Acessibilidade / Reportar erro

Um retrato do pretérito mais-que-perfeito de 1887 a 2012

A pluperfect portrait from 1887 to 2012

RESUMO

À luz de pressupostos sociofuncionalistas, tratamos, neste artigo, dos pretéritos mais-que-perfeito simples e mais-que-perfeito composto em revistas históricas do Instituto do Ceará do período de 1887 a 2012, em volume textual de, aproximadamente, quinze mil páginas. Detectamos 6.238 ocorrências distribuídas em seis funções: passado do passado, passado em relação ao momento de fala, passado discursivo, desiderativa, conjuntiva e condicional. Dessas funções, a de passado do passado foi investigada em perspectiva variacionista, sendo a forma simples condicionada, de modo recorrente, por terceira pessoa discursiva e ausência de modificador verbal. Também motivam a forma simples os fatores gênero textual efemérides, verbo irregular e oração coordenada.

Palavras-chave:
pretérito mais-que-perfeito; Sociofuncionalismo; abordagem pancrônica; revistas históricas

ABSTRACT

Under the Sociofuncionalist approach, we deal in this article with simple and compound pluperfect in historical journals of the Institute of Ceará from 1887 to 2012, with a textual length of fifteen thousand pages approximately. We detected 6,238 occurrences distributed in six functions: past before another past, past before a speech reference, discursive past, desiderative, subjunctive and conditional. Of these, the past before another past was investigated in variationist perspective, being the simple form conditioned, on a recurrent way, by discursive third-person and absence of verbal modifier. Also motivate the simple form the factors ephemerides, irregular verb and coordinate clause.

Keywords:
pluperfect; Sociofuncionalism; panchronic approach; historical journals

1. Considerações iniciais: em busca do pretérito mais-que-perfeito

Em geral, o pretérito mais-que-perfeito, em sua forma simples ou composta, é apresentado como mecanismo de codificação de uma ação que ocorreu antes de outra ação passada (cf. Pereira 1923PEREIRA, Eduardo Carlos. 1923. Gramática História. São Paulo: Editora Monteiro Lobato & cia.; Barbosa 1830; Said Ali 1964SAID ALI, Manoel. 1964. Gramática Secundária e Gramática Histórica da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Universidade de Brasília.; Luft 1976LUFT, Celso Pedro. 1976. Gramática Resumida. Porto Alegre: Editora Globo.; Almeida 1982ALMEIDA, Napoleão Mendes. 1982. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. São Paulo: Saraiva.; Rocha Lima 1986ROCHA LMA, Carlos Henrique. 1986. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio.; Melo 1987MELO, Gladstone C. 1987. Gramática Fundamental da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico.; Nunes 1989NUNES, José Joaquim. 1989. Gramática História Portuguesa. 9 ed. Lisboa: Editora Clássica. e Cunha & Cintra 2008CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. 2008. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.). Sendo as duas formas equivalentes, evidencia-se, atualmente, preferência pela forma composta ou pela forma do pretérito perfeito simples na codificação de passado do passado (cf. Bechara 1979BECHARA, Evanildo. 1979. Moderna Gramática Portuguesa. São Paulo: Companhia Editora Nacional.; Fiorin 1996FIORIN, José Luiz. 1996. Do Tempo. As Astúcias da Enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, p.127-255.; Camara Jr. 1972CÂMARA, Joaquim Mattoso. 1972. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes.; Gonçalves 1993GONÇALVES, Carlos Alexandre. 1993. Falara-se mais-que-perfeito: estudo presente do tempo pretérito. ALFA 37, p. 135-142.; Campos, Galembeck e Rodrigues 1996CAMPOS, Odette G. L. Altmann de Souza; GALEMBECK, Paulo de Tarso; RODRIGUES, Ângela C. Souza. 1996. A Flexão modo-temporal no português culto do Brasil: formas de pretérito perfeito e imperfeito do indicativo. In: CASTILHO, Ataliba; BASÍLIO, Margarida (Eds.). Gramática do Português Falado IV: estudos descritivos. IV. Campinas: Ed. da Unicamp/Fapesp.; Coan 1997COAN, Márluce. 1997. Anterioridade a um ponto de referência passado: pretérito (mais-que-) perfeito. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis., 2003COAN, Márluce. 2003. As categorias Tempo, Aspecto, Modalidade e Referência na significação dos pretéritos mais-que-perfeito e perfeito: correlação entre função(ões)-forma(s) em tempo real e aparente. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina.; Mateus et alii 1983MATEUS, Maria Helena Mira. et al. 1983. A categoria lingüística tempo. In: MATEUS, Maria Helena Mira et al. (Eds.) Gramática da Língua Portuguesa. Coimbra: Livraria Almedina, p.104-153.; Peres 1993PERES, João. 1993. Towards an Integrated View of the Expression of Time in Portuguese. Lisboa: Cadernos de Semântica, n. 14, p.01-49.; Freitag, Oliveira e Coan 2018FREITAG, Raquel M. Ko.; OLIVEIRA, Josane M.; COAN, Márluce. 2018. Formas simples e perifrásticas do verbo em relação ao domínio tempo-aspecto-modalidade. In: CASTILHO, Ataliba T.; LOPES, Célia Regina. História do Português Brasileiro. Mudança sintática das classes de palavra: perspectiva funcionalista. São Paulo: Contexto.).

Dessa incursão por gramáticas e pesquisas mais atuais, surgiram algumas questões: se a preferência é dada à forma composta do mais-que-perfeito ou à forma simples do pretérito perfeito para codificar uma situação passada anterior a outras, o que ocorreu com o pretérito mais-que-perfeito simples? Teria ainda tal função na escrita? Estaria, na escrita, ainda em competição com a forma composta? Teria adquirido outras funções? Codificaria ainda funções frequentemente não mencionadas em gramáticas e manuais didáticos, mas encontradas aqui e acolá em alguns manuais?

Sobre essa última questão, a deixa vem das seguintes obras: Almeida (1989), Cunha e Cintra (2008CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. 2008. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.), Fiorin (1996FIORIN, José Luiz. 1996. Do Tempo. As Astúcias da Enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, p.127-255.), Coan (2003COAN, Márluce. 2003. As categorias Tempo, Aspecto, Modalidade e Referência na significação dos pretéritos mais-que-perfeito e perfeito: correlação entre função(ões)-forma(s) em tempo real e aparente. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina.) e Martins e Paiva (2013MARTINS, Kellen Cozine; PAIVA, Maria da Conceição. 2013. V-ra no português: uma análise diacrônica. Estudos Linguísticos, 42, v.1, p. 540-552.), que registram que o mais-que-perfeito ocorre no lugar do pretérito imperfeito do subjuntivo, em linguagem literária, para (i) conferir elegância ao texto (cf. Almeida 1982ALMEIDA, Napoleão Mendes. 1982. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. São Paulo: Saraiva.; Cunha e Cintra 2008CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. 2008. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.); (ii) indicar uma situação passada irrealis - uso comparativo-condicional ou condicional (Coan 2003COAN, Márluce. 2003. As categorias Tempo, Aspecto, Modalidade e Referência na significação dos pretéritos mais-que-perfeito e perfeito: correlação entre função(ões)-forma(s) em tempo real e aparente. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina.; Martins e Paiva 2013MARTINS, Kellen Cozine; PAIVA, Maria da Conceição. 2013. V-ra no português: uma análise diacrônica. Estudos Linguísticos, 42, v.1, p. 540-552.) e (iii) admitir como verdadeira uma hipótese (Fiorin 1996FIORIN, José Luiz. 1996. Do Tempo. As Astúcias da Enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, p.127-255.). Barbosa ([1822] 1830), Mattos e Silva (1989MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. 1989. Estruturas trecentistas. Elementos para uma gramática do português arcaico. Estudos Gerais - série universitária. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.), Fiorin (1996FIORIN, José Luiz. 1996. Do Tempo. As Astúcias da Enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, p.127-255.), Coan (2003COAN, Márluce. 2003. As categorias Tempo, Aspecto, Modalidade e Referência na significação dos pretéritos mais-que-perfeito e perfeito: correlação entre função(ões)-forma(s) em tempo real e aparente. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina.) e Cunha e Cintra (2008CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. 2008. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.) também registram o uso de -ra para expressar o condicional no lugar de -ria.

