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Um estado socialista de direito: essência e perspectivas

REFLEXÕES SOBRE O MARXISMO

ARTIGOS

Um estado socialista de direito - essência e perspectivas*

Marat Baglai**

Professor e Pró-reitor da Escola Superior do Conselho Central da União Sindical da União Soviética

A XIX Conferência do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) colocou a tese sobre a transição da URSS a um Estado socialista engajado com o conceito de império da lei (rechsstaat). Isto deu um forte impulso a um novo conceito científico: a determinação da essência e das perspectivas de um Estado de Direito socialista. Este Estado não pode ser apenas proclamado solenemente; precisa ser criado a partir da soma de novas instituições legais. Precisamos, portanto, manter discussões sobre o conteúdo e a forma de adoção deste conceito.

Estudiosos soviéticos afirmaram que, na URSS, o Estado de Direito fora criado durante a Revolução de Outubro, sendo mais tarde abolido pela tirania estalinista. Consideramos esta afirmativa errada. O estado de ditadura do proletariado como compreendido por Lênin não poderia se basear no império da lei como hoje o compreendemos. Aquele Estado se valia da coerção em larga escala, enquanto a lei e a legalidade socialistas estavam cm processo de formação. Não podemos, portanto, incluir o período estalinista em nossas considerações. Mas, no final da década de 50, quando o Estado de ditadura do proletariado passou a se transformar num Estado do povo como um todo, começaram a surgir condições objetivas que permitiam a transformação deste Estado num Estado de Direito. Infelizmente, porém, nos faltavam condições subjetivas apropriadas, e o resultado foi uma fase de estagnação com seus desvios específicos da lei, onde estavam presentes a corrupção, etc. Sendo este o caso, cabe afirmar que a Perestroika está criando, em nosso país, um Estado de Direito socialista que começou a se desenvolver no final da década de 80.

Não podemos fingir que fomos nós que criamos este conceito ou que propusemos este termo (Estado de Direito). Nem devemos inventar que, em nosso país, o Estado de Direito deva ser diametralmente oposto a um Estado semelhante no Ocidente. Temos, hoje, a consciência crescente da unidade do mundo e seria perda de tempo procurar contradições onde elas não existem. Quanto à compreensão do poder do Estado, da lei, da democracia, do Estado e da legalidade, há muitos conceitos legais iguais ou que coincidem.

O conceito de império da lei foi formulado entre os séculos XVII e XIX, mas só evoluiu em termos práticos após a II Guerra Mundial, sob o impacto da vitória sobre o fascismo que estimulou um poderoso movimento democrático. Em países como os EUA e a Grã-Bretanha este conceito foi uma reação às estruturas feudais que atribuíam ao monarca os poderes legislativo, executivo e judiciário. Na Itália e na Alemanha Ocidental o conceito de império da lei foi uma reação aos horrores do fascismo. Em ambos os casos, pretendia-se que um Estado de Direito limitasse a arbitrariedade do Estado e subordinasse seu funcionamento à lei, visando defender os direitos humanos.

Levando-se em conta as diferentes condições históricas, o conceito de império da lei é chamado a exercer estas mesmas funções nas sociedades socialistas: contrabalançar a concentração excessiva de poder nas mãos de poucos e proteger os direitos e as liberdades dos cidadãos. É claro que sob o capitalismo o império da lei não tem uma base tão firme como sob o socialismo e, em essência, ignora os interesses sociais dos cidadãos, apesar de ser considerado "social c legal". Isto resulta das diferenças na natureza social e de classe do Estado sob o socialismo.

A pergunta "por que devemos introduzir um novo termo e novas instituições relativas ao nosso Estado?" não é desprovida de sentido. Falamos, acima, acerca da maior legalidade, acerca da ampliação da democracia e sobre o aumento da participação das massas na administração estatal, entre outros. Não ressaltamos, porém, o ponto crucial: a liberdade do ser humano como um valor superior - precisamente a liberdade humana e não apenas o bem-estar dos cidadãos (apesar de este último ser, também, importantíssimo). Não houve freios eficientes no caminho que levava o país para um regime de poder pessoal. Como a História provou, esta era uma tendência inerente ao nosso sistema político.

