Acessibilidade / Reportar erro

Um exemplo de solidariedade internacional

PENSANDO O BRASIL

Um exemplo de solidariedade internacional

Maria Helena Moreira Alves

Maria Helena Moreira Alves é cientista política, professora das Universidades de Manchester (Inglaterra) e Amherst (EUA) e assessora de relações internacionais do PT

Foi em janeiro de 1982 que participei de uma reunião entre Lula e representantes do governo da Suécia. Naquela ocasião os visitantes perguntaram muita coisa sobre o novo sindicalismo no Brasil e sobre o PT. No final do encontro demonstraram grande interesse em apoiar o movimento por autonomia sindical. Lula então, com seu jeitão direto, deixou-os meio sem graça ao replicar: "Olha, ajudar o PT não vem muito ao caso. Mas digo uma coisa: acho uma vergonha que uma firma de um país que se diz socialista, como a Suécia, tenha relações tão ruins com o sindicato". E Lula foi aos poucos retratando o quadro de dificuldades dentro da Scania, os problemas com a segurança interna, a proibição de distribuição de material do sindicato dentro da fábrica, a repressão direta contra ativistas sindicais e mesmo contra diretores de base do sindicato. Ao final os representantes do governo sueco pediram um relatório completo.

Com essa conversa foi iniciado um dos processos de negociação direta entre o sindicato e os patrões mais interessantes de que tenho notícia. Fui encarregada, pelos sindicalistas, de elaborar um relatório minucioso sobre as condições de trabalho e as relações com o sindicato. Naquela ocasião, realmente, a pressão interna contra qualquer tipo de organização era muito grande. Os trabalhadores eram vigiados, ativistas sindicais demitidos, dirigentes sindicais impedidos de locomover-se livremente pela empresa. Os dois dirigentes sindicais de base, José Henrique Mendes e Gilberto Castanho, eram sempre seguidos de dois seguranças armados. A empresa chegou até a suspender José Henrique Mendes por trinta dias em represália à sua liderança sindical dentro da fábrica.

O quadro era complicado. Os trabalhadores da Scania estavam se organizando com a reivindicação de uma comissão de fábrica que pudesse representar os empregados e tivesse poder de influir em decisões tais como demissões, condições de trabalho, salubridade e horas extras. A atividade dentro da fábrica era intensa, e várias greves rápidas já haviam sido organizadas na tentativa de pressionar a diretoria da Scania para aceitar negociações. Em resposta, os diretores de base do Sindicato dos Metalúrgicos eram impedidos de falar com os trabalhadores e de distribuir o material do sindicato. Nem mesmo dentro dos restaurantes e fora do expediente. Dentro da fábrica imperava um clima de tensão.

A visita dos companheiros suecos

O relatório foi cuidadosamente elaborado com a participação dos dirigentes sindicais de base, de trabalhadores na produção e de ativistas sindicais na fábrica. Até uma fotografia de José Henrique Mendes, ladeado por dois guardas armados, foi incluída com a descrição das dificuldades de organização dentro da fábrica. Uma cópia deste relatório foi enviada para o governo da Suécia e outra para a Federação dos Metalúrgicos da Suécia, em Estocolmo. Dois meses depois começaram as visitas de dirigentes sindicais da Suécia para saber, em primeira mão, da situação na Scania. No dia 3 de junho de 1982 as negociações para a instalação de uma comissão de fábrica tiveram início formalmente. De qualquer maneira, o processo não foi fácil. A negociação visava transformar o estatuto da Comissão de Cooperação da Saab-Scania do Brasil, que fora criada pela Diretoria da Scania em dezembro de 1976. Essa comissão era considerada ilegítima e não representativa pelos trabalhadores, que queriam eleger livremente seus representantes e elaborar um estatuto para a comissão de fábrica que pudesse garantir sua legitimidade.

Quando surgiam impasses, os sindicalistas entravam em contato com os metalúrgicos na Suécia. Assim aprenderam o que se podia obter na matriz da fábrica. Lá, o sindicato tem poderes efetivos de decidir, sobre demissões, sobre a realização de horas extras, sobre planejamento de investimentos — inclusive com acesso a documentos internos da empresa. Podem livremente negociar as condições de trabalho dentro da fábrica até mesmo com poderes de parar a linha de montagem a qualquer momento se um representante sindical julgar que existe algum perigo de acidente de trabalho. Se a máquina não funciona direito, pára-se o trabalho, chama-se a manutenção e os representantes de saúde, até o problema ser resolvido.

O sindicato, representado por trabalhadores eleitos dentro das fábricas como dirigentes sindicais, tem poder de decidir até a velocidade relativa da linha de montagem. Por lei o sindicato tem completo e livre acesso aos trabalhadores, inclusive em horário de expediente, podendo não somente distribuir seu material de informação sem nenhuma censura ou impedimento, como também convocar trabalhadores para discussões de seus interesses principalmente na área de saúde e condições de segurança no trabalho. Ninguém pode ser demitido por causa da atividade sindical, ou suspenso por ser um organizador. A negociação coletiva de salários é resolvida pelo sindicato nacional e pela central sindical. A comissão de fábrica influi no dia-a-dia do trabalhador e tem poderes delegados para estar presente a todo momento.

