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Debate oral, multimodalidade e escola: problemáticas e possibilidades no ensino de gêneros orais por meio do modelo da sequência didática

Oral debate, multimodality and school: problems and possibilities of teaching oral genres using didactic sequence model

RESUMO

Este artigo discute a adoção da perspectiva de gêneros discursivos na esfera escolar, enfocando um trabalho didático desenvolvido com o gênero oral debate deliberativo, em uma sequência didática, conforme modelo proposto pelo grupo de Genebra, trabalhada com alunos de Ensino Técnico Integrado ao Médio. Os resultados dessa prática nos proporcionaram reflexões teóricas importantes, indicando que, embora haja problemáticas ao se didatizar gêneros em situações de ensino-aprendizagem; há também possibilidades de ensino, que podem promover trabalhos contextualizados com a língua materna. Os dados possibilitaram também a descrição do gênero pelo eixo da multimodalidade para fomentar seus usos em sala de aula.

Palavras-chave:
gêneros; debate; multimodalidade, ensino

ABSTRACT

This paper discusses the consequences of adopting discursive genre perspective in school sphere, based on work with an oral genre, deliberative debate, as a didactic sequence worked with High School/Professional Education students, based on model proposed by Geneva group. The results of this practical provided many important topics of discussion, by indicating that, although there are difficulties in using genres in teaching-learning situations; there are also many teaching possibilities that can help teachers to contextualize work with mother language. The data enabled us to describe the genre to foment its uses in classroom through the multimodality axis.

Key-words:
genres; debate; multimodality; teaching

1. Introdução

Os estudos dos gêneros são necessários exatamente porque nós não compreendemos os gêneros e as atividades de áreas não-familiares que são importantes para nós e para nossos alunos (Bazerman 2006BAZERMAN, Charles. 2006. Gêneros textuais, tipificação e interação. Tradução de Judith Chambliss Hoffnagel. 2. ed. São Paulo: Cortez.: 37).

(...) comunicar-se oralmente ou por escrito pode e deve ser ensinado sistematicamente (Dolz & Schneuwly 2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. : 43).

Conjeturar sobre o ensino de textos orais na escola mediante a heterogeneidade de práticas de leitura/escuta e de produção das quais participam seus sujeitos dentro e fora dela, bem como frente à pluralidade de esferas discursivas em que transcorrem suas ações linguístico-discursivas, aponta-nos para a necessidade de um trabalho didático ancorado nos estudos de gêneros discursivos (Bakhtin 2003_______. 2003. Os gêneros do discurso. In: M. Bakhtin, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. p. 277-326.), os quais consideram os usos da linguagem nas práticas sociais e intersubjetivas. Por conseguinte, uma genuína discussão sobre a problemática colocada quando os gêneros são abordados como objetos de ensino, como temos acompanhado em trabalhos dedicados ao assunto (cf.: Barbosa 2000BARBOSA, Jaqueline Peixoto. 2000. Do professor suposto pelos PCNs ao professor real de Língua Portuguesa: são os PCNs praticáveis? In: ROJO, Roxane Helena Rodrigues (ed.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC; Campinas: mercado das letras. p. 149-182., 2001; Santos, Mendonça & Cavalcanti 2007SANTOS, Carmi Ferraz; MENDONÇA, Márcia e CAVALCANTE, Mariane. 2007. Trabalhar com texto é trabalhar com gênero? In: Carmi Ferraz Santos; Márcia Mendonça e Marianne Cavalcante (eds.). Diversidade textual: os gêneros na sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica/CEEL/MEC. p. 27-41. ; Reinaldo & Bezerra 2012REINALDO, Maria Augusta e BEZERRA, Maria Auxiliadora. 2012. Gêneros textuais como prática social e seu ensino. In: REINALDO, Maria Augusta; MARCUSCHI, Beth e DIONÍSIO, Ângela (eds.). Gêneros textuais: práticas de pesquisa e práticas de ensino. Recife: programa de pós-graduação em Letras. p. 73-96. ) é elementar.

Nesse sentido, Bazerman (2006BAZERMAN, Charles. 2006. Gêneros textuais, tipificação e interação. Tradução de Judith Chambliss Hoffnagel. 2. ed. São Paulo: Cortez.) destaca a imprescindibilidade dos estudos dos gêneros, justamente, por não estarmos acostumados com aqueles realizados em práticas não cotidianas. Se por um lado, seria preciso um conhecimento desses “gêneros não familiares”, como frisa o autor; por outro, acredita-se que até mesmo os já presentes em nossas práticas habituais não, necessariamente, são por nós compreendidos do ponto de vista teórico, o que pode gerar conflitos nas situações de ensino-aprendizagem. A esse respeito, Bakhtin (2003_______. 2003. Os gêneros do discurso. In: M. Bakhtin, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. p. 277-326.: 282 grifos do autor) afirmava que “dispomos de um rico repertório de gêneros de discurso orais (e escritos). Em termos práticos, nós os empregamos de forma segura e habilidosa, mas em termos teóricos podemos desconhecer inteiramente sua existência”.

Dessa forma, comungando com esses estudiosos, o pressuposto de que os gêneros podem ser (des)conhecidos - incluindo-se os cotidianos - e, sendo a escola, o lugar da constituição do saber, duas urgências clamam por atenção, no Ensino Básico de nosso país, a saber, (i) mais trabalhos com gêneros discursivos em práticas do contexto escolar, e (ii) pesquisas dentro dos estudos linguísticos e aplicados, como ora nos prestamos a fazer, a fim de contribuir com a fundamentação teórico-metodológica dessas práticas.

Sobre a primeira urgência, uma série de problematizações podem ser levantadas, dentre elas: como estruturar um estudo de gêneros para se trabalhar com alunos nos diferentes anos e contextos de ensino? Como abordar os gêneros em sala de aula, levando em conta seus contextos reais de produção sem ficcionalizá-los, visto que foram transpostos para a escola, ou seja, extrapolados de seus usos?