Dos usos mencionados, um é temporal (passado do passado) e os outros são modais. Decorre desses achados a suposição de que o mais-que-perfeito de valor temporal recobre apenas o passado do passado, suposição desfeita quando consideramos as observações de Fiorin (1996FIORIN, José Luiz. 1996. Do Tempo. As Astúcias da Enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, p.127-255.) e de Coan (1997COAN, Márluce. 1997. Anterioridade a um ponto de referência passado: pretérito (mais-que-) perfeito. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis., 2003COAN, Márluce. 2003. As categorias Tempo, Aspecto, Modalidade e Referência na significação dos pretéritos mais-que-perfeito e perfeito: correlação entre função(ões)-forma(s) em tempo real e aparente. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina.). Há dois valores de passado ainda recobertos por tal forma: uso do mais-que-perfeito em lugar do perfeito e retomada discursiva. Dos gramáticos aos quais nos referimos, apenas Cunha e Cintra (2008CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. 2008. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.) registram o uso do mais-que-perfeito em lugar do perfeito para denotar um fato vagamente situado no passado ou um fato passado em relação ao momento presente, quando se deseja atenuar uma afirmação ou um pedido.

Embora estivéssemos interessados, a priori, na função de passado do passado, mais especificamente na função que se caracteriza pela anterioridade (perfectiva7 7 . Segundo Comrie (1981:16), “perfectividade indica a visão de uma situação como um todo único, sem distinção das fases que a constituem”; enquanto que o “imperfectivo presta especial atenção à estrutura temporal interna da situação”. /realis8 8 .Givón (1984) faz referência aos seguintes tipos de modalidade: pressuposição (verdade por acordo prévio); asserção realis (algo é verdadeiro ou falso) e asserção irrealis (verdade possível). /contrassequencial) a um ponto de referência passado9 9 . De acordo com Coan (2003:110), o ponto de referência é uma situação de ordem semântica ou pragmática a qual uma outra situação está vinculada. , função em que as formas sob análise constituem-se variantes de uma mesma variável10 10 . Conforme Labov (1978), as variantes linguísticas têm o mesmo significado referencial, referem-se ao mesmo estado de coisas em um mesmo contexto e têm o mesmo valor de verdade. , percebemos, pela revisão da literatura, que o pretérito mais-que-perfeito era forma multifuncional, ou seja, codificava várias funções, as quais não poderiam ser relegadas. Nossa primeira tarefa passou a ser, então, o mapeamento funcional, para, somente depois, tratarmos das formas como variantes na função que, outrora, era a única de nosso interesse: a de passado do passado, que convive com a de passado anterior ao momento de fala, com a discursiva, com a desiderativa, com a conjuntiva e com a condicional, funções que serão exemplificadas nas seções que seguem.

Para que nossos propósitos pudessem ser rentáveis e pudéssemos tecer considerações sobre correlação entre as funções do pretérito mais-que-perfeito e suas formas, além de tratar de mudança, convinha escolher uma amostra em que houvesse recorrência de uso do pretérito mais-que-perfeito em várias funções e que pudesse representar a passagem do tempo. Escolhemos as revistas históricas do Instituto do Ceará, as quais, desde 1887, armazenam diversos gêneros textuais, possibilitando-nos um considerável volume textual com características similares ano a ano. Além de a amostra ser propícia à coleta, era preciso escolher um referencial teórico que nos desse margem para tratar de multifuncionalidade, variação-mudança, princípios subjacentes à correlação entre forma-função e contextos de ocorrência. Nossa opção foi pelo alargamento da Sociolinguística ou do Funcionalismo à dimensão sociofuncionalista.

2. Perspectiva teórica: a constituição de um Sociofuncionalismo

De acordo com Tavares (2003TAVARES, Maria Alice. 2003. A gramaticalização de E, AÍ, DAÍ e ENTÃO: estratificação/variação e mudança no domínio funcional da sequenciação retroativo-propulsora de informações - um estudo sociofuncionalista. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.:134), “o pressuposto básico para a constituição do sociofuncionalismo - ou de um sociofuncionalismo - é o de que algum traço funcional seja levado em conta, caso contrário não teríamos como justificar o funcionalismo do rótulo. (...). O mesmo é válido para a parte sócio- do rótulo: algo terá de vir da Sociolinguística, sejam aspectos metodológicos, achados quanto aos condicionamentos sociolinguísticos, princípios e explicações...”. Eis por que nossa proposta foi se configurando como sociofuncionalista: partimos de pressupostos sociolinguísticos (variável-variantes, procedimentos metodológicos, condicionamentos e princípios de mudança), mas premissas funcionalistas foram se incorporando à análise: mapeamento funcional e atuação de princípios como os de iconicidade e de marcação, os quais, segundo Givón (1995GIVÓN, Talmy. 1995. Functionalism and Grammar. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Co.), são relevantes para análises sobre tendências de mudança e estabilização da língua em uso.

Os princípios icônicos são três: da quantidade - que prevê a correlação entre quantidade de informação e quantidade de codificação; da proximidade - que correlaciona proximidade cognitiva com proximidade de unidades no plano da codificação, e da ordem sequencial - que orienta a ordenação linear semântica e pragmaticamente (Givón 1984GIVÓN, Talmy. 1984. A functional-typological introduction. Vol. 1, Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Co.). Quanto à marcação, a estrutura marcada tende a ser maior do que a não-marcada (complexidade estrutural); menos frequente (distribuição de frequência) e cognitivamente mais complexa, por demandar mais atenção, esforço mental e tempo de processamento (Givón 1990GIVÓN, Talmy. 1990. Syntax - A functional - typological introduction. V. II. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Co.). Esses princípios servem para mostrar que a atual configuração do mais-que-perfeito, como forma multifuncional, é um reflexo, embora em menor escala, de períodos anteriores. Quando há mudança, conforme Labov (2010LABOV, William. 2010. Principles of linguistic change: cognitive and cultural factors. Oxford: Wiley-Blackwell.), o sistema em evolução reflete uma série de reajustes anteriores, que voltam no tempo: cada estado da língua é um evento desencadeador para o seguinte.

Embora tenhamos iniciado a pesquisa com propósito variacionista, o tratamento dos dados começou pelo mapeamento funcional, para depois ser analisada a competição em uma das funções, a de passado do passado, mas isso não quer dizer que houve primazia da função ou da forma, reflete apenas uma opção metodológica. Teoricamente, faria mais sentido uma visão holística em que não haveria primazia da forma ou da função, como a observada por Dubois e Votre (2012DUBOIS, Sylvie; VOTRE, Sebastião Josué. 2012. Análise modular e princípios subjacentes do funcionalismo linguístico. In: VOTRE, Sebastião Josué (Ed.). A construção da gramática. Niterói: Editora da UFF.:54): “...a proposta de Dubois representa uma nova concepção dinâmica de língua, e nos impede de partir tanto da forma quanto da função, escapando, assim, aos reducionismos clássicos da linguística contemporânea. Ao contrário, numa postura de natureza holística, prefere partir das relações entre formas e funções, sem opção de direcionalidade...”. Para Tavares (2003TAVARES, Maria Alice. 2003. A gramaticalização de E, AÍ, DAÍ e ENTÃO: estratificação/variação e mudança no domínio funcional da sequenciação retroativo-propulsora de informações - um estudo sociofuncionalista. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.:132), “ (...) talvez pudéssemos propor que ambos, função e estrutura, recebessem igual destaque (...). Dessa guisa, o que é defendido como prioritário em cada modelo fonte deixaria de ter tal status e passaria a dividir o reinado com sua ‘contraparte’...”.

