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Casa: uma poética da terceira pele

House: a poetic of the third skin

Resumos

A percepção espacial diz respeito a posturas de diferentes naturezas frente ao entorno: estabelecemos com ele relações utilitárias, relações que evocam características simbólicas do espaço, ou, ainda, que estão fundamentadas em sensações decorrentes do envolvimento direto e atual do indivíduo junto ao ambiente. O presente ensaio reúne impressões que habitam os três universos acima considerados e faz parte de um exercício que busca evidenciar o sentido próprio da arquitetura. Uma vez que a investigação da natureza do objeto arquitetônico, como espaço do habitar que é, passa pelo entendimento das qualidades de ser humano, elegemos temas que fazem supor aspectos dessa condição (desejos, necessidades, metas), entre eles: água, fogo, interior e exterior, luz e sombra, movimento, vazio. E o fizemos através da casa, obra primeira da referência existencial, concebida como extensão do corpo e que carrega, tal qual o corpo, a imagem da totalidade, através da condição natural de microcosmo particular.

casa; percepção espacial; psicologia ambiental


The spatial perception relates to positions of different natures facing the environment: we establish utilitarian relationships to it; relationships that evoke symbolic characteristics of the space; or that are based on feelings arising from the direct involvement of individuals with the environment. This essay brings together impressions that inhabit the three worlds considered above, and is part of an exercise that seeks the meaning of architecture. Since the investigation of the nature of the architectural object, as dwelling space, goes through the understanding of the qualities of being human, we elect topics that assume aspects of this condition (desires, needs, goals): water, fire, inside and outside, light and shade, movement, empty. And we did it through the house, the first place of existential reference, designed as an extension of the body and that carries, like the body, the image of all, through the condition of particular microcosm.

house; spatial perception; environmental psychology


Casa: uma poética da terceira pele

House: a poetic of the third skin

Maíra Longhinotti Felippe

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

RESUMO

A percepção espacial diz respeito a posturas de diferentes naturezas frente ao entorno: estabelecemos com ele relações utilitárias, relações que evocam características simbólicas do espaço, ou, ainda, que estão fundamentadas em sensações decorrentes do envolvimento direto e atual do indivíduo junto ao ambiente. O presente ensaio reúne impressões que habitam os três universos acima considerados e faz parte de um exercício que busca evidenciar o sentido próprio da arquitetura. Uma vez que a investigação da natureza do objeto arquitetônico, como espaço do habitar que é, passa pelo entendimento das qualidades de ser humano, elegemos temas que fazem supor aspectos dessa condição (desejos, necessidades, metas), entre eles: água, fogo, interior e exterior, luz e sombra, movimento, vazio. E o fizemos através da casa, obra primeira da referência existencial, concebida como extensão do corpo e que carrega, tal qual o corpo, a imagem da totalidade, através da condição natural de microcosmo particular.

Palavras-chave: casa; percepção espacial; psicologia ambiental.

ABSTRACT

The spatial perception relates to positions of different natures facing the environment: we establish utilitarian relationships to it; relationships that evoke symbolic characteristics of the space; or that are based on feelings arising from the direct involvement of individuals with the environment. This essay brings together impressions that inhabit the three worlds considered above, and is part of an exercise that seeks the meaning of architecture. Since the investigation of the nature of the architectural object, as dwelling space, goes through the understanding of the qualities of being human, we elect topics that assume aspects of this condition (desires, needs, goals): water, fire, inside and outside, light and shade, movement, empty. And we did it through the house, the first place of existential reference, designed as an extension of the body and that carries, like the body, the image of all, through the condition of particular microcosm.

Keywords: house; spatial perception; environmental psychology

"Não importa que a tenham demolido:

A gente continua morando na velha casa

em que nasceu"

Mário Quintana

O universo da percepção espacial de um indivíduo possivelmente diz respeito a posturas de diferentes naturezas frente ao entorno. Estabelecemos, por exemplo, relações de caráter utilitário, que colocam em primeiro plano a função ou a serventia de objetos, elementos e lugares; relações nas quais nos posicionamos de maneira a evocar certas características simbólicas do espaço, carregadas de história; ou, ainda, que estão fundamentadas nas impressões ou sensações decorrentes do envolvimento direto e atual do indivíduo junto ao entorno.

Não podemos deixar de considerar que estaremos com frequência assumindo, e até mesmo sobrepondo, diferentes modos de relação no espaço. Este estudo, de certa forma, reúne impressões que habitam os três universos acima considerados e faz parte de um exercício que procura evidenciar a natureza do objeto arquitetônico. Para tal, inicia indicando os pressupostos epistemológicos orientadores do debate aqui realizado acerca das relações humano-ambientais.

As dimensões 'ambiente' e 'pessoa'

No que diz respeito ao componente ambiental da relação pessoa-ambiente, considera-se que a realidade objetiva é modelada pelas representações que as pessoas dela constroem. Segundo Pol (1993), essa postura marca a diferença entre considerar o espaço concreto como único estímulo e analisar a experiência desse mesmo lugar como um elemento a mais do contexto no qual está inserido, assumindo a percepção da pessoa, sob influência das diferenças e experiências individuais, bem como das construções sociais de significado, um importante papel nesse processo. Nessa direção, Tassara e Rabinovich (2003, p. 340) defenderam que "a percepção ambiental é um fenômeno psicossocial" e que, portanto, "não há leitura da objetividade que não seja ou não tenha sido compartilhada; o sujeito sempre interpreta culturalmente".

Ittelson, Proshansky, Rivlin e Winkel (1974/2005), ao cunharem os pressupostos da experiência ambiental humana, também ilustraram o sentido dessa concepção de realidade, considerando que o ambiente observado não necessariamente corresponde ao ambiente real e objetivo:

todos nós em algum momento olhamos para o ambiente através das lentes deformadoras de raiva, incômodo, ou frustração e esse fato pode ser mais importante na modificação de nossas ações do que as propriedades físicas daquele ambiente. ... É aos mundos real e percebido que respondemos (p. 8).

