Acessibilidade / Reportar erro

Instituições, política e ajuste fiscal: o Brasil em perspectiva comparada

Institutions, politics and fiscal adjustment: Brazil in comparative perspective

Institutions, politique et ajustement fiscal: le Brésil suivant une perspective comparée

Resumos

Neste texto examinam-se as condições institucionais e políticas do ajuste fiscal. Mesmo considerando que as instituições afetam as estratégias dos atores e os resultados das políticas, supõe-se que o cumprimento das regras relativas ao controle fiscal dependem igualmente de certas condições políticas contingentes, como a coesão governamental. Embora a análise seja centrada no Brasil recente, são também confrontados casos de outros países - Estados Unidos, Holanda e Suécia - que também enfrentaram sérios problemas fiscais nos anos 80.

Instituições políticas; Restrições legais; Coesão governamental; Ajuste fiscal; Senado brasileiro


This paper analyzes the institutional and political conditions of fiscal adjustment in a comparative perspective. Focusing mainly on Brazil, it also examines other countries, such as the United States, Sweden and the Netherlands which faced similar fiscal concerns in the 1980s. Emphasizing the role of legal restrictions over public indebtedness and deficit, the paper shows that they are not sufficient to reduce deficit or high levels of financial debt. In order to be enforced, these restrictions depend on political conditions, such as government cohesion.

Political institutions; Legal restrictions; Government cohesion; Fiscal adjustment; Brazilian Senate


Dans ce texte, sont examinées les conditions institutionnelles et politiques de l'ajustement fiscal. Même en considérant que les institutions affectent les stratégies des acteurs et les résultats des politiques, l'auteur suppose que l'exécution des règles relatives au contrôle fiscal dépend aussi de certaines conditions politiques contingentes, comme la cohésion gouvernementale. Malgré le fait que cette analyse soit centrée sur le Brésil récent, des cas issus d'autres pays -- États-Unis, Hollande et Suède --, qui ont eux aussi affronté de sérieux problèmes fiscaux dans les années 80, sont également abordés.

Institutions politiques; restrictions légales; cohésion gouvernementale; Ajustement fiscal; Sénat brésilien


INSTITUIÇÕES, POLÍTICA E AJUSTE FISCAL

O Brasil em perspectiva comparada* * Os dados que serviram de base para este trabalho fazem parte de pesquisa financiada pelo Núcleo de Estudos e Publicações (NPP) da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, ao qual aproveito a oportunidade para reiterar meus agradecimentos. Versões preliminares do texto foram apresentadas em seminário no Departamento de Ciência Política da Universidade de Nova York (NYU), em fevereiro de 2000, e no Encontro Anual da Anpocs, de outubro de 2000, realizado em Petrópolis. Agradeço também os comentários dos professores Adam Pzreworski, da Universidade de Nova York, Ira Katznelson e Robert Kauffman, da Universidade de Columbia. E ainda, de forma especial, as discussões com Fernando Abrucio, que me permitiram melhorar a versão final do texto.

Maria Rita Loureiro

Introdução

Os governos contemporâneos têm sido continuamente desafiados a apresentar desempenhos macroeconômicos. Estabilizar moeda, ajustar contas públicas, manter a balança comercial equilibrada são ações exigidas para que as economias, tanto as desenvolvidas quanto aquelas em desenvolvimento, integrem-se ao mercado globalizado. Só assim elas têm condições de competição e credibilidade para atrair capitais necessários ao desenvolvimento e à expansão do bem-estar social. No caso do Brasil, é bem conhecido o peso preponderante assumido pelo ajuste fiscal na agenda do governo, desde a implementação do plano de estabilidade monetária e das reformas econômicas, a partir de 1994.

Este trabalho atém-se a uma dimensão específica de tal problemática: o controle do déficit e do endividamento público, através de restrições legais e políticas de cortes orçamentários. Embora centrada no Brasil, a análise confronta também Estados Unidos, Holanda e Suécia. Tal como o Brasil recente, eles também enfrentaram sérios problemas fiscais, nos anos 80. O déficit público nos Estados Unidos em 1983 representava 3,8% do PIB. Na Suécia chegou a 7% e na Holanda a 7,1% em 1982 (Schick, 1993, p. 187). Se os desequilíbrios fiscais têm a ver com dificuldades econômicas, eles são muito afetados pelas condições institucionais e políticas em cada país, as quais, por sua vez, influenciam decisivamente a capacidade dos governos de equilibrar as contas públicas.

Em países democráticos, a conduta fiscal dos governos é sempre sensível às reações do eleitorado e às demandas dos grupos de pressão. Todavia, alguns são mais efetivos e ágeis do que outros em corrigir o déficit orçamentário ou controlar o endividamento. A literatura tem indicado que as variações nas políticas macroeconômicas dependem de diferentes fatores. Uma "primeira geração" de teorias enfatizava a orientação ideológica do partido no poder: governos de direita adotariam políticas monetárias e fiscais mais restritivas, com cortes acentuados no orçamento, enquanto os de esquerda tenderiam a políticas mais expansionistas, de orientação keynesiana. Os primeiros estariam mais atentos à estabilidade monetária e os segundos mais preocupados em reduzir o desemprego (Hibbs, 1977; Goldthorpe, 1984).

A partir dos anos 80, com a recessão e a crise fiscal que atingiram as economias capitalistas, surgiram novos modelos explicativos. Os adeptos das teorias das expectativas racionais afirmam, por exemplo, que o crivo partidário apenas temporariamente afeta as políticas macroeconômicas, tendendo os políticos a um mesmo comportamento fiscal em função da lógica dos ciclos econômicos e eleitorais (Alesina, 1989; Alesina e Roubini, 1997).

Mais recentemente, com a internacionalização dos mercados e a desregulamentação dos fluxos de capitais, começa-se a observar uma tendência à homogeneização da política macroeconômica entre governos com diferentes orientações ideológicas, realçando-se, como fatores fundamentais das políticas monetárias e fiscais, a mobilidade internacional dos capitais e o regime cambial. Analisando o papel dos partidos, das instituições políticas e da abertura econômica sobre as políticas fiscais e monetárias em dezenove países da OCED, Boix (2000) indica que, até os anos 70, as variações das políticas macroeconômicas nestes países estavam relacionadas com a coloração partidária do governo e o grau de institucionalização de suas estruturas corporativas. Mas, a rápida convergência dessas políticas, nos anos 80, tem a ver com a internacionalização da economia. Se, até aquele período, o controle generalizado dos fluxos de capital e as taxas de câmbio flutuantes davam grande autonomia aos governantes para gerir as crises econômicas, a internacionalização dos mercados financeiros mudou este quadro: não só o controle dos capitais e as políticas keynesianas anti-recessivas deixaram de ser viáveis, mas também as taxas de câmbio passaram a ser fixas. Isso independentemente das instituições existentes em cada país como, por exemplo, o tipo de organização do mercado de trabalho, mais corporativo ou mais descentralizado (Boix, 2000, p. 40).

Todavia, mesmo levando em conta os constrangimentos impostos pela globalização econômica e a desregulamentação dos fluxos de capitais, autores de orientação institucionalista têm enfatizado que as regras formais e informais vigorantes em cada país, bem como os estilos políticos afetam consideravelmente os resultados das políticas governamentais (Steinmo, 1989; Weaver e Rockman, 1993; Iversen e Wren, 1998). Nesta perspectiva institucionalista realçam-se as características do sistema de governo, da estrutura partidária e das regras eleitorais, que geram governos majoritários ou de coalizão mais ou menos estáveis e, portanto, mais ou menos capazes de impor as metas fiscais propostas (Roubini e Sachs, 1989; Schick,1993; Steinmo, 1989). Assim, muitos autores apontam que os sistemas parlamentaristas, mesmo os de gabinetes de coalizão, apresentam mais vantagens do que os presidencialistas, oferecendo melhores condições de governabilidade (Laver e Shepsle, 1994; Linz e Stepan, 1996). A existência de muitos pontos de veto no sistema presidencialista inibe a habilidade para estabelecer prioridades entre objetivos conflitantes e impor perdas a grupos políticos poderosos, capacidades essas cruciais para a efetivação das políticas de ajuste fiscal (Tsebelis, 1997; Weaver e Rockman, 1993). Nesse sentido, o ajuste fiscal constitui um desafio bem maior para os políticos no presidencialismo do que no parlamentarismo.

Este texto examina as condições institucionais e políticas do ajuste fiscal. Mesmo considerando que as instituições afetam as estratégias dos atores e os resultados das políticas, supõe-se que os efeitos das regras relativas ao controle fiscal são contingentes e dependem igualmente de condições políticas. Em outras palavras, considerando que as restrições legais destinadas a controlar o déficit e o endividamento público não são suficientes para se atingir as metas estabelecidas, procura-se analisar condições políticas necessárias ao efetivo cumprimento das regras.

Como o corte de gastos e/ou a elevação dos impostos impõem perdas imediatas e visíveis e os benefícios esperados são de longo prazo, difusos e incertos, as decisões de controle do déficit e do endividamento público são sempre muito difíceis de implementar. Elas supõem certas condições políticas, como a coesão governamental (Schick, 1993). Entendida como homogeneidade de orientação, conexão entre partes e coordenação de ações, a coesão gera governabilidade, dando ao governo capacidade de impor e manter a prioridade ao ajuste fiscal, ante os objetivos conflitantes, especialmente em tempos difíceis de retração ou recessão econômica, quando a arrecadação de impostos tende a cair ao mesmo tempo em que crescem demandas por gasto público.

Segundo ainda Allen Schick, a coesão de governo depende de variáveis institucionais como o sistema eleitoral e o tipo de governo dele decorrente, de partido majoritário ou de coalização. Sem negar que certos arranjos institucionais (tais como sistema de governo, regras eleitorais, disciplina partidária etc.) têm importância, considera-se, entretanto, que o nível de coesão pode variar também em função de fatores políticos contingentes. Assim, por exemplo, a existência de uma oposição majoritária no Congresso, em sistemas presidencialistas, criando o que se chama de governo dividido, reduz em muito a capacidade de controlar os déficits públicos em períodos de recessão econômica, como ocorreu nos Estados Unidos na década de 80 e início dos anos 90 (Cox e McCubbins, 1992; Schick, 1993; Endersby e Towle, 1997).1 1 Considera-se aqui que o governo dividido (ou unificado) nos Estados Unidos é uma situação política contingente. Mesmo influenciado por regras eleitorais, ele pode ocorrer sob o mesmo arranjo institucional.

No caso brasileiro de presidencialismo de coalizão, o grau de habilidade do presidente em negociar com o Congresso pode também aumentar ou reduzir a capacidade do governo de realizar suas metas fiscais. Na verdade, o Brasil recente pode ser visto como exemplo de que, mesmo em dificuldade econômica, um governo com certo nível de coesão é capaz de apresentar resultados fiscais esperados.2 2 Como será visto mais adiante, os superávits primários, a aprovação da Lei e Responsabilidade Fiscal e outras medidas necessárias ao ajuste, como a privatização de bancos estaduais e regras mais rigorosas para o endividamento público, são indicadores da capacidade do governo FHC de impor a prioridade da agenda fiscal. Isso, independentemente do julgamento do mérito desta política. Argumentando comparativamente, é possível afirmar que durante os dez primeiros anos de governo democrático no país a hiperinflação foi o preço pago pela ausência de coesão governamental ou "ingovernabilidade" (Sallum Jr. e Kugelmas, 1993). Em contrapartida, a estabilização monetária em 1994 e o ajuste fiscal imposto ao país nos últimos anos foram possíveis graças a uma nova situação política que se caracteriza pela governabilidade, gerada através de relações negociadas entre o executivo e o legislativo (Couto e Abrucio, 1999; Palermo, 2000).

Além disso, para estabelecer e manter prioridades diante de objetivos conflitantes e em situações de recursos escassos - uma das capacidades centrais exigidas de um governo para realizar o ajuste fiscal - o consenso em torno de idéias e a existência de um corpo burocrático competente e internamente coerente são também fatores importantes para a coesão governamental.3 3 Esses dois fatores de coesão governamental serão mencionados apenas no caso brasileiro. Na literatura sobre os demais países, o enfoque recai nas relações entre executivo e legislativo. Em suma, a coesão governamental que permite a efetivação de regras e medidas relativas ao ajuste fiscal depende não só de arranjos institucionais, mas igualmente de fatores políticos contingentes, tais como o grau de liderança ou habilidade do governante nas negociações entre os poderes legislativo e executivo ou dentro dos gabinetes parlamentares, a construção de consensos entre as forças políticas e a coordenação político-administrativa no seio do aparato de governo.

