault, 1979). Para ele, o conhecimento não se circunscreve à dualidade falso/verdadeiro, pois é acontecimento e tem caráter perspectivo, polêmico, é efeito de lutas a partir de uma certa relação estratégica, onde estamos situados. O conhecimento é tanto generalizante quanto singular, uma vez que prioriza regularidades, ignorando as diferenças, mas é fruto de engendramento, de estabelecimento de relações entre os objetos. Desse modo, as condições econômicas de existência não se constituem como barreira para o sujeito do conhecimento, evidenciando, antes, a materialidade através da qual este se constitui e, consequentemente, as relações de verdade (Aguiar & Rocha, 2007).

Foucault (1984) retomará Kant para nele resgatar a interrogação que o faz diferir das insígnias do cartesianismo. Em lugar do "quem sou?", pergunta-se sobre "quem somos nesse preciso momento da história?", identificando, nas contribuições do filósofo, um caminho bifurcante. A recusa de uma razão crítica que sustenta a dimensão da analítica da verdade em geral aproxima Foucault das bases do que denominou de ontologia histórica da atualidade (ou do presente), propondo que o criticismo kantiano, caracterizado pela busca do conhecimento dos limites para renunciá-lo, seja positivizado:

pergunta-se que lugar, naquilo que nos é dado como obrigatório, necessário e universal, é ocupado por aquilo que é produto de constrangimentos arbitrários, contingente e singular, a fim de fazer, da crítica, uma prática que tome a forma de transgressão possível. (Rodrigues, 1994, p. 30)

Uma transgressão, um trabalho feito nos limites de nós mesmos, uma atitude histórico-crítica duplamente aberta: à investigação histórica e ao teste de realidade contemporânea.

Desse modo, Foucault (1995) abordará as relações entre as normatizações e a centralidade do sujeito do conhecimento, colocando em questão o modelo de humanidade desenvolvido por diferentes práticas – entre elas as psicológicas, as médicas e as educacionais – que, com suas tecnologias e suas injunções com o dispositivo científico, contribuíram para a perpetuação e universalização de uma ideia de homem.

Isso não significa que tenhamos que eliminar o que chamamos de direitos humanos ou liberdade mas, que não podemos dizer, que a liberdade ou os direitos humanos tenham que se limitar a certas fronteiras. ... O que assusta no humanismo é que ele apresenta uma certa ética como modelo universal para qualquer tipo de liberdade. (Foucault, 1995, pp. 149-150)

As recorrências aos estudos foucaultianos nos forçam a pensar, indicando que nos jogos entre as forças do acaso e as forças da repetição encontramos aquelas que se dobram sobre nós mesmos, instituindo as finitas incompletudes de nossos assujeitamentos, de nossas rebeldias. Se desde a lógica da determinação que marca a modernidade naturalizamos a violência como um mal, a ser sanado pelo jurídico, talvez possamos abrir esse conceito a outras conexões, favorecendo o acesso à dimensão de intervenção na vida e fazendo passar outros sentidos. Um desafio ético que se coloca como exercício de atenção e de avaliação sobre os efeitos de nossas ações, no campo da experimentação. Essa empreitada, de suspensão do julgamento, convoca o saber dos afetos se processando num entre nós; dimensão onde não há o especialista, a verdade, nem a justiça.

Recebido em: 31/01/2012

Revisão em: 09/03/2012

Aceite em: 01/04/2012

Katia Aguiar é Professora da Universidade Federal Fluminense, Departamento de Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Mestre em Educação pela UFF, Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP. Integra a linha de pesquisa Subjetividade e Política, desenvolvendo atividades de pesquisa e de extensão, tendo como foco as práticas de formação e de gestão na educação e nos movimentos sociais. Atualmente é diretora do Serviço de Psicologia Aplicada/UFF e colaboradora da CAPINA - Cooperação e Apoio a Projetos de Inspiração Alternativa. Endereço: Av. Filadelfo de Azevedo, 50. Itanhangá. Rio de Janeiro/RJ, Brasil. CEP 22641-100. Email: katiafaguiar@uol.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    2012

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2012
  • Aceito
    01 Abr 2012
  • Revisado
    09 Mar 2012
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