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Fronteiras da laicidade

RESENHAS

Fronteiras da laicidade

Emerson Giumbelli

Professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, E-mail: emerson.giumbelli@ufrgs.br

Jean BAUBÉROT & Micheline MILOT. Laïcités sans frontières. Paris, Seuil, 2011. 349 páginas.

O livro dos sociólogos Jean Baubérot e Micheline Milot se tornará provavelmente uma referência incontornável no tema a que se dedica. A obra dá continuidade a discussões que cada um deles vem realizando a partir de posições acadêmicas importantes, ele na França, ela no Canadá. Vers un noveau pacte laïque?, de 1990, talvez seja o marco inaugural da conexão de Baubérot com o tema, ao qual Milot se junta alguns anos depois. Além disso, ambos são referências cruciais para a Rede Iberoamericana Liberdades Laicas, presente também no Brasil com a realização de eventos, publicações e posicionamentos públicos. Na América Latina, Liberdades Laicas é a divulgadora da "Declaração Universal sobre a Laicidade no Século XXI", que Baubérot e Milot ajudaram a elaborar. Sua atuação tem se feito sentir em debates envolvendo assuntos como o reconhecimento de direitos sexuais e reprodutivos, a retirada de símbolos religiosos de recintos estatais, o questionamento do ensino religioso em escolas públicas etc.

Apontar para a circulação dos autores e suas ideias em empreendimentos ativistas pode levar, cedo demais, a uma desconfiança sobre os objetivos declarados do livro, uma vez que ele se apresenta como um exercício sociológico que pretende se distanciar dos "usos sociais" de seu tema. Nessa linha, visa fundamentar a laicidade como conceito analítico que permitiria caracterizar, no plano empírico, as laicidades, ou seja, distintas configurações estabelecidas em espaços nacionais e momentos históricos. Seis partes compõem o livro. Na primeira, elabora-se uma genealogia da laicidade, destacando a política inglesa no século XVII, o ideá­rio de algumas seitas protestantes, e certos marcos filosóficos, sobretudo as elaborações de John Locke (1632-1704) sobre a tolerância. Na segunda, propõe-se uma definição da laicidade, a partir da qual se delineiam seis tipos ideais para identificar suas possíveis configurações. Em seguida, os autores posicionam-se diante das alternativas que, em um debate intelectual, sua definição da laicidade permitiria contornar. Na quarta parte, o objetivo é realizar a distinção entre, de um lado, os conceitos de laicidade, secularismo e de laicização e, de outro, o de secularização, cuja hegemonia é acompanhada em sua genealogia. Na quinta parte, os autores apresentam outra tipologia, esta de natureza sociohistórica, para identificar "limiares de laicização". Por fim, tratam da situação francesa, desde o fim do século XIX até o início do século XXI. Embora diversos aspectos, históricos ou atuais, de vários outros países sejam abordados ou analisados, a França é privilegiada não apenas na parte específica, como também em outros trechos do livro.

Procurarei a seguir detalhar alguns dos percursos de Laïcités sans frontières. Meu objetivo, no entanto, não é precipuamente expositivo. O livro tem qualidades suficientes para merecer a leitura direta de suas ideias. Não pretendo, tampouco, tecer considerações sobre a relação desta obra com outras de seus autores, tarefa que demanda comentaristas mais bem informados. Também não terei condições de acompanhar os diálogos intelectuais presentes na obra, que ultrapassam as ciências sociais para se lançar rumo à filosofia política. Minha pretensão recai, acima de tudo, sobre a própria noção de laicidade. Como Baubérot e Milot a entendem e a operacionalizam? E a todos aqueles interessados em empreendimentos comparativos: até onde essa noção pode nos levar?

Comecemos com o que considero ser um dos pontos mais positivos das propostas enunciadas no livro. Trata-se da distinção entre secularização e laicidade. Os autores sugerem que o primeiro conceito seja reservado para a abordagem de dimensões sociais e culturais do retraimento do domínio religioso; o segundo, dotado de autonomia em relação ao primeiro, é entendido como um modo de organização ou regulação política, incluindo aspectos jurídicos. Assim, há países em que medidas laicizantes foram tomadas mesmo sem um grau correspondente de secularização social ou cultural, como foi o caso da Turquia no início do século XX; já em países nórdicos, o regime de igrejas oficiais se manteve mesmo em um quadro de secularização avançada. Podemos questionar a autonomia entre os dois conceitos, ou, por outro lado, perguntar se o conceito de secularização é imprescindível à discussão sobre laicidade. De todo modo, a ideia da distinção entre os dois conceitos tem a vantagem de produzir um campo específico de debate e análise. Se a laicidade aponta para modos de regulação política e jurídica, então encontramos um caminho profícuo de investigação sobre os mecanismos por meio dos quais Estado e sociedade civil procuram organizar o que se considera "religioso" em determinados contextos históricos. Escapa-se assim da controvérsia muitas vezes estéril sobre a "maior" ou "menor" presença da religião na vida dos indivíduos, nas instituições sociais ou na governança estatal.