Do ponto de vista metodológico, a análise dos vínculos entre arranjos institucionais, ação política e ajuste fiscal é efetuada neste trabalho sob uma perspectiva comparada, explorando-se os casos dos Estados Unidos, da Holanda e da Suécia que enfrentaram, como o Brasil, o desafio de equilibrar as contas públicas, com resultados diversos.4 4 Além do sistema de governo, a seleção dos casos se orientou por razões de ordem prática, relacionadas à existência nestes países de estudos comparativos sobre o tema. O confronto do caso brasileiro com países tão distintos em termos de desenvolvimento econômico e de sistema político é utilizado aqui como instrumento para reforçar dois argumentos centrais da análise: a) as instituições políticas influenciam os resultados fiscais, mas não os explicam inteiramente; e b) a coesão governamental, vista como condição política contingente necessária para se atingir as metas esperadas, tem singularidades nacionais insuperáveis, ou seja, é construída por caminhos próprios, com pontos de partida e de chegada específicos em cada país.

Assim, embora o sistema presidencialista e o federalismo sejam estruturas institucionais formalmente comuns entre Estados Unidos e Brasil, enfatiza-se, neste confronto, sobretudo as diferenças em seu modo de funcionamento para controlar o déficit e o endividamento públicos. Como se conhece bem, o poder legislativo é muito mais fraco e o federalismo mais centralizado no Brasil do que nos Estados Unidos (Abranches,1988; Camargo, 1992). Em contraste com o modelo americano de efetiva separação dos poderes, o presidente brasileiro tem poderes legislativos e muito maior controle sobre o orçamento do que o presidente americano (Mainwaring e Shugart,1997; Figueiredo e Limongi, 1999). Operando diferentemente, estes dois sistemas têm produzido situações distintas de coesão governamental ao longo do tempo. Enquanto o presidencialismo nos Estados Unidos dificilmente apresenta coesão governamental (especialmente nos períodos de governos divididos, o que, aliás, têm se tornado praticamente a regra nas últimas décadas), o presidencialismo brasileiro e seu sistema federativo contêm arranjos que induzem a uma maior coesão. Além dos poderes legislativos do presidente, o federalismo mais centralizado, que, por exemplo, concentra o controle do endividamento público no Senado, igualmente funciona nesta mesma direção.5 5 É sempre bom lembrar que o sistema americano, a partir da visão madisoniana, não foi construído para ser eficiente, mas para evitar a tirania (Aberbach, 1990), enquanto que o brasileiro conserva ainda fortes traços de centralismo. Também nos casos da Holanda e da Suécia, por trás da superfície comum de gabinetes parlamentares, explora-se sobretudo seu modo diferente de funcionamento, gerando situações também diferenciais de coesão governamental e, portanto, de desempenho fiscal (Weaver e Rockman, 1993; Schick, 1993).

Em outras palavras, a partir das diferenças entre estes países, seu confronto é possível na medida em que se enfatiza aqui a existência ou não de coesão governamental, tomada como condição política chave para explicar o alcance de metas fiscais. Incorporando análises desenvolvidas para os países europeus e os Estados Unidos às pesquisas efetuadas no Brasil, pôde-se observar que governos com certo nível de coesão interna conseguiram alcançar resultados fiscais esperados, não só no caso do sistema parlamentarista sueco, sob a dominância do Partido Social Democrata, mas igualmente no presidencialismo de coalizão brasileiro, no período mais recente. O mesmo não ocorreu na Holanda e nos Estados Unidos dos anos 80 e início dos 90. Obviamente não se pretende fazer generalizações a partir da exploração destes casos, mas apenas realçar condições políticas específicas que, em geral, são desprezadas nos estudos de caráter quantitativo.

As informações sobre Holanda, Suécia e Estados Unidos foram extraídas das fontes indicadas no próprio texto. Nos casos da Holanda e da Suécia, utilizou-se análises relativas à efetividade das políticas governamentais de redução do déficit orçamentário levadas a cabo durante a grave crise fiscal da década de 80, relacionando-as a variáveis político-institucionais. Para os Estados Unidos, examinaram-se principalmente as restrições constitucionais e legais ao endividamento público e ainda os estudos relativos à incapacidade do governo de controlar o déficit orçamentário nos anos 80 e início dos 90. No Brasil, o foco recaiu sobre a ação do Senado que, por determinação constitucional, tem competência exclusiva para legislar sobre a matéria relativa ao endividamento de todos os entes federativos. Na verdade, o Senado brasileiro tem tido um papel de destaque na agenda fiscal, estabelecendo regras que aperfeiçoam o processo de controle do endividamento público. A análise refere-se ao período de enorme deterioração das finanças públicas, a partir da implementação do Plano Real, em 1994. As fontes principais de informação são documentos coletados no Senado, Banco Central e em outras agências governamentais. Mas, inclui também, material da imprensa, entrevistas com senadores e auxiliares, e funcionários do Banco Central e do Ministério da Fazenda.

Por fim, dois esclarecimentos. Em primeiro lugar, indica-se que a situação de coesão governamental atribuída aqui ao governo FHC refere-se especificamente à área fiscal que constitui o "núcleo duro" de sua agenda, não valendo para outras áreas. Os diagnósticos relativos à recente crise energética têm apontado que ela está relacionada à falta de coordenação político-administrativa no setor e de planejamento estratégico mais amplo. Na verdade, a preponderância com que a dimensão fiscal subordinou todas as demais (não só políticas sociais, mas também programas de investimentos em infra-estrutura), configurando uma situação que pode muito bem ser definida de "miopia fiscalista", acabou solapando os próprios objetivos fiscais. Além dos enormes danos políticos à imagem do governo, o racionamento e eventual corte de energia irão gerar - prevêem os especialistas - retração econômica, diminuição da arrecadação e, portanto, redução dos atuais superávits. Isso sem contar os problemas de conta corrente e possíveis pressões inflacionárias.

Em segundo lugar, é preciso enfatizar ainda que o controle do déficit e do endividamento público é tema bastante controverso entre diferentes escolas do pensamento econômico e entre diferentes correntes ideológicas. Enquanto a direita americana, por exemplo, insiste na idéia de zerar o déficit, os mentores da comunidade econômica européia, ao estabelecer o Tratado de Maastricht, consideraram, ao contrário, que investimentos necessários ao desenvolvimento econômico e à expansão da taxa de emprego constituem razão legítima para o endividamento público (Benavie, 1998; Evans, 1997). Aliás, conforme cálculos efetuados para os Estados Unidos, cada ponto percentual de desemprego agrega um adicional de cerca de 50 bilhões ao seu déficit público (Ross, 1999). Assim, do ponto de vista normativo, o que se espera dos governos é antes a capacidade de gerir déficits moderados, do que seu controle rígido, o que certamente comprometerá valores sociais importantes, como desenvolvimento, emprego e bem-estar da maioria da população.

A primeira parte deste texto mostra as dificuldades de imposição das restrições legais relativas ao déficit nos Estados Unidos e seus mecanismos de controle do endividamento público. Em seguida, para confronto com a literatura que afirma ser mais difícil o ajuste fiscal no presidencialismo do que em governos de gabinetes, são também examinados os resultados (nem sempre bem-sucedidos) das políticas de controle do déficit público, experimentadas na crise fiscal dos anos 80, em dois países parlamentaristas, Holanda e Suécia. Na terceira e mais longa parte, é analisado o caso brasileiro, que constitui o núcleo de referência deste estudo, destacando-se o papel do Senado na produção de regras legais para o controle do endividamento público e seu apoio à agenda fiscal do governo. O texto é finalizado com comentários que sistematizam o confronto entre os casos explorados.

O controle do déficit e do endividamento público nos Estados Unidos

Os déficits do governo federal nos anos 80 e 90

Como no Brasil de hoje, os déficits públicos constituíram o tema central da agenda política americana durante toda a década de 80 e a primeira metade dos anos 90 ( White e Wildavisky, 1988; Brady e Volden, 1998; Benavie, 1988; Evans, 1997; Briffault, 1996).6 6 É importante mencionar que, do ponto de vista macroeconômico, a problemática do déficit público assume proporções mais graves em países como o Brasil, dada sua maior dependência de capitais externos e maior nível de exigência de finanças públicas "saudáveis" e, portanto, dignas da "confiança" dos investidores externos. Por esta razão, houve inúmeras tentativas de impor através de leis, especialmente no âmbito federal, o equilíbrio orçamentário. Todas, porém, falharam. Pode-se mesmo identificar um padrão que perdurou no período: medidas eram anunciadas para reduzir o déficit, algumas implementadas, mas o resultado era sempre a expansão crescente do déficit.

Em 1981, por exemplo, a proposta orçamentária original de Jimmy Carter apresentava um déficit de 16 bilhões de dólares. Ela foi negociada com o Congresso que aprovou uma peça orçamentária com números invertidos: não mais deficitária, e sim superavitária, em exatamente 16 bilhões de dólares. Todavia, o que aconteceu, na realidade daquele ano, foi um déficit que chegou a 74 bilhões de dólares.

Também no governo conservador de Reagan, a despeito dos cortes orçamentários e do clima ideológico de déficit hysteria, as tentativas de equilibrar o orçamento foram igualmente fracassadas.7 7 Como exemplo desse clima e da manipulação da opinião pública por parte da direita conservadora nos Estados Unidos, pode-se mencionar o relógio da dívida nacional, colocado na Sexta avenida em Nova York. O grande painel luminoso mostra aos passantes o crescimento incessante da dívida pública, a cada segundo. O exemplo mais significativo é a Lei de Equilíbrio Orçamentário e de Controle Emergencial do Déficit, de 1985 (conhecida com o nome de seus propositores, Gramm-Rudman-Hollings Law). Vale transcrever aqui a descrição do cenário político no qual esta lei foi elaborada, e que acabou levando ao seu completo fracasso:

A lei foi um subproduto de um prolongado impasse entre o executivo e o legislativo. O que o presidente e o Congresso não conseguiam acordar seria feito através de um processo automático de cortes orçamentários. Pelo menos este era o espírito da lei, embora não tenha funcionado como previsto. Se o corte era automático, nada mais o era: os objetivos poderiam ser mudados; falsas poupanças poderiam substituir as reais; gastos poderiam ser debitados em anos anteriores etc. Em período de extenso conflito orçamentário, os dois poderes concordavam em apenas uma coisa: é melhor mentir sobre o orçamento do que engolir a pílula amarga de redução do déficit (Schick, 1993, p. 207).

Nos anos 90, as tentativas de equilibrar o orçamento continuaram, mas foram também contornadas através de inúmeras brechas legais e argumentos de exceção. Com isso, o déficit cresceu muito, passando de 79 bilhões, em 1981, para 290 bilhões de dólares, em 1992. Até 1995, a dívida pública representava cerca de 70% do PIB americano. Somente na segunda metade dos anos 90, é que o déficit passou para 50% do PIB (ou seja, 3,6 trilhões de dólares). Isso se deu graças à recuperação econômica; mas contou muito a habilidade do presidente Clinton em conseguir manter, mesmo em período de crescimento da arrecadação, políticas de corte orçamentário (Briffault, 1996).

O endividamento nos governos estaduais: limitações constitucionais e controle pelo mercado

Nos governos estaduais, existem restrições ao endividamento e ao déficit público em quase todas as constituições. Em alguns Estados (como Indiana e West Virgínia) é proibido qualquer tipo de endividamento. Em outros, há diferentes níveis de restrições: o Arizona, por exemplo, estabelece um teto de 350 mil dólares, e a Constituição de Geórgia limita a dívida a 10% das receitas. Além disso, para se endividar, os Estados precisam, de modo geral, da aprovação em referendo popular ou de voto supermajoritário, com aprovação em ambas as câmaras (Briffault, 1996).8 8 Em geral, os governos estaduais podem emitir títulos públicos sem limitações em caso de guerra e invasões. Eles não precisam de autorizações para obter fundos para defesa do Estado. O dinheiro deve ser, porém, usado exclusivamente para este fim.

Apesar das restrições, os analistas têm mostrado que os governos subnacionais desenvolveram vários mecanismos pelos quais burlam sistematicamente as normas constitucionais: um dos mais importantes é a criação de empresas semi-independentes para realizar obras públicas através do lançamento, no mercado, de títulos não garantidos (isto é, não lastreados em recursos orçamentários). São as chamadas OBEs (Off-Budget Entreprises) que existem aos milhares, espalhadas em todo o país. Elas operam na construção de aeroportos, estradas, pontes, zoológicos etc., e têm como fonte principal de recursos a renda advinda da exploração dessas obras, que também funcionam como garantia para os credores. Se esta "solução" gera recursos adicionais (extra-orçamentários) para obras e investimentos em geral, sem elevar a carga tributária, ela tem implicações políticas que podem comprometer a própria ordem democrática. Arrecadando grande quantidade de recursos não contabilizados no orçamento, estas empresas acabam funcionando completamente fora do controle do legislativo, dirigidas por executivos não eleitos e, portanto, não responsáveis perante a população (Granof, 1984; Briffault, 1996; Endersby e Towle, 1997).