No Brasil, o clima era outro

No entanto, aqui no Brasil, o clima dentro da Scania era bem outro e nem mesmo com a pressão dos sindicalistas suecos o negócio andava. Foi preciso um longo período de negociação internacional. Os representantes da Federação dos Metalúrgicos da Suécia realizaram reuniões com a diretoria da Scania, na matriz. Aqui no Brasil os sindicalistas do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo também faziam reuniões com a diretoria local da Scania. De lá para cá e de cá para lá, muito vai e volta, muitas conversas e orientações. Finalmente o processo de negociação internacional culminou com uma reunião formal, dentro da Scania do Brasil, entre um representante da Federação dos Metalúrgicos da Suécia, a diretoria da Scania e representantes do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Nessa reunião foi discutido abertamente o problema da repressão interna, da censura ao material do sindicato e das difíceis relações com os dirigentes sindicais de base. Eis a minuta da reunião, elaborada pela diretoria da Saab-Scania do Brasil:

Minuta da reunião realizada no dia 11.11.1982 entre o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, o sr. Torsten Wetterblad (representante da Federação dos Metalúrgicos da Suécia e da SAAB-Scania do Brasil). Principais assuntos discutidos:

1) Foi declarada a disposição da SSB de continuar a negociação com o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, a partir de 16.11.82, a fim de ser estabelecido um acordo quanto à mudança de regulamento da Comissão de Cooperação para ser, em princípio, do tipo de regulamento que norteia a Representação dos Empregados da VWB. Estas negociações foram iniciadas em 3.6.82.

2) Foi discutida a distribuição na SSB dos boletins, sem censura, em caixa especial a ser colocada nas portarias dos restaurantes.

3) Evidenciou-se a disposição de continuar mantendo-se bom relacionamento entre empresa e sindicato.

A minuta foi legalmente assinada, perante testemunhas, por Torsten Wetterblad, por Jair Meneguelli, como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, e pelo sr. Inge Walter Lunnerdal, da diretoria da Scania. A negociação entre empresa e sindicato continuou por algum tempo, na sua característica internacional. Finalmente, em julho de 1983 foi legalmente registrado o Regulamento da Comissão de Representantes dos Empregados da Saab-Scania do Brasil, modificando o estatuto interno da antiga comissão da empresa. Ficou claro que os trabalhadores da Scania não mais tolerariam o controle da empresa em sua comissão de representação interna.

Assim como havia também ocorrido antes na Volkswagen, os trabalhadores rejeitaram a tentativa da empresa de legitimar uma comissão de empresa criada com a finalidade de "cooperação" e não de representação dos empregados. O regulamento da Comissão de Representantes dos Empregados da Saab-Scania do Brasil foi considerado, assim, pelos sindicalistas, como um importante avanço na luta pela liberdade sindical e pela efetiva e democrática institucionalização de canais representativos dentro das fábricas.

O direito de urna representação legitima

Foi com grande entusiasmo que os trabalhadores da Scania participaram da campanha e da eleição direta dos membros da nova Comissão de Representantes dos Empregados da SSB. A campanha eleitoral foi desenvolvida entre os dias 9 de maio e 1 de outubro de 1984. As eleições diretas foram realizadas no dia 2 de outubro de 1984. De acordo com o estatuto e regulamentos das eleições, podiam candidatarse a cargos na Comissão todos os empregados de no mínimo 18 anos e com no mínimo dois anos de efetivo serviço na empresa. Os candidatos, de acordo com o regulamento, não podiam exercer cargos de chefia. Os titulares a serem eleitos teriam um mandato de cinco anos. A Comissão seria formada por dois representantes horistas de cada área de atividade da empresa, assim distribuídos:

Área 1: Fábrica de Motores, Recebimento, Preparação de Peças Brutas e Almoxarifado de Peças Prontas, assim como do Restaurante Central.

Área 2: Usinagem do Chassi, Montagem do Chassi, Almoxarifado de Peças.

Área 3: Montagem e Pintura de Cabines, Manutenção Geral e Tratamento Térmico.

A área 4 (Administração Industrial, Relações Industriais, Administração Central, Escola Técnica e Centro Gráfico) teria direito a um representante horista e um mensalista. Os eleitos e seus respectivos suplentes foram efetivamente empossados no dia 22 de outubro de 1984. A cerimônia de posse, organizada pela diretoria da empresa, foi formal, com a presença de representantes da diretoria da Scania e do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Pela primeira vez, desde 1978, Lula entrou novamente dentro da Scania e lá, junto com Jair Meneguelli e os membros da nova Comissão de Representantes dos Empregados da SSB, realizou um comício com a participação de todos os trabalhadores da empresa. O comício, organizado pela Comissão, foi realizado para caracterizar o novo mandato como produto da luta dos próprios trabalhadores pelo direito de representação legítima.

Ficou também o importante exemplo de como a colaboração internacional entre trabalhadores pode influir decisivamente para melhorar as condições de representação e de trabalho nas multinacionais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: luanova@cedec.org.br