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Religião como tradução: missionários, tupi e "tapuia" no Brasil colonial

RESENHAS

Do alcance da tradução cristã

Marta Amoroso

Cristina POMPA. Religião como tradução: missionários, tupi e "tapuia" no Brasil colonial. Bauru-SP, Edusc, 2003. 444 páginas.

Na década de 1960 foram delineadas duas vertentes dos estudos antropológicos sobre a religião, ambas profícuas, e, no entanto, opostas. Em Totemismo hoje (1962) Lévi-Strauss demovia o campo religioso do horizonte da antropologia em nome de uma abordagem sistêmica e mais compreensiva das sociocosmologias nas quais as expressões rituais adquirem sentido. No final da mesma década, C. Geertz concluía Observando o Islã, em que , seguindo em sentido contrário, refletia sobre as práticas religiosas em Marrocos e na Indonésia e buscava "encontrar a religião" não só nos grossos volumes sobre mitos totêmicos, ritos de iniciação, crenças em bruxas, comportamentos chamanísticos, mas também nos estudos sobre teologia cristã, hinduísmo e islamismo. O campo religioso tornava-se aqui o foco privilegiado da análise antropológica comparativa interessada em investigar a dinâmica e as mudanças culturais.

O livro de Cristina Pompa, tese de doutorado justamente agraciada com o prêmio Anpocs de melhor tese do ano de 2002, guarda grande afinidade com a segunda vertente, a que dá ênfase ao campo religioso como o lugar privilegiado da análise antropológica da mudança cultural. Ao privilegiar os mecanismos que estão por traz da vocação universalista da missão cristã e incorporar do discurso nativo dos missionários o historicismo de ações e práticas que se dão sempre por sobreposições e incorporações, seu trabalho avança em direção às populações ameríndias. Em tal opção analítica residem os méritos – uma vigorosa antropologia da missão crist㠖, mas também os limites deste trabalho, que encerra seu círculo nas fronteiras da concepção cristã da alteridade, aquela que se projeta do observador, deixando espaço acuado para a criatividade e o protagonismo das populações abordadas pela mensagem universalizadora da missão. Muitos são os méritos do trabalho – a escrita precisa, a agilidade argumentativa e a habilidade no tratamento das fontes quinhentistas e seiscentistas, parte delas inédita e originalmente registradas em latim, garantem aos leitores especializados e interessados em geral uma leitura proveitosa e agradável de tese original, que encontrará por certo grande acolhida.

Trata-se de repensar a missão cristã como o lugar da tradução intercultural, a religião constituindo-se em plataforma comum de diálogo entre missionários, índios e demais agentes da cena colonial. O trabalho de Cristina Pompa propõe a releitura das fontes coloniais com o objetivo de revisar teses da história e da antropologia que 1) tendem a não considerar a complexidade do fato colonial, caracterizado por múltiplas agências e atores e 2) operam com a polarização de forças que dispõem índios versus europeus, deixando de lado construções históricas que decorrem do "encontro colonial". A proposta é avançar para além da constatação da "perda" e da "resistência", em direção a processos históricos que alteraram tanto europeus como populações indígenas, fazendo surgir os hibridismos decorrentes da experiência colonial.

O livro consta de duas partes e nove capítulos. A primeira, composta de cinco capítulos, trata das relações entre os jesuítas e os Tupinambá. A autora tece críticas quanto à forma pela qual a etnologia ameríndia e as ciências sociais em geral construíram suas categorias analíticas, importando conceitos e construções diretamente das fontes religiosas dos séculos XVI e XVII, construções geradas pela necessidade dos europeus traduzirem os índios em seus próprios termos, utilizando para tanto conceitos como o de "religião", "milenarismo", "profecia" – marcas de uma visão de mundo predominantemente medieval que impregna o olhar europeu a respeito das populações ameríndias. Na segunda parte, o estudo avança sertão adentro e focaliza capuchinhos, jesuítas e a missão entre os "tapuia" no século XVII para aí demonstrar que o procedimento de tradução do índio para os europeus teve como contrapartida a sistemática tradução do europeu realizada pelos índios, processo que a autora identifica igualmente entre os Tupinambá da costa. Um pouco menor, a segunda parte contém quatro capítulos, o último fazendo as vezes de uma pequena conclusão.