Na verdade, segundo vários autores, a história das restrições constitucionais ao endividamento público nos Estados americanos constitui-se de uma longa crônica de magias ou artimanhas, adotadas pelos governos para realizar empréstimos, ao mesmo tempo em que procuram convencer os tribunais de que tais atos não são inconstitucionais. Dessa forma, a dívida pública dos Estados americanos também cresceu muito nas últimas décadas: passou de 21 bilhões de dólares em 1962 para 372 bilhões em 1992, ou seja, de 1,5% para mais de 6% do PIB (Briffault, 1996, p. 59). Como os governantes não são penalizados e não há dispositivos automáticos para cortar gastos em situações de déficit, as restrições legais têm pouca eficácia para controlar o endividamento.

Dada a insuficiência das restrições constitucionais e legais para reduzir os déficits dos governos subnacionais, estudos apontam as condições políticas que afetam de forma mais decisiva o desempenho fiscal desses governos. Também no âmbito subnacional a condição de o governo ser dividido ou unificado tem muita importância.

Estados em que um partido controla ao mesmo tempo o executivo e o legislativo são mais propensos a responder mais rapidamente a déficits inesperados do que aqueles com governos divididos (Poterba, 1994, p. 818).

Governos unificados em Estados que, por regra legal, não podem carregar déficit de um ano fiscal para outro, reagem mais rapidamente aos choques de receitas e, portanto, apresentam menos defasagem no tempo entre superávits e déficits (Alt e Lowry, 1994, p. 812).

Em suma, mesmo considerando que o sistema americano funcione sob governo dividido - como já se disse, divided we govern (Mayhew, 1991) -, o que interessa realçar aqui é o fato de que a efetividade do controle dos déficits públicos é muito afetada pela ausência de coesão governamental (Brady e Volden, 1998).

Na ausência de coesão governamental, o mecanismo que parece mais eficiente para controlar os déficits e o endividamento dos governos subnacionais nos Estados Unidos é o mercado de títulos públicos. Não havendo socorro por parte da União (como no Brasil, até antes da Lei de Responsabilidade Fiscal), os governos subnacionais precisam apresentar uma situação financeira saudável para obter empréstimos no mercado, sob pena de não ter crédito. Um analista indica com precisão:

Se os governos dos Estados tomam empréstimos excessivos, os credores se recusam a emprestar mais. Estados e municípios arriscam-se a situações de falência que o governo nacional pode evitar simplesmente imprimindo moeda (Peterson, 1995, p. 3).

A experiência da cidade de Nova York, durante a crise fiscal dos anos 70, é bastante ilustrativa: tendo durado mais de dez anos, sua solução envolveu longas e difíceis negociações entre bancos credores, fundos de pensão e sindicatos de funcionários públicos, o governo do Estado de Nova York e consultores independentes encarregados de gerir a massa falida da cidade. A União, só a muito custo e depois de vários anos de impasses, concordou em conceder algum empréstimo (Shefter, 1985).

Diferentemente do Brasil, onde as emissões de títulos públicos têm sido proibidas, o mercado desses títulos nos Estados Unidos é bastante dinâmico e vem crescendo muito nas últimas décadas. Em 1997, por exemplo, havia mais de 58 mil governos (Estados, municípios e condados) vendendo algo em torno de 1,5 milhão de títulos e movimentado mais de 1,3 trilhão de dólares (Zipf, 1995). Se até a década de 70 os bancos e companhias de seguro eram os principais compradores desses títulos, mais recentemente os investidores privados absorvem mais de 70% deles. Com a expansão deste mercado e especialmente depois do default dos títulos da cidade de Nova York, o Congresso aprovou novas regras para controle desse mercado e criou agências especiais para sua fiscalização (Shefter, 1985). Também foram estabelecidas empresas que classificam os riscos dos diferentes títulos públicos, funcionando como importante instrumento de controle do endividamento público nos governos.

A análise a seguir mostra governos parlamentaristas experimentando dificuldades comuns ao presidencialismo americano, de governo dividido, para impor a "pílula amarga" do corte de gastos.

Ajuste fiscal em sistemas parlamentaristas: Holanda e Suécia

O parlamentarismo de coalizão na Holanda e o insucesso no equilíbrio orçamentário

O após-guerra na Holanda caracterizou-se pela industrialização e prosperidade econômica, com expansão sistemática dos gastos públicos, que passaram de 34% do produto interno líquido em 1960 para 58%, em 1980. Todavia, a deterioração das condições econômicas, a partir de meados dos anos 70 (em decorrência principalmente da oscilação dos preços do gás natural no mercado internacional), fez com que a carga tributária (impostos e contribuições para o sistema de seguridade social) começasse a ser objeto de crescente questionamento na arena política do país. É expressiva deste clima a chamada "regra do 1%", criada em 1975, para impedir que a elevação da carga tributária ultrapassasse o nível anual de 1 ponto percentual. Ao mesmo tempo, foram elaboradas restrições severas ao gasto público com o objetivo de estabilizá-lo e reduzir os crescentes déficits fiscais.9 9 As análises e informações utilizadas nesta e na próxima seção se baseiam no excelente texto de Allen Schick (1993) sobre o tema.

As metas orçamentárias, porém, não foram alcançadas: com o declínio da atividade econômica, a expansão do desemprego e a quebra de práticas de negociação coletiva, os déficits continuaram a crescer, alcançando 7,5% do produto interno no início dos anos 80. Juntamente com a crise econômica e fiscal, a situação política apresentou, no período, grande instabilidade governamental, com gabinetes parlamentares que duravam apenas algumas semanas. A fraqueza do governo de centro-esquerda que se sustentava em frágil maioria parlamentar e sua incapacidade de manter-se coeso fizeram com que a crise econômica se desdobrasse diretamente em dificuldades orçamentárias e na impotência dos políticos de efetivar suas propostas de equilíbrio das contas públicas Apesar da austeridade das regras orçamentárias e dos controles estritos, o governo foi incapaz de atingir o ajuste. Nenhum dos planos orçamentários (ou suas revisões) foi implementado como previsto.

Com o déficit público já alcançando a casa dos 12% do produto interno, um governo de coalizão centro-direita foi estabelecido no país, a partir de 1982. Este tentou colocar em ação um programa de cortes sistemáticos de gasto público com o objetivo de reverter seu crescimento incessante. A mudança mais significativa ocorrida no período foi a suspensão da indexação de benefícios sociais e dos salários dos funcionários públicos. Todavia, a despeito dos cortes, os resultados fiscais também foram limitados.

Segundo analistas, a política fiscal dessa coalizão de direita, que governou a Holanda até o final da década de 80, fracassou não só por reveses econômicos. Além da elevação da dívida pública e, conseqüentemente, das despesas de juros (já que a estratégia adotada para o ajuste fiscal tinha sido gradativa), fatores de ordem político-institucionais mostraram-se decisivos. As regras eleitorais (tais como a combinação relativamente rara de lista nacional e representação proporcional) dificilmente permitiam a um partido ter maioria parlamentar, tornando inevitáveis as coalizões multipartidárias; além disso, certas condições políticas igualmente dificultaram a coordenação do processo de controle orçamentário. A natureza do governo de coalizão impediu que o objetivo de equilíbrio orçamentário fosse perseguido de forma vigorosa e segura. A estratégia gradualista adotada na condução da política de redução do déficit exprimiu de forma clara tal dificuldade. Os parceiros da coalizão de centro-direita (Democratas Cristãos e Liberais) não conseguiam estabelecer e manter prioridades entre objetivos conflitantes: pretendiam, ao mesmo tempo, reduzir o déficit público e cortar impostos; oscilavam entre essas metas, sem se comprometer com uma orientação determinada. Os conflitos entre prioridades acentuaram-se especialmente nos períodos eleitorais, levando à reversão das metas fiscais. Como ocorreu nos governos de centro-esquerda, as dificuldades de impor perdas e de estabelecer firmemente prioridades fizeram com que os recuos nas propostas ou nos planos orçamentários fossem igualmente freqüentes em todo o período do governo de coalizão centro-direita.

Em suma, esta breve incursão pela situação política e fiscal da Holanda dos anos 80 indica que, depois de longa batalha contra o déficit público, os resultados apresentados pelos governos de coalizão foram muito limitados. A década se inicia com um governo de centro-esquerda anunciando pacotes de austeridade, com congelamento de salários e planos de corte de gastos públicos que lhe custaram a perda do poder dois anos mais tarde, e termina na mesma situação fiscal. Depois de um interregno de mais de sete anos, em que a coalizão de centro-direita também não conseguiu resolver seus problemas fiscais, os partidos de centro-esquerda voltam ao poder, sem conseguirem, contudo, acabar com os déficits crônicos e sua pesada carga para a sociedade.

Por fim, pode-se apontar que a maior autonomia adquirida pelos governos na gestão dos programas de austeridade fiscal, dos anos 80, implicou o enfraquecimento das estruturas corporativas e o rompimento do pacto social que havia permitido, no pós-guerra, a partilha dos frutos da prosperidade econômica entre capitalistas e trabalhadores. Uma vez que o governo ficou menos capaz de mobilizar sindicatos e associações patronais e de gerar consenso político - condições essas fundamentais para implementar a agenda fiscal -, o ajuste tornou-se, assim, ainda mais difícil (Wolinetz, 1989).

Parlamentarismo com partido dominante: dificuldades e sucesso do ajuste fiscal na Suécia

Como nos Estados Unidos e na maioria dos países industrializados, o final dos anos 70 também trouxe graves crises fiscais para a Suécia. Estas colocaram em cheque a combinação peculiar de igualitarismo socialista e produtividade empresarial (a chamada "via" sueca de capitalismo) e conduziram à derrota eleitoral da social democracia, principal arquiteto deste modelo. Como é conhecido, o Partido Social Democrata sueco (SAP), depois de governar o país por mais de 40 anos, foi derrubado por uma coligação de três partidos de direita, em 1976. Mesmo sustentando-se em base parlamentar frágil e a despeito de sua grande instabilidade (um governo por ano, em média), a coalizão de direita permaneceu no poder por seis anos (até 1982) e pôs em prática políticas de redução do déficit público.10 10 Nos anos 70, o desempenho econômico da Suécia foi inferior ao de qualquer outro país industrializado, menor ainda do que o da decadente Inglaterra. As exportações caíram e sua participação no comércio mundial em 1980 foi reduzida em 25%, diante do que tinha sido dez anos antes. A resposta do governo à deterioração das condições econômicas foi a elevação dos gastos e do consumo públicos: o emprego público, que representava 21% do emprego total em 1970, passou para 30% em 1980. Os gastos públicos atingiram 62% do PIB no final dos anos 70. A combinação de uma economia em declínio e gastos públicos em crescimento gerou déficits crescentes, que giravam em torno de 10% do PIB neste período (conforme dados do OECD Economic Survey, citados por Schick, 1993, pp. 216-218).

Entretanto, como já sintetizado, os partidos de direita estavam no lugar errado, na hora errada: eles não conseguiram, como pretendiam, desmontar o sistema de Welfare state, reduzir o tamanho do Estado e fazer o mercado funcionar sem intervenção. Para ativar a economia e garantir o pleno emprego (sob pressão da oposição social democrata), tiveram de ajudar setores industriais em declínio, gastando em subsídios enormes somas que, em 1979, atingiram 5% do PIB. Tampouco puderam se desvencilhar de gastos sociais comprometidos anteriormente, tais como a redução da idade para aposentadoria, a extensão de pensões etc.

Incapaz de realizar cortes orçamentários, o governo dessa coalização adota a estratégia de elevar mais lentamente os gastos públicos, reajustando as dotações para os órgãos governamentais abaixo da inflação. Sem elevar a carga tributária, esperava-se que a redução do déficit ocorresse ao longo de alguns anos, não produzindo perda nem drásticas mudanças nas diversas políticas públicas.

Esta estratégia gradualista mostrou-se, todavia, duplamente desastrosa. De um lado, como na Holanda, foi completamente ineficaz, pois o déficit continuou aumentando, passando para quase 13% do PIB; a dívida pública cresceu mais de 146% em apenas três anos (entre 1979 e 1982) e as despesas com juros duplicaram no mesmo período. De outro lado, os cortes de despesas mostraram-se politicamente desastrosos para a coligação governamental, fazendo com que ela fosse derrotada pela social democracia que retomou o poder em 1982.