Assume-se também que a pessoa está em interação dinâmica com o seu ambiente: admite-se que não só o meio exerce influência sobre os indivíduos, mas os indivíduos, reciprocamente, exercem influência sobre o meio. Tem-se, pois, o movimento da bidirecionalidade e uma antropologia de tendência ativa, acima de tudo, transacional: a pessoa não somente reage a estímulos ambientais, mas intervém sobre o meio deliberadamente para atender às suas necessidades (Ittelson et al., 1974/2005). Pessoa e ambiente são partes constituintes de um sistema integrado de correlações, cuja compreensão torna-se necessária para o entendimento de quaisquer aspectos da relação humano-ambiental.

Também aqui o indivíduo é compreendido, não à parte, mas inserido em seu contexto. Diante de uma epistemologia interacionista construtivista, assume-se que o conhecimento é parcialmente definido por certas qualidades do observador, tomado como parte do evento. O percebedor sempre estará imerso no ambiente, o que em princípio poderá significar: influenciar e ser influenciado pelo contexto da investigação (Pinheiro, 2003).

Não se pretende uma abordagem centrada em uma análise individualista, com vistas à generalização e à busca de princípios universais de comportamento. Assume-se a perspectiva social, que entende a pessoa como parte de uma comunidade definida e modulada por um contexto histórico-cultural específico. Compreende-se, entretanto, que tais paradigmas não são excludentes e podem integrar o estudo das relações pessoa-ambiente da forma como sinaliza Corral-Verdugo (2005, p. 82):

Desde que diferentes culturas produzem visões ambientais diferentes, estas podem se manifestar como psicologias ambientais específicas. Isto não significa que temos de abandonar a idéia de uma Psicologia Ambiental universal. Há mais aspectos comuns entre pessoas humanas do que diferenças, e deveríamos encontrar como estes aspectos diversos e similares participam na nossa adaptação ao nosso ambiente, de uma maneira eficiente e responsável.

Nesse sentido, ainda que a organização do espaço construído assuma formas tão variadas e lícitas quanto às noções culturais e históricas que lhe dizem respeito, quando falamos de uma natureza do objeto arquitetônico, acreditamos na existência de características conceituais constantes, que dizem respeito à própria condição humana. Descrentes, assim, da construção de uma imagem física invariável, pretendemos justamente caminhar na direção dessas características inerentes ao homem e projetadas no espaço, revelando o que chamamos de um desejo pela busca do sentido próprio da arquitetura.

De fato, o exame de boa parte dos espaços concebidos na contemporaneidade torna mais intensa e necessária a preocupação com esse sentido maior do objeto arquitetônico. A ausência desse entendimento ou o descaso para com ele possivelmente têm contribuído à produção de espaços que, em geral, não reconhecem intenções específicas de projeto, ou pela falta das mesmas, ou pela incoerência patente entre o desejo do arquiteto e o desenho por ele proposto. O espaço projetado fica, assim, desprovido de um propósito, uma razão de ser, no sentido em que deixa de se valer para o estabelecimento de efeitos e relações que lhe são próprios. Os prejuízos daí decorrentes tornam-se claros, se compreendemos que a arquitetura só se faz como tal no momento em que participa da experiência da pessoa no mundo, superando a mera justaposição de espaços físicos para enfim integrar o conjunto de relações, atos e atividades que neles estabelecemos.

Entendida dessa forma como lugar, ou seja, como espaço contido dotado de valor e partícipe das atividades inerentes à vida, a arquitetura faz referência à identidade do ser humano, ao tempo que introduz o debate do estar seguro. Então, dizemos que a casa de habitação é concha protetora, casco, pêlo, terceira pele: expressão criada pelo artista plástico vienense Hundertwasser que " como resultado de uma consciência que percebe, a partir do homem, uma sucessão progressiva de invólucros que avançam sobre o meio global " definiu as cinco peles humanas: a epiderme, o vestuário, a arquitetura, o meio social e o meio global (Restany, 1998). Assim, concebido como extensão do corpo, o espaço arquitetônico carrega, tal qual o próprio corpo, a imagem da totalidade, através da condição natural de microcosmo particular e, por que não dizer, modelo reduzido de nosso Universo.

O habitar

Quando procuramos compreender o universo dos significados da palavra habitar, percebemos que estamos diante de um conceito que transcende o pragmatismo formal, utilitário e quantitativo das acepções estar domiciliado e ocupar como residência. O habitar surge como a própria condição essencial da existência humana, anterior, portanto, a toda arquitetura: habitar é habitar o mundo, ser no mundo, existir. Circunstância relativa à satisfação das condições psicofisiológicas do ser humano, de seu ser como indivíduo e parte integrante do grupo social.

O espaço por nós construído, por sua vez, é uma resposta à condição de nosso habitar que, nesse processo, aparece como intenção primeira e essencial, o sentido próprio da arquitetura. A arte de criar espaços tem o compromisso de superar a realidade concreta da matéria, a fim de constituir lugares - autênticos espaços do habitar - aos quais atribuímos valor e com os quais nos identificamos. À imagem do ser humano, firma-se a união entre matéria e espírito, o equilíbrio que nos possibilita exercer com plenitude a condição de existir no mundo.

Uma vez que a investigação da natureza do objeto arquitetônico, como espaço do habitar que é, passa pelo entendimento das qualidades mesmas do ser humano, procuramos eleger, dentre tantos igualmente importantes, alguns temas que fazem supor certos aspectos de sua condição (seus desejos, necessidades, prazeres, medos e metas). Por isso, dividimos este ensaio em secções: a água, o fogo, o interior e o exterior, a luz e a sombra, o movimento, o vazio. E o fizemos através da casa, obra primeira da referência existencial, que permanece intrínseca a nós como a própria identidade.