Essa opção teórico-metodológica pode indicar que a variação é uma consequência dos processos de mudança, como quer o Funcionalismo: “...a variação aparece como pano de fundo, sendo uma das consequências possíveis da multifuncionalidade resultante do desenvolvimento das formas gramaticais: quanto mais papéis um item adquire, mais chances há de que se sobreponha a outros itens usados nos mesmos ou similares papéis” (Tavares 2003TAVARES, Maria Alice. 2003. A gramaticalização de E, AÍ, DAÍ e ENTÃO: estratificação/variação e mudança no domínio funcional da sequenciação retroativo-propulsora de informações - um estudo sociofuncionalista. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.:109). Por outro lado, Weinreich, Labov e Herzog (1968WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin I. 1968. Empirical Foundations for a Theory of Language Change. In: LEHMANN, W. P.; MACKIED, M. (Eds.). Directions for Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press, p.97-195.) consideram que nem toda variabilidade na estrutura linguística envolve mudança, mas toda mudança envolve, obrigatoriamente, variabilidade. Para Labov (1994LABOV, William. 1994. Principles of linguistic change: internal factors. Cambridge, MA: Blackwell.), havendo variação, uma forma pode suplantar outra(s) ou especializar-se, ou seja, a mudança seria uma consequência e não a causa. Essa é mais uma diferença entre Funcionalismo e Sociolinguística. Preferimos, entretanto, uma visão holística como a de Castilho (1997CASTILHO, Ataliba T. 1997. A gramaticalização. Cadernos de Estudos Linguísticos e Literários 19, p. 25-64.:55): “a variação é ao mesmo tempo o ponto de partida e o ponto de chegada da mudança linguística”.

Esses dois vieses, o mapeamento funcional e análise de contextos de variação, permitem-nos abordar um percurso de mudança em que o distanciamento temporal pode ser metaforicamente interpretado como distanciamento modal e, também, contextos de uso para a persistência da forma simples no sistema.

Como passado do passado, o mais-que-perfeito estaria expressando distanciamento temporal, mas distanciamento modal quando usado como condição, hipótese ou projeção futura, adentrando, inclusive, no domínio discursivo, quando passa a codificar passado do passado no discurso, em retomadas com verbos dicendi. Parece, então, que o distanciamento modal seria uma extensão metafórica da marcação do distanciamento temporal, o que, segundo Sweetser (1990SWEETSER, Eve E. 1990. From etymology to pragmatics: Metaphorical and cultural aspects of semantic structure. New York: Cambridge.), reflete um sistema de metáforas: uso do vocabulário do domínio externo (sócio-físico) no domínio interno (emocional e psicológico).

Relativamente aos contextos de persistência ou obsolescência da forma simples, escolhemos alguns para controlar, especificamente aqueles para os quais tínhamos hipóteses calcadas teoricamente: pessoa do discurso, modificador verbal, gênero textual, saliência da forma verbal e tipo oracional. Em linhas gerais, espera-se que a forma simples não ocupe a terceira pessoa do plural (P6), devido à homonímia entre pretérito mais-que-perfeito e perfeito; que seja acoplada a marcadores temporais, garantindo a temporalidade, já que seu uso se direciona à modalidade; que ocorra em gêneros memoriais, por ter adquirido, com o passar do tempo, força estilística; que seja usada com verbos regulares, deixando a codificação dos irregulares para a forma composta, cujo padrão (ter + particípio) é mais fácil de processar e que ocorra em orações coordenadas, para garantir o efeito de contrassequencialidade. Esses grupos de fatores acoplados a discussões teóricas serão tratados por ocasião da análise dos dados. Fica aqui, apenas, a indicação.

Esses contextos permitem que tratemos, ainda, dos princípios propostos por Weinreich, Labov e Herzog (1968WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin I. 1968. Empirical Foundations for a Theory of Language Change. In: LEHMANN, W. P.; MACKIED, M. (Eds.). Directions for Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press, p.97-195.), pois representam restrições que atuam na competição entre as formas simples e composta do pretérito mais-que-perfeito. Também, evidenciam o estágio de transição, tendo em vista que a forma composta passou a ser utilizada em alguns contextos, como revelam os dados de Coan (2003COAN, Márluce. 2003. As categorias Tempo, Aspecto, Modalidade e Referência na significação dos pretéritos mais-que-perfeito e perfeito: correlação entre função(ões)-forma(s) em tempo real e aparente. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina.), até ser primordial em todos e tornar a outra (a simples) obsoleta na função de passado do passado na oralidade (Coan 1997COAN, Márluce. 1997. Anterioridade a um ponto de referência passado: pretérito (mais-que-) perfeito. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.). De posse dos resultados, poder-se-á abordar, ainda, encaixamento, pois há contextos mais/menos propícios ao uso de uma ou outra forma, mudanças em cadeia e especializações de uso (temporal ou modal). Por fim, ao considerarmos três sincronias do período de 1887 a 2012 e testarmos os mesmos grupos de fatores, poderemos demonstrar (ou não) a manifestação da doutrina do uniformitarismo: alguns mecanismos que operaram para produzir mudanças no passado podem estar operando nas mudanças correntes (Labov 1994LABOV, William. 1994. Principles of linguistic change: internal factors. Cambridge, MA: Blackwell.).

3. Procedimentos metodológicos: da amostra à análise

Para analisar o pretérito mais-que-perfeito sob o viés sociofuncionalista, utilizamos 39 revistas formatadas pelo Instituto do Ceará, cada qual contendo, em média, de 300 a 400 páginas, o que nos propiciou análise de um volume textual de, aproximadamente, 15 mil páginas. As revistas têm periodicidade anual (1887-2012), foram organizadas com o propósito de armazenar textos que refletem a história do Ceará e estão disponíveis no site: www.institutodoceara.org.br. A escolha de 13 revistas por período decorre da quantidade de material disponível para os séculos XIX e XXI (à época da coleta), ambos envolvendo um período de 13 anos. Sendo assim, a amostra do período intermediário (século XX) também compreende 13 anos, especificamente revistas de 1944 a 1956, para que o distanciamento entre o primeiro e o terceiro períodos fosse o mesmo.

Coletamos 6.238 ocorrências de pretérito mais-que-perfeito: 2.545 dados do período de 1887 a 1899; 2.417 do período de 1944 a 1956 e 1.276 do período mais atual, 2000-2012. Primeiramente, separamos as ocorrências por função, correlacionando-as à forma (simples ou composta), ao período (sincronia sob análise) e ao gênero textual, para, em seguida, proceder à análise variacionista. Nesta etapa, controlamos, nos contextos de uso do pretérito mais-que-perfeito (formas simples e composta), as seguintes variáveis por sincronia: saliência morfológica; tipo de modificador verbal; pessoa do discurso; tipo oracional; período do tempo e gênero textual, às quais foi dado um tratamento estatístico, procedimento que fornece provas significativas para a compreensão da estrutura e da função da linguagem, o que, segundo Labov (1978LABOV, William. 1978. Where does the Linguistic variable stop? A response to Beatriz Lavandera. Sociolinguistic Working Paper, 44, Texas.), já é por si só significativo para a ciência linguística, visto que há evidências de que a competência linguística inclui restrições quantitativas. Conforme Lass (1980LASS, Roger. 1980. On explaining language change. New York: Cambridge.), as generalizações em que a ciência está interessada são significantes e significância tem algum tipo de interpretação estatística. Distribuições estatísticas não são causais e explanatórias (não podem predizer ocorrências singulares espaço-temporalmente), mas servem como base para inferências (Lass 1980LASS, Roger. 1980. On explaining language change. New York: Cambridge.).