Tendo amadurecido nos seis anos em que esteve fora do poder, o partido social democrata pôde colocar em prática uma nova estratégia de governo, na qual seus ideais igualitários foram equilibrados com as exigências de austeridade fiscal. A política de desvalorização da moeda (núcleo central de seu programa contra a crise) possibilitou a retomada econômica, trazendo vantagens imediatas para as firmas suecas no comércio exterior. Ela permitiu também a redução do desemprego e o conseqüente aumento na arrecadação de impostos. Diferentemente das desvalorizações anteriores efetuadas pelos governos de direita, a desvalorização de 1982 foi negociada com os trabalhadores, permitindo ao governo social democrata não repor integralmente (através de indexação) as perdas nos salários e pensões. As compensações só vieram posteriormente, com a retomada de programas e de benefícios sociais cortados pela direita, através da elevação de impostos. Também diferentemente da política de cortes espasmódicos adotada pelo governo anterior, a estratégia da social democracia baseou-se em uma única e drástica medida: desvalorização cambial sem compensação imediata das perdas de renda dos trabalhadores. Em seguida, reajustou gradualmente os salários e retomou os benefícios sociais, à medida que as receitas orçamentárias iam crescendo com a recuperação econômica e a maior arrecadação de impostos. Em poucas palavras, os sociais democratas suecos usaram, nesse momento, a conhecida fórmula maquiavélica: fizeram o mal de uma única vez e distribuíram o bem em pequenas doses.

O que interessa destacar aqui na bem-sucedida experiência de ajuste fiscal da Suécia - que chega ao final da década de 80, diferentemente da Holanda, com superávits fiscais - é a situação de coesão do governo, comandado pelo Partido Social Democrata. Como já se indicou, este partido experimentou na Suécia uma situação de prolongada hegemonia política (Heclo e Madsen, 1987; Pontusson, 1994). Enquanto durou, tal situação de coesão deu ao governo capacidade de estabelecer e manter claras prioridades: sem abrir mão do núcleo central da proposta social democrata de pleno emprego e mantendo as conquistas sociais, o ajuste fiscal foi feito, não pelo lado do corte de gastos, mas sobretudo pelo lado da elevação das receitas (através da velha receita keynesiana de estímulo à retomada econômica e aumento da carga tributária).

Todavia, como se pode imaginar, tal escolha teve seus custos econômicos e políticos: embora o desemprego tenha permanecido baixo, a inflação elevou-se e o nível de crescimento econômico da Suécia no começo da década de 90 foi bem inferior à média dos países da OECD. Com isso, a situação política para o governo social democrata também se deteriorou: sua coesão interna foi quebrada, gerando cisão entre os grupos mais favoráveis às bandeiras tradicionais e os adeptos da terceira via e a perda de apoio de partidos aliados, como o comunista.11 11 Em uma interessante análise sobre a experiência da chamada "terceira via" sueca, Pontusson (1994) indica que ela representou o abandono das ambições do movimento trabalhista dos anos 70. Segundo seus artífices, constituiu-se da combinação de estratégias reflacionistas keynesianas com medidas deflacionistas de cunho liberal. Em consonância com as tendências internacionais, a social democracia desregulamentou os mercados financeiros e eliminou gradativamente todo o controle sobre o câmbio ao longo dos anos 80. Também fez uma grande reforma tributária, criando uma faixa única de impostos para a maioria dos assalariados. Inspirada ainda na reforma de Reagan, nos Estados Unidos, ampliou o imposto sobre o valor agregado e aumentou a taxação sobre os ganhos de capital. Em suma, na avaliação ainda de Pontusson, os sociais democratas desta terceira via caminharam decididamente na direção neoliberal (pp. 211-221).

Em outras palavras, embora tenha sido bem-sucedido em equilibrar o déficit orçamentário e manter níveis relativamente elevados de emprego, o SAP não conseguiu lidar com outros objetivos nacionais, tais como inflação e redução da carga tributária, o que acabou lhe custando a derrota eleitoral, novamente, no início dos anos 90. Mesmo que tenha conseguido voltar ao poder em 1994, é relevante frisar os custos políticos que a gestão das crises fiscais dos anos 80 impuseram à social democracia na Suécia: a redefinição de seus ideários e a ruptura de uma situação de hegemonia política que havia durado várias décadas.

Ajuste fiscal no Brasil: restrições legais ao endividamento e coesão governamental

O contexto macroeconômico do ajuste fiscal

Se as causas da crise fiscal dos anos 80 no Brasil remontam a fatores econômicos estruturais, ligados ao esgotamento do modelo de financiamento externo, e ainda ao padrão de relações federativas existentes no país (Sallum Jr. e Kugelmas, 1993; Affonso, 1995; Abrucio e Costa, 1998), é bem conhecido que o agravamento das contas públicas decorreu em grande parte da elevação da taxa de juros, imposta pela implementação do Plano Real.

No início de 1998, por exemplo, o conjunto do setor público brasileiro (incluindo governo federal, governos estaduais, municípios e empresas públicas) pagava juros que representavam cerca de 3,5% do PIB. Depois da crise do final de 1998, este percentual passou para mais de 7% e hoje ultrapassa 10%. O total da dívida pública que representava no início de 1998, 35,8% do PIB, alcançou quase 50% no final de 1999 e está agora em torno de 53% (Relatórios do Banco Central e Informações FIPE, n. 248, maio de 2001). Os efeitos do crescimento dos juros têm sido desastrosos não só para indivíduos e empresas, mas sobretudo para os governos subnacionais. Entre 1990 e 1995, os débitos destes governos cresceram 150%, em decorrência principalmente da elevação da taxa de juros. No final de 1997, eles já acumulavam um débito de 97 bilhões de dólares. Antes das negociações com a União que desembocaram na federalização de suas dívidas, 22 Estados deviam mais do que um ano de arrecadação.12 12 Os gastos com pessoal (ativos e inativos) têm sido outra fonte importante das dificuldades financeiras dos governos subnacionais. Mesmo com a redução do número de servidores, a folha de pagamento cresce constantemente em decorrência de benefícios legais automáticos (Beltrão, Abrucio e Loureiro, 1997).

Assim, o crescimento da dívida pública tornou o equilíbrio fiscal um dos componentes centrais da agenda de estabilidade monetária e de reforma econômica do governo FHC. Todavia, além de razões internas, o equilíbrio das contas públicas impõe-se sobretudo pela necessidade de integração do país aos mercados financeiros internacionais. Em uma era de economia globalizada é preciso oferecer, a despeito dos enormes custos sociais e do comprometimento do próprio desenvolvimento econômico, credibilidade e baixo risco para atrair capitais externos. Como se sabe, o peso da dívida pública em relação ao PIB é o índice que os investidores estrangeiros levam em conta para avaliar a "confiabilidade" no país. Diante das dificuldades econômicas internas, agravadas com a recente crise energética e das incertezas políticas, relacionadas às eleições do próximo ano, os investidores e especuladores estrangeiros têm intensificado as pressões para a geração de maiores superávits primários, garantindo menores riscos para seus capitais. Desse modo, a geração de superávits primários torna-se o objetivo central da agenda fiscal do governo.13 13 Entende-se por superávit primário o resultado positivo entre receita e despesa, excluindo-se o pagamento de juros. Os superávits primários são considerados necessários para a redução do peso da dívida pública ante o PIB. Como resultado de vários anos de contenção dos gastos e de elevação da carga tributária bruta (que passou de cerca de 22% do PIB, em 1994, para mais de 30% do PIB hoje), o setor público vem apresentando superávits primários, nos últimos anos: no primeiro trimestre de 2001, por exemplo, a União e os governos subnacionais geraram superávits primários respectivamente de 9,5 bilhões de reais (3,8% do PIB) e 5,4 bilhões (1,8% do PIB) (Informações FIPE, 248, maio de 2001).

A solução do problema fiscal é particularmente difícil devido ao padrão de relações intergovernamentais existente no país. De um lado, a Constituição de 1988 deu aos governadores e prefeitos autonomia para "fixar alíquotas de impostos, definir estruturas administrativas, fixar salário, aplicar livremente os recursos próprios e as transferências que recebem da União". De outro, os Estados e municípios caracterizavam-se, até muito recentemente, por um comportamento fiscal irresponsável, endividando-se sem condições de pagamento porque sabiam poder transferir, no final, suas dívidas para a União, através de negociações para "rolar" tais débitos. Entre 1988 e 1998, por exemplo, houve sete acordos de negociação das dívidas entre Estados e União. A maioria deles não foi cumprida pelos Estados que, aliás, não receberam nenhuma punição por isso (Werneck, 1998).

Nesta moldura político-institucional que emergiu com a democratização do país e deu grande força política aos governadores, os problemas de financiamento dos governos estaduais puderam ser contornados, por mais de uma década, através de três fontes alternativas de recursos: a) receitas extraordinárias geradas pelo chamado "imposto inflacionário" (oriundo tanto de reajustes da folha de pessoal em níveis inferiores à taxa de inflação, quanto do prolongamento dos prazos de pagamento de credores); b) uso dos bancos estaduais como mecanismo (não legal) de "quase-emissão" de moeda, ou seja, através de práticas reiteradas de empréstimos não saldados junto a essas agências financeiras, cujos dirigentes eram nomeados (e, portanto, controlados) pelos próprios governadores; e c) por fim, a já mencionada postergação ou renegociação continuada do pagamento das dívidas com a União.

Todavia, em 1994, abre-se uma nova etapa nas relações intergovernamentais no Brasil (Abrucio e Costa, 1998). Com a estabilização monetária, o fortalecimento do governo federal e da autoridade do Banco Central (Sola, Garman e Marques, 1997), os governos estaduais perderam aquelas fontes alternativas de receitas: não só o "imposto inflacionário" desapareceu, mas igualmente os bancos estaduais foram, em sua grande maioria, liquidados ou privatizados. Também suas dívidas foram, de novo, renegociadas, mas, agora, com imposição de punições para os governos que não cumprissem com os acordos. Cabe observar que o uso irregular dos bancos estaduais por parte dos governadores contou durante muito tempo com a complacência do Banco Central. Afinal, como já se indicou, o governo federal precisava, para aprovação de sua agenda política no Congresso, do apoio dos governadores que controlavam a bancada parlamentar de seu Estado.14 14 Pode-se citar, como exemplo, a ajuda do governo federal, em 1994, aos bancos estaduais para obter apoio no Congresso e facilitar a articulação da candidatura de Fernando Henrique Cardoso à presidência da República. Nessa época, a União comprou títulos dos bancos estaduais, considerados "podres" pelo mercado, no valor de 5 bilhões de dólares, ou seja, mais do que o dobro do que foi injetado em todas as instituições financeiras nos seis anos anteriores (conforme dados publicados em O Estado de S. Paulo, 23/10/1994, apud Abrucio e Costa, 1998, p. 47).

As restrições legais ao endividamento público

Neste quadro de constrangimentos fiscais e de tensões federativas, observa-se, ao longo dos anos 90, a tendência de o Congresso brasileiro legislar em favor da redução das possibilidades de endividamento público. O Senado, em particular, tem desempenhado papel de destaque nesse processo. Diferentemente do modelo descentralizado dos Estados Unidos, no Brasil, o Senado Federal tem poder constitucional de estabelecer limites e condições de endividamento para União, Estados, municípios e empresas públicas. Conforme o artigo 52 de Constituição, todos os governos devem obter prévia autorização desta casa legislativa para emitir títulos públicos ou contratar qualquer operação de endividamento no mercado interno ou externo. Na verdade, está é a atividade legislativa exclusiva mais importante do Senado brasileiro. Conforme levantamentos, mais de 80% de suas resoluções, emitidas entre 1989 e 1998, referem-se a autorizações ou ao reescalonamento de dívidas dos três níveis de governo e das empresas públicas.

O processo de autorização de endividamento funciona do seguinte modo: depois de obter a aprovação do respectivo poder legislativo, cada governo apresenta um pedido ao Banco Central que o examina do ponto de vista técnico e envia um parecer conclusivo para a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, recomendando ou rejeitando a autorização. A CAE - composta de 27 senadores, escolhidos na mesma proporção da representação partidária no plenário - tem papel decisivo no processo decisório, já que não há casos de rejeição de suas deliberações pela casa.

Com relação à produção legislativa de controle do endividamento público, cabe indicar que já em 1993 foi promulgada a Emenda Constitucional n. 3 que, por seis anos, só permitiria a emissão de títulos públicos por parte de Estados e municípios para o refinanciamento de dívidas anteriores; e estabelecia, como única exceção, o financiamento para pagar precatórios judiciais, isto é, dívidas de particulares contra o poder público decididas em juízo. Como emitir títulos públicos para pagar precatórios significava, na prática, criar uma dívida nova, essa foi a única brecha deixada pela legislação para o financiamento dos governos subnacionais. Ela foi usada, ao máximo, como fonte "adicional" de financiamento público. E permitiu, inclusive, muita irregularidade, objeto de farta cobertura da imprensa, levando à instalação, em novembro de 1996, da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).

