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O teste dos cem dias

O teste dos cem dias

Denisard Alves

Economista e secretário de Finanças da Prefeitura de São Paulo

Tancredo Neves assumiu a presidência em meio a uma grande expectativa de mudanças para o Brasil, Não frustrar esses anseios deve ser uma das preocupações prioritárias de seu governo. O períodos inicial, denominado dos "Cem Dias", representa o principal teste político para o presidente Tancredo Neves, já que as principais forças políticas e sociais estão tentando demarcar seus espaços de atuação, arregimentar as suas forças e estabelecer alianças. Com isso, se esboçarão os primeiros traços do grande quadro nacional dos próximos quatro anos.

A importância dos "Cem Dias" é indiscutível. Evidentemente não haverá tempo suficiente para aí se concretizarem reformas estruturais, mas, sem dúvida, serão dados os primeiros grandes passos para o início do processo de construção democrática. E, pela política econômica, passarão alguns dos principais projetos da caminhada democrática que a Nação busca trilhar.

A primeira grande questão que o governo democrático está tendo que enfrentar diz respeito à enorme dívida externa do país. É necessária uma saída imediata, política, para o problema do endividamento. De um ponto de vista de longo prazo, é fundamental que o presidente Tancredo Neves encaminhe uma negociação do tipo governo a governo com os países credores, apoiando-se na unidade dos países devedores. Nesta direção, a viagem de 15 dias do presidente a diversos países, entre eles México e Argentina, teve uma enorme importância como preparação inicial desse terreno.

No marco conjuntural dos "Cem Dias", o Brasil tem que encontrar uma fórmula política de renegociação dos juros cobrados no serviço da dívida. Ou seja, é vital que busquemos uma solução com taxas de juros pelo menos iguais àquelas obtidas pelos mexicanos, e nunca semelhantes aos valores concedidos à Argentina. Esta seria a maneira mais adequada de conseguir excedentes em nosso balanço de pagamentos, possibilitando ao país um alto investimento em obras sociais, na agricultura e na produção industrial. Estas aplicações a curto prazo permitirão concretizar a estratégia de combate à inflação, via desenvolvimento econômico. Se o montante da dívida externa brasileira está acima de 100 bilhões de dólares, a redução nos juros de 1,0 ponto percentual poderá significar mais de 1 bilhão de dólares em investimentos na economia nacional, contendo a sangria desatada de divisas que sofremos no momento, fruto das condições de pagamento da dívida, estabelecidas no governo anterior.

Internamente, o governo Tancredo Neves deverá evidentemente defrontar-se com a hercúlea tarefa de promover o crescimento econômico, reordenando a política de empregos e, através dessa estratégia, combater a inflação. O combate a inflação é inevitável, já que a economia brasileira (a oitava mais poderosa do sistema capitalista) não poderá conviver eternamente com patamares superiores a 200% na taxa inflacionária.

É sempre importante reafirmar a necessidade do combate à inflação pela via da recuperação econômica e nunca promovendo mais recessão, ou beneficiando os especuladores financeiros e o sistema bancário.

Os compromissos políticos do PMDB durante os anos de oposição ao autoritarismo foram sempre com o povo brasileiro. Este, portanto, tem o direito de exigir de nós definições claras e imediatas, muito embora, como já dissemos, de caráter conjuntural para o período dos "Cem Dias".

Acabar com o desemprego no Brasil, hoje, significa percorrer três vias essenciais: reforma tributária beneficiando estados e municípios; política de produção de alimentos; investimentos industriais visando uma linha de aproveitamento intensivo da mão-de-obra ociosa.

A produção de alimentos, dando-se ênfase ao abastecimento dos centros urbanos, oferece dupla vantagem. Primeiro, contribui muito para o combate à inflação, na medida em que o aumento dos preços da cesta básica alimentar do trabalhador costuma ser maior do que a dos índices inflacionários. Ou seja, uma maior produção de alimentos dificultará a atuação do atravessador, impedindo a manipulação de safras e preços.

Em segundo lugar, uma política de produção de alimentos teria efeitos salutares com relação ao desemprego. O campo brasileiro constituiu-se nestes anos de recessão em grande alimentador dos centros urbanos, em termos de contingentes de desfavorecidos e sem trabalho, cujo fluxo migratório abarrotou as cidades, fazendo com que crescesse o desemprego urbano e aumentando a situação de penúria da população. Uma política de produção de alimentos somente poderia ser feita utilizando-se a pequena e a média propriedade, ao contrário da política atual, que privilegia, no caso da produção de cana, soja e laranja, a grande propriedade altamente capitalizada. E é justamente a pequena propriedade rural que possibilita a utilização intensiva de mão-de-obra, reduzindo o desemprego rural e, em conseqüência, minimizando a pressão dos fluxos migratórios sobre as cidades.