1. A casa

Como agente que transforma o caos isento de significação em cosmo organizado e definido, o ser humano - através da casa - opõe-se ao desconhecido e indiferenciado, para qualificar e dotar de valor distintivo um espaço, fundar um lugar: marco delimitado e destacado do entorno, referência da identidade individual e familiar. A casa manifesta esse desejo de recriação do mundo a partir do caos, um mundo resumido, dominante da ordem natural, cultural e espaço-temporal. Um lugar que se consolida como centro do universo, de onde partem, por contraposição, todas as definições conferidas por nós ao meio exterior.

Casa e paraíso

O paraíso é considerado nas escrituras bíblicas como o lugar que não conhece a morte, a doença e as opressões. Fora dele, a paz e a harmonia não seriam mais garantidas e o homem submeter-se-ia necessariamente a sua própria sorte, enfrentando inevitáveis dificuldades. Mais que uma discussão da dialética entre o real e o imaginário, o Paraíso representa, fundamentalmente, um desejo guardado na memória coletiva e perpetuado com a ajuda da literatura. Para o arquiteto Galfetti (1999), a imagem do Paraíso está carregada de nostalgia e, mais que uma lembrança do passado, existe na consciência da humanidade como uma promessa, uma possibilidade futura. A construção da casa, microcosmo privado e controlado, seria a materialização do sonho de retorno ao paraíso.

Mais que a projeção de uma imagem com evidentes características paradisíacas, a casa é, sobretudo, uma projeção do próprio homem, um reflexo de seu ser. Congrega um conjunto de fatores que a tornam um retrato do morador e da família. Através dela, o homem reproduz seus limites, suas fronteiras com o mundo. Revelam-se memórias, desejos, esperanças, medos, rituais, ritmos pessoais e hábitos cotidianos. Por isso, a habitação é também o retrato de uma época e de sua maneira de enxergar as relações humanas. Nesse sentido, a casa ultrapassa a condição de espelho da alma, possibilitando uma espécie de autoanálise que leva à revalorização da própria humanidade. Quando o homem se vê projetado no exterior, torna-se, potencialmente, um pensador de si mesmo.

A cabana primitiva

A busca por compreender a autêntica natureza da casa motivou, em todas as épocas, especulações a respeito da cabana primitiva. Possivelmente, a imagem da primeira habitação - atribuída aos povos dos primeiros tempos - inspirou arquitetos, construtores e pensadores do espaço. Guardaria talvez, por ser a primeira, a natureza essencial e, por isso, justa da habitação? O fato é que repensar e validar as ações atuais e cotidianas nesse campo parece passar pela necessidade de recuperação das razões e dos significados primeiros.

Entretanto, a procura pela imagem da primeira casa do homem encontrou, por assim dizer, apenas vestígios de um mundo imaginado e desejado. Tal qual o paraíso, a cabana primitiva faz parte de um passado de idealização, pleno de fantasias e especulações. Alguns atribuíram a ela características de ordem natural, racional e até mesmo divina. Por necessidade de proteção ou com o intuito de domesticar o espaço natural por meios simbólicos, a primeira casa do homem foi inclusive associada às construções animais (colmeias, formigueiros), como continuação dos ritmos da natureza. Diante das inúmeras possibilidades de concretização da, por assim dizer, autêntica arquitetura, mais uma vez entendemos que, acima de imagens físicas invariáveis, estão as condições essenciais da existência humana, que remetem a características conceituais constantes do espaço edificado.

Por integrar o primeiro grupo de edifícios, a casa pode ser considerada o ponto de partida de todo o pensamento sobre o espaço construído. Da casa particular decorrem, então, os princípios da casa de grupos. Temos, dessa forma, a casa da saúde (hospitais), do ensino (escolas, bibliotecas), das artes (museus, centros de exposições) e assim por diante. A casa - lugar do indivíduo e obra primeira da referência existencial - reúne diretrizes igualmente válidas para o espaço público, que pode ser entendido como o lugar de uma comunidade.

Casa e corpo

Pensadores do espaço têm observado, ao longo da História, as estreitas relações entre o corpo e a arquitetura e, mais especificamente, entre o corpo e a casa, lugar de referência do homem perante o mundo (Chevalier & Gheerbrant, 1991, p. 196; Rykwert, 1999). Organizando o espaço a partir de seu corpo, o homem teria feito da casa uma reprodução direta de suas próprias proporções.

Analogias com o ser humano também atribuem espíritos e almas a casa. De fato, longe de ser uma estrutura estática e inerte, a verdadeira moradia concentra determinados esquemas que garantem uma dose de movimento vital. As tarefas e os hábitos cotidianos - que podem ser vistos como rituais -, bem como os moradores e os movimentos de seus corpos, falam de uma vitalidade que faz parte da natureza do espaço da habitação. Tais movimentos são propriamente responsáveis pela modelagem do lar.

Para o filósofo e historiador Illich (1987), essa relação com o lar assume, no caso das mulheres, um sentido especial, já que para elas habitar é também encaminhar uma sucessão ininterrupta de vida. Illich considerou que o gênero (masculino e feminino) dá forma aos corpos do homem e da mulher da mesma maneira que esses, cada um a seu modo e de acordo com suas características, dão forma ao espaço. E tal qual o ninho, o lar pode também ser entendido como uma modalidade de espaço necessária, criada a partir do corpo para a reprodução instintiva de nossa espécie.

Bachelard (1989b) contribuiu igualmente para a ideia de que a casa deve ser construída pelo corpo, para o corpo e a partir do interior, como o ninho e a concha. Verificamos, então, que ambos assumem qualidades semelhantes a nossa cabana primitiva: proteção, segurança, intimidade, confiança, dissimulação, mimetismo, tranquilidade, repouso, simplicidade e fragilidade. Ninhos, conchas e casas: o mundo resumido, protegido, privado por excelência e definido pelo próprio corpo.