Os escândalos acerca da emissão irregular de títulos precatórios mostraram a profunda crise financeira em que se encontravam muitos governos subnacionais. Todavia, é preciso reconhecer que estes puderam agir assim porque sabiam que a elevada inflação dificultava sua percepção e fiscalização e contavam com a conivência das autoridades encarregadas do controle do endividamento. O próprio relatório da CPI indicou que os Tribunais de Contas dos Estados, o Banco Central e o Senado não estavam exigindo, como condição prévia para autorizar a emissão de um novo título, a comprovação do valor das parcelas efetivamente pagas de títulos precatórios, nem tampouco controlavam o índice de correção monetária aplicados aos mesmos.15 15 Segundo o texto: "O Banco Central e o Senado estavam aceitando tudo o que lhes era apresentado, não questionando o valor ou a existência dos precatórios listados, nem levantando a possibilidade de que tais débitos já poderiam ter sido pagos. [...] Quanto mais se percebia que o Banco Central e o Senado não estavam sendo suficientemente vigilantes, mais se exagerava na correção monetária dos precatórios devidos" (Senado Federal, op. cit., p. 44, grifo meu).

Se até o momento, a CPI não resultou na punição dos envolvidos na emissão irregular de títulos precatórios, teve, contudo, um efeito importante: gerou a produção de regras cada vez mais restritivas para o controle do endividamento público no país.16 16 Cabe relembrar que também nos Estados Unidos o default dos títulos da cidade de Nova York levou o Congresso americano a produzir normas mais rigorosas para o controle do endividamento público no país. Assim, em setembro de 1997, foi sancionada a lei n. 9.496/97 que estabeleceu critérios rígidos para que a União refinanciasse a dívida pública mobiliária dos Estados e do Distrito Federal. Em julho de 1998, o Senado baixou a Resolução 78/98, ainda mais rigorosa, que se tornou um marco de referência na consolidação das condições institucionais para o controle do endividamento público no país. Entre as modificações mais importantes trazidas por esta resolução, cabe destacar: o Banco Central não mais encaminhará ao Senado Federal pedido de autorização de endividamento de governo que possua resultado primário negativo; os Estados ficam impedidos de conceder isenção fiscal sobre o ICMS se pretendem pedir autorização para financiamento; ficam proibidas as operações ARO (Antecipação de Receita Orçamentária) no último ano de mandato e a emissão de novos títulos públicos por parte dos governos subnacionais que tiverem sua dívida mobiliária refinanciada pela União. Também foram estabelecidas medidas visando uma maior transparência nas operações de crédito, tais como exigências de leilões eletrônicos na contratação de ARO e ampla divulgação pelo Banco Central dos leilões para a colocação dos títulos estaduais no mercado.

Pode-se observar que várias das normas produzidas pelo Senado ao longo dos últimos anos serviram de base para a recente Lei de Responsabilidade Fiscal, tida como marco no ajuste fiscal do país. Além disso, elas se caracterizaram pelo excessivo rigor, como a proibição de emissão de títulos públicos por mais de dez anos. Segundo alguns trabalhos, a expansão do mercado primário de títulos estaduais e municipais, tal como ocorre nos Estados Unidos, poderia ser uma fonte alternativa importante para o financiamento do setor público, pois não elevaria a já muito onerosa carga tributária do país (Ferreira, 1998; Toneto Jr. e Gremaud, 2000).

A lógica da ação do Senado: política e ajuste fiscal

Entretanto, apesar das restrições crescentes, as novas regras não geraram os efeitos desejados, ao menos à primeira vista. Argüindo estar diante de situações excepcionais, os senadores continuaram aprovando quase todos os pedidos de autorização de endividamento que lhes foram apresentados. Dados levantados no Senado, sistematizados no quadro I, mostram que as autorizações para endividamento oscilaram nos últimos anos em decorrência de vários fatores, não necessariamente relacionados às restrições legais. Ou seja, as resoluções mais restritivas não tiveram influência significativa neste movimento. Por exemplo, mesmo no contexto da já mencionada lei n. 9.496 de 1997, o número total de autorizações naquele ano cresceu quase 20%. No âmbito estadual, a proporção foi ainda maior ( de mais 40%), passando de 52 para 75 autorizações concedidas. Em 1998, o número total de autorizações para os Estados e municípios declinou, mas continuou a crescer para a União e, de forma mais significativa ainda, para as empresas públicas. Em suma, as restrições legais não foram cumpridas.


Como explicar esta ação? O Senado não estaria, de fato, comprometido com o ajuste fiscal? Ou trata-se de um comportamento simplesmente incoerente e irracional dos senadores?

Parece mais apropriado caracterizar o comportamento do Senado como ambivalente, mais do que irracional. Se, de um lado, o Senado não cumpre as regras que ele mesmo estabeleceu, de outro, há evidências de que está comprometido com o ajuste fiscal. Na condição de representante de seu Estado na arena política nacional e percorrendo uma carreira que passa na maioria das vezes por cargos executivos, o senador brasileiro sofre pressões dos governadores que, muitas vezes, foram seus colegas no Senado; ao mesmo tempo que está bastante envolvido com compromissos de governo. Assim, o endividamento, como uma das fontes importantes de geração de recursos para atender demandas sociais inadiáveis, torna-se caminho praticamente irrecusável para um político, mesmo fazendo parte de um órgão que tem como função constitucional garantir o equilíbrio financeiro dos entes federativos.17 17 Eis o que diz a respeito um dos senadores entrevistados: "Quando a solicitação do Estado ou município está no limite do previsto nas resoluções, na 65 e agora na 78, ainda assim há pressão dos governadores, dos secretários e parlamentares. Há exemplos semanais [dessa pressão]."

Mesmo atendendo às demandas políticas, não se pode negar o comprometimento do Senado com o ajuste fiscal. Ele se revela de forma clara na delegação de poder para o Banco Central, efetuada através da Resolução 78/98, conforme destacado anteriormente. Conhecendo a "fraqueza da vontade" a que estão sujeitos os senadores para resistir a pressões vindas dos governadores e de outros parlamentares, o Senado como que amarra suas próprias mãos, para utilizar a analogia de Jon Elster (1979), como na lenda de Ulisses e as sereias. E transfere para o Banco Central uma porção considerável de seu poder decisório em matéria de endividamento.18 18 O artigo VII da Resolução 78/98 assim estabelece: " O Banco Central do Brasil não encaminhará ao Senado Federal pedido de autorização para a contratação de qualquer operação de crédito de tomador que apresente resultado primário negativo no período de apuração da Receita Líquida Real ou que esteja inadimplente junto a instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional" (grifo meu). Através das novas regras que dão ao Banco Central capacidade de emitir parecer conclusivo e de rejeitar, não encaminhando para a CAE, os pedidos que não preencham as condições legais, os senadores acabaram criando um mecanismo permanente para evitar pressões "irrecusáveis", ao mesmo tempo que acolhem as necessidades de controle do endividamento.19 19 São expressivas estas palavras: "Se as matérias sobre endividamento não são remetidas para o Senado, se são triadas dentro do BACEN, haverá menos pressões políticas junto aos senadores. É uma atitude de auto-defesa, porque se chega ao Senado um pedido de autorização de endividamento, é muito difícil resistir politicamente às pressões" (Funcionário da CAE).

Além disso, ao estabelecer limites claros para o endividamento, o Senado põe fim a um processo altamente politizado, resolvido caso a caso, e cujos custos tornavam-se cada vez mais elevados, especialmente com o crescimento do consenso em torno da necessidade do equilíbrio fiscal. Em outras palavras, a despolitização dos pleitos de crédito e sua transformação em matéria técnica, de alçada da burocracia do Banco Central, mostra como a racionalidade política se acomoda com os ditames do ajuste fiscal no interior do Senado.

O exame mais detalhado das autorizações para endividamento, posteriores ao ano de 1997, mostra que um número significativo delas ocorreu, na realidade, como parte do Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados e no decorrer do processo de negociação das dívidas entre União e Estados. Dentro deste programa, o Senado colaborou com o executivo federal, autorizando a renegociação das dívidas antigas dos Estados, condicionada à privatização dos bancos estaduais e das empresas estatais. Como se sabe, a privatização dos bancos estaduais tem sido considerada prioritária na agenda de ajuste fiscal do governo federal, na medida em que esses bancos foram usados durante muito tempo como alternativa de financiamento dos governos estaduais. Suprimir esta fonte significava, portanto, preencher uma condição fundamental para o ajuste das contas públicas.

Segundo os números colhidos na Base de Dados da Legislação Brasileira, o Senado aprovou 18 autorizações, em 1996, dentro do programa mencionado; em 1997, foram 24, representando mais de 30% do total de autorizações concedidas para os governos estaduais. Em 1998, houve 16 autorizações, correspondendo a 28%. Portanto, se elas forem descontadas do total, uma considerável redução aparecerá: em vez das 75 (ver quadro I), o número de 1997 caiu para 51, e o de 1998, para 41. Em outras palavras, as restrições legais acabaram sendo cumpridas sob condições políticas específicas: a barganha entre governo federal e Estados que levou à federalização das dívidas e à imposição de determinadas condições aos governos estaduais.

Outros indicadores servem ainda para reforçar a argumentação: as restrições e limites impostos pela Resolução 78 sobre as operações ARO fizeram com que o número delas caísse drasticamente. Conforme dados do Banco Central, foram autorizadas no ano de 1996 e de 1997, respectivamente de 1330 e 1682 operações ARO para Estados e municípios. Só no primeiro semestre de 1998, antes da Resolução 78, o número chegou a 1227. A partir do segundo semestre de 1998, sob a vigência da nova regra, tais operações despencaram para 46 e, em todo o ano de 1999, elas não passaram de 128.

Estes dados são significativos, pois permitem analisar o comportamento do Senado em perspectiva ampliada. Mesmo sensível a pressões advindas dos governos estaduais (politicamente inevitáveis), ele tem se mostrado comprometido com o ajuste fiscal. Isso se revela na partilha de nova "cultura de responsabilidade fiscal", que visivelmente vira consenso nos meios políticos e na opinião pública.20 20 Pode-se levantar aqui, a título de hipótese, alguns fatores que podem ter influenciado a formação desse consenso em torno da responsabilidade fiscal nos últimos anos no país: além do sucesso inicial do Plano Real e das pressões do mercado, exigindo maior "confiabilidade" para os investidores externos, também atuaram nesta direção a emergência de um certo clima de intolerância contra a corrupção e de consciência mais clara dos danos que a insolvência dos governos podem gerar à sociedade como, por exemplo, as conseqüências do não pagamento de salários a funcionários públicos - greves, deterioração dos serviços públicos etc. Na verdade, há alguns anos, a bandeira do equilíbrio das contas públicas e da responsabilidade fiscal vem se tornado tema reiterado do discurso de parte significativa dos senadores. E isso não só entre os líderes da bancada governista.21 21 Vale a pena transcrever aqui alguns trechos de debates ocorridos no Senado desde 1995, que culminaram na aprovação da Resolução 78, em julho de 1998. Eles revelam bem a tensão entre a lógica política e a necessidade de impor restrições aos governos subnacionais: "Nem eu nem nenhum dos senadores têm interesse em inviabilizar a administração pública de nenhum Estado. Agora, precisamos [...] pensar um pouco no país sob seguinte aspecto: quando vamos parar com essa estória de o prefeito passar a conta para o governador, o governador passar para o presidente e este para o povo? Quando vamos criar mecanismos de austeridade administrativa nos Estados?" (senador Wilson Kleinübing, Ata da 28ª. Reunião da CAE/Senado Federal, 13/9/1995) "[...] Chegou a hora da verdade. Não vamos mais empurrar problemas com a barriga e nem mandar a conta para a viúva. Ontem nesta sala, quando um senador, meu colega, fazia um discurso e dizia que a União tem que resolver os problemas dos Estados, eu perguntei: 'Quem vai resolver os problemas da União?'. Sou representante do Estado de Amazonas, mas sou Senador da República. Não posso adotar a posição irresponsável de dizer: mande para a União e o resto que se dane" (senador Jefferson Peres, Ata da 14ª. Reunião da CAE/Senado Federal, 16 /6/1998). Todavia, o apoio do Senado à agenda fiscal do governo revela-se de forma mais acentuada em sua produção legislativa, através das resoluções restritivas ao endividamento público. A aprovação conjunta - Senado e Câmara - da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, com rapidez e sem mudanças substanciais no projeto original do executivo, também reforça a argumentação. E ainda valida a afirmação de que o Legislativo no Brasil, diferentemente do que se costumava pregar, não tem sido necessariamente um "obstáculo à governabilidade" (Palermo, 2000). Como já se indicou, a despeito da ausência de disciplina partidária e da necessidade de negociar continuamente seus projetos, o governo atual, mais ainda do que os anteriores, tem tido sucesso na aprovação de sua agenda no legislativo, e obtido apoio dos partidos no Congresso (Figueiredo e Limongi, 1999).

A coesão do governo FHC em torno da agenda fiscal

Mesmo considerando que os principais partidos da base de sustentação do governo (PSDB, PFL, PMDB) detenham quase 70% das cadeiras do Senado,22 22 Na 50ª. legislatura, correspondente ao primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1999), as bancadas do PSDB, PFL e PMDB no Senado detinham respectivamente 14,8%, 25,9% e 28,3% de senadores. é importante deixar claro que o apoio do Senado à agenda fiscal não significou uma submissão ao executivo, mas envolveu relações de negociação e barganha bem claras entre senadores, governadores e União. A delegação de poder ao Banco Central, por exemplo, ocorreu durante as negociações relativas à privatização dos bancos estaduais que criaram o PROES (Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária), cujo custo para o governo federal chegou a mais de 51 bilhões de reais. Também as privatizações de empresas estatais foi condicionada à ajuda do BNDES.23 23 Descrição bem detalhada destas negociações encontra-se em Abrucio (2000).

