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Comitê Gravataí: gestão participativa da água no Rio Grande do Sul

Gravataí committee: participatory water management in Rio Grande do Sul, Brazil

Resumos

O artigo analisa um caso específico de interação entre Estado e sociedade: o funcionamento do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí, criado em 1989. Primeiro, demonstra-se que, embora tenha alcançado um grau elevado de colaboração entre técnicos estatais e ONGs, o comitê ainda não consegue cumprir com os objetivos pelos quais foi criado. Segundo, afirma-se que, para alcançar esses objetivos e também sobreviver, um foro de gestão participativa como o Comitê Gravataí precisa superar sérios problemas em relação à sua sustentabilidade técnica, financeira e política. Terceiro, argumenta-se que a superação desses problemas depende tanto da articulação do comitê com outras organizações estatais e não estatais quanto do aval dos máximos decisores políticos. Quarto, ressalta-se que a ação difusa do Estado garante, em inúmeras ocasiões, a participação dos representantes das organizações civis. Assim, conclui-se que, mesmo em casos de gestão pública com ampla participação, como o Comitê Gravataí, a sua viabilidade depende, em múltiplas formas, da ação estatal.

Participação; Política de Recursos Hídricos; Rio Grande do Sul


This article examines a case of State-society interaction in policy making: the operation of the Gravataí River Basin Committee (Comitê Gravataí), created in 1989 in Rio Grande do Sul, Brazil. First, it is shown that, in spite of a high collaboration between state technical officials and NGO members, as of 2006 the committee has not achieved the goals for which it was created. Second, it is hold that in order to achieve those goals and to secure its survival, a participatory forum such as the Comitê Gravataí has to overcome serious restrictions regarding its technical, financial, and political sustainability. Third, it is argued that overcoming those restrictions entails a higher coordination between the committee, on the one hand, and governmental and non-governmental organizations, on the other. Fourth, it is stressed how the "diffused" action of the State ensures, in many situations, the participation of civil society organizations. The conclusion holds that even in cases of widely participatory policy-making, such as the Comitê Gravataí, their prospect depend, in multiple ways, on the state action.

Participation; Water Policy; Rio Grande do Sul


Comitê Gravataí: gestão participativa da água no Rio Grande do Sul

Gravataí committee: participatory water management in Rio Grande do Sul, Brazil

Ricardo A. Gutiérrez

Professor da Escola de Política e Governo, Universidad Nacional de San Martín, Argentina

RESUMO

O artigo analisa um caso específico de interação entre Estado e sociedade: o funcionamento do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí, criado em 1989. Primeiro, demonstra-se que, embora tenha alcançado um grau elevado de colaboração entre técnicos estatais e ONGs, o comitê ainda não consegue cumprir com os objetivos pelos quais foi criado. Segundo, afirma-se que, para alcançar esses objetivos e também sobreviver, um foro de gestão participativa como o Comitê Gravataí precisa superar sérios problemas em relação à sua sustentabilidade técnica, financeira e política. Terceiro, argumenta-se que a superação desses problemas depende tanto da articulação do comitê com outras organizações estatais e não estatais quanto do aval dos máximos decisores políticos. Quarto, ressalta-se que a ação difusa do Estado garante, em inúmeras ocasiões, a participação dos representantes das organizações civis. Assim, conclui-se que, mesmo em casos de gestão pública com ampla participação, como o Comitê Gravataí, a sua viabilidade depende, em múltiplas formas, da ação estatal.

Palavras-chave: Participação; Política de Recursos Hídricos; Rio Grande do Sul.

ABSTRACT

This article examines a case of State-society interaction in policy making: the operation of the Gravataí River Basin Committee (Comitê Gravataí), created in 1989 in Rio Grande do Sul, Brazil. First, it is shown that, in spite of a high collaboration between state technical officials and NGO members, as of 2006 the committee has not achieved the goals for which it was created. Second, it is hold that in order to achieve those goals and to secure its survival, a participatory forum such as the Comitê Gravataí has to overcome serious restrictions regarding its technical, financial, and political sustainability. Third, it is argued that overcoming those restrictions entails a higher coordination between the committee, on the one hand, and governmental and non-governmental organizations, on the other. Fourth, it is stressed how the "diffused" action of the State ensures, in many situations, the participation of civil society organizations. The conclusion holds that even in cases of widely participatory policy-making, such as the Comitê Gravataí, their prospect depend, in multiple ways, on the state action.

Keywords: Participation; Water Policy; Rio Grande do Sul.

Desde as obras clássicas de Weber (1992, 1994), Michels (1983) e Schumpeter (1976) até os mais recentes estudos institucionalistas e historicistas do Estado1 1 Para uma visão geral dos estudos neo-institucionalistas e historicistas do estado, ver Evans, Rueschemeyer & Skocpol 1985, Steinmo, Thelen & Longstreth 1992, Hall & Taylor 1996, Blyth & Varghese 1999, Kohli 2002, Levi 2002. Ver também Huntington 1968, Heclo 1974, Krasner 1984. , a burocratização da gestão pública tem sido um tema recorrente na literatura sobre Estado e políticas públicas. Seja porque consideram a burocratização inevitável (como no caso prototípico de Max Weber), seja porque a consideram necessária ou desejável2 2 Ver v.g. os estudos sobre autonomia e capacidade do Estado (Skocpol e Finegold (1983), Skocpol (1985), Geddes (1990), Sikkink (1993)) ou a literatura sobre ajuste estrutural (Haggard e Kaufman (1992 e 1995), Rodrik (1996), Grindle (2000), Teichman (2001)). , esses estudos tendem a compartilhar o argumento segundo o qual a burocratização, entendida como o isolamento das agências estatais encarregadas de definir e implementar políticas, é um meio necessário para a formulação e execução eficiente de decisões públicas.

Essa interpretação, como é sabido, tem sido amplamente questionada. Em anos recentes, diversos estudos vêm criticando a burocratização da gestão pública, não somente do ponto de vista da legitimidade democrática, mas também questionando o seu núcleo mais sensível: o argumento da eficiência. O chamado enfoque sinérgico no campo da política comparada3 3 Evans (1997a, 1997b e 2002), Kohli (2002). Ver também Migdal, Kohli e Shue (1994), Evans (1995), Linz e Stepan (1996), Tendler (1997). Em sintonia com o enfoque sinérgico, pesquisadores brasileiros vêm desenvolvendo durante os últimos anos numerosos estudos sobre os novos "espaços públicos de gestão estatal". Para una visão geral tanto desses novos espaços como da literatura que os aborda, ver Dagnino (2002a). , assim como os enfoques participativos de políticas públicas4 4 Para uma argumentação exaustiva em defesa dos enfoques participativos dentro dos policy studies, ver Fischer (2000 e 2003). A literatura sobre descentralização também enfatiza a relação virtuosa entre participação e eficiência – ver v.g. Agrawal e Ribot (1999), Ribot (2001). , têm contra-argumentado, por exemplo, que a participação dos interessados (stakeholders) é indispensável para a implementação de políticas públicas não somente democráticas mas também sustentáveis. Os que defendem o isolamento burocrático argumentam que, somente desse modo, é possível acabar com práticas tais como o patrimonialismo, o clientelismo e o favoritismo políticos que transformam toda política pública em um assunto privado. Os modernos defensores da formulação participativa de políticas públicas (os que devem em princípio diferenciar-se do pluralismo clássico, dos enfoques centrados na sociedade civil e dos ataques tout court contra a burocracia estatal) argumentam que, pelo contrário, o único modo de acabar com a influência dessas práticas na execução de políticas públicas é mediante a participação aberta e formal de todos os interessados. Argumentam também que somente um processo de elaboração de políticas públicas que incorpore esses últimos conseguirá neutralizar ou acomodar os conflitos de interesses que eventualmente poderiam dificultar o êxito de qualquer política.

Durante os últimos dez ou quinze anos, os enfoques participativos ou sinérgicos têm tendido a dominar o debate acadêmico sobre a formulação e execução de políticas públicas, mas isso não eliminou na prática a tensão entre burocracia e participação, nem diminuiu o interesse pela construção de "capacidades institucionais" do Estado. Neste artigo, abordarei o debate burocracia versus participação, analisando a colaboração entre agentes estatais e atores da sociedade civil em um caso específico de gestão pública participativa: o funcionamento do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí (de agora em diante, Comitê Gravataí). A bacia do rio Gravataí está localizada no Rio Grande do Sul, Estado pioneiro na introdução do novo modelo de gestão das águas que vem sendo implementado no Brasil há duas décadas e que foi reconhecido nacionalmente mediante a sanção da Lei Federal das Águas de 1997 (Lei Federal 9.433/1997). Formado em 1989, o Comitê Gravataí foi um dos dois primeiros comitês estaduais5 5 Ao longo deste trabalho, utilizarei o adjetivo "estadual", como distinto do epíteto "estatal", para referir-me a tudo aquilo que é relativo ao "Estado" como subunidade político-territorial que compõe a federação brasileira. Assim, o adjetivo "estadual" será, às vezes, utilizado como sinônimo de gaúcho ou rio-grandense (do sul). no Brasil, criado antes da sanção não só da Lei Federal de 1997, mas inclusive da lei gaúcha das águas de 1994 (Lei Estadual 10.350/1994). Outra característica relevante desse comitê remete ao alto nível de participação de organizações da sociedade civil (de agora em diante, organizações civis) desde a própria criação do comitê. Ambos aspectos fazem do Comitê Gravataí um caso interessante para avaliar o alcance e o potencial da participação da sociedade civil na gestão de políticas públicas, um dos pilares do novo modelo de gestão.

Na segunda seção deste artigo, descreverei brevemente o processo de reforma da gestão de recursos hídricos que vem sendo desenvolvida no Brasil (particularmente no Rio Grande do Sul) a partir dos anos 1980, no qual enquadra-se o funcionamento do Comitê Gravataí. Após, analisarei a criação e a dinâmica do Comitê Gravataí como um caso de alta colaboração entre atores estaduais e não-estaduais. Porém, apesar dessa colaboração e da capacidade razoável do comitê para deliberar e até tomar decisões, este enfrenta sérias dificuldades na hora de efetivar uma resolução ou conseguir que as decisões tomadas sejam executadas. Isso significa que o comitê está longe de cumprir com os seus objetivos e de resolver os problemas em razão dos quais foi criado. Assim, na quarta seção, argumentarei que, para sobreviver e cumprir minimamente com os seus objetivos, um foro de gestão participativa como o Comitê Gravataí tem de superar sérios problemas em relação à sua sustentabilidade técnica, financeira e política. Na última seção, concluirei que a superação desses problemas e, conseqüentemente, a sobrevivência e eventual sucesso do comitê dependerão (1) da articulação deste último com outros órgaõs estatais e atores sociais, (2) do funcionamento pleno do sistema estadual de recursos hídricos e (3) do aval dos máximos decisores políticos para que tudo isso aconteça. Por sua vez, em não poucas ocasiões, a ação difusa do Estado é vital para sustentar a participação dos representantes das organizações civis. Assim, ainda em casos de gestão pública amplamente participativa como o Comitê Gravatai, a sua viabilidade dependerá de múltiplas formas da ação estatal.