Do ponto de vista metodológico, a proposta é ambiciosa: extrair da documentação colonial, particularmente das fontes missionárias, não só o sentido da missão cristã entre os índios, mas também o sentido que o "encontro" colonial adquiriu para as populações indígenas. Veremos que este anseio de considerar os índios não se apóia nas narrativas indígenas – de resto quase sempre inacessíveis ao analista dos processos coloniais, tampouco no diálogo com a etnologia ameríndia, que hoje dispõe de modelos analíticos relativos à particularidade dos processos socioculturais nas terras baixas sul-americanas. Argumentando a "falta de inclinação metodológica para o preenchimento de lacunas na documentação antiga com os dados das culturas contemporâneas", a autora abre mão de estabelecer maior aproximação com a etnologia – procedimento metodológico amplamente praticado por etnólogos, também conhecido como "crítica etnográfica das fontes históricas" (Fausto, 1992),1 1 Carlos Fausto, "Fragmentos de cultura tupinambá", em M Carneiro da Cunha (org.), História dos índios no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras/Fapesp/SMCSP, 1992. – recurso condenado pela autora como o "pecado mortal" da etnologia. Entretanto, como é sabido que estar a salvo do pecado não é exatamente fácil do lado de baixo do Equador, em muitas passagens é a etnologia que fornece o essencial para a análise do sentido que as relações adquirem no período colonial.

Logo na introdução nos é dado saber que a análise seguirá as trilhas dos missionários, dos aldeamentos jesuítas entre os Tupi do século XVI aos aldeamentos capuchinhos do sertão da Bahia e Pernambuco criados entre os "tapuias" de fala travada no século seguinte. É, assim, a historicidade da implantação da missão que constituirá o fio narrativo da análise, como serão missionários cristãos os narradores privilegiados de processos que se deram com diferentes populações ameríndias ao longo de dois séculos. Como então se justifica a afirmação de que os índios não só estão sendo considerados na análise, como constituem o foco principal da abordagem? Para tanto é preciso acompanhar com a autora a revisão do espaço físico e conceitual da missão cristã, que emerge na análise como símbolo da incorporação da alteridade ameríndia, espaço da tradução intercultural, que possibilitou que etnografias missionárias constituíssem fonte de informação sobre os índios tanto para a ciência como para as leis ocidentais. O trabalho busca, dessa forma, de um lado garantir a particularidade da agência missionária no contexto mais amplo da empresa colonial, de outro explicitar a justa medida de hibridismo decorrente do processo histórico que advém da conquista européia. A experiência colonial é decisiva para missionários e populações indígenas, dela emerge uma "linguagem simbólica negociada", construída com os fragmentos das tradições anteriores: sagradas escrituras, escolástica, documentos eclesiásticos, de um lado, mitos e ritos, de outro. Relevemos por um momento o fato de que a análise dispõe lado a lado o jogo desequilibrado de forças que compõem tal trama de memórias: a análise vai frisar insistentemente o "ambiente de tolerância recíproca" que emana das construções coloniais dos aldeamentos missionários.

A proposta de inventário das categorias missionárias constitui, de fato, o ponto alto do trabalho. Se para o catolicismo do Renascimento a humanidade é uma só, em estágios diferenciados de civilização, há que buscar nos índios do Brasil os elementos de uma "religiosidade insipiente" que possa justificar tanto a colonização como a viabilização do projeto missionário para o continente sul-americano. Diferentemente do Peru e do México, onde os jesuítas identificaram a religiosidade nativa nas idolatrias, nas populações das terras baixas a religiosidade vai se articular em torno do xamanismo e das práticas de "feitiçaria". Assimiladas às ações do demônio, mas ainda assim demonstrações da religiosidade, e, portanto, da humanidade nos trópicos, as práticas xamãnicas irão se constituir em plataforma comum de comunicação interétnica As cartas jesuítas são generosas em exemplos de apropriações que se operam de parte a parte, missionários da Companhia de Jesus agindo como xamãs na calada da noite, xamãs encenando missas e apropriando-se da parafernália ritual católica. Entretanto, o conteúdo das apropriações ameríndias nos escapa quase completamente, e aqui é mais sensível a ausência na análise de um diálogo maior com o que a etnologia acumula hoje a respeito do xamanismo, o conteúdo das políticas indígenas e dos discursos etnicitários.