Interessa, portanto, destacar aqui que o apoio do Senado ao governo deve ser visto sobretudo dentro de um quadro mais amplo de coesão governamental em torno do ajuste fiscal. Se o governo atual não conseguiu aprovar algumas de suas propostas de reformas, ele pôde, entretanto, construir uma situação relativamente duradoura de coesão que lhe tem permitido aprovar aquelas que realmente lhe interessam.24 24 Se a reforma tributária até hoje não foi levada adiante no Brasil, isso se deve não à fraqueza do executivo federal, mas, ao contrário, ao seu desinteresse em realizar qualquer mudança que possa alterar o status quo e, portanto, reduzir sua participação no bolo tributário. Com relação à reforma administrativa, pode-se lembrar que também as modificações do projeto inicial do ministro da Administração e Reforma do Estado que levaram à sua descaracterização estão relacionadas ao pouco comprometimento do presidente e, conseqüentemente, das lideranças governistas com o seu conteúdo.

Além dos superávits primários alcançados desde 1999, não só pelo governo federal mas também pelos subnacionais, as realizações do governo na área fiscal envolvem a privatização ou liquidação da maioria de bancos estaduais, a renegociação das dívidas dos governos subnacionais, a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal e de regras mais rigorosas para o endividamento público no país. A despeito destas realizações, a agenda fiscal do governo encontrou um limite claro na derrota de proposta de reforma da previdência social, em vários pontos importantes, especialmente na área pública.25 25 Para alguns autores, o que prejudicou a aprovação do projeto do governo foi a apresentação da proposta de reforma do sistema de previdência do setor privado (INSS) com a dos funcionários públicos (Abrucio e Costa, 1998). Para outros, as dificuldades de aprovação dessa reforma podem ser explicadas pela natureza mesma da matéria. Como os cortes de benefícios sociais implicam custos extremamente elevados no presente e ganhos difusos e incertos no futuro, essas medidas são politicamente inviáveis em qualquer sistema político. Nem mesmo no sistema parlamentarista inglês, de poder altamente concentrado, a primeira ministra conservadora Margareth Tatcher conseguiu aprovar sua reforma do Welfare State (Pierson e Weaver, 1993; Figueiredo e Limongi, 1998, p. 65). Também os casos da Holanda e Suécia, examinados neste texto, revelam as dificuldades enfrentadas por seus gabinetes de coalização para reduzir os benefícios do sistema de seguridade social exigidos pelo ajuste fiscal nos anos 80. Mesmo levando-se em conta as dificuldades políticas inerentes ao corte de benefícios sociais, em qualquer sistema político, a incapacidade do governo de mudar a estrutura da previdência, especialmente para o setor público que, como se sabe bem, responde por grande parte do déficit no país, certamente compromete o ajuste fiscal.26 26 Segundo os dados da Secretaria do Tesouro Nacional, em 1999, por exemplo, o déficit do INSS era de 6 bilhões de reais, enquanto o do sistema de aposentadoria dos funcionários públicos das três esferas de governo estava em torno de 38 bilhões de reais. Juntos, esses déficits representavam cerca de 5% do PIB.

Na realização da agenda fiscal, vários recursos institucionais têm favorecido o governo. As medidas provisórias certamente são fundamentais. Através delas, foram estabelecidas, por exemplo, as condições de privatização dos bancos estaduais e as negociações das dívidas públicas. Também as resoluções do Senado, como se destaca neste texto, forneceram ao executivo instrumentos importantes para o ajuste das contas públicas. Além da delegação de poder para o Banco Central, já mencionada, outras regras estabelecidas pelo Senado, tais como os limites para endividamentos futuros - não superiores a uma receita líquida anual -, deram ao governo federal melhores condições de barganha com os governos subnacionais.

Todavia, além das condições institucionais, enfatizam-se neste texto igualmente as condições políticas, em particular, o que se denomina coesão governamental. No processo de coordenação das ações das diferentes partes constitutivas do governo em torno do ajuste fiscal, estabelecido como consenso, as decisões judiciais também desempenharam papel crucial. Nos casos de conflito entre Estados e governo federal, por exemplo, os tribunais têm decidido em favor deste último, apoiando suas decisões com base na estrutura legal constituída pelas medidas provisórias e pelas resoluções do Senado. O caso da moratória do governo de Minas Gerais, em janeiro de 1999, foi uma amostra não só de um novo padrão de relações intergovernamentais no Brasil recente,27 27 Enquanto no passado os Estados brasileiros se comportavam como credores soberanos ante a União, para usar expressão de Conklin (1998), neste novo quadro de relações intergovernamentais, eles têm incentivos para pagar suas dívidas, já que os custos da desobediência se tornaram bem mais elevados do que os eventuais benefícios. mas também da coesão governamental: desafiada pelo governo mineiro, a União, através da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda, bloqueou as transferências constitucionais para aquele Estado. E foi sustentada, neste ato, pelo Supremo Tribunal.28 28 Cabe mencionar que o governo federal também recebeu apoio da opinião pública neste caso. O Jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, publicou um editorial com o seguinte título: "As armas do governo federal contra os caloteiros" (7/1/1999, p. A3). Os tribunais também têm decidido a favor do governo federal em todos os processos acionados pela oposição relativos à privatização das empresas estatais (Almeida, 1999).

Assim, no processo de ajuste fiscal, o executivo tem contado não apenas com o apoio do legislativo, em especial do Senado, mas também com o respaldo do judiciário. Além disso, ele se vale ainda da atuação importante de sua burocracia. O Ministério da Fazenda tem desempenhado papel crucial na coesão do governo em torno da agenda fiscal ao realizar uma ação de coordenação político-administrativa com o objetivo de impor e difundir a lógica fiscalista para todo o aparato governamental. Além de sua importância tradicional, comum a qualquer Estado contemporâneo, especialmente em tempos de dificuldades fiscais, o Ministério da Fazenda no Brasil tem tido seu poder ainda mais fortalecido na administração atual. Ele tem sido capaz de controlar os outros ministérios em que os titulares foram nomeados como resultado das negociações para obter apoio no Congresso (Loureiro e Abrucio, 1999). Tal poder é exercido através da liberação ou retenção de recursos orçamentários por parte da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que determina, assim, o ritmo da implementação das políticas definidas por outros ministérios, de acordo com as necessidades do ajuste fiscal.29 29 No primeiro governo FHC, a orientação fiscalista do Ministério da Fazenda foi também difundida para os demais ministérios de modo informal pela influência sobre o processo de nomeação de grande número de altos funcionários em outros ministérios, especialmente seus secretários executivos (Loureiro e Abrucio, 1999). Como resultado da federalização dessas dívidas, a STN (que também exerceu papel estratégico no processo de renegociação das dívidas dos Estados) centraliza a dívida pública no país e, portanto, todas as informações sobre as finanças dos governos subnacionais. Também reforçam o argumento da coesão governamental em torno do ajuste fiscal, as resoluções de n. 2443 e 2444 de 1997, do Conselho Monetário Nacional (CMN) que, atuando do lado da limitação da oferta de crédito ao setor público pelo sistema financeiro nacional, complementam as restrições do Senado, que operam do lado da limitação da demanda.

Em suma, mesmo que a lógica política (aí incluída a pressão clientelista) muitas vezes se sobreponha à austeridade, a orientação fiscalista, não só entre burocratas, mas igualmente entre parlamentares, tem se afirmado no governo FHC e já produziu - para o bem ou para o mal - efeitos políticos consideráveis. Se o arcabouço legal - constituído pelas medidas provisórias, pelas Resoluções do Senado e mais recentemente pela Lei de Responsabilidade Fiscal - é necessário para se alcançar os resultados fiscais esperados, condições políticas permitiram que o papel institucional do Congresso e dos tribunais de Justiça funcionasse de modo contingente: de potenciais pontos de veto, eles se transformaram em aliados do executivo, pelo menos no ajuste fiscal.

Considerações finais

Muitos afirmam que os sistemas parlamentaristas oferecem melhores condições de governabilidade, evitando situações freqüentes de paralisia decisória que caracterizam os sistemas presidencialistas. Todavia, os casos aqui apresentados indicam que o sistema de governo não é variável explicativa suficiente para o alcance de metas fiscais.

Quando operou em situações de coalizão partidária, com governos incapazes de impor prioridades entre objetivos conflitantes, o parlamentarismo não conseguiu alcançar as metas fiscais propostas, como na Holanda, em todo o período analisado, e na Suécia, durante a administração dos partidos de direita. Acabou gerando, portanto, os mesmos resultados de impasse decisório comuns ao sistema presidencialista americano, sob governo dividido (Tsebelis, 1997).

Em contrapartida, o governo FHC, sob presidencialismo de coalizão, conseguiu realizar o ajuste fiscal tanto quanto o parlamentarismo sueco, sob o comando de um partido dominante. Esses são exemplos de coesão do governo em torno de prioridades muito claras, o que permitiu alcançar as metas fiscais, com recursos institucionais diferentes e através de instrumentos de políticas públicas também distintos.

Com relação às restrições constitucionais e legais ao endividamento público, o que se observou na análise dos Estados Unidos é que elas têm efeitos limitados. Inúmeras leis, impondo cortes orçamentários para o governo federal, não foram obedecidas ou implementadas, e os limites constitucionais ao endividamento público nos Estados têm sido constantemente contornados. Além disso, a situação política de governo dividido, que tem caracterizado o cenário político americano nas últimas décadas, inibe ainda mais a capacidade dos governantes de elevar impostos ou cortar gastos, tornando o ajuste fiscal objetivo praticamente inatingível, tanto para o governo federal quanto para os estaduais. Portanto, se a estrutura institucional do presidencialismo americano, de completa separação de poderes, não favoreceu o ajuste, também a situação política exerceu influência decisiva, impedindo que se atingissem os resultados esperados durante o período de retração econômica dos anos 80 até meados dos 90. A partir de então, a fortuna e a virtude dos governantes permitiram melhores resultados fiscais. A retomada econômica e a habilidade política de Clinton, de aprovar cortes orçamentários juntamente com o crescimento da arrecadação tributária, permitiram a redução dos déficits.

Nos governos estaduais, o fato de as restrições serem continuamente contornadas ou burladas parece não gerar problemas de déficits excessivos, como era comum no Brasil até recentemente. O mercado de títulos públicos controla o endividamento: não contando com o socorro do governo federal, os governos subnacionais que necessitam de empréstimos têm de apresentar uma situação financeira saudável para obter dinheiro no mercado. Se não o fizerem, não terão crédito.

Assim, o modo de funcionamento do sistema federativo e do presidencialismo nos Estados Unidos gera um sistema de controle do endividamento público diferente do que vigora no Brasil. Aqui, como em outros países presidencialistas na América Latina (Dillinger, Perry e Webb, 2000), este controle se faz por via política e de forma centralizada, através de restrições legais cujo cumprimento depende da existência da coesão interna no governo. Nos Estados Unidos, ele é descentralizado e exercido de forma mais efetiva pelo mercado. Portanto, a ineficácia das restrições constitucionais e legais não tem tanta importância no âmbito dos governos estaduais, já que estes são controlados pelo mercado. O problema permanece para o governo federal, cujos déficits podem ser financiados por emissão inflacionária de moeda. Certamente esta é a preocupação que tem mobilizado políticos e economistas conservadores, especialmente em períodos de recessão econômica, levando-os a insistir na idéia de déficit zero e em propostas de emendas à Constituição Federal para controlar o déficit da União (Briffault, 1996).

Em suma, ao se confrontar o caso brasileiro com o de outros países, procurou-se mostrar que as instituições têm importância, mas não explicam inteiramente o comportamento dos atores e os resultados das ações governamentais. Fatores políticos, que não podem ser determinados a priori por estruturas econômicas, sociais ou mesmo institucionais, afetam continuamente a ação dos atores, tornando seus resultados sempre contingentes.

NOTAS

BIBLIOGRAFIA

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS

INSTITUIÇÕES, POLÍTICA E AJUSTE FISCAL: O BRASIL EM PERSPECTIVA COMPARADA

Maria Rita Loureiro

Palavras-chave

Instituições políticas; Restrições legais; Coesão governamental; Ajuste fiscal; Senado brasileiro.

Neste texto examinam-se as condições institucionais e políticas do ajuste fiscal. Mesmo considerando que as instituições afetam as estratégias dos atores e os resultados das políticas, supõe-se que o cumprimento das regras relativas ao controle fiscal dependem igualmente de certas condições políticas contingentes, como a coesão governamental. Embora a análise seja centrada no Brasil recente, são também confrontados casos de outros países - Estados Unidos, Holanda e Suécia - que também enfrentaram sérios problemas fiscais nos anos 80.