Para o desenvolvimento da análise estatística, utilizamos o programa GOLDVARB X (Sankoff, Tagliamonte e Smith 2005SANKOFF, David; TAGLIAMONTE, Sali A.; SMITH, E. 2005. Goldvarb X - A multivariate analysis application. Toronto: Department of Linguistics; Ottawa: Department of Mathematics.), método de análise multivariada, que fornece os pesos relativos das variáveis intervenientes. O modelo incorpora a ideia de que processos linguísticos são influenciados simultaneamente por diversas variáveis independentes, linguísticas e sociais. Conforme Guy e Zilles (2007GUY, Gregory R. & ZILLES, Ana. 2007. Sociolingüística Quantitativa: instrumental de análise. São Paulo: Parábola.), o modelo supõe que probabilidades e pesos fazem parte da gramática mental dos falantes: se os pesos estiverem acima de 0,50, favorecem a aplicação da regra; se estiverem abaixo, desfavorecem.

Com base nesses procedimentos, seguimos para análise dos dados, visando a evidenciar tendências de uso do mais-que-perfeito ao longo da dimensão de 1887 a 2012: os resultados das amostras das três sincronias são revestidos de explicações teóricas sociofuncionalistas em perspectiva diacrônica, o que confere à pesquisa um caráter pancrônico.

4. Evidências de pretérito mais-que-perfeito em três sincronias: resistência e especialização

Seguindo a orientação teórico-metodológica sociofuncionalista, detectamos, nas três sincronias, 6.238 ocorrências em seis funções, respectivamente ilustradas abaixo: passado do passado (o pretérito mais-que-perfeito é anterior a outra situação no passado); passado metafórico (o pretérito mais-que-perfeito é anterior ao momento de fala); retomada discursiva (o pretérito mais-que-perfeito com verbo dicendi retoma algo já mencionado no discurso); função desiderativa (o pretérito mais-que-perfeito expressa projeção futura); função conjuntiva (o pretérito mais-que-perfeito expressa condição e alterna com o imperfeito do subjuntivo) e função condicional (o pretérito mais-que-perfeito expressa eventualidade/hipótese e alterna com o futuro do pretérito).

  • (01) “Pertencia pois a uma das famílias de mais distincção d’aquelles tempos. Seo bisavô tinha sido como um patriarcha n’aqelles sertões então desertos.” (IC, Biografia Pe. Gonçalo Ignácio de Loyola Albuquerque Mello Morroró, 1889:29)

  • (02) “No terreno das ideias, dos interesses geraes, tão somente traduzir por ingratidão a divergência de opinião é amesquinhar muito a individualidade humana. Ingrato! Porque não acompanhava o governo, fonte de todas as graças e benefícios! Ingrato! Elle que durante a legislatura recusara presidências de províncias e a pasta da justiça! Ingrato! Porque, renunciando os favores da situação, preferira seguir os ditames da sua consciência e os que estavam pelo poder votados de oatracismo!” (IC, Artigo: O Padre Ibiapina, 1888:172)

  • (03) “Presumo ser de grande necessidade correr a Provincia como eu já havia dito a S. Magestade.” (IC, Artigo: Luiz da Motta Féo e Torres e seu governo no estado do Ceará, 1890:60)

  • (04) “Com que meus senhores, eu sobretudo amo e quero o soseguo de todo este pouo, mas quizera com a minha e sua cautella, e boa conservasam ter seguro o nosso descanso, no aserto da boa asituasam da uilla desta capitania.” (IC. Artigo: A primeira Villa da província, 1887:135)

  • (05) “Segundo: Si não fora a religião do segredo, si fosse possível rasgar o véo do mysterio, a Camara ficaria sabendo o nome da pessa ou pessoas a quem o Presidente encarregou de assassinar a Pinto Madeira, ou a quem fallou para assassinalo.” (IC, Artigo: Execuções - Pena de Morte no Ceará - Parte II, 1894:253)

  • (06) “E a não se querer respeitar essas divisas que a própria natureza do terreno offerece, nem o que a competência da autoridade definiu em direito, melhor fora então entregar a solução de casos análogos ao arbítrio dos habitantes da região conteste e que estes decidam a qual das províncias querem pertencer.” (IC, Appendice - Artigos, Discursos, Representações, 1893:287)

Ao distribuirmos as 6.238 ocorrências por sincronia, função e forma, chegamos ao seguinte retrato de uso do pretérito mais-que-perfeito:

  1. 1887 a 1899: passado do passado (1.402 dados da forma simples e 797 da forma composta), passado em relação ao momento de fala - função metafórica (216 dados da forma simples e 53 da forma composta), retomada discursiva (01 dado da forma composta), função desiderativa (10 dados da forma simples), função conjuntiva (28 dados da forma simples e 02 da forma composta) e função condicional (32 dados da forma simples e 04 da forma composta), totalizando 2.545 dados;

  2. 1944 a 1956: passado do passado (1.094 dados da forma simples e 450 da composta), passado metafórico (658 dados da forma simples e 174 da composta), função desiderativa (04 dados da forma simples), função conjuntiva (25 dados da forma simples e 01 da composta) e função condicional (11 dados da forma simples), totalizando 2.417 dados;

  3. 2000 a 2012: passado do passado (627 dados da forma simples e 328 da forma composta), metafórica (242 dados da forma simples e 66 da forma composta), função discursiva (01 dado da forma simples), função desiderativa (01 dado da forma simples) e função conjuntiva (11 dados da forma simples), totalizando 1.276 dados.

Esse mapeamento por sincronia-função-forma comprova não haver correlação de um para um entre forma-função, mesmo nos dados escritos que mais se aproximam do momento atual, embora haja redução de uso: 2.545 > 2.417 > 1.276. Com o passar do tempo, pelo que atesta a literatura, o mais-que-perfeito foi se especializando na oralidade para codificar passado do passado, via forma composta, e função desiderativa, via forma simples. Considerando-se a direção do tempo à modalidade, interessa-nos verificar como se dá essa especialização na escrita: em quais gêneros textuais as formas ocorrem e com quais funções. Vejamos a distribuição por sincronia, função, forma e gênero textual nas Tabelas 01, 02 e 03 abaixo.

Tabela 01
Mapeamento funcional do pretérito-mais-que-perfeito por função, forma e gênero textual no período de 1887 a 1899
Tabela 02
Mapeamento funcional do pretérito mais-que-perfeito por função, forma e gênero textual no período de 1944 a 1956
Tabela 03
Mapeamento funcional do pretérito mais-que-perfeito por função, forma e gênero textual no período de 2000 a 201211 11 . Alguns poucos números constantes desta Tabela (03) diferem parcialmente dos publicados em Freitag, Oliveira e Coan (2018:201), visto que, à ocasião de elaboração daquele artigo, a coleta de dados ainda estava em andamento (embora já estivesse em fase final), informação devidamente mencionada pelos autores antes da apresentação da tabela. Além disso, realocamos os dados considerando, agora, seis funções em vez de quatro.

O número de dados e o mapeamento funcional provam resistência e especialização do mais-que-perfeito: resistência na codificação de passado do passado, passado conjuntivo e passado condicional, funções mais antigas na história da língua, e especialização para codificar outras funções, deslocando-se do eixo do passado para codificar situações que têm o presente como ponto de referência, como é o caso da função metafórica e da desiderativa: esta indica projeção futura e ancora-se no momento de fala; aquela indica um passado relativo ao momento de fala e não um passado do passado. Há, ainda, a função de retomada, cuja referência é um passado no discurso: a forma do pretérito mais-que-perfeito passa a indicar distanciamento discursivo em vez de distanciamento cronológico. Os resultados evidenciam, também, que a forma simples, vista como obsoleta, tem seu lugar na história, já que é expressivo seu uso nas três sincronias. Em muitas das situações, o mais-que-perfeito teve de se revestir de valor estilístico para resistir, e assim o fez.