Perguntas como essas são proeminentes para todos ligados à Educação e, em particular, ao ensino da Língua Portuguesa, o qual, na busca por respondê-las, tem sido, nos últimos anos, bastante embasado em teorias sobre gêneros (Bunzen 2004BUNZEN, Clécio dos Santos. S. 2004. O ensino de gêneros em três tradições: implicações para o ensino-aprendizagem de língua materna. Quimera e a peculiar atividade de formalizar a mistura do nosso café com o revigorante chá de Bakhtin. 1ed. São Carlos: GEGE. p. 221-258.: 1), que aparecem, inclusive, em orientações de documentos oficiais, como é o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), e das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM), referências para o Ensino Fundamental II e o Ensino Médio, respectivamente, vigentes até o momento.

No primeiro documento, sugere-se um uso particular do texto (recomendado como unidade de ensino), todavia, adverte-se ser preciso desenvolver “uma descrição dos elementos regulares e constitutivos do gênero” (Brasil 1998BRASIL. 1998. Ministério da Educação e do Desporto. Conselho Nacional de Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília, DF.: 48). Na última, enfatiza-se o trabalho com “as múltiplas linguagens e com os gêneros discursivos” (Brasil 2006_______. 2006. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília, Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica.: 28).

Nesses mesmos documentos, há listas de gêneros indicados às salas de aula, relativos à leitura/escuta ou à produção. Entre eles são recomendados, nos PCN, gêneros da “Linguagem oral” e da “Linguagem Escrita” para a “prática de produção” e a “prática de escuta” (Brasil 1998: 82)1 1 . Para um aprofundamento sobre os gêneros e práticas de ensino constantes nos PCN, recomendamos a leitura de Rojo (2000). ; nas OCEM, são sugeridas “práticas de linguagem”, nas quais se aconselham atividades de produção e de recepção de gêneros orais e escritos, além de análise linguística deles (Brasil 2006: 37-39).

Se a inclusão e o desenvolvimento de práticas didáticas com gêneros discursivos - familiares e não familiares aos alunos - na escola, já são por si só complexos, uma vez que apropriações das teorias de gêneros no ensino, muitas vezes, ocorrem pela aglutinação de perspectivas teóricas (cf.: Bunzen, 2004BUNZEN, Clécio dos Santos. S. 2004. O ensino de gêneros em três tradições: implicações para o ensino-aprendizagem de língua materna. Quimera e a peculiar atividade de formalizar a mistura do nosso café com o revigorante chá de Bakhtin. 1ed. São Carlos: GEGE. p. 221-258.); há um desafio ainda, no que tange aos gêneros orais, delegados a um segundo (ou terceiro e último plano), devido à crença de que não seria preciso ensinar os alunos a “falar”, pois eles já o saberiam. Trata-se da antiga situação de inferioridade das práticas orais nas aulas e até mesmo nos livros didáticos em que a oralidade se restringe à leitura de textos ou a exposições/seminários, sem critérios de avaliação demarcados e de objetivos de ensino explícitos.

Dessa forma, compartilhando com Dolz & Schneuwly (2004DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras.: 213) o pressuposto de que “o oral se ensina”, defendemos que a oralidade (formal) pode ser ensinada tanto quanto a escrita, ou seja, é possível um ensino sistemático também de gêneros orais, como já está advertido nos documentos oficiais brasileiros (PCN, OCEM), que sugerem a realização de seminários, palestras, entrevistas e debates, entre outros, na escola (cf.: PCN, 1998; OCEM, 2006) e em pesquisas (cf.: Barbosa 2001_______. 2001. Trabalhando com os Gêneros do Discurso: uma perspectiva enunciativa para o ensino de Língua Portuguesa. Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP/LAEL.).

Em relação à segunda urgência, reconhecemos a necessidade de descrições e discussões teóricas sobre/para trabalhos práticos desenvolvidos na escola. Destarte, este artigo também se prestará à consideração de elementos constituintes de um gênero oral, problematizando-o em situação específica, a qual nos levou a descrevê-lo pelo viés da multimodalidade (cf.: Kress 2010KRESS, Gunter. 2010. Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication. London: Routledge.), entendida, no debate oral, como a associação de gestos/expressões corporais e faciais, tons de voz, posicionamentos e falas dos sujeitos discursivos ali interagindo, argumentando que esses aspectos em conjunto constituiriam alguns dos seus “modos” (Dionísio 2011DIONÍSIO, Ângela. 2011. Gêneros multimodais e multiletramento. In: Brito, Karim Siebeneicher; GAYDECZKA, Beatriz e KARWOSKI, Acir Mário (eds.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. 4 ed. São Paulo: Parábola editorial. p. 137-152.).

Assim, neste artigo, discutiremos a questão do ensino de gêneros na esfera escolar, enfatizando a oralidade, a partir de reflexões geradas pela aplicação de uma sequência didática2 2 . Este trabalho é fruto do desenvolvimento e aplicação de uma sequência didática apresentada como trabalho final da disciplina LP 210A – Tópicos em Língua Materna, ministrada pela professora Márcia Rodrigues de Souza Mendonça, no primeiro semestre de 2013, no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UNICAMP. Agradecemos à professora por contribuições (In comunicação ao longo das aulas) e pela leitura da primeira versão do artigo. Algumas reflexões iniciais foram apresentadas em forma da comunicação oral “Gêneros orais e ensino: reflexões sobre um trabalho didático com o debate”, no III Vozes da Linguística Aplicada, promovido pela Unigranrio, em 2014. Os resultados preliminares, por sua vez, foram ainda debatidos em forma da comunicação oral “Gênero oral e multimodalidade: a sequência didática como mediadora no ensino de língua materna”, no VIII SIGET – Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais, em 2015, realizado na USP. O artigo ora apresentado, entretanto, traz aprofundamento nas análises e reflexões geradas sobre os desdobramentos do trabalho didático prático em forma de texto teórico inédito. Finalmente, agradecemos ao Prof. Dr. Lucas Vinício de Carvalho Maciel (UFSCAR) pelas contribuições no que diz respeito à associação entre o conceito bakhtiniano de entonação à multimodalidade e pela leitura da versão final do texto. , embasada no modelo didático proposto por Dolz, Noverraz & Schneuwly (2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. ) para alunos de Ensino Técnico Integrado ao Médio de um Instituto Federal.3 3 . Uma das autoras deste artigo era a professora regular da turma.