INSTITUTIONS, POLITICS AND FISCAL ADJUSTMENT: BRAZIL IN COMPARATIVE PERSPECTIVE

Maria Rita Loureiro

Keywords

Political institutions; Legal restrictions; Government cohesion; Fiscal adjustment; Brazilian Senate.

This paper analyzes the institutional and political conditions of fiscal adjustment in a comparative perspective. Focusing mainly on Brazil, it also examines other countries, such as the United States, Sweden and the Netherlands which faced similar fiscal concerns in the 1980s. Emphasizing the role of legal restrictions over public indebtedness and deficit, the paper shows that they are not sufficient to reduce deficit or high levels of financial debt. In order to be enforced, these restrictions depend on political conditions, such as government cohesion.

INSTITUTIONS, POLITIQUE ET AJUSTEMENT FISCAL: LE BRÉSIL SUIVANT UNE PERSPECTIVE COMPARÉE

Maria Rita Loureiro

Mots-clés

Institutions politiques; restrictions légales; cohésion gouvernementale; Ajustement fiscal; Sénat brésilien.

Dans ce texte, sont examinées les conditions institutionnelles et politiques de l'ajustement fiscal. Même en considérant que les institutions affectent les stratégies des acteurs et les résultats des politiques, l'auteur suppose que l'exécution des règles relatives au contrôle fiscal dépend aussi de certaines conditions politiques contingentes, comme la cohésion gouvernementale. Malgré le fait que cette analyse soit centrée sur le Brésil récent, des cas issus d'autres pays ¾ États-Unis, Hollande et Suède ¾, qui ont eux aussi affronté de sérieux problèmes fiscaux dans les années 80, sont également abordés.