O Estado engajado com o império da lei é solicitado a assumir um estágio qualitativo no desenvolvimento da democracia socialista e a ser capaz de destruir os fundamentos burocráticos, cujos representantes vêem a lei como uma "formalidade" e a discrição oficial como uma base para resolver os problemas dos cidadãos. Este Estado precisa atualizar a dignidade do homem soviético e aumentar a eficiência das decisões governamentais.

Sua criação pressupõe a introdução de instituições constitucionais basicamente novas que contenham garantias democráticas.

Os advogados costumam começar seus discursos falando da necessidade de assegurar "o império da lei". Este é um conceito correto, porém limitado. Devemos começar com a afirmação de outro princípio mais amplo: a supremacia do Parlamento. Sem este princípio não podem existir nem o império da lei nem o controle do Poder Executivo, instituição tão importante quanto a primeira. O "império da lei" só é possível se: 1) as leis forem adotadas por um corpo representativo eleito pelo povo; 2) forem aplicadas com regularidade pelos tribunais; 3) uma violação da lei mesmo por um Chefe de Estado, acarretará uma punição inevitável.

O reconhecimento da supremacia de nosso parlamento socialista significa que, na URSS, não há outro organismo acima ou paralelo a ele que possa firmar jurisprudência ou executar outros atos de valor legal semelhante. Este é o início do regime constitucional: evitar a criação de leis pelo governo e pelo aparato do Partido.

Recentes mudanças e emendas na Constituição soviética estabelecem uma reforma séria do Sovicte Supremo: este último será uma entidade funcionando continuamente. O que deve ser feito para aumentar a composição do Soviete Supremo para fazer com que seus procedimentos obedeçam ás exigências do profissionalismo legislativo? Como formular os projetos de lei de parte dos legisladores em vez de trazê-los de fora, apenas para serem aprovados?

A reforma do Parlamento soviético pode ser facilitada por um novo sistema eleitoral e pela introdução do poder individual dos deputados para apresentar projetos. Sem dúvida, o Soviete Supremo adotará medidas de caráter democrático para garantir um procedimento especial para a apresentação de emendas e projetos e para aprovação atráves de suas Câmaras. É desejável que haja, no Soviete Supremo, mais sociológos, advogados e políticos profissionais capazes de participar com habilidade no processo legislativo. Mas devem ser eleitos numa base livre, e não de acordo com urna ordem "tradicional", vinda de cima.

Precisamos partir da realidade: hoje, os poderes mais amplos são exercidos, diariamente, por um aparato governamental ramificado. É daqui que vem a ameaça da violaçãos das leis, às vezes pouco perceptível, mas que cria grandes dificuldades para o país e para o povo. Este assunto trata de distorções burocráticas da essência das leis, de ações ilegais diretas e da adoção de medidas ilegais. A supervisão do procurador, exercida por um aparato relativamente pequeno, não consegue controlar a massa de tais fenômenos e, no geral, não cobre os "níveis superiores" do aparato do Estado.

Daí a necessidade vital de controle por parte dos organismos representativos. Sob as novas prescrições da constituição da URSS, o Soviete Supremo deve controlar o governo de forma regular e ter audiências acerca das atividades deste. Seria útil investi-lo com o direito de aprovar um voto de não-confiança ao Conselho de Ministros ou a ministros individuais, com sua subseqüente renúncia. Os deputados devem ter acesso às informações que solicitaram aos ministros, poder para aprovar todas as nomeações do Governo e para efetuar sindicâncias independentes em casos de corrupção e outras importantes contravenções legais. A área financeira e uma área importantíssima de verificação e o povo precisa conhecê-la melhor para criar procedimentos de supervisão das decisões governamentais e para determinar sua conformidade com a Constituição e com outras leis. É claro que, para realizar tudo isso, cada deputado deve se especializar em algum campo de administração estatal e seguir sistematicamente a atividade de determinados ministérios e repartições do governo, além de ter um contato próximo com o povo.

Em 1988, a XIX Conferencia do Partido tomou uma decisão acerca da necessidade vital de montar um Comitê de Revisão Constitucional. Este deve garantir a conformidade das leis ordinárias e de outros atos à Constituição da URSS. Esta supervisão das leis aprovadas pelo Soviete Supremo seria, por si só, uma supervisão preliminar (i.e.: o Comitê tomaria decisões sobre os projetos de leis antes da aprovação destes). De outra forma (se a supervisão é feita sobre leis já aprovadas), isso seria uma violação da supremacia do Parlamento soviético e conduziria à institucionalização de um organismo colocado sobre e acima dele, detendo na prática o direito de revogar seus atos.