Mas, afinal, com qual definição de laicidade operam os autores? De acordo com o livro, laicidade corresponde a "um arranjo do político no qual a liberdade de consciência se encontra, em conformidade com uma vontade de igual justiça para todos, garantida por um Estado neutro em relação a diferentes concepções da vida ideal que coexistem na sociedade" (p. 80). A definição está composta por quatro elementos, configurados como fins e meios: primeiro, a liberdade de consciência e a igualdade entre convicções religiosas e filosóficas; segundo, a neutralidade estatal e a autonomia do político, atingidas seja por uma separação declarada entre Estado e igrejas, seja por outras medidas mais graduais. O foco, portanto, incide sobre a liberdade de consciência e a igualdade como princípios e sobre as formas e configurações que permitem atingi-las. Isso, para os autores, permitiria um empreendimento comparativo, contornando o obstáculo linguístico levantado por aqueles que consideram a laicidade uma especificidade francesa ou latina. Ao contrário, e independentemente da genealogia ocidental da noção, "os elementos da laicidade aparecem, segundo modalidades diversas, em toda sociedade que deve negociar suas relações sociais marcadas por interesses ou concepções morais ou religiosas plurais" (p. 82).

De fato, inúmeras situações são abordadas no livro, mesmo que se note um privilégio à Europa do norte e do oeste e ainda a alguns países das Américas, havendo o projeto de tratá-las de maneira simétrica – ou seja, sem que qualquer delas se apresente como modelo consumado de laicidade. Os autores reivindicam, assim, ter conseguido trabalhar com a laicidade sem considerá-la uma essência ou uma substância. No entanto, creio que se pode problematizar essa definição. É verdade que sua combinação de elementos lhe confere plasticidade e polivalência, mas não podemos deixar de notar que se trata de princípios e que a abordagem proposta pelo livro implica em lhes conferir estatuto empírico. Isso levanta enormes dificuldades para a pesquisa. Quais seriam os correspondentes empíricos para os conceitos de liberdade de consciência, igualdade, neutralidade e separação? O livro não oferece uma resposta direta a tal indagação. O que faz é tratar de diversas situações onde essas noções podem ter algum sentido ou reconhecimento. Não seria o caso, contudo, de reformular a pergunta: em que sentido e por meio de que mecanismos ocorre o reconhecimento de um ou vários daqueles princípios em quadros históricos específicos? Essa interrogação não desconhece que certas definições possam atravessar quadros diversos, mas torna imperativo ter como ponto de partida situações concretas delimitadas – e não princípios tendencialmente genéricos.

Os quatro elementos que compõem a laicidade são manejados pelos autores para obter vários resultados. O primeiro deles é uma tipologia que gera seis configurações de laicidade: a separatista e a autoritária, que valorizam demasiadamente os elementos-meios; a anticlerical, assolada por tentações antirreligiosas; a de fé cívica, colocada a serviço da coesão social e da unidade nacional; a de reconhecimento, que procura promover as liberdades sem descuidar da produção de uma esfera comum às diferenças, em relação às quais o Estado figura como árbitro; a de colaboração, que envolve acordos com autoridades religiosas. Não é difícil perceber nessa tipologia certa preferência pela laicidade de reconhecimento (na acepção de Taylor e Honneth), que atinge uma relação ótima, ou próximo disso, entre os quatro elementos e aplica as exigências definidas pelas balizas filosóficas privilegiadas pelos autores na primeira parte do livro. Os demais tipos representam algum desequilíbrio entre aqueles elementos. Na parte seguinte, os mesmos tipos são acionados para localizar deficiências nos argumentos defendidos por autores criticados em um debate intelectual sobre a laicidade. E na quinta parte o procedimento permite tratar da laicização como processo sociohistórico, em três etapas, estando a laicidade de reconhecimento associada à última delas, a mais recente.