A análise aqui apresentada baseia-se na pesquisa de campo realizada no Rio Grande do Sul em três etapas: julho de 2001, julho de 2002 e junho de 2004. A pesquisa teve por objetivo estudar tanto a criação e operação do Comitê Gravataí, como a história da reforma hídrica rio-grandense. Para isso, administraram-se entrevistas semi-estruturadas com atores pertencentes às mais variadas organizações estatais e não estatais. Essas entrevistas foram complementadas com participação em reuniões e locais de diversos tipos, contatos informais com pessoas de algum modo vinculadas ao processo de reforma, coleta de documentação oficial e revisão bibliográfica.

A pesquisa de campo que nutre este artigo foi realizada no marco do Projeto Marca D’Água (Watermark Project), coordenado por Margaret Keck e projetado para durar entre 5 e 10 anos. O Projeto Marca D’Água busca estudar os aspectos institucionais, políticos e sociais que afetam a criação e operação de comitês de bacias hidrográficas ao longo de quase todo o Brasil6 6 Para mais informação sobre o Projeto Marca D’Água, ver Formiga Johnsson e Lopes, 2003. . Com base no Núcleo de Pesquisas Públicas da Universidade de Brasília, o Projeto Marca D’Água realizou pesquisas preliminares em mais de vinte bacias brasileiras do sul, sudeste, centro-oeste e nordeste, e atualmente está realizando uma pesquisa de opinião com membros de comitês7 7 As atividades do Projeto Marca D’Água, incluindo a minha pesquisa de campo, têm sido financiadas pelas seguintes organizações: John D. and Catherine MacArthur Foundation, William and Flora Hewlett Foundation, The Johns Hopkins University’s Center for a Livable Future, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. A minha pesquisa de campo também foi beneficiada com fundos da National Oceanic and Atmospheric Administration. .

Reforma da gestão hídrica e o caso do RS

Múltiplos níveis de decisão. Durante os últimos vinte anos, tanto a administração nacional como os governos estaduais vêm implementando, ao longo de quase todo o Brasil, um modelo integrado, descentralizado e participativo de gestão das águas, que aqui chamarei de modelo IDP de gestão. A reforma atualmente em curso tem por objetivo instalar um novo sistema de gestão que compreende todos os usos da água (que se conhece como "gestão integrada" das águas) e abarca três níveis subsidiários de decisão: (1) o sistema nacional de gestão dos recursos hídricos, (2) os sistemas estaduais de gestão dos recursos hídricos e (3) os comitês de bacia hidrográfica. Enquanto os comitês de bacia hidrográfica são partes-integrantes, seja do sistema nacional, seja de um sistema estadual (dependendo do domínio das águas8 8 A Constituição Federal de 1988 divide a propriedade das águas em dois domínios: estadual e federal – ver infra. ), os sistemas estaduais devem, em princípio, operar em coordenação com o sistema nacional de recursos hídricos por meio do Conselho Nacional de Recursos Hídricos.

O novo modelo de gestão. Em 1997, o Congresso Nacional brasileiro institucionalizou o modelo IDP de gestão, transformando-o em referência nacional, mediante a sanção da Lei Federal das Águas (Lei 9.433). O modelo consagrado pela Lei Federal das Águas baseia-se nos seguintes princípios:

  • A água é um bem público.

  • A água é um recurso natural limitado provido de valor econômico, sujeito assim à tarifação pela provisão do serviço.

  • O consumo humano e o consumo animal têm, em caso de escassez, prioridade no uso da água.

  • A bacia hidrográfica é a unidade territorial básica para a gestão das águas.

  • A gestão das águas deve contemplar os seus múltiplos usos.

  • A gestão das águas deve ser descentralizada e participativa, descansando no engajamento ativo de atores públicos, usuários e a comunidade.

A peça organizacional básica do novo modelo de gestão é o comitê de bacia hidrográfica9 9 Cabe esclarecer que quando, neste artigo, se fala do "novo" modelo de gestão das águas, a referência é feita em função da história da gestão hídrica no Brasil e não dos modelos de gestão disponíveis na "comunidade hídrica". Como se verá depois, o modelo adotado tanto pelo governo gaúcho como pelo governo federal é uma adaptação do modelo de gestão vigente na França desde faz meio século. Para uma visão comparada do modelo francês, ver Barraqué 1997. , composto por representantes de: (1) executivos e legislativos federais, estaduais e municipais; (2) usuários da água (tanto privados quanto públicos) e (3) organizações da sociedade civil vinculadas aos recursos hídricos.

Concebidos como instâncias de articulação de todos os princípios consagrados pela Lei Federal das Águas, os comitês de bacia gozam de uma boa dose de poder deliberativo. Não obstante, devido à estrutura federal de divisão de poderes e à estrutura decisória do novo sistema de gestão, as decisões dos comitês devem ser coordenadas (senão, subordinadas) às dos conselhos e agências federais e estaduais de recursos hídricos. Ainda mais, os "planos diretores" dos comitês devem ser consistentes, em teoria, com o plano nacional de recursos hídricos e/ou com o plano estadual correspondente10 10 A Lei Federal das Águas estabelece seis instrumentos de gestão: (1) os planos de recursos hídricos; (2) o enquadramento das águas; (3) a outorga dos direitos de uso das águas; (4) a tarifação pelo uso das águas; (5) o sistema nacional de informação sobre recursos hídricos e (6) as compensações aos municípios. Essa lista é replicada, com variações menores, pela legislação da maior parte dos Estados. Cada nível de gestão (sistema nacional, sistema estadual, comitê de bacia) deve contar com o seu próprio plano. Os planos constituem, por causa da sua natureza programática, o instrumento de maior nível e devem supostamente contemplar, na sua formulação, o uso dos outros instrumentos. Entre estes, a tarifação pelo uso das águas (ou cobrança) é o instrumento mais crítico desde o ponto de vista financeiro, dado que tanto a operação dos comitês como as ações e projetos por eles aprovados deveriam ser financiados, a partir de certo momento no processo de implementação da reforma, mediante cobrança de tarifas pelo uso da água. .

Descentralização da formulação e implementação de políticas. A Lei 9.433/1997 efetiva o artigo 21 da Constituição Federal de 1988, que obriga as autoridades federais a criar o Sistema Nacional de Gestão dos Recursos Hídricos. A Constituição Federal de 1988 também divide as águas em dois únicos domínios – o federal e o estadual –, inibindo desse modo os domínios privado e municipal11 11 As águas estaduais compreendem cursos de água localizados exclusivamente em um Estado. São federais os cursos de água compartilhados, pelo menos, por dois Estados e/ou com algum país vizinho. . Essa divisão constitucional das águas implica que, na prática, todos os Estados também deveriam criar o seu próprio sistema de gestão dos recursos hídricos e, ao mesmo tempo, integrá-los, como o estabelece a Lei 9.433/1997, ao sistema nacional. Embora a maioria dos Estados tenha começado já a sua própria reforma tomando o modelo federal como referência, a aplicabilidade da Lei 9.433/1997 nas águas de domínio estadual tem sido objeto de amplo debate em vários Estados. Ainda mais, em Estados como Rio Grande do Sul, São Paulo e Ceará, a reforma foi iniciada ainda antes de a Lei 9.433/1997 ser discutida e aprovada. Em suma, além de os Estados serem tão centrais quanto o governo federal e os comitês de bacia na implementação da reforma, a iniciativa reformista de atores estaduais tem sido tão ou mais importante que a dos atores federais.

No caso do Rio Grande do Sul, observa-se que a reforma da gestão hídrica começou uma década antes da reforma federal, podendo ser destacados três momentos cruciais.

O primeiro momento foi a criação em 1981, por decreto do governador (Decreto 30.132/1981), do primeiro Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CRH). Embora esse Conselho, composto basicamente por secretarias de Estado, na prática não tenha funcionado até fins dos anos 1980, a sua criação, em 1981, foi importante na posta em marcha da reforma por dois motivos. Em primeiro lugar, porque o decreto de criação do Conselho já continha, ainda que em forma embrionária, vários dos elementos que depois comporiam o novo modelo de gestão. Para além da criação do CRH, o Decreto 30.132/1981 estipulava a criação do sistema estadual de recursos hídricos, o planejamento integrado, a elaboração de um plano estadual de recursos hídricos e a formação de comitês de bacia, elementos todos que, com variações, iriam integrar mais tarde a nova legislação hídrica. Em segundo lugar, porque esse mesmo decreto criava os espaços institucionais que depois seriam utilizados pelos reformistas em formação para introduzir o novo modelo, isto é, a Secretaria Executiva e a Comissão Consultiva do CRH. Apesar de serem órgãos subordinados, a Secretaria Executiva e a Comissão Consultiva funcionaram mais ativamente do que o próprio Conselho durante os anos 1980 e tornaram-se, de fato, âmbitos em que técnicos e especialistas de distintas organizações começaram a interagir e a intercambiar conhecimento e experiências. Daí sairia o grupo de reformistas (batizados posteriormente de "pais da reforma"), que dariam impulso à criação dos primeiros comitês de bacia e depois redigiriam a lei estadual das águas.

O segundo momento foi a criação, em 1988-1989, dos dois primeiros comitês de bacia estaduais em todo o Brasil: Comitê Sinos e Comitê Gravataí. Esses comitês foram criados por iniciativa de técnicos estaduais reformistas e de organizações civis seguindo o modelo francês de gestão de bacias, o mesmo que seria depois adotado pelo governo federal. Em 1994, ainda antes da promulgação da Lei Estadual das Águas, foi criado um terceiro comitê: Comitê Santa Maria.

O terceiro momento foi a discussão, desenho e aprovação, entre 1992 e 1994, da Lei Estadual das Águas, sancionada em dezembro de 1994 (Lei 10.350/1994). Por iniciativa do então secretário executivo do CRH, essa lei foi elaborada pelo grupo de reformistas referido acima, o qual estava integrado na sua quase totalidade por técnicos estaduais que, em sua maioria, já tinham participado de algum modo da criação dos comitês Sinos e Gravataí.

Tudo isso faz do Rio Grande do Sul um Estado pioneiro na introdução da reforma, que teve início não com a discussão e sanção de uma lei (como no Estado de São Paulo), mas com a criação dos comitês.

Participantes na gestão pública. O novo modelo de gestão implica uma mudança em relação a quem tem acesso ao poder de formular e implementar políticas, de uma administração setorial centralizada a uma gestão integrada que é, ao mesmo tempo, participativa e descentralizada. Essa mudança pode ser entendida no marco do entusiasmo descentralizador e participativo que acompanhou a transição da democracia no Brasil e se cristalizou na Constituição Federal de 1988. Uma grande variedade de atores públicos e privados das esferas federal, estadual e municipal tem participado no processo de reforma da gestão hídrica; desde funcionários eleitos e nomeados até organizações da sociedade civil, passando por membros do serviço civil e usuários de diferentes setores (saneamento, indústria, agricultura, energia etc.). Assim, alguns analistas têm visto no modelo IDP de gestão uma ocasião promissora para a expansão do número de participantes na formulação de políticas e para outorgar aos interessados ou stakeholders uma oportunidade única para colaborarem diretamente na gestão pública e verem os seus interesses incorporados nas políticas resultantes12 12 Ver v.g. Porto (1998) Porto e Azevedo (1999). Ver também Jouravlev (2001)e Dourojeanni (2001). . No caso do Rio Grande do Sul, técnicos13 13 Os técnicos constituem um tipo especial de burocratas que podem ser definidos do modo seguinte: (1) funcionários do serviço civil que ocupam (2) posições de nível médio funcionalmente vinculadas a sua (3) expertise tecnológica ou formação profissional. estaduais e municipais e membros de organizações civis têm sido, na prática, igualmente importantes na criação e operação de comitês. Este artigo está orientado, precisamente, a entender como se deu, no caso do Comitê Gravataí, a interação entre esses grupos, qual foi o seu alcance e quais as suas limitações.