A lei suprema que rege as nossas vidas (após a Constituição, é claro), deve ser uma lei adotada pelos deputados do Soviete Supremo em suas sessões com um quorum e assinada pelo seu Presidente. Não pode haver prioridade da opinião de "alguém" ou da "conveniência" de furtar-se à lei, exceto no caso de um estado de emergência legalmente comprovado. Um Soviete Supremo em funcionamento permanente reduz a necessidade da emissão de decretos pelo Praesidium e também de decisões normativas conjuntas a serem tomadas pelo Partido, pelo governo e por entidades sindicais.

A ampla discussão de todos os projetos de lei pode ser evitada se houver "glasnost" nos trabalhos do Soviete Supremo. Este procedimento é utilizado, basicamente, para tornar-se conhecido pelos cidadãos, pois é praticamente impossível registrar as centenas de milhares de emendas e comentários feitos pelo povo. A participação das massas na discussão dos projetos de lei deve se ampliar através de um amplo sistema de discursos de deputados nos coletivos de trabalho, através da imprensa e pela televisão.

Tribunais realmente independentes são um importante aspecto constitucional do Estado socialista engajado no império da lei. A XIX Conferência do PCUS considerou recomendável que as eleições para os tribunais fossem feitas por Sovietes superiores e por períodos maiores do que atualmente. Também chamou a atenção do povo para a necessidade de democratização do procedimento criminal. Além disso, os tribunais podem se tornar independentes, desde que controlados pelos cidadãos através da imprensa. O que vale aqui não é a forma como os tribunais são constituídos: seus membros podem ser nomeados por escalões superiores ou eleitos pelo povo, como acontecia até pouco tempo atrás. Isto não evita a interferência de organismos locais do Partido e de entidades governamentais nos procedimentos judiciais. Á livre publicação na imprensa, mesmo de forma contraditória, pode evitar "telefonemas" e "instruções" para juizes e pode tornar transparente o nível de sua qualificação e independência.

Queremos ressaltar que é necessário ampliar o papel dos tribunais nos sistemas de democracia socialista, mais especificamente na proteção dos direitos c da liberdade dos cidadãos. Para isto é recomendável a ampliação da prática de resolver reivindicações nos tribunais e considerar a proteção do tribunal a direitos subjetivos desrespeitados como uma forma de supervisão sobre a legalidade. Talvez, em alguns casos, esta forma seja mais eficiente que a supervisão do Procurador, pois um Procurador pode se recusar a destrinchar a reivindicação de determinado cidadão, mas um tribunal não o pode fazer sob hipótese alguma. É indiscutível que a Suprema Corte da URSS e as Supremas Cortes das Repúblicas da União devem ter garantidos o direito a - em determinados casos - declarar leis e ações de entidades executivas como inconstitucionais, nos casos em que estas cortes tenham em conta as reivindicações da experiência real e a experiência prática, A doutrina legal precisa ser equacionada com a origem da lei.

É claro que a extensão da prática de resolver pendências nos tribunais será trabalhosa. Este trabalho, porém, pode ser aliviado pela lei administrativa. Entidades semi-judiciais são necessárias; estas podem operar em base a princípios autônomos ou sob ministérios e repartições de governo - para considerar a atribuição de pensões, a arrecadação de impostos, o cálculo dos pagamentos de serviços de utilidades pública - observando-se os direitos processuais da pessoa e com a preservação do direito do cidadão de recorrer, no tribunal, contra tais decisões.

A experiência mundial e nossa História mostram que tendências autoritárias, responsáveis pelo desrespeito às leis e pelo sistema de poder pessoal se originaram, freqüentemente, de instituições políticas e não de entidades governamentais. Não podemos esquecê-lo e não nos considerarmos imunes a estas tendências. Embora não haja uma necessidade de erguer barreiras contra essas tendências, nossas leis devem prever tais obstáculos. Visando este objetivo é necessário tornar mais exigentes os procedimentos para a aprovação de emendas à Constituição e proibir a dissolução do Soviete Supremo e da Suprema Corte antes do fim de seu mandato. Precisamos da "glasnost" e do controle público das forças armadas do país, baseados em leis especiais que regulamentam as funções, o custo e a orientação dos Ministros de Defesa e do Interior e do Comitê de Segurança Nacional. Num Estado de direito todas as entidades, inclusive as de coerção, devem operar com uma base legal.