Em relação aos gêneros textuais, em geral, percebemos, com o passar do tempo, redução de usos, aproximadamente de 50% de uso da forma simples nas funções mais antigas na língua, a de passado do passado, a conjuntiva e a condicional, esta sem dados na última sincronia analisada. Ao mesmo tempo em que se reduzem os usos do mais-que-perfeito simples de modo geral, aumentam-se os usos em alguns gêneros, os memoriais (efemérides, biografias, genealogias e homenagens), adquirindo assim uma especialidade em um conjunto de textos: é desta feita que pode ter se configurado o uso estilístico do mais-que-perfeito, que, por ser visto como uma forma mais culta, torna o texto mais elegante.

Segue-se à identificação das funções e à correlação aos gêneros textuais, investigação do processo de variação-mudança da função de passado do passado, analisada como variável dependente por meio das variantes: pretérito mais-que-perfeito simples (conforme exemplo 07) versus pretérito mais-que-perfeito composto (conforme exemplo 08). Tal função foi escolhida por ser considerada uma das mais antigas, por ser frequente (como atesta a Tabela 04 abaixo) e por ser a função apresentada em gramáticas e materiais didáticos como exemplo de mais-que-perfeito.

  • (07) “O presidente voltou o expresso que conduzira a petição, dizendo lhes que mais logo deliberaria, e deu ordem a Bricio para continuar a perseguição.” (IC, Biografia: Biografia de João de Andrade Pessoa Anta, 1889:67)

  • (08) “Tirou também a esta Villa o contrato das carnes única renda com que se achaua huma cousa e outra assim havia de suceder por que como o capitam Maior vendeu a nova camara humas casas que tinha feito forçosamente nos havia tirar o contrato pera da venda delle se pagar como o fez de tudo auisamos a Vossa Magestade pera despor o que for mais conveniente estendendo nos e a nossa jurisdição.” (IC, Artigo: A primeira Villa da província, 1887:193)

Tabela 04
Uso do pretérito mais-que-perfeito simples e do mais-que-perfeito composto como passado do passado em revistas históricas do Instituto do Ceará em três sincronias

A variável dependente, forma simples versus composta na função de passado do passado, foi correlacionada às variáveis independentes saliência morfológica, modificador verbal, tipo oracional, pessoa do discurso e gênero textual, por meio do programa GOLDVARB X (Sankoff, Tagliamonte e Smith 2005SANKOFF, David; TAGLIAMONTE, Sali A.; SMITH, E. 2005. Goldvarb X - A multivariate analysis application. Toronto: Department of Linguistics; Ottawa: Department of Mathematics.), conforme descrevemos na metodologia. Dos grupos testados, foram estatisticamente selecionados, para a primeira sincronia, de 1887 a 1899, por ordem de significância, os seguintes: pessoa do discurso, gênero textual, modificador verbal, saliência morfológica e tipo oracional, ou seja, todos os grupos arrolados para análise. Na segunda amostra, de 1944 a 1956, dois foram estatisticamente significativos: pessoa discurso e modificador verbal. Na terceira amostra, de 2000 a 2012, o programa selecionou três grupos como estatisticamente significativos ao fenômeno variável sob análise: modificador verbal, pessoa do discurso e gênero textual, nessa ordem.

Paralelos aos resultados desses grupos selecionados pelo Goldvarb, apresentamos os dos demais grupos que não obtiveram significância estatística, porque a opção por excluí-los não seria benéfica à ciência: a prática de não apresentar resultados negativos tem um efeito negativo para o progresso da ciência, pois pode indicar que o assunto não foi investigado. Além disso, um resultado sem significância serve para refutar uma hipótese (Guy e Zilles 2007GUY, Gregory R. & ZILLES, Ana. 2007. Sociolingüística Quantitativa: instrumental de análise. São Paulo: Parábola.) e para apontar direcionamentos de pesquisa.

Dos grupos arrolados, trataremos, primeiramente, do grupo pessoa do discurso, selecionado nas três rodadas estatísticas, cuja hipótese estava assentada no fato de se evitar a forma simples em P6, devido à homonímia com a forma do pretérito perfeito simples. Os resultados, expostos na Tabela (05), indicam, contudo, que P6 condiciona a forma simples (com peso relativo 0.629), na primeira sincronia sob análise, possivelmente porque essa forma também é condicionada por modificador de tempo e negação (conforme Tabela 06), esquivando-se o escritor da homonímia. Em relação à passagem de uma sincronia a outra, verifica-se que o peso relativo de P6 decresce consideravelmente, o que pode ser o resultado do incremento de uso do pretérito perfeito simples como passado do passado (Coan 1997COAN, Márluce. 1997. Anterioridade a um ponto de referência passado: pretérito (mais-que-) perfeito. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis., 2003COAN, Márluce. 2003. As categorias Tempo, Aspecto, Modalidade e Referência na significação dos pretéritos mais-que-perfeito e perfeito: correlação entre função(ões)-forma(s) em tempo real e aparente. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina.; Martins 2015MARTINS, Kellen Cozine. 2015. Variação na expressão de passado-no-passado: uma comparação entre o português brasileiro e o português europeu. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro.). Convém, ainda, destacar que, conforme Lehmann (1995LEHMANN, Christian. 1995 [1982]. Thought on grammmaticalization. Munich: Lincom Europa (publicado originalmente como Thought on grammaticalization: a Programatic Sketch. Köln: Arbeiten des Kölner Universalien 49- Projects,v.1. [1982]), no processo de mudança, a forma passa a ter menos variabilidade paradigmática, o que é evidente em nossos resultados, que mostram direcionamento de uso para a terceira pessoa do singular de 1944 em diante. Lembremos que os usos atuais da forma simples, na oralidade, conforme atesta a literatura, têm paradigma restrito (também pudera; quem me dera...), o que corrobora a tese de Labov (2010LABOV, William. 2010. Principles of linguistic change: cognitive and cultural factors. Oxford: Wiley-Blackwell.) sobre o fato de sistemas em evolução refletirem uma série de reajustes anteriores.

Tabela 05
Pessoa discursiva e uso do mais-que-perfeito simples versus mais-que-perfeito composto como passado do passado em revistas históricas do Instituto do Ceará em três sincronias
Tabela 06
Tipo de modificador verbal e uso do mais-que-perfeito simples versus mais-que-perfeito composto como passado do passado em revistas históricas do Instituto do Ceará em três sincronias

O segundo grupo selecionado nas três sincronias foi modificador verbal, controlado na pesquisa por acreditarmos que o mais-que-perfeito simples estaria acoplado a marcadores temporais, visando à garantia de anterioridade, ou seja, passado do passado, já que é forma multifuncional. Estaria, portanto, o marcador a serviço da anterioridade. Os resultados, que podem ser visualizados na Tabela (06), mostram, entretanto, que o uso da forma simples é condicionado, nas três sincronias, por ausência de modificador, o que nos direciona a duas interpretações: a forma simples garante por si só a anterioridade; também se evidencia atuação do princípio da marcação, já que a forma menor e mais frequente na amostra (a simples) ocorre em contexto menor, sem marcador de tempo e/ou de negação, com exceção, é claro, do que ocorre na primeira sincronia. O discurso parece se rearranjar: à medida que a forma simples compete com outras, com a composta e, preferencialmente, como atesta a literatura atual, com o perfeito simples, são essas duas últimas formas que parecem mais necessitar da marca temporal, para garantia de interpretação de um tempo anterior a outro. Coan (1997COAN, Márluce. 1997. Anterioridade a um ponto de referência passado: pretérito (mais-que-) perfeito. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.) e Freitag, Oliveira e Coan (2018FREITAG, Raquel M. Ko.; OLIVEIRA, Josane M.; COAN, Márluce. 2018. Formas simples e perifrásticas do verbo em relação ao domínio tempo-aspecto-modalidade. In: CASTILHO, Ataliba T.; LOPES, Célia Regina. História do Português Brasileiro. Mudança sintática das classes de palavra: perspectiva funcionalista. São Paulo: Contexto.:205) mostram tendência de uso do mais-que-perfeito com os advérbios já/nunca/não e tendência de uso do perfeito, na função de passado do passado, com outros advérbios temporais e com oração temporal. Além disso, com o passar do tempo, a forma simples do pretérito mais-que-perfeito vai perdendo espaço, tornando-se mais marcada, o que levaria a seu uso em contextos não marcados (menores), para que haja equilíbrio cognitivo-contextual (Dubois e Votre 2012DUBOIS, Sylvie; VOTRE, Sebastião Josué. 2012. Análise modular e princípios subjacentes do funcionalismo linguístico. In: VOTRE, Sebastião Josué (Ed.). A construção da gramática. Niterói: Editora da UFF.).