Formação e funcionamento do Comitê Gravataí

Criação, objetivos e estruturação do comitê. O Comitê Gravataí foi criado nos fins da década de 1980 como resultado da interação entre dois grupos principais: (1) técnicos estaduais e municipais14 14 A bacia do rio Gravataí compreende território de nove municípios, incluído o de Porto Alegre. Todos esses municípios são partes-integrantes, formalmente, da Região Metropolitana de Porto Alegre. e (2) ambientalistas de duas ONGs locais.

Por um lado, duas organizações ambientalistas locais15 15 Associação de Preservação da Natureza Vale do Gravataí (APN-VG) e Associação Canoense de Proteção ao Meio Ambiente Natural (Ascapan). Cabe esclarecer que essas não são as únicas ONGs ambientalistas atuantes na área, mas sim são as únicas que participam do comitê desde o início. foram criadas, entre 1979 e 1986, com o objetivo de proteger o meio ambiente e demandar a recuperação da bacia hidrográfica do rio Gravataí, especialmente na área dos banhados localizados no trecho superior da bacia16 16 A bacia hidrográfica do rio Gravataí divide-se em duas partes: o trecho superior, formado basicamente pelo Banhado Grande e outros banhados menores, e o trecho inferior, atravessado pelo rio Gravataí propriamente dito, que bordeja a cidade de Porto Alegre. O rio Gravataí recolhe as águas do banhado assim como águas de tributários menores, desembocando num sistema de lagunas que despeja no Oceano Atlântico. . De acordo com essas organizações, as obras de drenagem, realizadas durante os anos 1960 pelo governo federal, junto com as práticas irrigatórias introduzidas pelos produtores de arroz, reduziram o tamanho natural dos banhados, o que por sua vez teve um alto impacto negativo no regime hidrológico de toda a bacia. Desde o início, a principal demanda dos ambientalistas foi com relação à construção de uma represa para recuperar, ao menos parcialmente, os banhados e regularizar novamente o regime hidrológico da bacia. Segundo vários dos meus entrevistados, essa demanda foi a bandeira de luta com a qual os ambientalistas locais conseguiram sensibilizar a opinião pública em favor da proteção ambiental da área dos banhados.

Por outro lado, técnicos estaduais e municipais, vinculados de algum modo à gestão dos recursos hídricos (v.g. abastecimento, saneamento básico, planejamento, meio ambiente), mostravam-se preocupados com a deterioração da qualidade e com a quantidade das águas da bacia. Os técnicos entendiam que essa deterioração devia-se a dois fatores: (1) o crescimento urbano e (2) as alterações no regime hidrológico da bacia, provocadas pelas obras de drenagem e irrigação. Esse grupo de técnicos também estava interessado na preservação e recuperação da bacia (tanto dos banhados quanto do rio e seus afluentes) como um meio para garantir o abastecimento de água e melhorar o saneamento básico da região metropolitana de Porto Alegre.

Assim, técnicos e ambientalistas começaram a interagir nos finais dos anos 1980 à procura de uma solução integral para os problemas da bacia do Gravataí, que eram, em sua visão comum, os seguintes:

  • A degradação ambiental e hidrológica da bacia: como recuperar e preservar os banhados e o rio Gravataí?

  • A deterioração da qualidade e da quantidade de água: como garantir o abastecimento de água e o saneamento básico?

Em outubro de 1988, técnicos, ambientalistas e membros de outras ONGs não ambientalistas17 17 Trata-se basicamente da Associação de Ex-Bolsistas de Alemanha (Aeba), que contou, para a organização do seminário, com o apoio do Instituto Goethe. Cabe ressaltar que o membro da Aeba, que coordenou a organização do seminário. era também um técnico estadual. Isso já expressava um fenômeno mais estenso que, depois, iria caracterizar a vida tanto do Comitê Gravataí quanto de outros comitês gaúchos: a dupla pertença de vários membros do comitê a organizações estatais e a organizações civis (ver infra). organizaram um "seminário" com o objetivo de discutir os problemas da bacia e propor um modelo de gestão para resolvê-los. A solução que surgiu desse seminário, por sugestão dos técnicos estaduais, foi criar um comitê de bacia hidrográfica com base no modelo francês. Os que participaram do seminário entendiam que um comitê em que estivessem representadas as agências públicas, os poderes eletivos locais, os usuários e as organizações da sociedade civil seria a melhor solução para gerir os problemas da bacia. Conseqüentemente, enviaram um projeto de decreto ao governador, que, depois das gestões de alguns técnicos estaduais, promulgou o Decreto 33.125 criando o Comitê Gravataí em fevereiro de 1989.

O decreto de criação somente estabelecia que a jurisdição do novo comitê deveria abranger a área dos banhados e o rio Gravataí e os seus afluentes, estipulando que a organização e operação do comitê deveria reger-se por um estatuto redigido pelos primeiros membros do comitê e aprovado pelo governador.

Os primeiros membros do comitê, com predomínio de técnicos e representantes de organizações civis, aprovaram em 1989 o seu estatuto, segundo o qual o comitê teria por objetivo promover estudos e projetos referentes ao uso, recuperação e conservação dos recursos hídricos da bacia. O estatuto definia ainda as seguintes competências:

  • Aprovar e supervisar o Plano de Bacia Hidrográfica dentro dos lineamentos do Plano de Estadual de Recursos Hídricos.

  • Propor à agência ambiental estadual (Fepam) o enquadramento das águas da bacia, discriminando tipos de uso e alvos de conservação

    18 18 O enquadramento das águas é o processo mediante o qual o comitê (ou qualquer organização equivalente) define a qualidade das águas a ser alcançada no futuro. As águas podem ser classificadas desde Classe 1 (a melhor condição) até Classe 4 (a pior condição). Classe Especial é reservada para aqueles casos em que a água é absolutamente pura. O enquadramento das águas é extremamente importante, dado que a forma pela qual são hoje definidas as condições esperadas da água vai constranger, em teoria, todos os projetos e atividades a serem executados no futuro na bacia. .

  • Realizar sugestões para a elaboração do Plano de Estadual de Recursos Hídricos.

  • Propor critérios para determinar os usos da água da bacia.

  • Aprovar os valores das tarifas a serem arrecadadas pelo uso da água.

  • Calcular os custos das obras públicas a serem executadas dentro da bacia.

  • Funcionar como um foro para a discussão dos problemas da bacia.

  • Conciliar os interesses dos diferentes usuários da água, funcionando como uma primeira instância para a reconciliação de eventuais conflitos.

Como pode ser apreciado, o primeiro estatuto outorgava ao comitê não somente o status de um corpo consultivo, como também uma boa dose de poder resolutivo e deliberativo, convertendo-o em uma espécie de parceiro das organizações estaduais engajadas na gestão dos recursos hídricos. Em 2000, esse estatuto foi substituído por um regimento interno em função das alterações introduzidas pela Lei Estadual das Águas de 1994. Porém, tanto a lei de 1994 quanto o novo regimento interno estabeleceram os mesmos objetivos e competências que o primeiro estatuto, institucionalizando, desse modo, o poder de decisão inicialmente outorgado ao comitê.

O comitê é composto atualmente por 40 membros com direito a voto e por um número de membros sem voto os quais representam os órgãos de fiscalização, outorga e licenciamento. As 40 vagas dos membros com voto distribuem-se da seguinte forma:

  • 40% para os "usuários" públicos e privados (abastecimento humano, saneamento público, indústria, produção agropecuária, mineração e navegação, pesca e recreação);

  • 40% para a "população da bacia" (câmaras de vereadores, organizações da comunidade, associações técnico-profissionais, associações de recursos hídricos e organizações ambientais, instituições de educação superior, sindicatos urbanos e rurais);

  • 20% para a "administração direta" (ministérios federais e secretarias estaduais).

Ao longo da história do comitê, técnicos, ambientalistas e outros representantes de ONGs ocuparam a maioria das vagas e dominaram os órgãos de administração interna, o que demonstra e reforça a participação prematura desses grupos no comitê.

A ativa participação no comitê de técnicos e representantes de ONGs contrasta com a baixa participação dos produtores de arroz19 19 A participação dos arrozeiros parece ter melhorado em 2003-2004, o que se manifesta em sua presença nas reuniões do comitê. No entanto, ainda não fica claro em que medida as divergências existentes entre os arrozeiros e, por assim dizer, os atores urbanos (ONGs e técnicos) já foram superadas. . Durante muito tempo, os arrozeiros do trecho superior da bacia foram identificados por ambientalistas e técnicos como os principais responsáveis pela degradação ambiental e hidrológica da bacia. De fato, houve, ao longo dos anos, fortes disputas e divergências entre produtores de arroz, por um lado, e técnicos e ambientalistas, por outro. Em contraste, tem reinado entre esses últimos, nas palavras de um dos ambientalistas mais combativos, uma "relação conflituosa, mas harmoniosa", favorecida por uma "boa sensibilidade" e também por uma "boa dose de pragmatismo". Desde o início, técnicos e ambientalistas, apesar de certas divergências técnico-instrumentais, têm concordado sobre os principais problemas da bacia, têm colaborado no funcionamento do comitê como uma arena adequada para a solução desses problemas e têm debatido todas as questões relativas à gestão da bacia. Cada grupo contribui, para isso, com diferentes recursos. Os ambientalistas oferecem a sua visão crítica, a sua força de mobilização e aparentemente a sua capacidade de interpelar a opinião pública em torno aos problemas da bacia. Os técnicos colaboram com a sua capacidade de diagnosticar problemas, oferecer soluções e, aparentemente, aceder ao poder político. A combinação desses recursos tem sido fundamental para a criação do comitê e tem facilitado seu funcionamento de forma permanente durante 15 anos.

Principais questões deliberadas. A colaboração e o predomínio de técnicos e ambientalistas manifestam-se nas discussões e deliberações do comitê. Analisaremos aqui as principais questões que, além daquelas vinculadas com a estruturação organizacional, foram deliberadas pelo comitê ao longo dos seus 15 anos.

A construção de uma barragem para regularizar a vazão de água da bacia e recuperar os banhados foi a demanda original de uma das ONGs ambientalistas locais (APN-VG), constituindo o motivo principal da sua criação. Essa demanda foi depois adotada pelo comitê, colocada no centro de suas deliberações e complementada com a demanda pela transformação da região dos banhados em área de proteção ambiental (APA).