Direitos civis e liberdade são um dos maiores problemas de um Estado comprometido com o império da lei. Deve-se ressaltar que, em muitos aspectos, esta instituição começou a se formar o país apenas após a Perestroika, pelo menos quanto aos seus aspectos mais essenciais. Isto se aplica, em primeiro lugar à liberdade humana, compreendida como principal valor da vida.

Marx disse que o movimento em direção à liberdade é a essência do progresso histórico da Humanidade. Lênin ressaltou, em muitas ocasiões, que o socialismo não poderia se desenvolver e se fortalecer sem democracia e liberdade. Infelizmente, estes preceitos foram ignorados durante muito tempo. Stalin jamais negou formalmente o conceito marxista de liberdade como uma necessidade reconhecida, mas identificou a necessidade com os seus desejos. Enquanto agia como um selecionador não educado, procurou enxertar elementos estranhos tais como a repressão e o desrespeito às leis à árvore do socialismo.

De uma forma mais geral, Stalin tinha um falso conceito de socialismo. Ele concontrou suas atenções não em homens livres mas em um Estado poderoso que, através de controles econômicos e burocráticos, podia tornar desnecessária qualquer escolha do homem, uma vez que seus interesses vitais seriam satisfeitos por uma engrenagem geral. Tudo isto deu origem ao conceito de que o socialismo e a liberdade são, por princípio, incompatíveis, e de que é impossível salvaguardar os direitos humanos sob o socialismo. Não custou muito aos anti-comunistas espalharem esta tese. A construção de um Estado de Direito deve melhorar radicalmente esta situação e desfazer falsos conceitos de socialismo.

O estabelecimento das liberdades e dos direitos humanos é fundamental para a renovação ora em curso na URSS. A União Soviética está iniciando um socialismo humano e democrático onde tudo deve ser feito com base na iniciativa, na "glasnost", no pluralismo de opiniões, na livre escolha, no autogoverno e na atividade individual dos cidadãos. Todos começam a usufruir da liberdade, não apenas a misteriosa "maioria do povo". A expansão dos direitos humanos e da liberdade consolidam o movimento pacífico do povo em direção ao socialismo.

A individualização da liberdade e dos direitos humanos não significa anarquia ou a perda de organização. O socialismo é uma sociedade bem organizada e não se deve perder esta qualidade valiosa. Não podemos, aqui, seguir o exemplo do capitalismo onde o sucesso individual e considerado como a chave para o bem-estar de todos. Essa atitude efetivamente incentiva a iniciativa mas, a priori, faz com que a justiça social seja inatingível, além de provocar uma acentuada divisão da sociedade entre ricos e pobres.

A fase do culto à personalidade e a estagnação de nossa sociedade testemunharam um mal específico: a excessiva organização e a estatização de todas as instituições sociais; ao contrário dos interesses de nossa sociedade, a iniciativa individual foi imperceptivelmente limitada e o nivelamento salarial aumentou em larga escala. O resultado de tudo isto não demorou: o país começou a se atrasar na área social, diminuiu o interesse dos indivíduos pelo seu trabalho, o comércio ilegal cresceu enormemente, não se aproveitou o imenso potencial humano, o nível cultural do povo cresceu muito pouco e a opinião pública foi efetivamente suprimida. O Estado de Direito ajudará o povo a se livrar (direta ou indiretamente) deste mal.

Há um aspecto importante do conceito marxista-leninista de liberdade e de direitos humanos: o coletivismo quanto à utilização dos direitos. De fato, a prática Errônea do passado dá um sabor desagrádavel a este princípio, mas seu significado é bastante amplo. Só em termos coletivos é que o indivíduo recebe os meios para o desenvolvimento de suas inclinações de forma ampla; a liberdade individual, portanto, só é possível, através do coletivo. Estas palavras de Marx não podem ser questionadas a não ser que queiramos proteger a liberdade da elite no lugar de defendermos as massas, atitude peculiar ao conceito burguês de liberdade.