A fim de tratar de ambas as urgências, o artigo é composto por uma seção inicial que tematiza a esfera escolar e as possibilidades e problemáticas do trabalho com gêneros em seu âmbito. Apresentamos a sequência didática e, depois, oferecemos análises de excertos da situação de interação desenvolvida, descrevendo, especialmente, aspectos multimodais do gênero para, ao final, sintetizarmos nossas considerações sobre o trabalho.

2. Os gêneros e a esfera escolar

Almejando a promoção de um ensino de língua materna contextualizado, defendemos o uso de gêneros discursivos, sob o alicerce da concepção bakhtiniana que os define como “tipos relativamente estáveis de enunciados” (Bakhtin 2003_______. 2003. Os gêneros do discurso. In: M. Bakhtin, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. p. 277-326.: 262), circulantes em esferas e compostos por conteúdo temático, estilo e construção composicional (cf.: Bakhtin 2003: 261; in passim). Aspectos que, na perspectiva em questão, determinam-se pelas condições de produção e finalidades de cada esfera e situação.

Tal enfoque vem na tentativa de “operar com enunciados concretos” (Bakhtin 2003_______. 2003. Os gêneros do discurso. In: M. Bakhtin, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. p. 277-326.: 264), pois, na perspectiva de Bakhtin e do Círculo (in passim), a língua isolada do enunciado restringe-se à forma; a língua fora do gênero que o circunda não tem relação com a vida, “a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos que (a realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua” (Bakhtin 2003: 265).

Quando se adotam os gêneros do discurso como objetos de ensino de língua, tem-se a necessidade de refletir sobre como práticas sociais podem ser transpostas para a sala de aula, como formas de contextualizá-los. A linguagem participa dessas práticas como mediadora, devendo ser articulada conforme as peculiaridades dos gêneros do discurso, os quais se caracterizam pelas ações sociais e individuais dos participantes da interação, pois apesar de seu caráter heterogêneo, devido às infinitas combinações de aspectos que os envolvem, mantêm uma regularidade que pode ser reconhecida e, portanto, ensinada na escola. Segundo Dolz & Schneuwly (2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. : 63), “é através dos gêneros que as práticas de linguagem materializam-se nas atividades dos aprendizes”.

Evitando que os alunos tenham uma visão fragmentada dessas práticas, porém, os autores também trazem à tona uma dificuldade quanto à abordagem dos gêneros na escola, quando esses passam de elementos da interação para objetos de ensino-aprendizagem: “O aluno encontra-se, necessariamente, num espaço do ‘como se’, em que o gênero funda uma prática de linguagem que é, necessariamente, em parte, fictícia, uma vez que é instaurada com fins de aprendizagem” (Dolz & Schneuwly 2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. : 65).

A propósito disso, adiciona-se outra complexidade, correspondente à descaracterização da esfera em que normalmente circulam, o que pode acarretar uma abordagem formal de textos e não de gêneros (Santos; Mendonça; Cavalcante 2007SANTOS, Carmi Ferraz; MENDONÇA, Márcia e CAVALCANTE, Mariane. 2007. Trabalhar com texto é trabalhar com gênero? In: Carmi Ferraz Santos; Márcia Mendonça e Marianne Cavalcante (eds.). Diversidade textual: os gêneros na sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica/CEEL/MEC. p. 27-41. ), como confirmam os autores Reinaldo & Bezerra (2012REINALDO, Maria Augusta e BEZERRA, Maria Auxiliadora. 2012. Gêneros textuais como prática social e seu ensino. In: REINALDO, Maria Augusta; MARCUSCHI, Beth e DIONÍSIO, Ângela (eds.). Gêneros textuais: práticas de pesquisa e práticas de ensino. Recife: programa de pós-graduação em Letras. p. 73-96. : 77 grifos nossos):

A ênfase dada, pelas teorias de gênero como práticas sociais, aos contextos em que ele circula faz com que o ensino de gêneros seja motivo de discussões: ensinar-se explicitamente o gênero pode levar a um enfoque rígido, prescritivo e formulaico, enfatizando-se mais a sua forma do que seu uso e, consequentemente, perdendo-se seus aspectos dinâmicos, sociais e ideológicos; e não o ensinar explicitamente pode impedir que os alunos desenvolvam um meta-conhecimento sobre gênero (explique, explanem, analisem e critiquem o gênero e sobre sua performance como produtor de textos enquanto exemplares de gênero.

Procuramos, então, elaborar um trabalho com um gênero oral (debate), no intuito de contemplar as duas perspectivas aludidas - do ensino implícito e do explícito -, pois os alunos produziram duas versões, sendo a primeira feita a partir de nenhuma explicação sobre a estrutura ou forma, com a expectativa de captar habilidades iniciais deles quanto ao gênero proposto. Já, para que produzissem a segunda versão, foram analisados, com eles, não só exemplos de debates autênticos, mas também o próprio debate do qual os sujeitos participaram inicialmente e que fora gravado em vídeo, o que possibilitou reflexões sobre vários aspectos, de maneira alguma, limitando-se à forma, como será mostrado no relato da experiência mais à frente. Assim, partimos do pressuposto de que é possível ensinar gêneros orais na escola (Dolz & Schneuwly 2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. ), de forma devidamente contextualizada para cumprir o objetivo de inserir o aluno numa prática social. Segundo Reinaldo & Bezerra (2012REINALDO, Maria Augusta e BEZERRA, Maria Auxiliadora. 2012. Gêneros textuais como prática social e seu ensino. In: REINALDO, Maria Augusta; MARCUSCHI, Beth e DIONÍSIO, Ângela (eds.). Gêneros textuais: práticas de pesquisa e práticas de ensino. Recife: programa de pós-graduação em Letras. p. 73-96. :78), “a escola é um lugar de ensino/aprendizagem (formal), a simulação tem nela seu espaço, no entanto essa simulação não dispensa a observação e análise do gênero em seus contextos”.