Desde o início, os produtores de arroz resistiram à construção da barragem. Eles temiam (e ainda temem) que uma barragem alagasse terrenos previamente ganhos aos banhados graças às obras de drenagem. No entanto, a participação dos produtores de arroz no comitê foi, pelo menos até 2001, esporádica, o que facilitou a inclusão dessa questão na agenda de discussão do comitê.

Um primeiro projeto com base em estudos feitos pela corporação estatal de saneamento (Corsan, membro do comitê como "usuário") não foi aprovado pelo comitê, alegando razões técnicas. Após 1995, a questão da barragem perdeu importância nas deliberações do comitê até 2000-2001, quando um novo estudo foi solicitado a um instituto de pesquisa em recursos hídricos (IPH), este também presente no comitê como "entidade de ensino superior".

Os primeiros resultados do estudo do IPH começaram a circular informalmente entre os membros do comitê enquanto realizava meu trabalho de campo em 2001. Quase todos os meus entrevistados pensavam nesse momento que uma barragem seria construída, mas a maioria tinha dúvidas a respeito da compatibilidade entre a eventual cota da barragem e os dois principais objetivos impostos pelo enquadramento das águas realizado em 1998: (1) preservar a água dos banhados como Classe Especial, isto é, água absolutamente pura e (2) "nadar" na desembocadura do rio em água de Classe 220 20 Ver nota 18 e infra. .

Segundo quase todos os entrevistados, o principal conflito residia no fato de que, para obter Classe 2 no trecho inferior, a barragem deveria ter uma cota tão alta que acabaria alagando os banhados em vez de preservá-los. Inversamente, se a barragem fosse construída com a cota estritamente necessária para preservar e recuperar os banhados, seria impossível obter no trecho inferior um volume de água suficiente para obter água Classe 2 e "tomar banho".

No início de 2002, o estudo do IPH havia terminado, correspondendo ao comitê discutir as recomendações que se desprendiam desse estudo e tomar alguma decisão a esse respeito. O estudo do IPH propunha diferentes alternativas de cota e vazão. O comitê devia discutir os resultados do estudo e decidir que cota a barragem devia ter. A questão esteve na pauta do comitê durante todo o ano 2002 sem que se avançasse em sua resolução. Paralelamente, o Departamento de Recursos Hídricos do Estado e a Secretaria Executiva do CRH tinham começado a discutir a elaboração do plano de bacia com membros do comitê – ver infra. Uma das propostas que começou então a circular foi adiar a decisão sobre a construção da barragem para retomá-la junto com a discussão e aprovação do plano de bacia. Essa foi finalmente a posição adotada pelo comitê em fins de 2002. Na prática, isso levou a que nenhuma decisão fosse tomada até o presente, devido à demora em definir os termos de referência para a elaboração do plano de bacia.

Por trás da decisão tomada pelo comitê em 2002 de adiar a discussão, estava o pressuposto segundo o qual, antes de decidir qualquer intervenção na bacia, era necessário determinar as metas e estratégias gerais do comitê, as quais deveriam estar, supostamente, contidas no plano de bacia. Assim, o comitê teria suspendido temporariamente a concretização de sua bandeira de luta original a favor do princípio de gestão integrada, cuja expressão máxima deveria ser o plano de bacia. Existem, no entanto, outros dois motivos que também poderiam explicar o porquê de os membros do comitê adiar a decisão sobre que tipo de barragem queriam construir. Em primeiro lugar, embora todos concordassem em que uma barragem deveria ser construída, dada a importância simbólica e histórica dessa questão, ganhava força dentro do comitê a opinião daqueles que achavam pouco viável compatibilizar tecnicamente a recuperação dos banhados (objetivo original da construção da barragem) com o enquadramento das águas aprovado em 1998. Em segundo lugar, parece que as probabilidades de que o governo estadual decidisse financiar a construção de uma barragem eram, dadas as restrições orçamentárias do estado, muito baixas. Assim, o comitê teria encontrado no adiamento para um futuro não imediato uma maneira de postergar outras discussões que iam bem além da construção da barragem.

O processo de enquadramento das águas começou em 1995 como um esforço conjunto do comitê e da agência estadual encarregada do controle ambiental (Fepam). Foi criada uma comissão de trabalho para centralizar todos os dados disponíveis e viabilizar a participação da comunidade. Tal como fora definido por essa comissão, o processo deveria incluir várias instâncias de consulta pública, tais como reuniões e seminários abertos à "população". As reuniões e seminários eram realizados a pedido dos membros do comitê. Realizou-se, pelo menos, uma reunião por município.

Depois de efetuadas todas as consultas, os membros do comitê discutiram várias alternativas e aprovaram uma proposta final que foi enviada à Fepam. Após considerar a proposta do comitê, a Fepam preparou a sua própria proposta, que diferia da primeira em relação ao enquadramento das águas do trecho inferior da bacia (o rio Gravataí). Enquanto o comitê propunha classificá-las como Classe 2* (Classe 2 asterisco), uma média entre a Classe 2 e Classe 321 21 Segundo um entrevistado, a Classe 2* proposta pelo comitê equivalia à água Classe 3, com uma única exceção: a ausência de coliformes, característica imprescindível da água Classe 2. , a Fepam sugeria classificá-las como Classe 3, ou seja, um enquadramento menos exigente do que o proposto pelo comitê.

Ambas as propostas foram apresentadas e discutidas numa assembléia aberta ou "audiência pública", na qual a maioria dos participantes votou pela classificação do trecho inferior da bacia como Classe 2, exigindo, desse modo, usos da água que não são possíveis com águas Classe 3. Como alguns técnicos entrevistados manifestaram, "eles [os que originariamente propuseram Classe 2* e depois Classe 2] queriam nadar no trecho inferior, e não é possível nadar com água Classe 3". Submetendo-se ao princípio de "participação popular", a Fepam aceitou a decisão tomada pela "audiência pública", e a correspondente secretaria de estado (Saúde e Meio Ambiente) aprovou-a em 1998 (Portaria SSMA 02/1998).

No começo, as opiniões de técnicos e ambientalistas entrevistados sobre o enquadramento das águas eram claramente divergentes, tanto dentro como fora do comitê. Enquanto os ambientalistas promoveram o enquadramento do trecho inferior primeiro como Classe 2* e depois como Classe 2, quase todos os técnicos entrevistados eram contrários a essas propostas por considerá-las "demasiado exigentes", "impossíveis" ou "inviáveis"22 22 Para além de criticar a inviabilidade dessas propostas, os técnicos também argumentavam que a proposta original do comitê para o trecho inferior não tinha sustento legal, dado que as classes estavam predefinidas por uma resolução do Conama (Resolução Conama 20/86), que não contemplava nenhuma Classe 2 asterisco. . De fato, muitos técnicos achavam que a proposta aprovada pela "audiência pública" era basicamente a proposta dos ambientalistas. Porém, eles admitiam que o processo de consulta em si tinha sido legítimo e esclareciam que as suas críticas se referiam somente aos resultados alcançados e não ao próprio processo.

No momento em que estava fazendo o meu trabalho de campo em 2002, diante de uma nova rodada de debate sobre a construção de uma barragem, não só os técnicos, mas também outros membros do comitê pareciam admitir que o enquadramento das águas aprovado em 1998 seria inviável e poderia ser submetido a uma revisão. Em 2003, por causa da discussão dos termos de referência para contratar consultores para desenhar o plano de bacia do comitê, a possibilidade de revisar o enquadramento das águas instalou-se com mais força entre os membros do comitê. Em setembro de 2003, o comitê resolveu, ante uma proposta da Secretaria Executiva do CRH, "revisar o enquadramento no processo de construção do Plano", tal como consta na Ata da Reunião Ordinária n. 170 do comitê. Desse modo, as dúvidas sobre a viabilidade técnica do enquadramento aprovado em 1998 foram formalizadas, levando ao adiamento da resolução definitiva da questão para o momento de elaboração do plano de bacia.

Segundo a legislação vigente, o plano de bacia23 23 Ver nota 10 a importância do plano de bacia e a sua vinculação com os outros instrumentos de gestão. deve ser elaborado pelo braço executivo do comitê: a agência de bacia24 24 Segundo a lei gaúcha das águas de 1994, as agências constituem os braços executivos dos comitês, competindo a elas duas funções fundamentais: o subsidio operacional e técnico das deliberações do comitê e a arrecadação e aplicação da cobrança pelo uso da água, conforme critérios e valores aprovados pelo comitê. A lei federal de 1997 estabelece funções similares para as agências de bacias federais, mas com uma importante diferença no que diz respeito à cobrança: enquanto a lei federal diz que os valores arrecadados devem ser aplicados preferentemente na bacia hidrográfica em que foram gerados, a lei gaúcha determina que esses valores serão aplicados exclusivamente e sem transferência na bacia de origem. , ficando no poder do comitê aprovar ou não o plano elaborado pela agência. Mas as agências de bacia ainda não foram criadas no Rio Grande do Sul, devido, em grande medida, às restrições orçamentárias do governo estadual. Não obstante, os órgãos superiores do sistema estadual de recursos hídricos (o Departamento de Recursos Hídricos – DRH/Sema – e a Secretaria Executiva do CRH) decidiram, em 2001, que não se deveria esperar pelas agências para começar a elaborar os planos de bacia dos comitês já instalados. Assim, montaram um esquema de trabalho cujo primeiro passo consiste na formação de grupos de trabalho conjuntos com representantes da DRH, do CRH, de outros órgãos estaduais e do comitê de cada bacia. Esse grupo deve desenhar termos de referência para depois contratar consultores externos que elaborarão os planos de bacia. O comitê discute e aprova os termos de referência e, posteriormente, abre-se uma licitação pública para contratar consultores externos. A contratação dos consultores é financiada pelo Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FRH), administrado pelo CRH25 25 Na seção seguinte, discutir-se-á mais em detalhe o papel das agências, da cobrança e do FRH. . Os consultores devem elaborar uma proposta de plano que, finalmente, deve ser aprovada pelo comitê.

Os termos de referência para elaborar o plano de bacia do Gravataí começaram a ser discutidos no início de 2002. A discussão dentro do comitê e entre o comitê e os órgãos estaduais (DRH e Secretaria Executiva do CRH) avançou lentamente. A discussão esteve "enrolada", conforme expressão de um técnico entrevistado, em torno de três questões: (1) a construção da barragem, (2) o enquadramento das águas e (3) os estudos que deveriam ser feitos para elaborar a primeira parte do plano de bacia, isto é, o diagnóstico da bacia do rio Gravataí. Enquanto as duas primeiras questões já foram resolvidas, mediante a sua "integração" no processo de elaboração do plano de bacia, a Secretaria Executiva do CRH e os membros do comitê ainda estavam discutindo, em 2004, quais estudos deveriam ser realizados para a elaboração do diagnóstico. Por sugestão daquela Secretaria, o comitê decidiu "sistematizar" os vários estudos já existentes e complementá-los com estudos que fossem necessários. Contudo, quando este artigo estava sendo finalizado, ainda não se tinha acordado como fazer o primeiro, nem quais estudos complementares deveriam ser realizados.