2. A água na habitação: fonte de vida

A presença da água na habitação desde sempre envolveu muitas razões. Talvez a mais impressionante em valor simbólico, e que de certa forma ainda se manifesta nos dias atuais, tem sua origem nos tempos da era anterior a Cristo, e é ricamente ilustrada nos textos do Antigo Testamento das Sagradas Escrituras: a água como fonte da vida, indispensável, por isso, às plantas do campo e à formação do próprio homem.

E a água é abundante no Jardim do Éden, desta forma descrito:

Deste lugar de delícias saía um rio, que regava o paraíso, e que dali se repartia em quatro braços. Um se chama Fison; e este é o que torneia todo o país de Evilate, onde nasce ouro. ... O segundo rio chama-se Geon: este é o que torneia todo o país da Etiópia. O terceiro rio chama-se o Tigre que corre para a banda dos assírios; e o quarto destes rios é o Eufrates (Gênesis 2, 10-14).

Embora a associação fosse desde muito tempo estabelecida, foi somente à época do imperador persa Ciro, o Jovem (século V a.C.), que uma relação mais prática do paraíso descrito na Bíblia com o desenho dos jardins tornou-se evidente (Plumptre, 1994). Sem dúvida, no jardim por ele chamado de pairidaeza, que significa parque cerrado e plantado de árvores, os elementos mais significativos eram os canais que estruturavam sua planta geral. De fato, os quatro braços d'água tão notáveis nos jardins persas, e elementos centrais que inspiraram seus famosos tapetes, eram uma referência clara aos quatros rios que banhavam o paraíso bíblico. Nesses jardins a água era, igualmente, a representação da plenitude e da vida, quando essa se colocava em contraste com a aridez das montanhas e do deserto.

Assim, a água foi fonte de inspiração na construção de muitos jardins domésticos ao longo do tempo. Mesmo quando a acepção simbólica empregada nos jardins persas não se estabeleceu como intenção explícita de projeto, a água esteve presente de maneira essencial, impregnada na imaginação dos construtores, como se seu significado fizesse parte de um inconsciente coletivo, uma imagem arquetípica da plenitude e da vida.

Instrumento de poder

Nas diversas formas em que a água aparece associada à habitação, percebemos como em alguns momentos ela está ligada a manifestações de poder. Suas qualidades de reflexão, movimento e organização aliam-se para criar ambientes marcados por grandiosidade, ordem e espetáculo. A reflexão torna maior o objeto refletido, ao mesmo tempo em que dá ênfase a suas qualidades. Além disso, reforça a ideia de simetria e o rigor que essa sugere. O movimento da água, por sua vez, é capaz de criar imagens de espetacular força teatral, atraindo a atenção do espectador a um ponto específico. Quanto ao sentimento de ordem, a água impõe limites, unifica espaços e, quando associada ao movimento vertical, oferece obstáculos visuais garantindo, dessa forma, privacidade. Enfim, por todas essas qualidades, o uso da água pode estabelecer regras no espaço.

O sentido da purificação

Além de símbolo da plenitude, a água traz o sentido do poder da purificação. Para os primeiros cristãos, o banho dignificava o corpo, e o batismo na água era o sinal de que o homem já se sentia pronto para estabelecer um maior comprometimento com a fé, dando mais um passo na luta contra o desejo corporal (Sennett, 1997). Vemos como a água, além de purificar, era também capaz de proporcionar prazeres ao corpo que tanto os cristãos negavam, colocando-se à prova. Superar as sensações despertadas no banho era, para o cristão primitivo, um sinal de engrandecimento.

Tamanho é o bem-estar que a água de fato proporciona que os cristãos na Roma Imperial, abstinentes dos prazeres do corpo, não frequentavam assiduamente os banhos públicos (Sennett, 1997). O ato de se banhar envolvia uma série de significações que não só a da higiene. Acima de tudo, ocorria em um espaço para o relaxamento e a satisfação do corpo, onde as pessoas também promoviam encontros, conversavam e, naturalmente, exibiam-se. O uso da água para a higiene corporal só se deu de forma consciente a partir do século XVIII (Duby, 1990). Antes disso, esteve mais associada ao prazer. A indiscutível atração que a água exerce sobre as pessoas talvez esteja ligada a sua capacidade de estimular os sentidos e fazer "saber a existência de vínculos, elos que ligam o homem a sua própria natureza. Homens de água. De 75 por cento de água" (Mercedez-Benz do Brasil, 1991, p. 8).

3. Fogo: origem da casa e do homem social

Como vimos, a cabana primitiva foi tema frequente de discussão. Vitrúvio, à época do imperador romano Augusto, já se manifestava a respeito da origem da casa (Rykwert, 1999) e, ainda nos dias de hoje, confrontam-se as várias teorias sobre as verdadeiras razões que levaram o homem primitivo a construir sua primeira morada. Um discurso, de certo modo bastante difundido, defende que o homem edificou sua primeira casa pela necessidade de proteção contra quaisquer inimigos e as difíceis condições do tempo. Segundo Rykwert (1999), porém, há quem defenda, como o historiador francês André Leroi-Gourhan, que a primeira cabana surgiu em um momento em que o homem procurou controlar, por meios simbólicos, os fenômenos dos quais se tornava consciente. Assim, a casa teria sido um reflexo desse desejo de domesticação natural e produção de um mundo controlável. Tal pensamento é, pois, partidário da ideia de que a casa primitiva não surgiu simplesmente de uma necessidade do homem, mas, acima de tudo, com o despertar de uma postura reflexiva que, entre outros, significava dar um sentido às coisas mesmas.