É o que tentamos fazer durante a sequência didática, salientando que a atividade partiu de uma situação surgida na escola, a qual gerou uma questão polêmica, ou seja, o tema discutido não emergiu de uma simulação criada na sala que acompanhamos. Além disso, tratou-se de um assunto de interesse dos alunos, que se inseriram no contexto, como sujeitos discursivos (Corrêa 2011CORRÊA, Manuel Luís Gonçalves. 2011. As perspectivas etnográfica e discursiva no ensino da escrita: o exemplo de textos de pré-universitários. In: Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, 2ª parte. p. 333-356.), visto que almejavam solucionar de maneira efetiva, pelo uso da linguagem, o problema posto em discussão.

Entretanto, temos consciência da complexidade do contexto escolar e do trabalho dos professores, que impossibilita, muitas vezes, a realização de projetos como esse. Diante dessa dificuldade, além de lançarmos um “olhar crítico”, procuramos lançar um “olhar propositivo”, ao apresentar a aplicação da sequência didática.

3. O debate oral em foco: uma experiência prática

Numa sala de aula, o trabalho de um professor frequentemente serve para definir gêneros e atividades, e, fazendo isso, criar oportunidades e expectativas de aprendizagem (Bazerman 2006BAZERMAN, Charles. 2006. Gêneros textuais, tipificação e interação. Tradução de Judith Chambliss Hoffnagel. 2. ed. São Paulo: Cortez.: 23).

A eleição de um gênero oral surgiu da vontade de colocarmos em prática a defesa de muitos autores, como Dolz & Schneuwly (2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. ), Barbosa (2001_______. 2001. Trabalhando com os Gêneros do Discurso: uma perspectiva enunciativa para o ensino de Língua Portuguesa. Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP/LAEL.) e outros, além das orientações dos PCN e das OCEM, de que os textos orais são ensináveis, logo, podem ser objetos de ensino de língua (materna).

Não se trata de destacar suposta dualidade entre a modalidade oral e a escrita, já bastante presente nos livros didáticos (cf.: Barbosa 2000BARBOSA, Jaqueline Peixoto. 2000. Do professor suposto pelos PCNs ao professor real de Língua Portuguesa: são os PCNs praticáveis? In: ROJO, Roxane Helena Rodrigues (ed.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC; Campinas: mercado das letras. p. 149-182.), e algumas vezes até problemáticas, mas sim trabalhar com a efetiva produção de gêneros orais, com intervenções do professor para discussões, reflexões e aplicação de recursos que possibilitem ao aluno apreender conscientemente aspectos inerentes ao gênero. Como confirma a autora:

Ao invés de aulas que tematizem “o falar” ou “a oralidade” de uma forma geral, pode-se e deve-se tomar os gêneros orais públicos como objetos de ensino, o que permitiria um maior desenvolvimento das capacidades comunicativas dos alunos e uma melhor condição de exercício da cidadania (Barbosa 2001_______. 2001. Trabalhando com os Gêneros do Discurso: uma perspectiva enunciativa para o ensino de Língua Portuguesa. Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP/LAEL.: 74).

Assim, após o reconhecimento da importância da abordagem de gêneros orais na escola, precisávamos decidir um gênero para o qual proporíamos uma sequência didática. Olhamos para uma ocasião oferecida pelo próprio ambiente escolar: a presença de cachorros na escola. A controvérsia gerada pelos cachorros foi observada em cartazes espalhados pelas paredes do corredor e nas portas das salas de aula. Esses foram elaborados por uma funcionária, mas também continham frases dos próprios alunos, as quais evidenciaram que se tratava de uma questão polêmica e de interesse deles, visto que algumas delas concordavam com o “bom” tratamento dos animais, enquanto outras mostravam indignação diante da escola se tornar “abrigo” para os cães. Por ser um assunto conflituoso, a presença dos cachorros na escola poderia nos levar a uma ação efetiva de resolução do problema. Desse fato, nasceu a ideia de fazermos um debate de cunho deliberativo, a fim de que fosse tomada uma decisão a ser levada pelos alunos ao diretor da escola.

Para isso, baseamo-nos no modelo de sequência didática detalhado por Dolz, Noverraz & Schneuwly (2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. : 84), que consiste na aplicação de uma primeira produção, após a apresentação da situação que “visa expor aos alunos um projeto de comunicação que será realizado ‘verdadeiramente’ na produção final”; aplicação de módulos elaborados a partir da análise dos problemas que aparecerem na primeira produção e, por último, uma produção final.

A descrição da atividade será feita sob dois ângulos: por um lado, o que se pretendia fazer e, do outro, o que efetivamente foi feito, acontecimento comum ao se aplicar uma sequência de caráter modular, já que nessa perspectiva os módulos devem ser preparados aula a aula, a partir das dificuldades dos alunos e após a primeira produção, que “permite ao professor avaliar as capacidades já adquiridas e ajustar as atividades e os exercícios previstos na sequência às possibilidades reais de uma turma” (Dolz, Noverraz & Schneuwly 2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. : 84).

Vale dizer que, durante a aplicação dos planos de aula, inicialmente desenvolvidos, houve interferências não previstas dos alunos, o que acarretou a ampliação das atividades, de uma forma muito positiva, estendendo o projeto para o trabalho com outros gêneros, além do debate.