O socialismo se aproxima da igualdade e da liberdade efetiva para todos de forma séria e abrangente. Afirma com segurança a tese de que a igualdade e a liberdade podem ser alcançadas apenas através da associação, através das cooperativas. Neste contexto, o Partido se propõe a tarefa de incrementar a atividade dos coletivos de trabalho e organizações de massa. Tão importante quanto isto é a sua tarefa de manter uma democracia interna em tais entidades e organizações. Esta atitude visa evitar o efeito contrário: a limitação da liberdade e da iniciativa daqueles que mostram mais energia. A igualdade, sob o socialismo, não pode implicar um nivelamento universal.

Não deve haver, num Estado de direito, quantidades de restrições de liberdade humana por instituições burocráticas. Podemos ver como, à guisa de defender os "interesses comuns", a burocracia limita o desenvolvimento da cooperação em liberdade , o arrendamento de famílias na agricultura, a coragem dos sindicatos, as iniciativas dos jovens, a liberdade de imprensa, etc. Muitas destas restrições injustificadas são ainda preservadas em leis e decisões do Governo. Em um Estado de Direito a proteção dos direitos e interesses dos cidadão será a meta principal das entidades de governo. A liberdade ( e não apenas o bem-estar do povo) passa a ter a natureza de um valor principal, que é impossível tirar ou limitar a não ser através da lei. Além disso, uma igualdade efetiva de direitos significa a eliminação do controle burocrático dos cidadãos e a redução do despotismo oficial ao mínimo em todos os casos onde as exigências e pedidos dos cidadãos são examinados. Só a lei, e não a "conveniência" identificada por algum desconhecido, podem determinar a extensão da liberdade e sua associação com os interesses e metas dos cidadãos.

No que se refere a isto, é importantíssimo lembrar que, para mudar a atmosfera psicológica das entidades de governo, os funcionários devem renunciar ao conceito de que os direitos e liberdades são doados aos cidadãos pelo Estado e, portanto, um organismo estatal pode cancelá-los, caso isto seja considerado necessário. O conceito Estado de Direito deve levar em conta os direitos e as liberdades humanas não como "presentes" do Estado mas como propriedades naturais e inalienáveis do indivíduo, alguns dos quais (liberdade de pensamento, por exemplo), não são geralmente sujeitos a regulamentação do Governo. A lei deve ser estruturada de modo a facilitar a resolução dos problemas nacionais pelo Estado e a proteger o cidadão das atividades arbitrárias por parte da administração.

O princípio desenvolvido pelo Partido Comunista é importantíssimo: tudo que não é proibido pela lei é autorizado. Como devemos compreender esta fórmula? Às vezes se considera que uma lei deve ser seguida por outra lei sucessivamente para determinar exatamente, concretamente, o que deve ser feito. Esta é uma visão errada, pois tal prática pode, de certa forma, ampliar as liberdades humanas, mas terminará, enfim, por limitá-la em um grau muito maior.

Seria melhor adotar outra estratégia: definir, dentro da lei, o que não pode ser feito, lembrando que um ser humano livre tem direito a fazer todo o resto. Só assim é possível ampliar o espectro da atividade livre dos cidadãos. Não podemos esquecer que muito depende do nível da cultura, de consciência pública e de autodisciplina dos cidadãos. Como ocorre com a liberdade, pode facilmente se tornar uma força destrutiva ou (menos mal) sem sentido, se não for ligada a estes elementos. Em relação a isto um Estado de direito deve ampliar os direitos civis e a liberdade, pesando todos os prós e os contras encorajar a liberdade de iniciativa dos cidadãos, ao mesmo tempo em que fortalece sua disciplina e sua organização.

Outro ponto importante: a inter-relação entre liberdade e moralidade. É uma questão extremamente complexa que não pode ser resolvida rapidamente. Ambos os extremos são perigosos: se defendemos a liberdade irrestrita, teremos que sacrificar muitas categorias morais, o que implica num possível enfraquecimento da moralidade socialista. Por outro lado, se aceitamos formalmente as disposições tradicionais daqueles que estão atrasados em muitos aspectos, a liberdade ficará sujeita ao moralismo e à demagogia. Também precisamos de uma Perestroika na esfera da moralidade, isto é, precisamos nos livrar dos cliches e estereótipos pseudo-socialistas. Aqui há um aspecto importante da renovação de nossa sociedade e do desenvolvimento do Estado comprometido com o império da lei.