A linguagem, primeiramente, e depois a casa, como meios simbólicos de representação, podem ser claramente percebidos, como discutiu Rykwert (1999), no relato que Vitrúvio apresentou a respeito da primeira cabana. Com base nos mitos das sociedades primitivas, Vitrúvio defendeu, e isso particularmente interessa-nos nessa discussão, que no descobrimento do fogo está a origem da casa e do homem-social. A consciência do fogo seria precursora das atividades criativas do homem, inclusive da linguagem.

Diante da suposta relação entre o fogo e a casa, uma análise etimológica nos revela que a palavra lar, tão comumente utilizada para designar a casa de habitação ou a família, tem como primeiro significado a parte da cozinha onde se acende o fogo e é sinônima de lareira. É como se o sentido primitivo do lugar do fogo tivesse sido ampliado através dos tempos até traduzir, em sua totalidade, o lugar da casa que conhecemos hoje. Por meio de exemplos que datam da Antiguidade Clássica, sabemos que o fogo foi durante muito tempo o principal elemento presente nos rituais de fundação doméstica e mesmo urbana (Fernandez-Galiano, 1988).

Elemento central da habitação

Assim como a água foi a força criativa do jardim, o fogo marcou a fundação do espaço doméstico construído pelos nossos ancestrais. Dominado ao centro da casa, representava a alma da habitação. Segundo Fernandez-Galiano (1988, p. 33), essa organização "reproduz a concepção do cosmos" onde "o fogo ocupa um lugar de privilégio".

A cena primitiva do descobrimento do fogo revelou, além dos significados simbólicos, um sentido funcional, utilitário: o homem percebeu o conforto que o fogo trazia e controlou-o. Assim, as chamas também iluminavam, aqueciam e transformavam os alimentos. No primeiro espaço da habitação estiveram presentes os aspectos funcionais e simbólicos do fogo. No entanto, progressivamente, o fogo primitivo foi deixando de ser livre, único e múltiplo em suas funções, para se tornar inúmeras vezes prisioneiro dentro de uma só casa, sem qualquer outro significado senão o de aquecer, cozinhar e iluminar. Ao longo do tempo, houve uma sensível perda do sentido simbólico do fogo, alma da casa para o homem primitivo.

Assim, o fogo da fogueira perdeu sua liberdade nas lareiras emparedadas, nas estufas, nos fogões, e foi deslocado, também em seu sentido, da posição central que ocupava dentro da casa à periferia, aos cantos. Tal qual boa parte da arquitetura produzida neste século, o fogo tornou-se igual para o olho e para a pele (Fernandez-Galiano, 1988). Toda a eloquência de seus múltiplos significados primitivos não foi mais sentida.

A experiência dos sentidos

Bachelard (1989a) apontou uma nova postura na qual, acima dos significados simbólicos, está o fenômeno, contemplado em seu presente. É possível apreender, diante do fenômeno, uma qualidade de aspectos não-simbólicos, resultantes da impressão momentânea da imagem que percebemos. Uma lareira sem fogo não tem vida porque não proporciona a experiência sensorial que objetiva. É apenas a lembrança de um fogo potencial.

A chama tem a capacidade de despertar nossa imaginação: diante dela temos o prazer de olhar bem mais além do fogo visto. Bachelard (1989a) acreditou que a chama da vela é um guia ascensional para o pensador, porque é um modelo de verticalidade. Ela nos envolve em uma atmosfera de familiaridade e induz, suavemente, à tranquilidade da alma.

O lar, no sentido de lugar da casa onde se acende o fogo, é suficientemente capaz de, sozinho, criar em torno de si um lugar para o homem. O fogo humaniza o lar: murmura, geme, sofre em sua luta contra a escuridão, ao tempo que acalma e consola o homem solitário. Como questionou Bachelard (1989a, p. 31), "Qual o maior sujeito do verbo apagar-se? A vida ou a vela?". O fogo, pela possibilidade de constituir autênticos espaços antropológicos - no sentido que aquece, reúne, congrega e consola - pode igualmente ultrapassar os limites do ambiente doméstico, não mais como símbolo de fundação urbana, mas para a constituição de lugares junto ao coletivo.

4. O interior e o exterior da habitação

Uma lei ontológica da arquitetura

Antes de iniciarmos propriamente uma breve discussão da dialética entre o espaço exterior e interior caberiam, a respeito deste último - espaço próprio da arquitetura -, alguns apontamentos. Zevi (1978, p. 24) discutiu sobre esse vazio arquitetônico, esse interior, do qual a arquitetura seria função:

A definição mais precisa que se possa dar atualmente da arquitetura é a que tem em conta o espaço interior. A arquitetura bela será a arquitetura que tem um espaço interior que nos atrai, nos eleva, nos subjuga espiritualmente; a arquitetura feia será aquela que tem um espaço interior que nos aborrece e nos repele. Mas o importante é estabelecer que tudo o que não tem espaço interior não é arquitetura [itálicos nossos].

Portanto, é necessariamente o vão contido, o vazio limitado, o conteúdo, e não o continente, que determina o fato arquitetônico. O espaço interior é colocado como condição sem a qual a arquitetura não seria possível, uma lei ontológica. Evidentemente, outros fatores concorrem para a determinação do valor global da obra arquitetônica, mas todos estão subordinados a uma concepção espacial. O envoltório, manifestado em suas mais diferentes formas, é apenas coadjuvante nessa experiência direta e imaterial do espaço através do vazio. É justamente esse espaço interior - onde os homens andam, percorrendo o tempo e o espaço - o campo próprio da arquitetura e o que a difere de todas as outras artes. Perceber uma obra arquitetônica somente pela contemplação de determinada parte de sua casca, por exemplo, poderia ser o mesmo que apreciar uma pintura, ou melhor, uma escultura, porque também o entorno dessa se pode percorrer. Mas a experiência verdadeira e total do fato arquitetônico permite vivenciar o espaço criado.