Gênero textual foi selecionado em duas rodadas, razão por que a Tabela (07) não contém pesos relativos para a amostra de 1944-1956. Em gêneros textuais como efemérides e discursos, verifica-se uso estilístico da forma do mais-que-perfeito simples, razão por que hipotetizamos que, nesses gêneros memoriais, cuja finalidade é enaltecer alguém, ocorra mais a forma simples, ficando a composta para os gêneros acadêmicos. Nossos dados confirmam o exposto em relação a efemérides, mas também mostram que a forma simples é condicionada por cartas/correspondências, em que relações mais que passadas devam, por certo, ganhar evidência, tendo em vista os muitos distanciamentos temporais a que se referem. Além disso, a forma é condicionada por catálogos e listas, gêneros mais objetivos, que requerem formas mais objetivas (menores), preferindo-se, portanto, a forma simples em vez da composta.

Tabela 07
Gênero textual e uso do mais-que-perfeito simples versus mais-que-perfeito composto como passado do passado em revistas históricas do Instituto do Ceará em três sincronias

Para a variável saliência morfológica, foram controlados os fatores verbo regular e verbo irregular, a partir da hipótese de que a forma simples seria mais utilizada com verbos regulares e a composta com irregulares, tendo em vista que, na forma composta, independentemente da irregularidade verbal, o mesmo padrão é mantido: verbo “ter” no imperfeito mais particípio. Os resultados, conforme Tabela (08), evidenciam que a forma simples é motivada pela irregularidade verbal de 1887 a 1899. Novamente, aludimos ao equilíbrio cognitivo-contextual (Dubois e Votre 2012DUBOIS, Sylvie; VOTRE, Sebastião Josué. 2012. Análise modular e princípios subjacentes do funcionalismo linguístico. In: VOTRE, Sebastião Josué (Ed.). A construção da gramática. Niterói: Editora da UFF.), já que, nesse período, a forma menor e mais frequente (a simples) para designar passado do passado ocorre em contextos mais marcados, os irregulares. Para a amostra mais atual, embora sejam bem próximos os percentuais, comprova-se que o uso do mais-que-perfeito simples é mais frequente com verbos regulares, os mais frequentes na língua, portanto os menos marcados.

Tabela 08
Saliência morfológica e uso do mais-que-perfeito simples versus mais-que-perfeito composto como passado do passado em revistas históricas do Instituto do Ceará em três sincronias

Integram a variável tipo oracional os fatores oração absoluta, primeira de uma coordenada, segunda (3a., 4a...) de uma coordenada, principal e subordinada. Os resultados, apresentados na Tabela (09), mostram que a forma simples, de 1887 a 1899, é motivada por coordenadas, desde que não sejam a primeira da série, e por orações subordinadas, o que pode ser justificado em duas perspectivas. No caso das coordenadas, por ser o mais-que-perfeito simples forma tradicionalmente aprendida como passado do passado, evitam-se interpretações de cotemporalidade e sequencialidade, garantindo-se, portanto, a interpretação contrassequencial requerida nessa função; nas subordinadas, replica-se um padrão ilustrativo dos manuais gramaticais: exemplos de uso do mais-que-perfeito em subordinadas substantivas objetivas a verbo dicendi e em adverbiais temporais. Para as amostras em que tipo oracional não foi variável selecionada estatisticamente, embora os percentuais sejam muito próximos e não destaquem este ou aquele fator, observamos que o fator oração subordinada fica em segundo lugar em cada amostra. As subordinadas servem, frequentemente, de exemplo da forma do mais-que-perfeito em manuais didáticos, do que se pode deduzir que frequência de leitura da forma pode conduzir ao uso da forma.

Tabela 09
Tipo oracional e uso do mais-que-perfeito simples versus mais-que-perfeito composto como passado do passado em revistas históricas do Instituto do Ceará em três sincronias

Esse processo variável, na escrita jornalística (especificamente, em revistas históricas), parece estável, o que contraria observações de que a forma simples está em completo desuso. Parece estar em desuso na oralidade, mas encontrou seu lugar na história e na literatura. Tornou-se variante estilística, conforme atestam nossos achados. O jogo variável é motivado por alguns fatores, como nos revelam as tabelas acima, ou seja, confirma-se o pressuposto de que a heterogeneidade é estruturada, sistemática. Observa-se, também, ao compararmos os resultados das três etapas, a manifestação da doutrina do uniformitarismo (Labov 1994LABOV, William. 1994. Principles of linguistic change: internal factors. Cambridge, MA: Blackwell.), pois alguns grupos de fatores, como pessoa discursiva, tipo de modificador verbal e gênero textual, têm sido selecionados constantemente em amostras de períodos diferentes, para a competição que se instaurou na função de passado do passado.

Em relação aos princípios de mudança (Weinreich, Labov e Herzog 1968WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin I. 1968. Empirical Foundations for a Theory of Language Change. In: LEHMANN, W. P.; MACKIED, M. (Eds.). Directions for Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press, p.97-195.), destacamos que o estágio de transição, embora seja peculiarmente aplicado à oralidade, não tem evidência significativa nas revistas históricas. Na oralidade, a forma composta passou a ser utilizada em alguns contextos, até ser primordial em todos e tornar a outra obsoleta na função de passado do passado; nas revistas históricas, considerando-se, por exemplo essa mesma função, a forma simples ainda ocorre em larga escala: há 3.123 dados da forma simples nas três sincronias, em detrimento de 1.575 da forma composta, em competição na codificação do passado do passado.

O segundo princípio de mudança (restrições) é evidenciado ao detectarmos contextos prototípicos de uso da forma simples na codificação da função de passado do passado, por exemplo, uso da forma simples sem modificador, na 3a. pessoa, em gêneros memoriais, com verbo irregular e em orações coordenadas. Essas evidências autorizam-nos a falar em encaixamento (terceiro princípio), pois há contextos mais/menos propícios ao uso de uma ou outra função, bem como de uma ou outra forma, demonstrando que o sistema em variação é equilibrado e que a forma simples caminha em direção a codificar mais modalidade do que tempo passado, já que seu uso é privilegiado nas funções desiderativa, conjuntiva e condicional. Nas outras, que retratam situações passadas, seja em relação a outro momento passado, seja em relação ao momento de fala ou a um passado discursivo, a competição ainda se sustenta. Com base nesses resultados, podemos mostrar os caminhos de cada forma: enquanto a forma composta luta para sobressair-se na função de passado do passado, a simples caminha em direção à modalidade. E é essa a resolução que se apresentou quando o tema foi tratado por Coan (1997COAN, Márluce. 1997. Anterioridade a um ponto de referência passado: pretérito (mais-que-) perfeito. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.) e Martins (2015MARTINS, Kellen Cozine. 2015. Variação na expressão de passado-no-passado: uma comparação entre o português brasileiro e o português europeu. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro.): a forma simples só foi encontrada em função desiderativa, enquanto a composta codifica o tempo passado. Os resultados expostos nesta seção acerca do uso maciço da forma simples em terceira pessoa é um indício de estreitamento paradigmático, pois, na oralidade, os usos desiderativos, em geral, ocorrem em terceira pessoa.