Assim, como ponto de partida, seguindo a orientação dos autores supracitados, foi apresentada a situação de produção aos alunos: decidir sobre a presença dos cachorros na escola. Depois disso, foi preciso verificar se os sujeitos enfocados também traziam pontos de vista diferentes, o que foi confirmado. Então, foi explicado que eles fariam um debate para apresentar argumentos aos colegas cuja opinião era contrária. A produção seria gravada e, como o debate era deliberativo, teriam de fazer uma votação ao final para elaborarem um documento com a opinião/decisão da turma, direcionando-o ao diretor da escola.

Vejamos, então, os passos da sequência didática:

a) Produção inicial

Para introduzir o gênero, fizemos a leitura de textos sobre o tema com os alunos. Como havia textos que mostravam pontos de vista diversos, iniciou-se uma discussão sobre o assunto.

A partir disso, sem nenhuma explicação metalinguística sobre o debate, consultamos e dividimos a turma entre os que eram contra a presença dos cachorros na escola e os que eram a favor. Cada estudante tinha um minuto para expor seus argumentos baseados em temas lidos pela moderadora (professora), como por exemplo: “animais podem causar problemas dentro de espaços públicos”, “conviver com animais traz benefícios à saúde” e “direitos e deveres quando se vive em comunidade”, entre outros, com a sequência de réplica e tréplica, de modo que eles tinham direito de falar apenas uma vez, para que fosse possível a participação de todos.

b) Módulos

Após o exame da primeira versão, o segundo passo foi diagnosticar as faces do gênero que mereciam ser trabalhadas, para, então, elaborar ou escolher atividades e projetar as aulas seguintes, já que “cada gênero traz em si mesmo conteúdos específicos de ensino a eles relacionados” (Barbosa 2000BARBOSA, Jaqueline Peixoto. 2000. Do professor suposto pelos PCNs ao professor real de Língua Portuguesa: são os PCNs praticáveis? In: ROJO, Roxane Helena Rodrigues (ed.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC; Campinas: mercado das letras. p. 149-182.: 157). Os pontos que nos chamaram atenção foram:

  1. Quanto à adequação da linguagem: os debatedores não obedeceram ao grau de formalidade que o gênero exigia no contexto escolar, usando gírias e palavras de baixo calão;

  2. Referente ao tom de voz: eles defendiam seus argumentos com agressividade, levando, algumas vezes, a discussão para o lado pessoal;

  3. Na análise das marcas linguísticas: foi observado que não era comum o uso de conectivos variados para introduzir argumentos, para tomada de turno ou para reformular o que era dito e fazer perguntas;

  4. Concernente ao conteúdo: notou-se que quase não foi feita referência aos textos discutidos antes do debate e que faltava conhecimento sobre alguns temas para embasar os argumentos;

  5. Em relação ao aspecto social (escuta do outro, respeito a sua fala, interação): foi recorrente o desrespeito do tempo de fala, com interrupções que atrapalhavam a formulação do argumento pelo outro, sendo que a regra era do direito de um minuto, exclusivamente, para cada debatedor. Além disso, quando um participante lançava alguma pergunta retórica, apenas para reflexão do grupo contrário, era comum que alguém a respondesse, interferindo no processo persuasivo.

Em seguida, decidimos fazer quatro intervenções em três semanas (9 aulas),4 4 . A turma tinha 3 aulas semanais de Língua Portuguesa, as quais aconteciam em um mesmo dia. Portanto, planejamos trabalhar os módulos em 3 semanas (9 aulas de 45 minutos). tentando realizar um trabalho que integrasse atividades de compreensão, produção e análise linguística, a partir das necessidades diagnosticadas. As atividades consistiram em: 1) atividade oral com conectivos; 2) exibição de vídeos de exemplos de debates para os alunos analisarem o que consideravam características próprias do gênero, além de fazerem comparações com o debate que haviam realizado na aula anterior; 3) apresentação do vídeo da primeira versão do debate, mostrando os cinco aspectos identificados e supracitados do gênero, a fim de discutir em que medida o debate realizado pelos alunos divergiu ou convergiu, em cada item, com os exemplos de vídeos abordados na segunda atividade e, 4) por último, uma atividade com os tipos de argumentos que poderiam ser utilizados para persuadir o interlocutor. A aplicação dos módulos se estendeu para mais aulas do que o planejado, devido às dúvidas que foram surgindo no decorrer dos exercícios propostos, totalizando 5 semanas.

Compartilhando as ideias de Santos, Mendonça & Cavalcante (2007SANTOS, Carmi Ferraz; MENDONÇA, Márcia e CAVALCANTE, Mariane. 2007. Trabalhar com texto é trabalhar com gênero? In: Carmi Ferraz Santos; Márcia Mendonça e Marianne Cavalcante (eds.). Diversidade textual: os gêneros na sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica/CEEL/MEC. p. 27-41. : 40), tanto a observação do vídeo da primeira versão quanto o planejamento dos módulos foram feitos com o intuito de integrar texto e gênero, já que “essas duas dimensões precisam ser articuladas sempre, pois os alunos devem perceber que os aspectos socioculturais (‘externos’ ao texto) e os linguísticos (‘internos’ ao texto) são componentes indissociáveis na produção dos sentidos por meio da linguagem”. Assim, procuramos contemplá-los, levando em conta algumas características do gênero.

c) Produção final

A última etapa da sequência foi a produção final do debate, para a qual foi solicitado que os alunos pesquisassem sobre o tema, a fim de que conseguissem sustentar seus argumentos para convencerem o grupo com opinião oposta, além de utilizarem os conhecimentos mobilizados na atividade realizada na aula anterior sobre os tipos de argumentos, porque, segundo os autores que seguimos para montar a sequência, é essa fase que “dá ao aluno a possibilidade de pôr em prática as noções e os instrumentos elaborados separadamente” (Dolz, Noverraz & Schneuwly 2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. : 90), além de “desenvolver no aluno uma relação consciente e voluntária com seu comportamento de linguagem” (Dolz, Noverraz & Schneuwly 2004: p.93).