Mas o que define um espaço interior? A noção de interior pode eventualmente denotar um lugar totalmente cercado. Mas à medida que procedemos à análise, percebemos que esse conceito facilmente se amplia. Os seis planos retos - o teto, o assoalho e as quatro paredes - quando se desarticulam, se afastam, são modificados em sua forma, ou quando alguns são diminuídos ou aumentados e outros suprimidos, conformam igualmente espaços interiores. Assim sendo, pontos, linhas e planos se organizam em volumes para constituir vãos arquitetônicos. Esses volumes de espaço podem ser livres de aprisionamentos materiais porque também se completam pela imaginação: facilmente percebemos que sequências de colunas ou árvores constituem paredes; membranas suspensas no ar refletem um espaço interno de uso no solo; e também a abóbada celeste pode servir de cobertura; ou mesmo um círculo traçado no chão pode demarcar potencialmente um espaço interior.

Concluímos, então, que quaisquer cortes na continuidade espacial que limitam vazios ou criam espaços livremente fechados configuram interiores. Também o meio urbano externo, como arquitetura, define porções limitadas, entre outros, pelas próprias edificações. Assim temos, a partir do edifício, sucessivos interiores-exteriores que podem conformar, sobretudo, lugares arquitetônicos.

Interior versus exterior

Em meio a esses apontamentos, já percebemos intenções claras de contraposição entre interior e exterior. O espaço interior é autônomo, porque guarda uma individualidade; ordenado e racionalizado, pois é fruto de uma série de positivações; e, finalmente, estabelece-se como reflexo de um controle natural capaz de gerar sensações bastante peculiares. Também vimos que os interiores são palcos de uma vivência: sínteses de lembranças, imagens arquetípicas e experiências diretas e atuais. No abrigo do vazio arquitetônico, e mais especialmente no íntimo da casa, o homem pode, em paz, deixar-se tomar pelos devaneios. Já o espaço exterior, conceitualmente, pode vir a ser o reverso dessa realidade.

Ao encontro dessas questões, Bachelard (1989b) ponderou que o contorno que delimita o interior existe como uma espécie de membrana capaz de gerar inúmeras dialéticas. E por essa superfície, assim chamada sensível ou sensibilizada, percorrem em sentidos opostos e variantes as contradições: vemos opor-se o sim ao não, a casa à não-casa, o fechado ao aberto, o aqui ao lá, o cosmo ao caos.

Assumindo frequentemente o aspecto de um dispositivo panóptico da manutenção da ordem social, os espaços públicos de conhecida severidade e austeridade têm favorecido, por oposição, a consolidação da casa como refúgio qualificado, sensível, imaginativo, pitoresco, agradável, reduto da intimidade e da liberdade, distante do controle dos olhos do mundo. Espaço de recomposição, da consciência individual e familiar, do estar só e com os seus: a intimidade é necessária ao homem e realiza-se plenamente no domínio doméstico. O meio externo da ponderação - que desperta a sensação de perda, obscuridade e exposição ao perigo - opõe-se ao interior doméstico livre e íntimo, que nos remete às ideias de encontro, clareza e segurança. A casa então ganha dimensões de ventre materno, quente, confortante e protegido.

Então, o que é esse interior-exterior senão um único espaço fragmentado pela superfície sensibilizada de Bachelard? Mais uma vez poderemos estabelecer paralelos entre o homem e a casa, ou melhor, entre a pele do ser humano e a membrana sensível, que também parece humanizar-se: através das portas e janelas, conhecemos as noções de segurança, respeito, liberdade, mas também de curiosidade e hesitação. Fundamentalmente, são possibilidades de entreabrir, de tornar ainda mais sensível a superfície de contorno do espaço da habitação.

5. Luz e sombra

Quando procuramos compreender o uso da luz e da sombra no espaço da casa, seus significados, influências, efeitos, enfim, toda a atmosfera criada a partir desse jogo de opostos - que nos remete a uma dialética do que há e do que não há, ou como disse Bachelard (1989b), do sim e do não -, percebemos que, apesar de uma aparente igualdade entre os homens no que diz respeito a suas necessidades essenciais, são muitas as diferenças entre as formas de enxergar a presença da luz, ou a sua ausência, em um espaço interior.

É através da luz que boa parte de nossa percepção espacial se processa. Evidentemente, todos os sentidos trabalham de forma conjunta na formação de uma consciência de lugar. A chuva que cai sobre uma casa desenha seus contornos com diferentes sons antes de chegar ao solo. Ela fornece dimensões e qualidades àquelas pessoas que não podem ver através da luz; modifica os cheiros, desencadeia uma sinfonia de sons e desenha, na imaginação, contornos e consistências. Quem recebe a imagem que se processa nos olhos muitas vezes ignora que tantos outros universos existem dentro daquele que erroneamente consideramos único e verdadeiro. Quem subitamente priva de luz um ambiente pode descobrir que o universo real é aquele que percebemos, que se dá através dos sentidos, de quaisquer sentidos. Um mundo de luz é um universo. Um mundo de sombras é outro. Um mundo sem visão é ainda diferente.

Poderíamos, nesse momento, desvendar algumas das qualidades do universo da sombra. Embora muitas vezes se possa pensar que o espaço é construído mediante o acréscimo, a inserção de elementos, descobrimos um universo surpreendentemente rico e complexo se consideramos justamente a subtração da luminosidade.

As sombras constroem espaços de vazios. A penumbra revela qualidades impossíveis de serem experimentadas à luz plena. Como elemento físico real, é protagonista na criação de um universo totalmente novo, de diferentes qualidades e em constante mudança, principalmente nos espaços que já acreditamos conhecer quando totalmente iluminados. Nos universos da penumbra, o espaço ganha mais profundidade, densidade e dramaticidade. Ele pode ser descoberto lentamente, com o decorrer do tempo, pois sua apreensão total não é imediata. Há sempre um lado que não conhecemos e que só podemos conhecer se intencionamos um caminhar. Aí, conhecer o espaço é, mais que tudo, desejar conhecê-lo.