Nas cidades, o problema é muito mais grave. A estrutura tributária montada pelo "Sistema" concentrou todos os mecanismos de distribuição de recursos em mãos da União. Hoje, por exemplo, no município de São Paulo, de cada cem cruzeiros de imposto pagos pelo cidadão, apenas cinco cruzeiros permanecem no município. A União retém para seus cofres 63 cruzeiros, enquanto o estado fica com 32. Esta absurda concentração tributária tem que ser revertida, e o mecanismo indicado é um amplo debate nacional, com participação de todos os setores sociais: trabalhadores, parlamentares, empresários, funcionários públicos e todos os demais segmentos da população. O fórum legítimo para esta discussão seria a Assembléia Constituinte, onde temas como este deverão ser objeto de detido exame por parte de seus membros.

Mas este é o aspecto estrutural do problema. O período dos "Cem Dias" exige respostas mais imediatas. A desconcentração tributária tem que ser empreendida imediatamente, e o presidente Tancredo Neves terá que iniciar sua caminhada por esse terreno pantanoso. Para isso, poderia acatar a proposta do prefeito de São Paulo, Mário Covas, no sentido de se criar um Fundo de Emergência para as capitais e, por que não, para as grandes cidades brasileiras. Essa proposta concreta teve o apoio de todos os secretários de finanças das capitais de estados, reunidos em Salvador em novembro de 1984. Os recursos básicos do Fundo de Emergência seriam formados por 4% da arrecadação dos seguintes tributos: o Imposto de Renda, o IPI e o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Ao contribuinte em nada oneraria, porque ele não teria sua alíquota modificada. Simplesmente, o montante da arrecadação desses impostos seria dividido com as prefeituras, ao invés de ficar somente nos cofres da União.

A vantagem desse Fundo é evidente, já que os municípios vivem hoje em estado, de grande pauperização financeira. Para São Paulo, por exemplo, a participação nesse Fundo representaria uma injeção de quase um trilhão e meio de cruzeiros no seu orçamento. Para o cidadão os benefícios seriam grandes, pois, morando e trabalhando na cidade, sua demanda de serviços sociais poderia ser muito mais bem atendida e sem a burocracia de se depender constantemente das verbas de Brasília. E, para ele, também seria muito mais fácil pressionar, porque não somente sabe onde se encontra o prefeito, como também deverá elegê-lo, por voto direto ainda em 1985, a partir da aprovação da emenda constitucional, com o apoio de Tancredo Neves. Dessa forma, a fiscalização da aplicação dos recursos irá se efetivando no processo político concreto.

A criação do Fundo seria uma saída conjuntural, não anulando a necessidade de uma reforma tributária, apenas complementando-a e antecipando-a. Ele traria grandes benefícios ao ser aplicado a obras sociais, atacando frontalmente o problema do desemprego urbano, pois é sabido que obras municipais, neste país, sempre se constituíram em grande fonte de emprego, principalmente para a mão-de-obra menos qualificada.

Do ponto de vista do combate à inflação, o governo democrático deverá enfrentar o dilema crescimento versus inflação. Os arautos do monetarismo, encarapitados em seus dogmas, já estão declarando alto e bom som que não pode haver queda de inflação com crescimento. Mas a situação da escola econômica monetarista não é, hoje, das mais cômodas, para falar em queda da inflação. Pela via de recessão econômica, as receitas ortodoxas do FMI fizeram com que a inflação brasileira, em quase três anos de monetarismo, subisse de um patamar de 100% para 250% ao ano. O que vem provar que, no Brasil, inflação não se combate com recessão.

Nesses esperados "Cem Dias", portanto, o presidente Tancredo Neves deverá promover o retorno à estratégia de crescimento, que tanto êxito obteve no governo Juscelino Kubitschek. E, para isso, as três medidas estratégicas apontadas neste artigo — descentralização de recursos tributários, beneficiando com um Fundo de Emergência os grande municípios, ênfase na produção de alimentos e ocupação da mão-de-obra na indústria, além de um desafogo nas contas externas — constituem-se em alicerces, vigas mestras, para que não se frustre a expectativa democrática na Nova República.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1985
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