Apenas a produção final serviu como instrumento de avaliação da professora cujos critérios foram expostos aos alunos e versaram sobre os itens trabalhados nos módulos. Esses mesmos critérios serviram de análise para o presente artigo. Quanto aos aspectos sociais, notamos uma mudança bastante significativa, pois os alunos, na segunda versão, respeitaram o tempo de fala de cada debatedor; mudaram os tons de voz, gestos e expressões corporais e faciais; eliminaram quase totalmente o uso de gírias e, completamente, o emprego de palavras de baixo calão.

Em relação ao uso dos tipos de argumentos, a mudança também foi muito relevante: esteve notório o quanto os alunos pesquisaram, de forma que os levou a basearem seus argumentos em dados estatísticos, na fala de pessoas especialistas nas áreas mencionadas, em evidências e em outras fontes, enquanto na primeira produção eram comuns argumentos iniciados por “eu acho”, baseados em opiniões pessoais.

Somente no aspecto referente ao uso de conectivos, não foi percebido grande avanço, visto que os debatedores estavam mais envolvidos em persuadir seus interlocutores do que preocupados com aspectos formais da língua. Assim, não houve variação substancial no uso dos conectivos, porém pôde-se notar que eles evitaram iniciar os argumentos com gírias. Talvez, o trabalho com os conectivos fosse mais eficiente na escrita, uma vez que, na situação de interação em foco, o uso deles não era elemento fundamental para a persuasão do interlocutor.

Na aula seguinte à produção final, foram resgatados os elementos do debate, permitindo-nos criar um glossário técnico (cf. modelo da sequência didática) composto pelas definições dos alunos referentes ao gênero, baseado na própria experiência de estarem imersos, como agentes movidos pelo uso da linguagem, nessa prática social, que foi fazer parte de uma tomada de decisão no ambiente escolar.

d) Produção de gêneros a partir de situações imprevistas

Conforme mencionado, pretendia-se fazer, a princípio, uma votação para se chegar a uma posição final da turma, para elaboração do documento a ser encaminhado ao diretor da escola, entretanto, de forma imprevista, no decorrer da sequência didática, os alunos perceberam que não queriam a retirada dos cachorros da escola, caso fosse para abandoná-los. Ao mesmo tempo, pelos dados trazidos pelos próprios debatedores, perceberam a inviabilidade da presença permanente dos animais.

Dessa forma, entraram no consenso de que fariam uma campanha de adoção. Os alunos elaboraram um documento escrito, informando a decisão da sala ao diretor, e pediram autorização para divulgarem a campanha em redes sociais, colarem cartazes na escola e no comércio da cidade.

Assim, a partir do gênero debate, surgiram outros gêneros para produção: a carta ao diretor, os cartazes e vários outros que os alunos tiveram que elaborar para uma página na internet sobre a campanha de adoção. Para compô-la, fizeram um pequeno relato de experiência e várias postagens em uma rede social com o interesse de sensibilizar o público.

4. (Meta)reflexão sobre o gênero debate: descrevendo seu caráter multimodal

quando falamos ou escrevemos um texto, estamos usando no mínimo dois modos de representação: palavras e gestos, palavras e entonações, palavras e imagens, palavras e tipográficas, palavras e sorrisos, palavras e animações etc. (Dionísio 2011DIONÍSIO, Ângela. 2011. Gêneros multimodais e multiletramento. In: Brito, Karim Siebeneicher; GAYDECZKA, Beatriz e KARWOSKI, Acir Mário (eds.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. 4 ed. São Paulo: Parábola editorial. p. 137-152.: 139).

A entonação expressiva é um traço constitutivo do enunciado (Bakhtin 2003_______. 2003. Os gêneros do discurso. In: M. Bakhtin, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. p. 277-326.: 290).

Além das atividades já mencionadas, a sequência didática serviu ainda como base para a descrição de um aspecto desse gênero da oralidade em particular, a saber, seu caráter multimodal. Sabemos, entretanto, que havia numerosas possibilidades de descrição a serem feitas, porém, como ao longo do trabalho esse aspecto saltou aos nossos olhos, elegemos descrevê-lo.

Em nossas observações, confirmou-se que os gêneros orais e, especificamente, o debate formal, são constituídos por outros “modos” (Dionísio 2011DIONÍSIO, Ângela. 2011. Gêneros multimodais e multiletramento. In: Brito, Karim Siebeneicher; GAYDECZKA, Beatriz e KARWOSKI, Acir Mário (eds.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. 4 ed. São Paulo: Parábola editorial. p. 137-152.), além das palavras (ditas ou lidas pelos alunos), isto é, do aspecto verbal. Estudos acerca da multimodalidade no campo linguístico e aplicado têm emprestado de outros campos do conhecimento, alguns elementos epistemológicos. Kress (2010KRESS, Gunter. 2010. Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication. London: Routledge.), por exemplo, sob o enfoque da Semiótica vem discutindo as bases do conceito de multimodalidade em usos da linguagem. Street (s/d grifos do autorSTREET, Brian. Glossário Ceale, s/d. Disponível em: <Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/multimodalidade >. Acesso em 17 fev. 2014.
http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glo...
), por sua vez, enfatiza “a nova abordagem da multimodalidade”, associada à presença das “novas mídias” já incorporadas pelos estudantes, “internalizando gestos, atitudes e comportamentos que potencializam uma interação cada vez mais multimodal”.

Apesar de comumente esse conceito estar relacionado aos avanços da tecnologia digital, os quais atribuem à linguagem novas perspectivas multimodais, identificamos os variados modos de significação da linguagem nos gêneros que não as envolvem necessariamente. Nos gêneros orais não digitais, por exemplo, a multimodalidade pode ser observada em gestos, expressões face-a-face e na variação do volume e do tom da voz. É, pois, na tentativa de ampliação da compreensão desses “modos” para interpretarmos os gêneros, conforme recomenda Street (s/d), que associamos o conceito de multimodalidade a alguns elementos envolvidos na produção do debate.