As sombras revelam e ocultam espaços. Elas têm o poder de ampliar, reduzir e definir lugares. Esse poder quase metafísico das sombras de subjugar a matéria às flexibilidades da imaginação faz com que o espaço assim se revele diferente, sempre novo. Quando os raios luminosos modificam sua incidência, o que antes se mostrava agora pode se esconder e vice-versa. É nas sombras que a luz trêmula dá movimento às coisas, indicando a presença ou as mudanças do vento, ou mesmo, pela sua coloração, a hora do dia.

Embora nós, ocidentais, tão pouco exploremos os efeitos das sombras em nossos espaços, os orientais desde muito manifestam suas preferências pela penumbra como meio de obter inúmeros efeitos estéticos. Assim, grande parte das coisas parece ter sido pensada em função da pouca luz. No Japão, como comentou o poeta Tanikazi (1997) em seu livro O elogio da sombra, é na penumbra que os verdadeiros sentidos da culinária, do vestuário, e mesmo do teatro se revelam na quase indescritível qualidade de cores, texturas e formas. As casas são propositadamente escuras, e sua beleza está justamente no jogo sobre o grau de opacidade das sombras. Por isso, são raros os elementos decorativos. Quaisquer objetos só teriam razão de ser ao dar à sombra uma dimensão no sentido da profundidade. Os espaços não são cansativos, pois uma luz indireta e difusa permite, como já comentado, variações na percepção. Estamos diante de fortes questões culturais: saltam aos olhos as diferenças entre o caráter da luz e da sombra entre orientais e ocidentais.

No Ocidente, os espaços parecem ser devassados pela luz, e toda a evolução está na busca incessante de iluminar. Não ficamos surpresos quando algum comercial de apartamentos anuncia espaços amplamente iluminados. Enfim, desde o século XIX, quando então se descobriu o efeito bactericida da luz solar, ambientes cheios de luz são, deste lado do hemisfério, sinônimos de saúde, limpeza e qualidade de vida. Evidentemente, luz e ventilação são fundamentais para a manutenção da qualidade do ar e para o preenchimento de certos requisitos de conforto ambiental. Não pretendemos discutir os benefícios do avanço no entendimento dessas questões, muito menos da energia elétrica que, podemos assim dizer, vulgarizou a luz em espaços e cantos nunca antes iluminados. O que está em questão é a qualidade de espaço conquistada pelos orientais através do claro-escuro.

Segundo Tanizaki (1997), o que explica a atitude do oriental em buscar o belo nos jogos do claro-escuro é uma tendência de adaptação às condições que a própria natureza lhe coloca. Já nos países ocidentais, existe uma busca incessante de uma condição sempre melhor que a atual. Na cultura oriental, há um verdadeiro sentido de natureza. O frio do inverno, o escuro da noite, o envelhecido pelo tempo e o enegrecido opaco dos objetos, pelo toque das mãos, são mais dignos do espaço criado pelo homem do que a calefação, a claridade eterna, o metal sempre novo, brilhante e lustrado. A marca do tempo e da natureza é um ingrediente do belo.

Pode-se então questionar: de onde vem essa luz que banha todo o espaço e o revela prontamente ao primeiro olhar? Parece que a resposta tem a ver com a artificialização proposta com o avanço crescente da indústria e da técnica. Essa luz remete a uma racionalidade, a uma objetividade. Ela deu nome ao século em que o homem redescobriu a razão: o Século das Luzes.

No cinema ocidental, tal racionalidade ganhou formas bastante características nos jogos de claro-escuro. As sombras reforçam o valor de mistério e costumam despertar sensações de indefinição, insegurança, confusão e medo daquilo sobre o que não se tem domínio - porque não se pode apreender com os olhos -, angústia, opressão, espera por uma claridade elucidativa e confortante que parece não chegar. É no escuro que os problemas transcorrem e na claridade que costumam ser solucionados. No claro, aparentemente nossos sentidos respondem mais prontamente, e isso nos dá imediata segurança. No escuro, precisamos aguçá-los, o que, por si só, gera um estado de tensão. Luz e sombra desenvolvem, assim, uma dialética do bem e do mal.

6. Movimento

Quando nos dispomos a entender melhor certos elementos da habitação, tomando-os conjuntamente, poderíamos dizer que são quase inevitáveis as associações, relações, a busca por conceitos comuns e particulares. Talvez mesmo essa intenção primeira de agrupá-los, e a insistência de assim prosseguir sem mesmo conhecer quaisquer relações conscientes, revelem já uma interação de aspectos singulares, que desejamos desvendar. Assim, diante da atração que torres, mirantes, pontes, escadas, labirintos ou mesmo simples caminhos exercem sobre o ser humano, não seria estranho tomá-los como um conjunto de elementos bastante curiosos no estudo da casa. E à medida que aproximamos, colocando lado a lado, sensações, desejos, naturezas, percebemos igualmente um conjunto de razões que justificam essa atração singular.

Poderíamos começar identificando-os como elementos que traduzem o dinamismo na habitação, concentram em si o movimento através do espaço e introduzem o tempo de um percurso, a percepção sequencial e inusitada durante o movimento. Em síntese, são todos caminhos. Caminhos que assumem significados tão variados quanto suas formas sinuosas ou retas; que podem exigir tomadas de decisão ou não, subir, descer, ou mesmo se manter na horizontal. Caminhos que servem para levar de um lugar a outro ou trazer de volta ao ponto de partida. Caminhos tão irresistíveis quanto o objetivo de chegar. Caminhos que são o próprio objetivo.