A discussão dos termos de referência leva já dois anos e ainda não está claro quando serão definitivamente aprovados. Supondo que sejam aprovados no início de 2005, ainda haverá que esperar a licitação pública e depois o tempo que demore para elaborar o plano de bacia e aprová-lo. De acordo com os membros da diretoria do comitê, poderia levar uns dois anos. Isso implica que, não somente a elaboração do plano de bacia, mas também todas as questões cuja decisão ficara sujeita à sua aprovação não serão resolvidas, pelo menos, nos próximos dois anos.

Da análise das questões até agora tratadas pelos seus membros, deduz-se que o Comitê Gravataí tem tido uma capacidade razoável para deliberar e até tomar algumas decisões, mas ainda carece de capacidade para conseguir que as suas decisões se efetivem. Como se observa nos casos analisados mais em detalhe, o comitê enfrenta sérias dificuldades na hora de alcançar uma resolução definitiva ou conseguir que as decisões tomadas sejam executadas. Mas antes de abordar mais profundamente essas dificuldades, repassemos primeiro o que o comitê tem conseguido nos seus quinze anos de vida.

Resultados positivos alcançados. O primeiro êxito do comitê reside, no meu entender, na sua própria formação. Criado em 1989, o Comitê Gravataí foi um dos dois primeiros comitês estaduais organizados em todo o Brasil, anterior à lei hídrica estadual (1994) e à federal (1997). O Comitê Gravataí constitui, ao menos em termos político-administrativos, um caso de criação de baixo para cima: desde o nível local para o nível estadual e desde o estadual para o nível federal. Esse fato, por si só, junto com o reconhecimento feito pela legislação federal e a estadual da figura do comitê, faz do Comitê Gravataí uma espécie de caso piloto do ponto de vista da atual reforma da gestão dos recursos hídricos no Brasil.

Além da sua criação local e prematura, o comitê alcançou outros resultados positivos que merecem ser destacados:

  • Aceitável grau de deliberação de questões relativas à bacia: além das questões acima apresentadas, isso se expressa também em questões tais como (1) a estruturação do comitê e (2) a criação de uma área de proteção ambiental na área dos banhados.

  • Alto nível de participação das organizações civis no comitê: não somente ONGs ambientalistas como também associações profissionais têm tido uma importante participação desde a origem do comitê.

  • Funcionamento do comitê como uma arena para a mediação de conflitos específicos: o comitê já demonstrou, em alguns casos específicos, que pode funcionar como uma instância para a resolução de conflitos, embora não seja claro ainda quão extenso é, ou poderia chegar a ser, esse poder.

Certamente, a obtenção desses resultados não significa que o comitê tenha resolvido imediatamente os problemas pelos quais foi criado em 1989, nem que tenha alcançado os objetivos declarados, mas sugere que o Comitê Gravataí pode estar no caminho certo. Em todo caso, é claro que o comitê tem obtido sucesso no que diz respeito à colaboração entre atores estatais e atores da sociedade civil na gestão pública, principalmente quando comparado a outros comitês e organismos de bacia26 26 Para uma primeira comparação dos comitês e organismos de bacia brasileiros, ver Formiga Johnsson e Lopes (2003) e os relatórios por bacia do Projeto Marca D’Água ( www.marcadagua.org.br). Para uma visão geral das organizações de gestão participativa no Brasil, ver Dagnino (2002a). .

Esse sucesso explica-se, em parte, pela pré-existência de corpos técnicos estaduais relativamente consolidados e de organizações civis – ambientalistas e não ambientalistas – arraigadas na sociedade gaúcha. Este artigo não objetiva dar conta daquela preexistência, mas pretende assinalar a importância relativa da burocracia e dos aparelhos estatais (estaduais e municipais) na introdução e implementação da reforma estadual. A participação de técnicos e membros de organizações civis pode ser representada mediante a seguinte metáfora mecânica: se ambos os grupos têm contribuído com a energia necessária para lançar e sustentar a reforma, os técnicos têm constituído, de fato, o seu motor.

Por um lado, os técnicos contribuíram com o modelo e o conhecimento especializado necessários para impulsionar e sustentar a reforma estadual27 27 É importante notar que o aporte cognitivo dos técnicos não se reduz à aplicação do conhecimento científico-tecnológico, tal como fica demonstrado, pelo fato mesmo de que tenham sido os técnicos os que propuseram o modelo IDP de gestão, o que não pode deduzir-se de nenhuma pesquisa científica. . Por outro lado, as organizações às quais os técnicos pertencem têm garantido o funcionamento permanente dos comitês de diversas maneiras:

  • Outorgando, em muitos casos, o suporte operativo dos comitês. É o caso, por exemplo, do Comitê Gravataí, cuja secretaria executiva foi sucessivamente exercida por técnicos de uma agência estadual (Metroplan), a qual também colabora com gastos fixos de infra-estrutura e material de trabalho (a sede do comitê funciona nos escritórios da Metroplan).

  • Viabilizando, com tempo e diárias (viáticos), a participação dos membros dos comitês. Isso é obvio no caso dos próprios técnicos, mas pode ser visto também no caso de representantes de "dupla camiseta" ou dupla filiação

    28 28 Ver nota 26. Conforme se depreende de pesquisas preliminares próprias e do Projeto Marca D’Água, o fenômeno dos representantes de "dupla camiseta" estende-se não só ao Comitê Gravatai, como também ao Rio Grande do Sul. . Esses últimos, mesmo que representem as organizações civis, costumam participar das reuniões de comitês graças ao tempo e às diárias colocadas à disposição pelas organizações estatais às quais pertencem.

  • Facilitando a vinculação com as instâncias superiores de decisão. Nem sempre é fácil rastrear a conexão de membros de comitês e daqueles que participam mais ativamente na reforma com as instâncias superiores de decisão, mas é claro que as decisões-chave são geralmente canalizadas mediante (ou obtidas graças a) técnicos que, seja por ligações burocráticas, seja por contatos político-partidários, parecem ter mais acesso aos poderes máximos de decisão do que os outros participantes na reforma.

No entanto, o Comitê Gravataí apresenta uma variação interessante devido à alta participação de ambientalistas e, embora em uma posição menos predominante, membros de outras organizações civis. Além do mais, vários dos temas mais debatidos pelo comitê foram introduzidos por iniciativa dessas organizações, como o caso típico da construção da barragem. Dois destaques merecem, no entanto, ser feitos. Primeiro, boa parte dos representantes das categorias "associações civis técnico-profissionais" e "associações civis de recursos hídricos e organizações ambientalistas" (claramente os representantes de organizações civis mais ativos no comitê) ou veste a "dupla camiseta" técnico estadual/sociedade civil, ou depende, para o seu desenvolvimento profissional, de recursos públicos via consultorias, estudos, pesquisas etc. Segundo, os ambientalistas mais ativos e militantes dentro do comitê, mesmo não sendo técnicos, são assessores ou funcionários políticos de uma prefeitura da bacia; por isso, podem dispor, segundo um ambientalista entrevistado, de tempo, recursos (na forma de diárias) e outros subsídios organizacionais para participar das atividades tanto do comitê como de outros foros participativos.

Daqui se conclui que os limites entre Estado e sociedade nem sempre são claramente delimitáveis e que as formas pelas quais o Estado "sustenta" a operação dos comitês são múltiplas e, às vezes, difusas. Isso quer dizer que, em foros como o Comitê Gravataí, a interação ou imbricação entre Estado e sociedade está, de algum modo, "aquém" da colaboração entre atores pertencentes a âmbitos claramente diferenciados. Isso não invalida a idéia de que existe uma interação ou colaboração entre atores estatais e não-estatais, mas aponta nuances que são importantes para entender como essa interação realmente se opera no Comitê Gravataí. Voltarei a esse ponto na conclusão.

Limites da gestão participativa

Conseguir a interação e colaboração entre atores estatais e atores sociais é, sem dúvida, um primeiro passo fundamental para garantir a viabilidade de políticas públicas participativas. Mas isso não é suficiente. É necessário também que essas políticas produzam resultados de modo eficiente. É ainda muito cedo para avaliar a eficiência dos comitês de bacia gaúchos. Primeiro porque não existem ainda modelos claros para realizar essa avaliação. Segundo e fundamental, porque todos os instrumentos que supostamente deveriam sustentar uma gestão integrada e eficiente dos recursos hídricos não foram ainda integralmente implementados (nem no Rio Grande do Sul nem no resto do Brasil)29 29 Dificuldades semelhantes são assinaladas por Tatagiba (2002) na sua análise dos conselhos gestores. . Seja como for, é claro que o comitê tem tido até agora mais capacidade para deliberar do que para alcançar resultados concretos. Reverter essa situação equivale a enfrentar, tal como se expressa claramente no Comitê Gravataí, a tarefa múltipla de conseguir a sustentabilidade técnica, financeira e política dos comitês. Garantir a sustentabilidade nessas três dimensões será fundamental para que o Comitê Gravataí, assim como qualquer outro comitê, possa cumprir com os seus objetivos declarados, isto é. empreender estudos e projetos que garantam o uso eficiente, a recuperação e a conservação dos recursos hídricos da bacia.

Sustentabilidade técnica. Distintas questões até agora discutidas pelo Comitê Gravataí demonstram como, desde a própria ótica dos atores envolvidos, uma decisão perfeitamente participativa e democrática carece, ademais, de uma sólida base técnica.

A discussão sobre a construção de uma barragem tem sido fortemente mediada pelo conhecimento tecnológico. Como já vimos, um primeiro estudo, realizado em 1995, foi rejeitado por falta de confiabilidade técnica. A discussão posterior esteve centrada na preparação e nos resultados de um novo estudo, o que impôs o seu próprio ritmo aos prazos e aos termos da discussão. Porém, esse caso também mostra que a proposta técnica não é suficiente e que sempre é preciso uma decisão política por parte do comitê, a qual, por sua vez, está sujeita a decisões financeiras e políticas da parte dos órgãos estaduais pertinentes. Ainda assim, também demonstra claramente que nenhuma alternativa poderia ser nem sequer considerada caso faltasse um estudo técnico de reconhecida qualidade.

Algo semelhante sucede com o plano de bacia cujos termos de referência estão sendo atualmente discutidos. Além do fato de ser necessária a contratação de consultores com conhecimento especializado para desenhar o plano, é preciso tomar em consideração que boa parte das discussões dentro do comitê e entre este e os órgãos estaduais sobre como definir os termos de referência centra-se nos estudos necessários para realizar o diagnóstico-base do futuro plano. Nesse caso, a discussão parece ter avançado mais do que no caso da barragem. Os membros do comitê acordaram com a Secretaria Executiva do CRH que somente seriam feitos estudos complementares aos já existentes, embora ainda não tenham sido definidos quais. Mas o tempo e a energia consumidos em discutir essa questão mostram quão importante é, para os membros do comitê (e não somente para os representantes técnicos), o suporte técnico das decisões a serem tomadas.

Outras duas questões mostram mais nitidamente a importância outorgada ao respaldo técnico na deliberação e tomada de decisões: o enquadramento das águas e a criação de uma agência de bacia.