O profetismo tupi na linha de abordagem adotada evidenciaria não a manifestação da tradição pré-colonial – como A. Metraux buscou documentar no início de século XX, dispondo em linha de continuidade as crônicas religiosas relativas à missão, fortemente marcadas pela mentalidade apocalíptica medieval, e a etnografia de Nimuendaju, realizada em 1914 sobre os Ñandeva em busca da Terra sem mal. O profetismo, o milenarismo e as santidades no continente americano evidenciariam de forma mais acabada a presença de missão entre as populações nativas, sendo resultado de uma construção negociada ou da disputa: da mesma forma que jesuítas utilizavam elementos da cultura nativa para veicular a mensagem cristã, os xamãs apropriavam-se de signos estrangeiros e da fala dos missionários.

A experiência dos jesuítas entre os índios da América do Sul reverte, por sua vez, a mentalidade européia. Nesse sentido, a análise volta-se de forma um pouco apressada contra autores como J. Hansen e A. Lenharo, que se dedicam com imensa competência ao estudo da retórica e dos gêneros do discurso inacianos. Longe de repetir fórmulas cristalizadas, argumenta Pompa, a missão na América exigiu a revisão das escrituras e a abertura dos jesuítas para as necessidades específicas do apostolado no Brasil, dinâmica esta que resultou, por exemplo, na formulação do conceito dos aldeamentos indígenas como ideal de construção do reino de Deus na terra. Ou na concepção de uma língua comum, o Nhengatu, que possibilitou a comunicação colonial entre índios e estrangeiros, instrumento híbrido de comunicação. Da mesma forma, aldeamentos indígenas, catecismos, confissão são elencados como os meios de construção da consciência cristã das regras e dos deveres.

Seguindo um mote consagrado pelo antropólogo jesuíta Bartomeu Meliá, a autora volta às fontes coloniais para rever o que chama de "mito de origem da etnologia": o mito da Terra sem Mal ou o mito do messianismo tupi-guarani, imputado por Metráux a todas as populações tupi-guarani, mas de fato apropriado exclusivamente aos Apapocuva e Tembé etnografados por Nimuendaju. Rastreando os documentos dos dois primeiros séculos de colonização, Pompa demonstra que houve certa liberalidade no uso de tais modelos para todos os tupi-guarani. O alvo central do ataque é a antropologia política ("de vocação anarco-libertária") do casal Helène e Pierre Clastres e a formulação do messianismo tupi-guarani como uma escolha pela evasão do cenário colonial. É na história das religiões italiana (linha da qual Vittorio Lanternari é um dos mais conhecidos autores com obra publicada no Brasil) que o trabalho busca sustentação para afirmar que as migrações sob o signo do sagrado e do mítico só puderam se dar depois do contato, sob efeito e em resposta a ele.

O ponto de vista adotado da história da religião indicaria que, ao contrário do que os Clastres afirmaram, houve necessidade dos Tupi-guarani elaborarem a reconstrução simbólica do mundo depois do contato, o que se dá com a refundação ritual promovida pela missão jesuíta. Nesse sentido, o messianismo não pode ser compreendido na chave do escapismo nem enquanto movimento nativo: o messianismo seria, nas palavras da autora, a revisão lógica da cosmologia em função da história colonial. Baseando-se na evidência de cerimônias periódicas, a análise propõe assim examinar as narrativas como discursos rituais que na crônica colonial adquirem mais o sentido das grandes festas de renovação cósmica. A segunda parte o trabalho busca examinar como a missão e os tapuias no século XVII elaboram de forma diversa essa mesma necessidade de reconstrução simbólica do contato, em que permanece o fim do mundo sem haver, no entanto, o elemento da migração. Qualquer que seja a forma ritual, ao eleger a crença como lugar da observação, o Ocidente necessariamente estaria trabalhando com os hibridismos constituídos a partir da pauta de trabalho do cristianismo modificado por elementos ameríndios.

Colonização do imaginário, tradução, hibridismo deixam ao final pouco espaço para uma reflexão sobre os desdobramentos e a criatividade das apropriações ameríndias dos bens estrangeiros que interessaram e ainda interessam às populações gentílicas. Resta indagar diante dos resultados do universalismo cristão e da globalização das relações, de um lado, e, de outro, em face da constatação dos limites da tradução crist㠖 que de certa forma a presente análise confirma –, se a antropologia hoje não está sendo solicitada a empreender caminho diverso, de modo a dar conta do que a tradução cristã escondeu e do que as línguas comuns não permitiram acessar.

Notas

MARTA AMOROSO é professora do Departamento de Antropologia da FFLCH-USP.

  • 1
    Carlos Fausto, "Fragmentos de cultura tupinambá", em M Carneiro da Cunha (org.),
    História dos índios no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras/Fapesp/SMCSP, 1992.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2005
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