Como tratamos de revistas históricas, não podemos tecer considerações a respeito do princípio da atuação, pois não se pode atestar o espraiamento das variantes em uma comunidade e em comunidades vizinhas. Já sobre o princípio da avaliação, é possível dizer que as formas do pretérito mais-que-perfeito, simples e composta, parecem ser bem avaliadas em textos escritos; se não fossem, sua frequência seria menor, seriam substituídas pelo pretérito perfeito simples como atestam os dados de Coan (1997COAN, Márluce. 1997. Anterioridade a um ponto de referência passado: pretérito (mais-que-) perfeito. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.) para a oralidade.

5. Considerações finais: da temporalidade à modalidade

A análise quantitativa empreendida nesta pesquisa, além de comprovar empiricamente postulados teóricos advindos do Funcionalismo ou da Sociolinguística (viés sociofuncionalista), forneceu provas significativas para a compreensão da estrutura da linguagem, o que já é por si só significativo para a ciência linguística, visto que há evidências de que a competência linguística inclui restrições quantitativas (Labov 1978LABOV, William. 1978. Where does the Linguistic variable stop? A response to Beatriz Lavandera. Sociolinguistic Working Paper, 44, Texas.; Guy e Zilles 2007GUY, Gregory R. & ZILLES, Ana. 2007. Sociolingüística Quantitativa: instrumental de análise. São Paulo: Parábola.). São essas as provas de interesse científico, segundo Lass (1980LASS, Roger. 1980. On explaining language change. New York: Cambridge.), pois permitem generalizações pautadas em interpretação estatística.

Os 6.238 dados coletados revelaram que o pretérito mais-que-perfeito, para além da função de passado do passado, função frequentemente apresentada e ilustrada em gramáticas e materiais didáticos, está a serviço de outras funções: passado em relação ao momento de fala, função discursiva, função desiderativa, função conjuntiva e função condicional, as mesmas identificadas em textos literários do século XVI ao século XX por Coan (2003COAN, Márluce. 2003. As categorias Tempo, Aspecto, Modalidade e Referência na significação dos pretéritos mais-que-perfeito e perfeito: correlação entre função(ões)-forma(s) em tempo real e aparente. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina.). Nessa dimensão, vemos uma forma para mais funções, o que evidencia multifuncionalidade, ou seja, nem sempre as línguas exibem correlação de um para um entre forma e função (Givón 1990GIVÓN, Talmy. 1990. Syntax - A functional - typological introduction. V. II. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Co., 1991GIVÓN, Talmy. 1991. Functionalism and grammar: a prospectus. University of Oregon., 1993GIVÓN, Talmy. 1993. Verbal Inflections: Tense, Aspect, Modality and Negation. In: GIVÓN, Talmy (Ed.) English Grammar: a functional-based introduction. V. I e II. Amsterdam/ Philadelphia: John Benjamins Publishing Co., 1995GIVÓN, Talmy. 1995. Functionalism and Grammar. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Co.). Verificamos, outrossim, em dimensão correlata, uma mesma função codificada por mais formas, é o caso da função de passado do passado codificada ora pela forma simples, ora pela forma composta, o que, na perspectiva sociolinguística, comprova variação (Labov 1972LABOV, William. 1972. Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press., 1978LABOV, William. 1978. Where does the Linguistic variable stop? A response to Beatriz Lavandera. Sociolinguistic Working Paper, 44, Texas.).

Os resultados evidenciam, também, que a forma mais antiga, a simples, parece conferir mais distanciamento temporal, o que pode ser indício de manifestação do princípio da iconicidade na língua: quanto mais distante estamos da situação, mais tendência a escolher formas mais distantes no tempo (numa escala em que o mais-que-perfeito, das formas do passado, seria o protótipo de distanciamento). Além disso, quanto mais distante temporalmente está o conteúdo em pauta, mais tendência à escolha de formas mais antigas da língua.

Partindo da acepção de modalidade como atitude do falante em relação à proposição (Fleischman 1982FLEISCHMAN, Suzanne. 1982. The future in thought and language. New York: Cambridge University Press.; Bybee e Fleischman 1995BYBEE, Joan; FLEISCHMAN, Suzanne. 1995. Modality in grammar and discourse. Amsterdam, Philadelphia: John Benjamins Publishing Co.), a escolha de um tempo verbal como o pretérito mais-que-perfeito, nos últimos séculos, a julgar pelos exemplos apresentados em manuais didáticos ou gramáticas, indicaria que uma situação é passada, que é anterior a outra passada e que é factual ou realis, já que a asserção realis indica que algo é verdadeiro ou falso (Givón 1984GIVÓN, Talmy. 1984. A functional-typological introduction. Vol. 1, Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Co.). Ocorre, porém, como já observado por Fleischman (1982FLEISCHMAN, Suzanne. 1982. The future in thought and language. New York: Cambridge University Press.), que distância temporal na direção do passado pode ser utilizada para expressar distância modal, no sentido de sinalizar o status de certeza ou não da asserção. Assim, o mais-que-perfeito, uma forma que codifica mais distância no tempo, serviria para indicar menos assertividade, quando em uso não prototípico (quando codifica, por exemplo, passado em relação ao momento de fala, passado conjuntivo, passado condicional, passado discursivo e função desiderativa). Segundo Sweetser (1990SWEETSER, Eve E. 1990. From etymology to pragmatics: Metaphorical and cultural aspects of semantic structure. New York: Cambridge.), utilizamos a linguagem do mundo externo (distanciamento temporal) no mundo interno (distanciamento modal), o qual é metaforicamente estruturado como paralelo ao mundo externo; esse processo metafórico pode justificar os usos do mais-que-perfeito nas funções em que modalidade parece mais saliente do que tempo.

Destaca-se, ainda, a relevância desta pesquisa para investigações diacrônicas, pois consideramos motivações internas e externas ao sistema (Labov 1994LABOV, William. 1994. Principles of linguistic change: internal factors. Cambridge, MA: Blackwell., 2001LABOV, William. 2001. Principles of linguistic change: social factors. Oxford: Blackwell.). Nossos resultados mostram um pouco mais sobre o passado, especificamente sobre a história do pretérito mais-que-perfeito. Um dos objetivos da investigação diacrônica, conforme Lass (1980LASS, Roger. 1980. On explaining language change. New York: Cambridge.), é produzir conhecimento sobre o passado e é somente o ato intelectual que o engatilha em sequências coerentes, quando interpretamos os dados com base em teorias.