É importante mencionar que essa apresentação não dá conta, evidentemente, das extensas demonstrações analíticas que preenchem três ou quatro partes do livro. Porém, elas não anulam o que estou buscando apontar sobre a própria noção de laicidade tal como articulada pelos autores. São eles mesmos que lembram que "não se trata de descrever situações concretas, mas de elaborar um instrumento de medida para analisá-las" (p. 228). O uso de um instrumento de medida supõe que o objeto sobre o qual se aplica é algo redutível às unidades de medida, que vêm a ser os tipos delineados na segunda parte. É significativo, então, o uso recorrente, geralmente em sentido positivo, da expressão "acomodações" (pp. 126, 143, 146, 259, 298). Ela pretende dar conta das soluções que respondem a "lutas políticas e societárias que interpelam continuamente os arranjos de regimes de laicidade" (p. 120). Os processos históricos são, assim, divididos em duas espécies: aqueles que definem o regime de laicidade de acordo com algum ou vários dos "tipos ideais"; aqueles que correspondem às tais "acomodações". Por exemplo, no Brasil, caso evocado muito rapidamente no livro, a separação entre Estado e religião atrelada a um projeto frágil de fé cívica no início da República teve que conviver com a forte influência da Igreja Católica, o que veio a provocar mudanças no regime. A descrição não deixa de estar correta, mas ela talvez impeça que perguntemos sobre a participação da Igreja e do catolicismo no próprio arranjo de laicidade. Retomando os termos acima: como as "acomodações" revelam e participam das configurações históricas de laicidade?

A última parte do livro também pode servir para ilustrar esse ponto. A França não é abordada na discussão sobre laicidade como modelo, nem como um país singular, o que já posiciona os autores em sintonia com outras análises sobre o país, recentemente na berlinda seja pelo marco do centenário da "lei de separação de 1905", seja pelas polêmicas sobre vestimentas associadas ao islã. A razão pela qual o livro lhe dedica tanto espaço em uma "reflexão internacional" é que "a França aparece ainda como uma referência, para o melhor e para o pior" (p. 255). Baubérot e Milot qualificam a laicidade francesa de paradoxal, pela mistura de anticlericalismo e separatismo atenuado. Procuram, além disso, mostrar que a laicidade foi e continua a ser objeto de debates, tensões e conflitos internos, que obrigam a reconhecer sua complexidade. Historicamente, uma dupla tendência se desenha. De um lado, a separação consolidada pela lei de 1905, cujo "espírito" os autores defendem para mostrar como foi se acomodando não apenas às minorias históricas, mas também ao catolicismo e ao islã. De outro lado, as reações anticlericais no passado e islamofóbicas no presente servem-se da laicidade para carregá-la de sentidos excludentes. O livro acompanha vários lances do debate social e político sobre os "signos religiosos" nos últimos vinte anos, argumentando que os proponentes da sua interdição saíram vencedores em uma batalha que tornou o político refém da exposição midiática.

Tomemos dois aspectos dessa análise. Os autores afirmam que a lei de 1905 permitia respeitar a organização adotada pelas igrejas, em sua diversidade. A constatação não é pacífica, como apontam as reações católicas. Seja como for, o que Baubérot e Milot enfatizam é a afinidade da lei com os princípios de liberdade e igualdade. Porém, isso deixa de lado a problematização das formas pelas quais se operava certo tipo de reconhecimento de organizações religiosas pelo Estado. Quanto ao panorama recente, os autores contrapõem a boa disposição estatal quando se trata de capelanias ou de lugares de culto muçulmanos à hostilidade generalizada ao uso de véus. Essas posições são assim divididas em função de seu acordo ou não com o "espírito da lei de 1905". Outro ponto de vista, contudo, procuraria encontrar a lógica do tratamento estatal conferido ao isl㠖 para o que auxiliaria acompanhar a gestão de um assunto cuja ambivalência é bem menor na França, a reação às "seitas" – e saber o que ele pode afirmar sobre o entendimento da laicidade. Ao tentar mostrar, com razão, como não procede caracterizar essa laicidade como uma separação estrita, os autores perdem o ponto de apoio para problematizar (o que vai além de constatar) as formas de reconhecimento, colaboração e aproximação, e também de delimitação e exclusão do que é considerado "religioso" na França.

Isso nos leva a um último ponto. O projeto de um empreendimento comparativo sobre a laicidade – traduzido pelo título do livro em questão, "laicidades sem fronteiras" – apresenta-se como imperativo e, ao mesmo tempo, levanta indagações sobre suas próprias condições de possibilidade. Desenvolver um projeto verdadeiramente comparativo sobre laicidade talvez leve a buscarmos terminologias e caminhos de pesquisa que perturbem aquela noção. Ou seja, que a recusem como conceito analítico e a integrem como parte do objeto de observação. Assim, comparar laicidades implicaria em acompanhar os sentidos e as construções associados com essa categoria em distintos quadros históricos. No entanto, para propiciar esse acompanhamento, o foco conceitual deveria recair sobre os mecanismos e os dispositivos pelos quais aparatos estatais e outros agentes se relacionam com o "religioso", tal como este é socialmente definido. Isso evitaria outro dos riscos da abordagem proposta no livro: que o sentido da laicidade corresponda meramente às formas variadas de se estabelecer a autonomia recíproca entre Estado e igrejas, do mesmo modo que o paradigma da secularização se perde muitas vezes na mensuração do retraimento da religião. A leitura nos instiga a buscar os caminhos mais promissores para cruzar fronteiras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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