Hoje estamos assistindo a uma inédita expansão da atividade política dos cidadãos, não só de forma positiva mas também de forma negativa. Fica claro que não é fácil explicar o princípio de que tudo que não é proibido pela lei é permitido. Isto afeta as instituições mais sensíveis da democracia: os direitos e as liberdades políticas. Estes conceitos, porém, não foram por nós elaborados de maneira suficientemente sucinta, ao contrário dos direitos e liberdades sócio-econômicos e até pessoais que eram o cerne de nossas atenções.

Há aqui certa dificuldade oriunda do fato de que um Estado de direito deve se basear em dois princípios: a lei vale para todos e todos são iguais aos olhos da lei. De acordo com isto, e diferentemente de nossa história recente, os direitos e liberdades políticas devem ser dados não só à maioria dos cidadãos mas também a seus representantes. Devemos admitir, porém, que nossa sociedade socialista, com sua integridade e determinação ideológicas, engloba indivíduos e grupos que abraçam conceitos políticos diferentes dos oficiais. Nossa sociedade e nosso Estado podem considerá-los como moral e politicamente divergentes, mas não pode considerá-los cidadãos de segunda classe e a fortiori persegui-los.

Um Estado de Direito deve proteger o direito à dissidência sob forma legal. O pluralismo político socialista não deve ser visado, submetido a críticas desnecessárias por parte de nossos adversários ideológicos. Precisa ser protegido e garantido de forma mais segura que na sociedade burguesa.

Nosso conceito de liberdade (baseado no reconhecimento das necessidades e na responsabilidade social), pressupõe a conscientização por parte dos cidadãos soviéticos, de seus direitos, sobretudo sob formas coletivas. Um papel especialmente importante deve ser exercido por organizações sociais de massa livres de qualquer interferência mas cooperando de perto com o Estado. Além disso, o Estado de Direito deve proteger a liberdade das organizações sociais e vê-las como parceiros iguais e fortes. O papel deste Estado na vida da sociedade não deve aumentar ou diminuir e sim manter-se no nível de funções e poderes rigorosamente definidos que em circunstância alguma, salvo emergências, infringiriam a liberdade dos cidadãos e de suas organizações, tanto oficiais quanto extra-oficiais.

Muito tem sido feito, nos últimos anos, para aumentar a Glasnost e para reduzir o controle burocrático do pensamento criativo. A opinião pública emergiu a está sendo levada cm consideração pelo Estado e pelo aparato do Partido. Ainda há, entretanto, muito a fazer para retirar quaisquer restrições às quais ainda estejam sujeitas publicações da imprensa e da literatura, o cinema e o teatro. O Estado socialista será forte apenas se permitir que os cidadãos o critiquem e às suas instituições e seus funcionários. Isto não implica em qualquer ameaça social: o povo apóia seu Estado e não permitirá que ninguém prejudique suas bases socialistas.

É claro que um Estado de Direito deve fortalecer a ordem e a disciplina pública de todas as formas e assegurar a obediência estrita e contínua das leis por todos, sem exceção. A XIX Conferência da PCUS chamou a atenção do povo à necessidade de melhora do trabalho das forças armadas, da procuradoria e de outros organismos, ao mesmo tempo que conclamou os cidadãos soviéticos a aumentarem sua responsabilidade a seus coletivos de trabalho, ao Estado e à sociedade como um todo. Essa responsabilidade é tanto moral quanto jurídica; cabe ao Estado responsabilidade por fortalecer a luta contra fenômenos que contradigam os princípios do socialismo e da vida humana comunitária - a Máfia, a corrupção, atividades de grupos anticonstitucionais.

É óbvio que é impossível cobrir todos os aspectos do Estado de Direito, cujas formalidades, associadas de perto com o crescimento do nível cultural do povo e de outros aspectos da Perestroika, demorarão algum tempo. Mas agora, quando o Soviete Supremo adota emendas e adendos à Constituição da URSS e uma nova Lei para a Eleição dos Deputados do Povo, podemos afirmar com segurança que este processo tem contornos visíveis. Também fica claro que temos que desenvolver nossa teoria e ter discussões mais criativas. A XIX Conferência do PCUS exige que o façamos.

  • ** Este artigo foi traduzido do livro: USSR Academy Sciences, The Revolution Continues: Soviet society in the conditions of restructuring. Moscou, NAUKA Publishers, 1989.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Nov 1989
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