Nele, se os sujeitos envolvidos na interação não levarem em conta seu aspecto multimodal, isto é, não enxergarem os significados integrados na linguagem não-verbal (linguagem corporal, visual e sonora), terão, no mínimo, uma compreensão ingênua do ato de interação, já que tais aspectos são tão significativos quanto a linguagem verbal, sendo essenciais para a construção da persuasão do outro, objetivo central do gênero. Logo, reconhecer o caráter multimodal do debate oral pode mudar a percepção e o domínio dele, justificando as descrições que serão feitas.

Todavia, antes disso, acreditamos ser essencial revelar as razões de fazer um trabalho desse tipo descritivo que resumimos a seguir, com base nos estudos de Rojo, (2000ROJO, Roxane Helena Rodrigues. 2000. Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula: progressão curricular e projetos. In: ______. (Org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC. Campinas: Mercado de Letras. 27-38. ), Barbosa (2001_______. 2001. Trabalhando com os Gêneros do Discurso: uma perspectiva enunciativa para o ensino de Língua Portuguesa. Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP/LAEL.) e Dolz & Schneuwly (2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. ):

  1. Dentre as “indicações de necessidades complementares para se viabilizar a formação inicial e em serviço e práticas renovadas em sala de aula: [estão] descrições variadas de gêneros textuais (...) (Rojo 2000ROJO, Roxane Helena Rodrigues. 2000. Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula: progressão curricular e projetos. In: ______. (Org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC. Campinas: Mercado de Letras. 27-38. : 37 grifos nossos)

  2. “As descrições de gêneros devem ser tomadas como parâmetros para as ações discursivas (...). Elas devem ajudar as atividades didáticas de produção e compreensão de textos” (Barbosa 2001_______. 2001. Trabalhando com os Gêneros do Discurso: uma perspectiva enunciativa para o ensino de Língua Portuguesa. Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP/LAEL.: 124 grifos nossos);

  3. “Se, para as atividades gramaticais, o professor dispõe de uma descrição precisa dos conteúdos que os alunos devem adquirir a cada série, para as atividades de expressão escrita e oral, nas quais os saberes a se construir são infinitamente mais complexos, ele tem de se contentar com indicações muito sumárias” (cf.: Dolz & Schneuwly 2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. : 42).

4.1. Multimodalidade: descrições

Na primeira versão do debate, a discussão foi acalorada, evidenciando a importância de elementos além do verbal para expressar as opiniões e as argumentações dos estudantes: eles faziam gestos excessivos com as mãos, alteravam o tom e o volume de suas vozes, encaminhando a situação para uma disputa entusiástica pelo argumento mais convincente. Para a análise desse conjunto de “modos”, articulamos a multimodalidade do gênero debate, tomando-a como geradora da entonação e da valoração a que remete Bakhtin/Volochínov (2006BAKHTIN/VOLOCHÍNOV. 2006. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. Tradução de Michel Lahud & Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora HUCITEC.), conforme ilustrarão as análises. O autor estudou as estratégias usadas pelos escritores da prosa literária para representar os recursos da oralidade na escrita, responsáveis pela entonação. Tanto é que aludiu à criação do discurso indireto livre para marcar as diferentes entoações do discurso oral.5 5 . Esclarecemos aqui que não consideramos entonação, na perspectiva de Bakhtin, como sinônimo de entonação vocal, mas reconhecemos sua relação com a oralidade. Ainda no texto “Os gêneros do discurso” (2003: 290), o teórico explica a entonação como “fator estilístico e na leitura muda de um discurso escrito.” Maciel (2014), por exemplo, explorou o discurso bivocal aludido pelo filósofo, divisando os diversos tipos de discursos (bivocais) existentes e as tentativas da escrita de reproduzirem as entonações vocais da oralidade. Para aprofundamento no assunto, recomendamos a leitura completa da tese do pesquisador. Em Questões de literatura e estética (1993) é esclarecido que:

por aspecto entonacional da palavra compreendemos a sua capacidade de exprimir toda a multiplicidade das relações axiológicas do indivíduo falante como conteúdo do enunciado (no plano psicológico: a multiplicidade das ações emocionais e volitivas do falante). (Bakhtin 1993BAKHTIN, Mikhail. 1993. Questões de literatura e estética. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Unesp.: 64)

A entonação, conforme o teórico, relaciona-se à valoração. Também em Estética da criação verbal, no texto “Os gêneros do discurso” (2003), encontramos essa relação assumida. Tendo isso em vista, focalizamos especialmente o tom de voz com que os alunos se colocaram no debate oral, associando-o à linguagem verbal e a seus gestos e expressões corporais, ou seja, fazemos uma descrição de mais de dois modos de representação, pois eles interferem na entonação expressiva da enunciação, portanto são tão importantes de serem estudados na escola quanto os aspectos linguísticos. Todavia, a entonação não pode ser considerada em separado à valoração que os modos produzem em conjunto (cf.: Rojo & Moura 2012_______; MOURA, Eduardo. 2012. Multiletramentos na escola. (eds.) São Paulo: Parábola Editorial, 2012.). Desse modo, ambas, nas acepções bakhtinianas, podem revelar sentidos produzidos pela multimodalidade dos gêneros, incluindo-se, portanto, o debate oral.

Com efeito, o tom de voz oscilante e/ou alto, aliado à postura corporal de muito se mexerem, formas de uso da linguagem (palavrões e gírias), em princípio, denunciavam o envolvimento dos alunos e a tentativa de convencerem o “outro” a todo custo, o que englobou, evidentemente, suas valorações na situação.

Para compor os dados de análise, a escolha dos estudantes, em especial, deu-se pelas mudanças significativas na entonação e na valoração expressiva, entre as duas versões, levando em consideração o aspecto multimodal do gênero, visto que houve alterações nos diferentes modos de enunciar com que se colocaram na interação. Essas ocorreram com base na ideia de que “o julgamento de valor inerente a toda palavra viva é revelado pela acentuação e pela entoação expressiva da enunciação. O sentido do discurso não existe fora de sua acentuação e entonações vivas” (Bakhtin/Volochínov 2006BAKHTIN/VOLOCHÍNOV. 2006. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. Tradução de Michel Lahud & Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora HUCITEC.: 198).