Embora concordassem em reconhecer a legitimidade do processo, os técnicos estaduais manifestaram, desde o início, as suas dúvidas a respeito da sustentabilidade técnica do enquadramento das águas proposto pelo comitê e, finalmente, aprovado30 30 Note-se que estamos a falar não de tecnocratas isolacionistas, mas de técnicos reformistas, os mesmos que introduziram o novo modelo de gestão participativa e/ou o têm apoiado. . Isso sugere que uma decisão perfeitamente participativa e democrática poderia ser insustentável do ponto de vista técnico. E essa não é somente a opinião dos técnicos: de modo crescente, outros membros do comitê começaram a questionar-se sobre a viabilidade do enquadramento aprovado, chegando o comitê a admitir que, como parte do futuro plano de bacia, as metas propostas por esse enquadramento poderiam ser revisadas.

É importante notar, no entanto, que alguns técnicos entrevistados31 31 Trata-se de técnicos estaduais não pertencentes ao Comitê Gravataí, mas de grande importância, ou no desenho da política estadual, ou na implementação do enquadramento das águas em todas as bacias gaúchas. não coincidem com essa visão negativa sobre o enquadramento das águas do Gravataí. Segundo esses técnicos, não importa que as metas propostas sejam demasiado exigentes ou pareçam inviáveis na medida em que se trata de metas a serem alcançadas num futuro indeterminado. Eles ressaltam que se trata de alvos que funcionam quase utopicamente, como ideais que podem guiar a ação e que, como tais, não precisam ser modificados; que o que realmente importa é determinar as metas intermediárias – os objetivos alcançáveis num prazo determinado e perante as condições atuais – sem que isso implique modificar as metas ideais que funcionam como horizonte último da ação. O que está implícito nessa contra-crítica é que não é necessário modificar o enquadramento das águas já aprovado para determinar as metas do plano de bacia em processo de definição, para o qual é necessário somente fixar metas hoje alcançáveis, as quais, em todo caso, sirvam como passos intermediários daquelas metas ideais.

Por mais compreensível que essa contracrítica possa ser, o certo é que os membros do comitê estão atualmente dispostos a revisar o enquadramento original, fundamentando-se em dúvidas sobre a sua viabilidade técnica e sobre a sua compatibilidade com projetos e ações que poderiam eventualmente implementar-se para melhorar as condições da bacia.

A agência de bacia é peça central do novo modelo de gestão, definida, tanto na lei estadual de 1994 como na federal de 1997, como o braço executivo do comitê. Segundo essa legislação, as agências têm por função assistir operativa e tecnicamente os comitês na implementação das decisões por eles tomadas. Os estudos necessários para discutir a construção da barragem e a elaboração do plano de bacia, por exemplo, deveriam ser feitos ou coordenados por uma agência. Tarefas operativas e de assessoramento hoje realizadas pela secretaria executiva e pela comissão permanente de assessoramento do comitê também corresponderiam à agência; aqueles corpos poderiam, de fato, carecer de sentido diante do funcionamento da agência. Mas as agências não somente devem assistir o comitê tecnicamente. Também têm designada por lei uma função fundamental para a execução de projetos e ações aprovados pelos comitês: a cobrança. As agências devem assistir os comitês na definição técnica dos valores a serem cobrados e, o que é mais crucial, na arrecadação desses valores, uma vez que está garantido por lei que esses valores sejam aplicados na bacia de origem.

Como vemos, a agência tem, no modelo sob implementação, uma importância fundamental do ponto de vista técnico e financeiro. Apesar disso, nenhuma agência foi até agora criada no Rio Grande do Sul como um todo, assim como na imensa maioria das bacias brasileiras.

Durante o Terceiro Encontro Estadual de Bacias Hidrográficas do Rio Grande do Sul, realizado em Porto Alegre em maio de 2004, os próprios membros de comitês ressaltaram a centralidade da agência. O papel das agências foi um dos temas centrais durante os debates sobre a implementação da reforma. Aí podia ser escutada a opinião generalizada de que a criação de agências era fundamental para brindar apoio técnico aos comitês, uma vez que sem elas seria impossível avançar na implementação da reforma. Cientes das restrições orçamentárias do governo estadual, os comitês participantes do encontro resolveram propor, por sugestão de um dos "pais da reforma", a criação de uma "Agência Zero". Tratar-se-ia de uma primeira agência piloto ou transitória que se formaria com pessoal de repartições estatais já existentes, as quais deveriam "ceder" alguns dos seus funcionários para integrar o corpo de funcionários da nova agência; desse modo, argumentava-se, a criação dessa primeira agência não demandaria gastos extras de pessoal. Aos olhos dos que a propunham, a Agência Zero oferecia uma solução viável perante as restrições orçamentárias do Estado. No entanto, até o momento de escrever este trabalho nenhuma agência havia sido criada, e não está claro sequer que a proposta da Agência Zero tenha chegado alguma vez às mãos do governador e/ou dos membros da assembléia legislativa.

A demanda de criação de agências como suporte técnico vincula-se com outra demanda permanente, não somente dos membros dos comitês gaúchos, mas de quase todos os que participam no processo de reforma ao longo do Brasil: capacitação para os membros dos comitês, especialmente para os representantes da sociedade civil. Existe uma opinião bastante difundida, segundo a qual os membros dos comitês não possuem a capacidade necessária para entender o processo de reforma e participar ativamente nele, seja porque não compreendem bem o novo modelo de gestão, seja porque carecem da formação requerida para entender os aspectos técnicos das questões discutidas32 32 A validade dessa opinião poderia ser colocada em dúvida em comitês como os gaúchos, nos quais não poucos representantes da sociedade civil contam com um nível de formação e um treinamento profissional semelhantes aos dos técnicos (comunicação pessoal com Janine Haase, pesquisadora do Projeto Marca D’Água e doutoranda em ecologia da Universidade Federal de Rio Grande do Sul). No entanto, os comitês gaúchos, o Comitê Gravataí incluído, não são alheios às demandas por capacitação. . Assim, a demanda por programas de capacitação denota a falta de capacidade dos participantes, ao mesmo tempo que é apresentada como uma solução para ela33 33 Ver, em sentido análogo, a análise de Dagnino (2000b: 283-285) e Tatagiba (2002: 69-73) sobre os "espaços públicos de gestão estatal". . Expressa, por outros meios, a importância que os participantes outorgam, no processo de reforma, à sustentabilidade técnica das discussões e das decisões tomadas.

Sustentabilidade financeira. As agências não só são fundamentais como suporte técnico dos comitês, isto é, na provisão de estudos e conhecimentos para a tomada eficiente de decisões, como cumprem também funções operativas importantes para a implementação dessas decisões. Decisiva entre essas funções é a cobrança das tarifas pelo uso da água. Segundo o novo marco legal, a cobrança é central para o funcionamento dos comitês, na medida em que todos os gastos operativos, os estudos necessários e os projetos e ações aprovados pelo comitê deveriam ser financiados mediante ela. Daí que a não-implementação da cobrança, na maioria dos comitês brasileiros, se traduza, na prática, numa forte limitação da sua capacidade de ação.

No Rio Grande do Sul, existe um Fundo de Recursos Hídricos (FRH) que compensa parcialmente a falta de cobrança. Criado em 1989, o FRH integra-se, entre outros recursos, com parcelas da compensação financeira pela exploração hidroelétrica. O FRH é administrado pelo CRH, o qual é presidido pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e está composto por outras secretarias de Estado, tendo sido incorporados, em anos recentes, seis representantes de comitês de bacia. Os comitês recebem do fundo um valor fixo para os seus gastos operativos (50.000 reais anuais por comitê). Para além desse montante, é o CRH que decide como investir os recursos do FRH nas bacias do Estado. Isso significa que os comitês não decidem direta e autonomamente sobre a alocação de recursos para ações e projetos a serem executados nas suas respectivas bacias; somente podem fazê-lo indiretamente (e junto com outros atores) por meio dos seus representantes no CRH.

Os recursos fornecidos pelo FRH, especialmente a verba destinada a cobrir gastos operativos, podem ajudar a explicar a sobrevivência dos comitês apesar da implementação incompleta da reforma. No entanto, esses recursos são insuficientes para alcançar os objetivos declarados do Comitê Gravataí e dos outros comitês. Por isso, a falta de cobrança continua sendo crítica, uma vez que se traduz na falta de recursos para a execução de programas e projetos. Traduz-se também na falta de autonomia para tomar decisões, componente central do novo modelo de gestão. Em definitivo, os princípios de descentralização e participação implicam autonomia decisória, e somente pode haver autonomia decisória onde há um grau razoável de autonomia financeira.

Existem, na prática, obstáculos legais e políticos para a implementação da cobrança. Os obstáculos legais estão vinculados, em parte, à novidade jurídica da agência e da cobrança, mas também à própria forma pela qual a implementação da reforma foi legalmente preconcebida. Segundo a legislação vigente, para haver cobrança deve existir uma agência. Para criar uma agência, como já vimos, é preciso orçamento. E, perante as restrições orçamentárias do governo – ou perante a falta de vontade política para "investir" na criação de agências –, existiria uma única forma de financiar a criação de agências: mediante a cobrança. Com o que se fecha o círculo vicioso no qual atualmente se encontra presa a criação de agências no Rio Grande do Sul. É obvio que, para romper esse círculo, é necessário haver vontade política, seja para criar uma agência, ainda sem contar com o ingresso da cobrança (a proposta de uma "Agência Zero" vai nesse sentido), seja para começar a implementar a cobrança, ainda sem ter agências de bacia criadas (possibilidade que, por enquanto, parece não ser contemplada no Rio Grande do Sul). Assim, vemos que a criação da agência e a implementação da cobrança, de maneira similar às outras questões até aqui analisadas, se enfrentam com obstáculos políticos, o que nos leva ao problema da sustentatibilidade política.

Sustentabilidade política. Os problemas de sustentabilidade técnica e de sustentabilidade financeira remetem à falta de apoio ou aval político para completar a reforma. Assim, a falta de apoio firme por parte dos máximos poderes de decisão prejudica a capacidade do comitê para executar planos e programas de ação, o que, por sua vez, pode afetar a legitimidade e a participação no funcionamento do Comitê Gravataí e em outros comitês rio-grandenses, bem como o interesse por eles.

A falta de apoio político tem diferentes raízes:

  • As restrições orçamentárias do governo estadual, as que se traduzem, por exemplo, na não criação de agências.

  • A não percepção clara do que é a cobrança pelo uso da água. Não são poucos os que confundem a tarifa com um novo imposto, e não seria de estranhar que os políticos assim o fizessem. Nesse caso, será difícil convencer os políticos a implementar o que, aos olhos deles, converter-se-ia em um novo imposto e, como tal, poderia resultar impopular.

  • A não prioridade do tema água diante de temas tais como a pobreza, o desemprego e a insegurança. Num contexto de restrição orçamentária, água e recursos naturais costumam ser,

    ceteris paribus, relegados na alocação dos recursos escassos.