Referências

  • ALMEIDA, Napoleão Mendes. 1982. Gramática Metódica da Língua Portuguesa São Paulo: Saraiva.
  • BARBOZA, Jeronymo Soares. 1830. Gramática Philosophica da Língua Portuguesa 2 ed. Lisboa: Lisboa.
  • BECHARA, Evanildo. 1979. Moderna Gramática Portuguesa São Paulo: Companhia Editora Nacional.
  • BYBEE, Joan; FLEISCHMAN, Suzanne. 1995. Modality in grammar and discourse Amsterdam, Philadelphia: John Benjamins Publishing Co.
  • CÂMARA, Joaquim Mattoso. 1972. Estrutura da Língua Portuguesa Petrópolis: Vozes.
  • CAMPOS, Odette G. L. Altmann de Souza; GALEMBECK, Paulo de Tarso; RODRIGUES, Ângela C. Souza. 1996. A Flexão modo-temporal no português culto do Brasil: formas de pretérito perfeito e imperfeito do indicativo. In: CASTILHO, Ataliba; BASÍLIO, Margarida (Eds.). Gramática do Português Falado IV: estudos descritivos. IV. Campinas: Ed. da Unicamp/Fapesp.
  • CASTILHO, Ataliba T. 1997. A gramaticalização. Cadernos de Estudos Linguísticos e Literários 19, p. 25-64.
  • COAN, Márluce. 1997. Anterioridade a um ponto de referência passado: pretérito (mais-que-) perfeito. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
  • COAN, Márluce. 2003. As categorias Tempo, Aspecto, Modalidade e Referência na significação dos pretéritos mais-que-perfeito e perfeito: correlação entre função(ões)-forma(s) em tempo real e aparente Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina.
  • COMRIE, Bernard. 1981. Aspect 3a ed. Cambridge: Cambridge University Press.
  • CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. 2008. Nova Gramática do Português Contemporâneo 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • DUBOIS, Sylvie; VOTRE, Sebastião Josué. 2012. Análise modular e princípios subjacentes do funcionalismo linguístico. In: VOTRE, Sebastião Josué (Ed.). A construção da gramática Niterói: Editora da UFF.
  • FIORIN, José Luiz. 1996. Do Tempo. As Astúcias da Enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, p.127-255.
  • FLEISCHMAN, Suzanne. 1982. The future in thought and language New York: Cambridge University Press.
  • FREITAG, Raquel M. Ko.; OLIVEIRA, Josane M.; COAN, Márluce. 2018. Formas simples e perifrásticas do verbo em relação ao domínio tempo-aspecto-modalidade. In: CASTILHO, Ataliba T.; LOPES, Célia Regina. História do Português Brasileiro. Mudança sintática das classes de palavra: perspectiva funcionalista São Paulo: Contexto.
  • GIVÓN, Talmy. 1995. Functionalism and Grammar Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Co.
  • GIVÓN, Talmy. 1993. Verbal Inflections: Tense, Aspect, Modality and Negation. In: GIVÓN, Talmy (Ed.) English Grammar: a functional-based introduction V. I e II. Amsterdam/ Philadelphia: John Benjamins Publishing Co.
  • GIVÓN, Talmy. 1991. Functionalism and grammar: a prospectus University of Oregon.
  • GIVÓN, Talmy. 1990. Syntax - A functional - typological introduction V. II. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Co.
  • GIVÓN, Talmy. 1984. A functional-typological introduction Vol. 1, Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Co.
  • GONÇALVES, Carlos Alexandre. 1993. Falara-se mais-que-perfeito: estudo presente do tempo pretérito. ALFA 37, p. 135-142.
  • GUY, Gregory R. & ZILLES, Ana. 2007. Sociolingüística Quantitativa: instrumental de análise São Paulo: Parábola.
  • LABOV, William. 2010. Principles of linguistic change: cognitive and cultural factors Oxford: Wiley-Blackwell.
  • LABOV, William. 2001. Principles of linguistic change: social factors Oxford: Blackwell.
  • LABOV, William. 1994. Principles of linguistic change: internal factors Cambridge, MA: Blackwell.
  • LABOV, William. 1978. Where does the Linguistic variable stop? A response to Beatriz Lavandera. Sociolinguistic Working Paper, 44, Texas.
  • LABOV, William. 1972. Sociolinguistic patterns Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
  • LASS, Roger. 1980. On explaining language change New York: Cambridge.
  • LAVANDERA, Beatriz R. 1978. Where does the sociolinguistic variable stop? Language Society, no 7. Printed in Great Britain, p.171-182.
  • LEHMANN, Christian. 1995 [1982]. Thought on grammmaticalization Munich: Lincom Europa (publicado originalmente como Thought on grammaticalization: a Programatic Sketch. Köln: Arbeiten des Kölner Universalien 49- Projects,v.1.
  • LUFT, Celso Pedro. 1976. Gramática Resumida Porto Alegre: Editora Globo.
  • MARTINS, Kellen Cozine. 2015. Variação na expressão de passado-no-passado: uma comparação entre o português brasileiro e o português europeu Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • MARTINS, Kellen Cozine; PAIVA, Maria da Conceição. 2013. V-ra no português: uma análise diacrônica. Estudos Linguísticos, 42, v.1, p. 540-552.
  • MATEUS, Maria Helena Mira. et al 1983. A categoria lingüística tempo. In: MATEUS, Maria Helena Mira et al. (Eds.) Gramática da Língua Portuguesa Coimbra: Livraria Almedina, p.104-153.
  • MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. 1989. Estruturas trecentistas. Elementos para uma gramática do português arcaico. Estudos Gerais - série universitária. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.
  • MELO, Gladstone C. 1987. Gramática Fundamental da Língua Portuguesa Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico.
  • NUNES, José Joaquim. 1989. Gramática História Portuguesa 9 ed. Lisboa: Editora Clássica.
  • PEREIRA, Eduardo Carlos. 1923. Gramática História São Paulo: Editora Monteiro Lobato & cia.
  • PERES, João. 1993. Towards an Integrated View of the Expression of Time in Portuguese. Lisboa: Cadernos de Semântica, n. 14, p.01-49.
  • ROCHA LMA, Carlos Henrique. 1986. Gramática Normativa da Língua Portuguesa Rio de Janeiro: José Olympio.
  • SAID ALI, Manoel. 1964. Gramática Secundária e Gramática Histórica da Língua Portuguesa São Paulo: Editora Universidade de Brasília.
  • SANKOFF, David; TAGLIAMONTE, Sali A.; SMITH, E. 2005. Goldvarb X - A multivariate analysis application Toronto: Department of Linguistics; Ottawa: Department of Mathematics.
  • SWEETSER, Eve E. 1990. From etymology to pragmatics: Metaphorical and cultural aspects of semantic structure New York: Cambridge.
  • TAVARES, Maria Alice. 2003. A gramaticalização de E, AÍ, DAÍ e ENTÃO: estratificação/variação e mudança no domínio funcional da sequenciação retroativo-propulsora de informações - um estudo sociofuncionalista Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
  • WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin I. 1968. Empirical Foundations for a Theory of Language Change. In: LEHMANN, W. P.; MACKIED, M. (Eds.). Directions for Historical Linguistics Austin: University of Texas Press, p.97-195.
  • 7
    . Segundo Comrie (1981COMRIE, Bernard. 1981. Aspect. 3a. ed. Cambridge: Cambridge University Press.:16), “perfectividade indica a visão de uma situação como um todo único, sem distinção das fases que a constituem”; enquanto que o “imperfectivo presta especial atenção à estrutura temporal interna da situação”.
  • 8
    .Givón (1984GIVÓN, Talmy. 1984. A functional-typological introduction. Vol. 1, Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Co.) faz referência aos seguintes tipos de modalidade: pressuposição (verdade por acordo prévio); asserção realis (algo é verdadeiro ou falso) e asserção irrealis (verdade possível).
  • 9
    . De acordo com Coan (2003COAN, Márluce. 2003. As categorias Tempo, Aspecto, Modalidade e Referência na significação dos pretéritos mais-que-perfeito e perfeito: correlação entre função(ões)-forma(s) em tempo real e aparente. Tese (Doutorado em Linguística) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina.:110), o ponto de referência é uma situação de ordem semântica ou pragmática a qual uma outra situação está vinculada.
  • 10
    . Conforme Labov (1978LABOV, William. 1978. Where does the Linguistic variable stop? A response to Beatriz Lavandera. Sociolinguistic Working Paper, 44, Texas.), as variantes linguísticas têm o mesmo significado referencial, referem-se ao mesmo estado de coisas em um mesmo contexto e têm o mesmo valor de verdade.
  • 11
    . Alguns poucos números constantes desta Tabela (03) diferem parcialmente dos publicados em Freitag, Oliveira e Coan (2018FREITAG, Raquel M. Ko.; OLIVEIRA, Josane M.; COAN, Márluce. 2018. Formas simples e perifrásticas do verbo em relação ao domínio tempo-aspecto-modalidade. In: CASTILHO, Ataliba T.; LOPES, Célia Regina. História do Português Brasileiro. Mudança sintática das classes de palavra: perspectiva funcionalista. São Paulo: Contexto.:201), visto que, à ocasião de elaboração daquele artigo, a coleta de dados ainda estava em andamento (embora já estivesse em fase final), informação devidamente mencionada pelos autores antes da apresentação da tabela. Além disso, realocamos os dados considerando, agora, seis funções em vez de quatro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2018
  • Aceito
    22 Dez 2018
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br