A dualidade início-fim própria desses percursos gera uma espécie de tensão no espaço: é preciso percorrê-lo. As formas curvas, em degraus e até mesmo as objetivas retas reforçam o dinamismo inerente desses elementos. Os que trazem movimentos diagonais e em espiral são, entretanto, mais imprevisíveis, alteram a ordem existente e tornam mais difícil nossa orientação. Apuramos então nossos sentidos e tomamos maior consciência de nossos movimentos.

De qualquer forma são todos, essencialmente, elementos dinâmicos e, por isso, provocativos. Eles instigam a ação. Sua existência apenas se completa se cumprimos seu propósito e com eles participamos do movimento. Segundo Yudell (1982), qualquer arquitetura, a princípio, é um estímulo potencial de movimento, seja esse real ou imaginário. Quando nos confrontamos com o espaço em nossa volta, percebemos que diante dele nossos movimentos estão frequentemente se alterando, como resposta a um estímulo e em virtude de uma adaptação do corpo - de dimensões, formas e ritmos bem definidos - traduzida em variações de velocidade, modo e intensidade de ação, ou mesmo de marcações internas de pulso, coração e respiração.

Outras questões igualmente se revelam somadas ao fator movimento. Torres, mirantes, labirintos, pontes e escadas também evidenciam certas características do ser humano. Entre elas o desejo de alcançar. É preciso alcançar aquilo que lhe é proposto. Qualquer elemento dinâmico impõe um desafio no ato de alcançar, simplesmente alcançar. Assim, precisamos necessariamente encontrar o centro de um labirinto, chegar ao outro lado da ponte, subir até onde a torre permitir, tocar o cume de uma montanha. Outro desejo é o de descobrir. O que encontraremos ao descer a escada do porão ou subir a do sótão? Aonde esse caminho irá nos levar? O enigma desperta a vontade da descoberta, de desvendar o mistério, de conhecer o que se põe fora do alcance de nossas sensações. Por fim, poderíamos falar de uma necessidade de superação. Superamos o medo das alturas. Subimos uma montanha, entre outros, pelo prazer de subjugar nossas limitações físicas, vencer o desafio imposto. Ao atravessarmos uma ponte, compartilhamos com ela o desejo de sobrepor esses desafios. São todos desejos inerentes ao homem que o estimulam no percurso desses espaços.

7. O vazio na habitação: a eficácia do universo das potencialidades

A eficácia do vazio

Começaremos tratando do espaço. Em seu sentido mais amplo, o espaço não é apenas o lugar das realizações, do mundo organizado, construído. É também o lugar do ainda não realizado, do que apenas se insinua como possibilidade. São, respectivamente, as duas frações que compõe o espaço: o mundo realizado e o das potencialidades. O primeiro bem conhecemos e é bastante palpável. Está diante de nossos olhos todo o edificado, o criado e o constantemente recriado pelo homem ao longo do tempo. O segundo é por muitos identificado como o caos das origens; dali tudo advém.

Segundo Parain (1971), para Tchoang Tse, pensador chinês, o espaço vazio é um espaço rudimentar em seu processo contínuo de renovação e reposição. Diferente do nada, o vazio materializa-se em um todo de possibilidades à espera de um acontecer. Do caos das origens, lugar dos possíveis, ou, melhor dizendo, do vazio concreto de nosso espaço surgem, assim, imprevisíveis ordens novas.

A cultura ocidental, entretanto, tende a negar o vazio. Somos talvez vítimas de uma fobia coletiva e generalizada? O fato é que estamos sempre tentando preencher, quase desesperadamente, o que ainda não foi preenchido. Movidos pela lógica do pensamento racionalista, ocupamos o que está para ser ocupado. Apagamos qualquer vestígio do germe original. Optamos por uma possibilidade e descartamos todas as outras.

Espaço do silêncio e do pensamento

No caos das origens, o som ainda em germe manifesta-se no mais puro silêncio. Ele guarda as mesmas qualidades do vazio, pois também abre passagens instaurando um sentimento de grandeza, antecede revelações e envolve importantes eventos. Outros significados, paralelos à noção de vazio anteriormente descrita, também se estabelecem na obra de poetas, místicos e filósofos: o vazio é o percurso em direção ao interior, à verdadeira vida, o estado acompanhado de certo prazer que antecede a experiência de si próprio, o espaço da solidão, introspecção, serenidade.

Quando olhamos para uma folha em branco à espera de algumas palavras, percebemos que o espaço vazio denuncia um desejo de iminência das coisas. Do pensamento, por exemplo. No vazio, o pensamento encontra lugar, porque ali ainda nada foi escrito, nada foi dito. Homem e pensamento são protagonistas: eles agem, dizem, criam sem restrições, porque nada foi preestabelecido. O vazio faz então pensar sobre as coisas do homem: nessa expressão de liberdade, somos o próprio espaço. O espaço onde o vazio se completa. O espaço onde tudo acontece. Finalmente, é preciso que aprendamos com o vazio, que permite ao homem escutar a si próprio, pensar e criar, à beira de um todo ainda não realizado; que nos leva à consciência de ser no mundo, habitar o mundo, existir, ante um universo de revelações ainda em germe, de renovações à espera de um acontecer; que nos torna pensadores de nós, conhecedores do homem, em presença da plena possibilidade. É preciso aprender, talvez reaprender, a condição de ser humano. E então perceber, no arredor vazio, a realização de um autêntico construir, a construção de um autêntico recomeço.

Recebido em: 28/09/2008

Revisão em: 02/09/2009

Aceite final em: 31/01/2010

Maíra Longhinotti Felippe é arquiteta e urbanista e, atualmente, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, concentrando-se no estudo das interações humano-ambientais. Endereço : PPGP-CFH/UFSC. Campus Universitário, Trindade. Florianópolis/SC, Brasil. CEP 88040-970. Email: mairafelippe@gmail.com

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 2010

Histórico

  • Aceito
    31 Jan 2010
  • Revisado
    02 Set 2009
  • Recebido
    28 Set 2008
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