No caso específico da cobrança, não deveria descartar-se a pressão de grupos de interesse contrários a ela. No entanto, é preciso notar que certos usuários parecem dispostos a implementar a cobrança na medida em que a visualizam como uma garantia maior para o fornecimento de água, embora possa haver divergências entre usuários com relação a quem pagar e quanto se deve pagar. Em todo caso, é de esperar-se que questões como essas começarão a ficar mais claras quando a cobrança passe a ser discutida mais abertamente.

Tudo isso não quer dizer que o Comitê Gravataí e/ou a reforma gaúcha estejam condenados ao fracasso. Tudo dependerá, em definitivo, de forma pela qual os participantes na reforma conseguirão o apoio político necessário para avançar na implementação do que resta implementar. Muitas vezes, basta encontrar os interstícios, as oportunidades entreabertas; às vezes, é um fato "tão simples" como conseguir a assinatura do governador ou de um secretário; outras vezes, pode ser a sanção de uma lei por "voto de liderança". Os líderes da reforma gaúcha têm demonstrado não carecer, até agora, de capacidade para navegar entre os interstícios de poder e dos anéis burocráticos. A pergunta pendente é se poderão avançar para os próximos níveis do jogo. O que fica claro é que a sustentabilidade técnica, financeira e política do Comitê Gravataí dependerá não apenas da dinâmica interna do comitê, como também, e fundamentalmente, da interação deste com o seu meio ambiente: com os outros comitês, com outros atores sociais e, sobretudo, com os órgãos de gestão e de decisão política estadual.

Conclusão

A primeira lição que se pode tirar do caso do Comitê Gravataí é que a colaboração entre burocracia e sociedade civil é possível. Neste trabalho, não se analisam os fatores histórico-contextuais que permitem essa colaboração, mas sabemos, por comparação com outros casos, que ela é difícil de obter e constitui, portanto, um êxito em si mesma. A experiência do Comitê Gravatai mostra-nos também quão importantes são a existência de procedimentos formais (lei, estatuto) e o estabelecimento de práticas comuns (diretoria, CPA, reuniões ordinárias) para afiançar a colaboração Estado–sociedade.

O Comitê Gravataí mostra-nos também que esses procedimentos formais e essas práticas estabelecidas – fundamentais como são – não são suficientes para que o comitê cumpra com os seus objetivos. Para garantir a sustentabilidade técnica, financeira e política do comitê, é preciso transcender as fronteiras do comitê; esta é a segunda lição. A sustentabilidade técnica, financeira e política do Comitê Gravataí dependerá da relação do comitê com os outros órgãos do sistema estadual de recursos hídricos e do funcionamento pleno desse sistema. Dependerá, em última instância, do aval político de secretários, legisladores e governadores para avançar na implementação da reforma estadual. Obter tudo isso será crucial para que o comitê consiga garantir a sua própria sobrevivência e, ao mesmo tempo, possa cumprir com os seus objetivos. E, também, que os próprios membros priorizem o comitê como arena de mediação e de decisão.

À primeira vista, poderia parecer que essa segunda lição estivesse dando a razão aos isolacionistas, especialmente no que se refere à sustentabilidade técnica. Sob uma perspectiva isolacionista, a participação dos interessados não substitui como dificulta a necessidade de contar com um sólido respaldo técnico, a produção do qual é alheio a todo esquema participativo.

Contra essa objeção, os participativistas poderiam argumentar, como o faz Fischer (2000 e 2003), que o conhecimento necessário para produzir decisões e implementar políticas eficientes pode e deve provir, não só do laboratório científico, como também dos saberes práticos que possuem os interessados e engajados na política em questão. Mas tem motivos ainda mais fortes, acredito, que dão a razão aos participativistas. Como já vimos, o bom desempenho do Comitê Gravataí dependerá tanto do suporte técnico, quanto da sua sustentabilidade financeira e política. E, para conseguir tudo isso, a burocracia à la Weber não é suficiente: é preciso não restringir o âmbito de participação à burocracia especializada, mas ampliá-lo além do comitê. Nesse sentido, dois atores são fundamentais para a consolidação da reforma: (1) os usuários e (2) os máximos tomadores de decisão34 34 A segunda lição concorda nesse ponto com as conclusões do enfoque sinérgico no que respeita à necessidade de organizações e experiências surgidas em âmbito local ou comunitário, de alcançar uma projeção maior ( scaling up) (cf. Evans (1997a e 2002). . Já vimos que o aval do máximo poder de decisão é central para a implementação dos instrumentos de gestão cuja carência está atualmente dificultando a tarefa do Comitê Gravataí. O engajamento dos usuários, por sua vez, é fundamental; espera-se contar com a sua colaboração para a implementação da cobrança. Em definitivo serão eles que, com o pagamento pelo uso da água, sustentarão o novo modelo de gestão.

Tudo isso significa que o caminho percorrido até aqui pelo Comitê Gravataí não tem valor nenhum? Em absoluto: criar e pôr em marcha uma organização participativa como o Comitê Gravataí não é uma tarefa menor e constitui, como já foi dito, um sucesso em si mesmo. O desafio agora é ver se essa organização pode começar a funcionar segundo os objetivos declarados.

Significa que o Comitê Gravataí está destinado ao fracasso, se instrumentos como a cobrança e a agência de bacia não são implementados em breve? Difícil responder a essa pergunta ou negar que há espaço para o pessimismo. A pergunta, em todo o caso, é se o comitê poderá sobreviver até que esses instrumentos sejam implementados. Acho que existem dois fatores que ajudarão o comitê a sobreviver, caso a implementação da agência e da cobrança não se posterguem excessivamente: o apoio financeiro do FRH e a participação dos técnicos. Como vimos, o FRH contribui com 50.000 reais anuais para cobrir os gastos operativos dos comitês. A disponibilidade desses fundos pode criar incentivos para que os membros mais ativos do comitê se interessem em mantê-lo vivo até que os instrumentos de gestão sejam definitivamente implementados. Por outro lado, para vários técnicos, a participação no comitê é parte das suas tarefas quotidianas ou, simplesmente, outro dia de trabalho, como diriam Hilgartner e Bosk (1988: 57). Desse modo, muitos técnicos podem ajudar a manter o comitê em funcionamento simplesmente cumprindo com a sua tarefa.

Vinculado a esse fato, temos que ressaltar a importância do fenômeno da "dupla camiseta" já mencionado: esse fenômeno implica que não só os técnicos como representantes de órgãos estatais, mas também vários representantes de organizações civis podem participar do comitê graças a recursos (salários, diárias, tempo, contratos) fornecidos pelo Estado (estadual ou municipal). Esse fenômeno é, no meu entender, expressão de um fenômeno maior: o esmaecimento (blurring) da distinção entre Estado e sociedade, o que também se expressa, por exemplo, na alta homogeneidade profissional dos que participam dos comitês gaúchos (independentemente de representarem o Estado ou a sociedade civil)35 35 Comunicação pessoal com Janine Haase. ou na confluência ou identidade de interesses entre atores estatais e não-estatais. Daqui se conclui uma terceira lição: a interação e colaboração entre atores estatais e não-estatais pode ver-se favorecida, de certa forma, pelo simples esmaecimento da distinção Estado e sociedade36 36 Note-se que, quando falo do "esmaecimento" da divisão Estado–sociedade, não me estou referindo prima facie aos mais conhecidos fenômenos de corrupção, patrimonialismo, conivência de interesses ou cooptação, ainda que esses fenômenos não devam ser descartados como possibilidade. .

Isso não invalida a idéia de que existe interação e colaboração entre Estado e sociedade, mas aporta nuances que são fundamentais para entendermos como essa interação é possível em casos como o Comitê Gravataí, em que as formas pelas quais o Estado "sustenta" a operação dos comitês são das mais variadas e a imbricação entre Estado e sociedade civil está de algum modo "aquém" da colaboração entre atores pertencentes a âmbitos claramente diferenciados.

A nossa terceira lição poderia ser enunciada, em realidade, de um modo levemente distinto. Poder-se-ia dizer que, graças a fenômenos de esmaecimento de fronteiras, como a representação "dupla camiseta", a presença do Estado no funcionamento dos comitês é mais importante do que pode parecer à primeira vista. Daqui resultam dois corolários finais. Primeiro corolário: espaços de gestão pública participativa como o Comitê Gravataí podem depender do Estado de dois modos diversos. Existe, por um lado, uma dependência mais sistêmica dada pela necessidade de contar com a formação completa do sistema estadual de recursos hídricos como requisito e marco para o funcionamento pleno do comitê. Percebe-se, por outro lado, uma dependência mais capilar ou difusa consistente nas múltiplas formas pelas quais as agências estatais influem direta e indiretamente na vida interna do comitê.

O segundo corolário é que, à diferença do que defende Ostrom (1990) no seu clássico estudo dos commons, o autogoverno não é o único mecanismo de coordenação social que se pode propor como alternativa ao mercado e à regulação burocrática estatal. Tal como sugerem Ostrom (1997) e Keck (2002) em suas análises de políticas urbanas no Brasil, é possível encontrar instâncias em que a iniciativa e a forte (e múltipla) presença estatal facilitam a introdução de mecanismos consensuais de gestão pública com alta participação de organizações civis37 37 Em sentido análogo, ver Tendler (1997), Abers 1998, Schneider et al. 2003. . Tal é o caso, pelo menos, do Comitê Gravataí.

Na sua síntese dos estudos sinérgicos, Evans (1997a) assinala que deve entender-se a sinergia entre Estado e sociedade como uma "reconciliação" entre duas noções diferentes: "complementaridade" de esferas separadas versus "imbricação" (embeddedness) por meio de esferas com fronteiras não claramente delimitadas. As minhas conclusões são, em algum ponto, próximas a essa visão. Porém, enquanto Evans parece visualizar a relação entre Estado e sociedade como âmbitos que, apesar do esmaecimento de fronteiras, ainda são simétricos, a terceira lição que surge do caso do Comitê Gravataí leva-nos a enfatizar as distintas formas pelas quais o Estado penetra na sociedade civil e até a constitui. Trata-se de um único fenômeno visto de ângulos diferentes? A resposta a essa pergunta não cabe no âmbito deste artigo, mas constitui um ótimo ponto de partida para futuras pesquisas.