  • ABERBACH, J. (1990), Keeping a watchful eye. The politics of congressional oversight Washington, D.C., The Brookings Institution.
  • ABRAMS, B. e DOUGAN, W. (1986), "The effects of constitutional restraints on governmental spendings". Public Choice, 49: 101.
  • ABRANCHES S. (1988), "Presidencialismo de coalização: o dilema institucional brasileiro". Dados, Revista de Ciências Sociais, 3 (1).
  • ABRUCIO, F. (2000), Os laços federativos brasileiros: avanços, obstáculos e dilemas no processo de coordenação intergovernamental Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo, Departamento de Ciência Política (mineo.).
  • ABRUCIO, F. e COSTA, V. (1998), Reforma do Estado e o contexto federativo brasileiro. Série Pesquisas, n. 12, Fundação Konrad Adenauer.
  • AFFONSO, R. (1995), "A questão tributária e o financiamento dos diferentes níveis de governo", in AFFONSO, R. e SILVA, P. L. (orgs.), A federação em perspectiva: ensaios selecionados São Paulo, Fundap/Unesp.
  • ALESINA, A. (1989), "Politics and business cycles in industrial democracies". Economic Policy, 8, abril.
  • ALESINA, A., ROUBINI, N. e COHEN, G. (1997), Political cycles and the macroeconomy. Nova York, Cambridge University Press.
  • ALMEIDA, M. H. T. (1999), "Negociando a reforma: a privatização das empresas públicas no Brasil". Dados, Revista de Ciências Sociais, 42 (3).
  • ALT, J. e LOWRY, R. (1994), "Divided government, fiscal institutions, and budget deficits: evidence from the states". American Political Science Review, 88: 811.
  • AMORIM, O. (1994), "Formação de gabinetes presidenciais no Brasil: coalização versus cooptação". Nova Economia, Belo Horizonte, 4 (1) novembro.
  • BELTRÃO, R., ABRUCIO, F. e LOUREIRO, M. R. (1997), "Reforma da burocracia pública e federalismo no Brasil: a experiência do Programa de Demissão Voluntária nos governos estaduais. Revista de Administração Pública, dezembro.
  • BENAVIE, A. (1998), Deficit hysteria. A common sense look at America's rush to balance the budget Londres, Praeger. West Port. Connecticut.
  • BOIX, C. (2000), "Partisan governments, the international economy, and macroeconomic policies in advanced nations (1960-1993)". World Politics, 53 (1), outubro.
  • BRADY, D. e VOLDEN, C. (1998), Revolving gridlock. Politics and policy from Carter to Clinton. Boulder, Westview Press.
  • BRIFFAULT, R. (1996), Balancing acts. The reality behind state balanced budget requirements Nova York, The Twentieth Century Fund Press.
  • CAMARGO, A. (1992), A federação acorrentada: nacionalismo desenvolvimentista e instabilidade democrática Caxambu, XV Encontro Anual da Anpocs.
  • CLIGERMAYER, J. e WOOD, B. Dan (1995), "Disentangling patterns of state debt financing". American Political Science Review, 89 (108).
  • CONKLIN, J. (1998), "The theory of sovereign debt and Spain under Philip II". Journal of Political Economy, 106 (3): 483-513.
  • COUTO, A. e ABRUCIO, F. (1999), Arenas políticas e agenda econômica: os caminhos institucionais do Real. Texto apresentado no Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, outubro.
  • COX, G. e MCCUBBINS, M. (1992), "Divided control of fiscal policy", in COX, G. e KERNALL, S. (eds.) (1992), The politics of divided government Boulder, Westview.
  • DIARIO do Senado Federal (1997), Relatório final. CPI dos títulos públicos Brasília, agosto.
  • DILLINGER, W., PERRY, G. e WEBB, S. (2000), Macroeconomic management in decentralized democracies: the quest for hard budget constraints in Latin America. Trabalho apresentado na reunião da LASA, março.
  • ELSTER, J. (1979), Ulysses and the sirens. Nova York, Cambridge University Press.
  • ENDERSBY, J. e TOWLE, M. (1997), "Effects of constitutional and political controls on state expenditures". Publius: The Journal of Federalism, 27: 83-98.
  • EVANS, G. (1997), Red ink. The budget, deficit, and debt of US. government. Londres, Academic Press San Diego.
  • FERREIRA, I. (1998), A economia política do endividamento público em uma federação. Um estudo comparativo entre o Brasil e os Estados Unidos. São Paulo, Fundação Getúlio Vargas.
  • FIGUEIREDO, A. e LIMONGI, F. (1999), Executivo e legislativo na nova ordem constitucional Rio de Janeiro/São Paulo, Editora FGV/Fapesp.
  • ___________. (1998), "Reforma da previdência e insitutições políticas". Novos Estudos Cebrap, São Paulo, 51, julho.
  • GARMAN, C., LEITE, C. e MARQUES, M. (1998), Impactos da relação Banco Central versus bancos estaduais no arranjo federativo pós-1994: análise à luz do caso Banespa XXII Encontro Anual da Anpocs, Caxambu, outubro.
  • GIAMBIAGI, F. (1997), "A crise fiscal da União: o que aconteceu recentemente? Revista de Economia Política, 17 (1): 65, janeiro-março.
  • GOLDTHORPE, J. (ed.) (1984), Order and conflict in contemporary capitalism Oxford, Clarendon Press.
  • GRANOF, Michael (1984), "A fundamental flaw of debt limitations for state and local governments". Journal of Accounting and Public Policy, 3: 293-309.
  • HECLO, H. e MADSEN, Henrik (1987), Policy and politics in Sweden: principled pragmatism Philadelphia, Temple Univesity Press.
  • HIBBS, D. (1977), "Political parties and macroeconomic policy". American Political Science Review, 71, dezembro.
  • IVERSEN, T. e WREN, A. (1998), "Equality, employment and budgetary restraint: the trilemma of the service economy". World Politics, 5 (4): 507-546, julho.
  • LAVER, M. e SHEPSLE, K. (1994), Cabinet ministers and parliamentary governments Cambrigde, Cambrigde University Press.
  • LELOUP (1980), The fiscal congress legislative control of the budget. Westport/Londres, Greenwood Press.
  • LINZ, J. e STEPAN, A. (1996), Problems of democratic transitions and consolidation - Southern Europe, South America and post-communist Europe Baltimore/Londres, The John Hopkins University Press.
  • LOUREIRO, M. R. e ABRUCIO, F. (1999), "Política e burocracia no presidencialismo brasileiro: o papel do Ministério da Fazenda no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso". Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14 (41): 69-89, outubro.
  • MAINWARING, S. (1993), "Democracia presidencialista multipartidária: o caso do Brasil". Lua Nova. Revista de Cultura e Política, São Paulo, 28/29.
  • MAINWARING, S. e SHUGART, M. (1997), Presidentialism and democracy in latin america. Cambrigde, Cambrigde University Press
  • MAYHEW, D. (1991), Divided we govern: party control, lawmaking, and investigations, 1964-1990. New Haven, Yale University Press.
  • NICE, D. (1991), "The impact of state policies to limit debt financing". Publicus: The Journal of federalism, 21.
  • PALERMO, V. (2000), "Como se governa o Brasil? O debate sobre instituições políticas e gestão do governo". Dados, 43 (3): 521-558.
  • PETERSON, P. (1995), The price of federalism. Washington, D. C., The Brokings Institute.
  • PIERSON, P. e WEAVER, K. (1993), "Impossing losses in pension policy", in WEAVER, K. e ROCKMAN, B. (1993), Do institutions matter? Governmnet capabilities in the United States and Abroad. Washington, D. C., The Brookings Institution.
  • PONTUSSON, J. (1994), "Suécia: depois da idade de ouro", in ANDERSON, P. e CAMILLER (orgs.), Um mapa da esquerda na Europa Ocidental Rio de Janeiro, Editora Contraponto.
  • POTERBA, J. (1994), "State responses to fiscal crises: the effects of budgetary institutions and politics". Journal of Political Economy, 102 (4): 799-821.
  • ROSS, J. (1999), What would a balanced budget means for California? Nova York, The Century Foundation.
  • ROUBINI, N. e SACHS, J. (1989), "Political and economic determinants of budget deficits in the industrial democracies". European Economic Review, 33: 903-938, maio.
  • SALLUM Jr. e KUGELMAS, E. (1993), "Leviatã acorrentado: a crise brasileira dos anos 80", in SOLA, L. (ed.), Estado, mercado e democracia: política e economia comparadas Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • SARDEMBERG, C. A. (1998), "Vai precisar de uma crise". O Estado de S. Paulo, 23. de fevereiro, p. B2.
  • SCHICK, A. (1993), "Governments versus budget deficits", in WEAVER, K. e ROCKMAN, B., Do institutions matter? Governmnet capabilities in the United States and Abroad. Washington, D. C., The Brookings Institution.
  • SHEFTER, M. (1985), Political crisis/fiscal crisis. The collapse and revival of New York City. Nova York, Basic Books.
  • SOLA, L., GARMAN, C. e MARQUES, M. (1997), Central Banking, democratic governance and political authority Seul Korea, XVII International Congress IPSA.
  • STEINMO, S. (1989), "Political institutions and tax policy in the United States, Sweden and Britain". World Politics, XLI (4): 500-535, julho.
  • SWENSON, P. (1991), "Bringing capital back in, or social democracy reconsidered: employer power, cross-class alliances, and centralization of industrial relations in Denmark and Sweden". World Politics, 43 (4): 513-544, julho.
  • TONETO Jr. R. e GREMAUD, A. (2000), "Por que não um mercado de títulos municipais?". Informações FIPE, 239, agosto.
  • TSEBELIS G. (1997), "Processo decisório em sistemas políticos: veto players no presidencialismo, parlamentarismo, multicameralismo e pluripartidarismo". Revista Brasileira de Ciências Sociais, 42 (2).
  • WAGNER, R. (1970), "Optimality in local debt limitations". National Tax Journal, XXIII (3), setembro.
  • WEAVER, K. e ROCKMAN, B. (1993), Do institutions matter? Governmnet capabilities in the United States and Abroad. Washington, D. C., The Brookings Institution.
  • WERNECK, R. (1998), "A União e a dívida dos Estados". O Estado de S. Paulo, 13 de junho.
  • WHITE, J. e WILDAVSKY, A. (eds.) (1988), The deficit and the public interest. The search for responsible budgeting in the 1980s Berkeley/Londres, University of California Press.
  • WILSON, J. Q. (1992), American government. Institutions and policies. 5 ed. Lexington e Toronto, D.C., Heath and Company.
  • WOLINETZ, S. (1989), "Socio-economic bargaining in the Netherlands: redefining the post-war policy coalition. West European Politics, 12: 79-98, janeiro.
  • ZIMMERMAN, D. (1981), "Chief executive and the budget: controlling the controllers". National Civic Review, 70 (4): 356-360, janeiro.
  • ZIFP, R. (1995), How the municipal bonds work New Jersey, Prentice Hall.
  • 1
    Considera-se aqui que o governo dividido (ou unificado) nos Estados Unidos é uma situação política contingente. Mesmo influenciado por regras eleitorais, ele pode ocorrer sob o mesmo arranjo institucional.
  • 2
    Como será visto mais adiante, os superávits primários, a aprovação da Lei e Responsabilidade Fiscal e outras medidas necessárias ao ajuste, como a privatização de bancos estaduais e regras mais rigorosas para o endividamento público, são indicadores da capacidade do governo FHC de impor a prioridade da agenda fiscal. Isso, independentemente do julgamento do mérito desta política.
  • 3
    Esses dois fatores de coesão governamental serão mencionados apenas no caso brasileiro. Na literatura sobre os demais países, o enfoque recai nas relações entre executivo e legislativo.
  • 4
    Além do sistema de governo, a seleção dos casos se orientou por razões de ordem prática, relacionadas à existência nestes países de estudos comparativos sobre o tema.
  • 5
    É sempre bom lembrar que o sistema americano, a partir da visão madisoniana, não foi construído para ser eficiente, mas para evitar a tirania (Aberbach, 1990), enquanto que o brasileiro conserva ainda fortes traços de centralismo.
  • 6
    É importante mencionar que, do ponto de vista macroeconômico, a problemática do déficit público assume proporções mais graves em países como o Brasil, dada sua maior dependência de capitais externos e maior nível de exigência de finanças públicas "saudáveis" e, portanto, dignas da "confiança" dos investidores externos.
  • 7
    Como exemplo desse clima e da manipulação da opinião pública por parte da direita conservadora nos Estados Unidos, pode-se mencionar o relógio da dívida nacional, colocado na Sexta avenida em Nova York. O grande painel luminoso mostra aos passantes o crescimento incessante da dívida pública, a cada segundo.
  • 8
    Em geral, os governos estaduais podem emitir títulos públicos sem limitações em caso de guerra e invasões. Eles não precisam de autorizações para obter fundos para defesa do Estado. O dinheiro deve ser, porém, usado exclusivamente para este fim.
  • 9
    As análises e informações utilizadas nesta e na próxima seção se baseiam no excelente texto de Allen Schick (1993) sobre o tema.
  • 10
    Nos anos 70, o desempenho econômico da Suécia foi inferior ao de qualquer outro país industrializado, menor ainda do que o da decadente Inglaterra. As exportações caíram e sua participação no comércio mundial em 1980 foi reduzida em 25%, diante do que tinha sido dez anos antes. A resposta do governo à deterioração das condições econômicas foi a elevação dos gastos e do consumo públicos: o emprego público, que representava 21% do emprego total em 1970, passou para 30% em 1980. Os gastos públicos atingiram 62% do PIB no final dos anos 70. A combinação de uma economia em declínio e gastos públicos em crescimento gerou déficits crescentes, que giravam em torno de 10% do PIB neste período (conforme dados do OECD Economic Survey, citados por Schick, 1993, pp. 216-218).
  • 11
    Em uma interessante análise sobre a experiência da chamada "terceira via" sueca, Pontusson (1994) indica que ela representou o abandono das ambições do movimento trabalhista dos anos 70. Segundo seus artífices, constituiu-se da combinação de estratégias reflacionistas keynesianas com medidas deflacionistas de cunho liberal. Em consonância com as tendências internacionais, a social democracia desregulamentou os mercados financeiros e eliminou gradativamente todo o controle sobre o câmbio ao longo dos anos 80. Também fez uma grande reforma tributária, criando uma faixa única de impostos para a maioria dos assalariados. Inspirada ainda na reforma de Reagan, nos Estados Unidos, ampliou o imposto sobre o valor agregado e aumentou a taxação sobre os ganhos de capital. Em suma, na avaliação ainda de Pontusson, os sociais democratas desta terceira via caminharam decididamente na direção neoliberal (pp. 211-221).
  • 12
    Os gastos com pessoal (ativos e inativos) têm sido outra fonte importante das dificuldades financeiras dos governos subnacionais. Mesmo com a redução do número de servidores, a folha de pagamento cresce constantemente em decorrência de benefícios legais automáticos (Beltrão, Abrucio e Loureiro, 1997).
  • 13
    Entende-se por superávit primário o resultado positivo entre receita e despesa, excluindo-se o pagamento de juros. Os superávits primários são considerados necessários para a redução do peso da dívida pública ante o PIB. Como resultado de vários anos de contenção dos gastos e de elevação da carga tributária bruta (que passou de cerca de 22% do PIB, em 1994, para mais de 30% do PIB hoje), o setor público vem apresentando superávits primários, nos últimos anos: no primeiro trimestre de 2001, por exemplo, a União e os governos subnacionais geraram superávits primários respectivamente de 9,5 bilhões de reais (3,8% do PIB) e 5,4 bilhões (1,8% do PIB) (Informações FIPE, 248, maio de 2001).
  • 14
    Pode-se citar, como exemplo, a ajuda do governo federal, em 1994, aos bancos estaduais para obter apoio no Congresso e facilitar a articulação da candidatura de Fernando Henrique Cardoso à presidência da República. Nessa época, a União comprou títulos dos bancos estaduais, considerados "podres" pelo mercado, no valor de 5 bilhões de dólares, ou seja, mais do que o dobro do que foi injetado em todas as instituições financeiras nos seis anos anteriores (conforme dados publicados em
    O Estado de S. Paulo, 23/10/1994,
    apud Abrucio e Costa, 1998, p. 47).
  • 15
    Segundo o texto: "O Banco Central e o Senado estavam aceitando tudo o que lhes era apresentado, não questionando o valor ou a existência dos precatórios listados, nem levantando a possibilidade de que tais débitos já poderiam ter sido pagos. [...]
    Quanto mais se percebia que o Banco Central e o Senado não estavam sendo suficientemente vigilantes, mais se exagerava na correção monetária dos precatórios devidos" (Senado Federal,
    op. cit., p. 44, grifo meu).
  • 16
    Cabe relembrar que também nos Estados Unidos o
    default dos títulos da cidade de Nova York levou o Congresso americano a produzir normas mais rigorosas para o controle do endividamento público no país.
  • 17
    Eis o que diz a respeito um dos senadores entrevistados: "Quando a solicitação do Estado ou município está no limite do previsto nas resoluções, na 65 e agora na 78, ainda assim há pressão dos governadores, dos secretários e parlamentares. Há exemplos semanais [dessa pressão]."
  • 18
    O artigo VII da Resolução 78/98 assim estabelece: "
    O Banco Central do Brasil não encaminhará ao Senado Federal pedido de autorização para a contratação de qualquer operação de crédito de tomador que apresente resultado primário negativo no período de apuração da Receita Líquida Real ou que esteja inadimplente junto a instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional" (grifo meu).
  • 19
    São expressivas estas palavras: "Se as matérias sobre endividamento não são remetidas para o Senado, se são triadas dentro do BACEN, haverá menos pressões políticas junto aos senadores. É uma atitude de auto-defesa, porque se chega ao Senado um pedido de autorização de endividamento, é muito difícil resistir politicamente às pressões" (Funcionário da CAE).
  • 20
    Pode-se levantar aqui, a título de hipótese, alguns fatores que podem ter influenciado a formação desse consenso em torno da responsabilidade fiscal nos últimos anos no país: além do sucesso inicial do Plano Real e das pressões do mercado, exigindo maior "confiabilidade" para os investidores externos, também atuaram nesta direção a emergência de um certo clima de intolerância contra a corrupção e de consciência mais clara dos danos que a insolvência dos governos podem gerar à sociedade como, por exemplo, as conseqüências do não pagamento de salários a funcionários públicos - greves, deterioração dos serviços públicos etc.
  • 21
    Vale a pena transcrever aqui alguns trechos de debates ocorridos no Senado desde 1995, que culminaram na aprovação da Resolução 78, em julho de 1998. Eles revelam bem a tensão entre a lógica política e a necessidade de impor restrições aos governos subnacionais: "Nem eu nem nenhum dos senadores têm interesse em inviabilizar a administração pública de nenhum Estado. Agora, precisamos [...] pensar um pouco no país sob seguinte aspecto: quando vamos parar com essa estória de o prefeito passar a conta para o governador, o governador passar para o presidente e este para o povo? Quando vamos criar mecanismos de austeridade administrativa nos Estados?" (senador Wilson Kleinübing, Ata da 28ª. Reunião da CAE/Senado Federal, 13/9/1995) "[...] Chegou a hora da verdade. Não vamos mais empurrar problemas com a barriga e nem mandar a conta para a viúva. Ontem nesta sala, quando um senador, meu colega, fazia um discurso e dizia que a União tem que resolver os problemas dos Estados, eu perguntei: 'Quem vai resolver os problemas da União?'. Sou representante do Estado de Amazonas, mas sou Senador da República. Não posso adotar a posição irresponsável de dizer: mande para a União e o resto que se dane" (senador Jefferson Peres, Ata da 14ª. Reunião da CAE/Senado Federal, 16 /6/1998).
  • 22
    Na 50ª. legislatura, correspondente ao primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1999), as bancadas do PSDB, PFL e PMDB no Senado detinham respectivamente 14,8%, 25,9% e 28,3% de senadores.
  • 23
    Descrição bem detalhada destas negociações encontra-se em Abrucio (2000).
  • 24
    Se a reforma tributária até hoje não foi levada adiante no Brasil, isso se deve não à fraqueza do executivo federal, mas, ao contrário, ao seu desinteresse em realizar qualquer mudança que possa alterar o
    status quo e, portanto, reduzir sua participação no bolo tributário. Com relação à reforma administrativa, pode-se lembrar que também as modificações do projeto inicial do ministro da Administração e Reforma do Estado que levaram à sua descaracterização estão relacionadas ao pouco comprometimento do presidente e, conseqüentemente, das lideranças governistas com o seu conteúdo.
  • 25
    Para alguns autores, o que prejudicou a aprovação do projeto do governo foi a apresentação da proposta de reforma do sistema de previdência do setor privado (INSS) com a dos funcionários públicos (Abrucio e Costa, 1998). Para outros, as dificuldades de aprovação dessa reforma podem ser explicadas pela natureza mesma da matéria. Como os cortes de benefícios sociais implicam custos extremamente elevados no presente e ganhos difusos e incertos no futuro, essas medidas são politicamente inviáveis em qualquer sistema político. Nem mesmo no sistema parlamentarista inglês, de poder altamente concentrado, a primeira ministra conservadora Margareth Tatcher conseguiu aprovar sua reforma do Welfare State (Pierson e Weaver, 1993; Figueiredo e Limongi, 1998, p. 65). Também os casos da Holanda e Suécia, examinados neste texto, revelam as dificuldades enfrentadas por seus gabinetes de coalização para reduzir os benefícios do sistema de seguridade social exigidos pelo ajuste fiscal nos anos 80.
  • 26
    Segundo os dados da Secretaria do Tesouro Nacional, em 1999, por exemplo, o déficit do INSS era de 6 bilhões de reais, enquanto o do sistema de aposentadoria dos funcionários públicos das três esferas de governo estava em torno de 38 bilhões de reais. Juntos, esses déficits representavam cerca de 5% do PIB.
  • 27
    Enquanto no passado os Estados brasileiros se comportavam como credores soberanos ante a União, para usar expressão de Conklin (1998), neste novo quadro de relações intergovernamentais, eles têm incentivos para pagar suas dívidas, já que os custos da desobediência se tornaram bem mais elevados do que os eventuais benefícios.
  • 28
    Cabe mencionar que o governo federal também recebeu apoio da opinião pública neste caso. O Jornal
    O Estado de S. Paulo, por exemplo, publicou um editorial com o seguinte título: "As armas do governo federal contra os caloteiros" (7/1/1999, p. A3).
  • 29
    No primeiro governo FHC, a orientação fiscalista do Ministério da Fazenda foi também difundida para os demais ministérios de modo informal pela influência sobre o processo de nomeação de grande número de altos funcionários em outros ministérios, especialmente seus secretários executivos (Loureiro e Abrucio, 1999).
  • *
    Os dados que serviram de base para este trabalho fazem parte de pesquisa financiada pelo Núcleo de Estudos e Publicações (NPP) da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, ao qual aproveito a oportunidade para reiterar meus agradecimentos. Versões preliminares do texto foram apresentadas em seminário no Departamento de Ciência Política da Universidade de Nova York (NYU), em fevereiro de 2000, e no Encontro Anual da Anpocs, de outubro de 2000, realizado em Petrópolis. Agradeço também os comentários dos professores Adam Pzreworski, da Universidade de Nova York, Ira Katznelson e Robert Kauffman, da Universidade de Columbia. E ainda, de forma especial, as discussões com Fernando Abrucio, que me permitiram melhorar a versão final do texto.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Abr 2002
    • Data do Fascículo
      Out 2001
    Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 - sala 116, 05508-900 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 3091-4664, Fax: +55 11 3091-5043 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: anpocs@anpocs.org.br