Siglas

Aeba – Associação de Ex-Bolsistas da Alemanha

APN-VG – Associação de Preservação da Natureza do Vale do Gravataí

Ascapan– Associação Canoense de Proteção ao Ambiente Natural

Conama – Conselho Nacional do Meio Ambiente

Corsan– Companhia Riograndense de Saneamento

CRH – Conselho Estadual de Recursos Hídricos de Rio Grande do Sul

DRH/Sema – Departamento de Recursos Hídricos de Rio Grande do Sul

Fepam – Fundação Estadual de Proteção Ambiental de Rio Grande do Sul

FRH – Fundo de Recursos Hídricos de Rio Grande do Sul

Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

IPH – Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal de Rio Grande do Sul

Metroplan– Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional

Sema – Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Rio Grande do Sul

SSMA – Secretaria de Saúde e Meio Ambiente (extinta)

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  • _____. 1994 [1895-1919]. Political Writings Cambridge UK: Cambridge University Press (edited by Peter Lassman and Ronald Speirs).
  • 1
    Para uma visão geral dos estudos neo-institucionalistas e historicistas do estado, ver Evans, Rueschemeyer & Skocpol 1985, Steinmo, Thelen & Longstreth 1992, Hall & Taylor 1996, Blyth & Varghese 1999, Kohli 2002, Levi 2002. Ver também Huntington 1968, Heclo 1974, Krasner 1984.
  • 2
    Ver v.g. os estudos sobre autonomia e capacidade do Estado (Skocpol e Finegold (1983), Skocpol (1985), Geddes (1990), Sikkink (1993)) ou a literatura sobre ajuste estrutural (Haggard e Kaufman (1992 e 1995), Rodrik (1996), Grindle (2000), Teichman (2001)).
  • 3
    Evans (1997a, 1997b e 2002), Kohli (2002). Ver também Migdal, Kohli e Shue (1994), Evans (1995), Linz e Stepan (1996), Tendler (1997). Em sintonia com o enfoque sinérgico, pesquisadores brasileiros vêm desenvolvendo durante os últimos anos numerosos estudos sobre os novos "espaços públicos de gestão estatal". Para una visão geral tanto desses novos espaços como da literatura que os aborda, ver Dagnino (2002a).
  • 4
    Para uma argumentação exaustiva em defesa dos enfoques participativos dentro dos
    policy studies, ver Fischer (2000 e 2003). A literatura sobre descentralização também enfatiza a relação virtuosa entre participação e eficiência – ver v.g. Agrawal e Ribot (1999), Ribot (2001).
  • 5
    Ao longo deste trabalho, utilizarei o adjetivo "estadual", como distinto do epíteto "estatal", para referir-me a tudo aquilo que é relativo ao "Estado" como subunidade político-territorial que compõe a federação brasileira. Assim, o adjetivo "estadual" será, às vezes, utilizado como sinônimo de gaúcho ou rio-grandense (do sul).
  • 6
    Para mais informação sobre o Projeto Marca D’Água, ver Formiga Johnsson e Lopes, 2003.
  • 7
    As atividades do Projeto Marca D’Água, incluindo a minha pesquisa de campo, têm sido financiadas pelas seguintes organizações: John D. and Catherine MacArthur Foundation, William and Flora Hewlett Foundation, The Johns Hopkins University’s Center for a Livable Future, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. A minha pesquisa de campo também foi beneficiada com fundos da National Oceanic and Atmospheric Administration.
  • 8
    A Constituição Federal de 1988 divide a propriedade das águas em dois domínios: estadual e federal – ver
    infra.
  • 9
    Cabe esclarecer que quando, neste artigo, se fala do "novo" modelo de gestão das águas, a referência é feita em função da história da gestão hídrica no Brasil e não dos modelos de gestão disponíveis na "comunidade hídrica". Como se verá depois, o modelo adotado tanto pelo governo gaúcho como pelo governo federal é uma adaptação do modelo de gestão vigente na França desde faz meio século. Para uma visão comparada do modelo francês, ver Barraqué 1997.
  • 10
    A Lei Federal das Águas estabelece seis instrumentos de gestão: (1) os planos de recursos hídricos; (2) o enquadramento das águas; (3) a outorga dos direitos de uso das águas; (4) a tarifação pelo uso das águas; (5) o sistema nacional de informação sobre recursos hídricos e (6) as compensações aos municípios. Essa lista é replicada, com variações menores, pela legislação da maior parte dos Estados. Cada nível de gestão (sistema nacional, sistema estadual, comitê de bacia) deve contar com o seu próprio plano. Os planos constituem, por causa da sua natureza programática, o instrumento de maior nível e devem supostamente contemplar, na sua formulação, o uso dos outros instrumentos. Entre estes, a tarifação pelo uso das águas (ou cobrança) é o instrumento mais crítico desde o ponto de vista financeiro, dado que tanto a operação dos comitês como as ações e projetos por eles aprovados deveriam ser financiados, a partir de certo momento no processo de implementação da reforma, mediante cobrança de tarifas pelo uso da água.
  • 11
    As águas estaduais compreendem cursos de água localizados exclusivamente em um Estado. São federais os cursos de água compartilhados, pelo menos, por dois Estados e/ou com algum país vizinho.
  • 12
    Ver
    v.g. Porto (1998) Porto e Azevedo (1999). Ver também Jouravlev (2001)e Dourojeanni (2001).
  • 13
    Os técnicos constituem um tipo especial de burocratas que podem ser definidos do modo seguinte: (1) funcionários do serviço civil que ocupam (2) posições de nível médio funcionalmente vinculadas a sua (3) expertise tecnológica ou formação profissional.
  • 14
    A bacia do rio Gravataí compreende território de nove municípios, incluído o de Porto Alegre. Todos esses municípios são partes-integrantes, formalmente, da Região Metropolitana de Porto Alegre.
  • 15
    Associação de Preservação da Natureza Vale do Gravataí (APN-VG) e Associação Canoense de Proteção ao Meio Ambiente Natural (Ascapan). Cabe esclarecer que essas não são as únicas ONGs ambientalistas atuantes na área, mas sim são as únicas que participam do comitê desde o início.
  • 16
    A bacia hidrográfica do rio Gravataí divide-se em duas partes: o trecho superior, formado basicamente pelo Banhado Grande e outros banhados menores, e o trecho inferior, atravessado pelo rio Gravataí propriamente dito, que bordeja a cidade de Porto Alegre. O rio Gravataí recolhe as águas do banhado assim como águas de tributários menores, desembocando num sistema de lagunas que despeja no Oceano Atlântico.
  • 17
    Trata-se basicamente da Associação de Ex-Bolsistas de Alemanha (Aeba), que contou, para a organização do seminário, com o apoio do Instituto Goethe. Cabe ressaltar que o membro da Aeba, que coordenou a organização do seminário. era também um técnico estadual. Isso já expressava um fenômeno mais estenso que, depois, iria caracterizar a vida tanto do Comitê Gravataí quanto de outros comitês gaúchos: a dupla pertença de vários membros do comitê a organizações estatais e a organizações civis (ver
    infra).
  • 18
    O enquadramento das águas é o processo mediante o qual o comitê (ou qualquer organização equivalente) define a qualidade das águas a ser alcançada no futuro. As águas podem ser classificadas desde Classe 1 (a melhor condição) até Classe 4 (a pior condição). Classe Especial é reservada para aqueles casos em que a água é absolutamente pura. O enquadramento das águas é extremamente importante, dado que a forma pela qual são hoje definidas as condições esperadas da água vai constranger, em teoria, todos os projetos e atividades a serem executados no futuro na bacia.
  • 19
    A participação dos arrozeiros parece ter melhorado em 2003-2004, o que se manifesta em sua presença nas reuniões do comitê. No entanto, ainda não fica claro em que medida as divergências existentes entre os arrozeiros e, por assim dizer, os atores urbanos (ONGs e técnicos) já foram superadas.
  • 20
    Ver nota 18 e
    infra.
  • 21
    Segundo um entrevistado, a Classe 2* proposta pelo comitê equivalia à água Classe 3, com uma única exceção: a ausência de coliformes, característica imprescindível da água Classe 2.
  • 22
    Para além de criticar a inviabilidade dessas propostas, os técnicos também argumentavam que a proposta original do comitê para o trecho inferior não tinha sustento legal, dado que as classes estavam predefinidas por uma resolução do Conama (Resolução Conama 20/86), que não contemplava nenhuma Classe 2
    asterisco.
  • 23
    Ver nota 10 a importância do plano de bacia e a sua vinculação com os outros instrumentos de gestão.
  • 24
    Segundo a lei gaúcha das águas de 1994, as agências constituem os braços executivos dos comitês, competindo a elas duas funções fundamentais: o subsidio operacional e técnico das deliberações do comitê e a arrecadação e aplicação da cobrança pelo uso da água, conforme critérios e valores aprovados pelo comitê. A lei federal de 1997 estabelece funções similares para as agências de bacias federais, mas com uma importante diferença no que diz respeito à cobrança: enquanto a lei federal diz que os valores arrecadados devem ser aplicados
    preferentemente na bacia hidrográfica em que foram gerados, a lei gaúcha determina que esses valores serão aplicados
    exclusivamente e sem transferência na bacia de origem.
  • 25
    Na seção seguinte, discutir-se-á mais em detalhe o papel das agências, da cobrança e do FRH.
  • 26
    Para uma primeira comparação dos comitês e organismos de bacia brasileiros, ver Formiga Johnsson e Lopes (2003) e os relatórios por bacia do Projeto Marca D’Água (
    www.marcadagua.org.br). Para uma visão geral das organizações de gestão participativa no Brasil, ver Dagnino (2002a).
  • 27
    É importante notar que o aporte cognitivo dos técnicos não se reduz à aplicação do conhecimento científico-tecnológico, tal como fica demonstrado, pelo fato mesmo de que tenham sido os técnicos os que propuseram o modelo IDP de gestão, o que não pode deduzir-se de nenhuma pesquisa científica.
  • 28
    Ver nota 26. Conforme se depreende de pesquisas preliminares próprias e do Projeto Marca D’Água, o fenômeno dos representantes de "dupla camiseta" estende-se não só ao Comitê Gravatai, como também ao Rio Grande do Sul.
  • 29
    Dificuldades semelhantes são assinaladas por Tatagiba (2002) na sua análise dos conselhos gestores.
  • 30
    Note-se que estamos a falar não de tecnocratas isolacionistas, mas de técnicos reformistas, os mesmos que introduziram o novo modelo de gestão participativa e/ou o têm apoiado.
  • 31
    Trata-se de técnicos estaduais não pertencentes ao Comitê Gravataí, mas de grande importância, ou no desenho da política estadual, ou na implementação do enquadramento das águas em todas as bacias gaúchas.
  • 32
    A validade dessa opinião poderia ser colocada em dúvida em comitês como os gaúchos, nos quais não poucos representantes da sociedade civil contam com um nível de formação e um treinamento profissional semelhantes aos dos técnicos (comunicação pessoal com Janine Haase, pesquisadora do Projeto Marca D’Água e doutoranda em ecologia da Universidade Federal de Rio Grande do Sul). No entanto, os comitês gaúchos, o Comitê Gravataí incluído, não são alheios às demandas por capacitação.
  • 33
    Ver, em sentido análogo, a análise de Dagnino (2000b: 283-285) e Tatagiba (2002: 69-73) sobre os "espaços públicos de gestão estatal".
  • 34
    A segunda lição concorda nesse ponto com as conclusões do enfoque sinérgico no que respeita à necessidade de organizações e experiências surgidas em âmbito local ou comunitário, de alcançar uma projeção maior (
    scaling up) (cf. Evans (1997a e 2002).
  • 35
    Comunicação pessoal com Janine Haase.
  • 36
    Note-se que, quando falo do "esmaecimento" da divisão Estado–sociedade, não me estou referindo
    prima facie aos mais conhecidos fenômenos de corrupção, patrimonialismo, conivência de interesses ou cooptação, ainda que esses fenômenos não devam ser descartados como possibilidade.
  • 37
    Em sentido análogo, ver Tendler (1997), Abers 1998, Schneider et al. 2003.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      2006
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