A fim de apresentação analítica, a seguir, serão cotejadas as enunciações de quatro alunos, dois de cada parte (grupo favorável - doravante GF - e grupo contra - doravante GC - cachorros na escola) que participaram de ambas as versões do debate. Suas falas estão transcritas6 6 . As sílabas ou palavras que estiverem transcritas em letras maiúsculas evidenciam que foram pronunciadas de maneira mais forte, em um volume mais alto. e os exemplos relativos aos gestos/expressões corporais e tons de voz serão descritos a partir de nossas observações dos vídeos gravados, dada a impossibilidade de reproduzi-los no artigo. Vejamos:

Exemplo 1 -
primeira versão - Estudante 1 (GF)
Exemplo 2 -
primeira versão - Estudante 2 (GC)
Exemplo 3 -
primeira versão - Estudante 3 (GF)
Exemplo 4 -
primeira versão - Estudante 4 (GC)

Nessa primeira versão do debate cujos trechos recortamos, percebemos, nas enunciações dos alunos, muitos gestos faciais e corporais que demonstravam inquietação na situação e insegurança na argumentação. Além disso, o volume de suas vozes era alto, tendendo em certos momentos a um tom hostil, à medida que realizavam pronúncias ou marcavam certas palavras, quando queriam convencer os outros ou indignavam-se com colocações feitas pelos colegas. Com relação ao modo verbal, vê-se a repetição de estruturas verbais que conotam ordem, perguntas, termos coloquiais, desconexão entre ideias etc., de forma que fica explícita a correlação entre os três modos analisados, que compõem a multimodalidade do gênero, já que os gestos excessivos podem ser justificados pela incerteza com relação ao conteúdo a ser dito e o tom hostil fortalece as perguntas e as ordens repetidas pelos alunos.

No Exemplo 1, a estudante aumenta seu tom de voz quando pretende destacar os deveres e as possibilidades de ação dos alunos com os cachorros; no Exemplo 2, a outra estudante altera o tom de sua voz ao cobrar atitudes de seus colegas, questioná-los sobre suas faltas de iniciativas e ao discorrer sobre o mau estado da escola com a presença dos animais. Já, no Exemplo 3, o estudante eleva sua voz nos apelos que faz aos amigos, caso não tomem parte nos cuidados com os cachorros. Finalmente, no Exemplo 4, a estudante marca afirmações e, principalmente, negações que não dependeriam de pessoas, mas de forças maiores com um tom de voz forte. Essas performances confirmam a asserção de que “uma palavra realmente pronunciada não pode evitar de ser entoada, a entonação é inerente ao fato mesmo de ser pronunciada” (Bakhtin 2010_______. 2010. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Paulo: Pedro & João Editores.: 85). A perspectiva bakhtiniana, portanto, reconhece a relação da entonação com a própria oralidade, o que pode ser ratificado no trecho “Um dos meios de expressão da relação emocionalmente valorativa do falante com o objeto da sua fala é a entonação expressiva que soa nititidamente na execução oral” (Bakhtin 2003: 290 grifos nossos).

Essas execuções orais, no entanto, não estão desprendidas dos outros modos presentes no gênero (multimodal) oral. Quando a primeira estudante eleva o tom de voz, simultaneamente opta pelo uso de verbos para ordenar e faz ainda gestos com suas mãos. No segundo exemplo, o aumento do tom vocal coincide com a construção de frases exclamativas e movimentos de pernas. Já no terceiro exemplo, a elevação da voz concorre com interrogações, olhares e sinais dos membros superiores. No último exemplo, por sua vez, o tom de voz se coaduna a olhares entre o grupo oposto e a professora, e encenações para representar objetos.

De modo geral, essas mudanças de tons associados aos outros modos, constituem as entonações nos enunciados dos alunos, acompanhadas das valorações, apontando para “uma avaliação como um ato realizado ou ação” (Bakhtin 2010_______. 2010. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Paulo: Pedro & João Editores.: 91) existente a partir da interação naquela situação, que envolvia convencimentos e posicionamentos diante dos colegas, preocupações com a avaliação da professora e o futuro da escola, entre outros fatores.

Em suma, os alunos, por meio da oralidade e de todos os modos (multimodalidade) que a compõem construíram entonações e valorações em discursos sobre a situação imediata dos cachorros na escola, sobre o contexto extraverbal, já que “um tom emotivo-volitivo, uma valoração real, não se refere ao conteúdo enquanto tal, tomado isoladamente, mas sua correlação [...] no evento singular do existir que nos engloba” (Bakhtin 2010_______. 2010. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Paulo: Pedro & João Editores.: 90).

Ademais, se nessa primeira versão, os modos se relacionavam à entonação, demonstrando o valor/juízo que tinham sobre o tema, principalmente pela agressividade, na segunda versão, não foi diferente, embora usos e associações dos modos tenham sido. Observemos as falas dos mesmos alunos na segunda versão do debate:

Exemplo 5 -
segunda versão - Estudante 1 (GF)
Exemplo 6 -
segunda versão - Estudante 2 (GC)
Exemplo 7 -
segunda versão - Estudante 3(GF)
Exemplo 8 -
segunda versão - Estudante 4 (GC)

Na segunda versão, depois de orientados pela professora diante da entonação (hostil) formada por frases com tons vocais extremamente altos, desrespeito à fala do outro com interrupções, comentários e gestos intimidadores, notamos que os alunos foram mais cuidadosos com a acentuação que colocavam nas palavras, evitando termos depreciativos e pronúncias destemperadas, como na primeira versão; buscaram não oscilar o volume da voz e gesticularam menos, falando mais baixo, pausadamente e olhando mais para os colegas e a professora, como pode ser verificado nas indicações dos quatro exemplos. Entretanto, como já afirmado que o tom está estritamente relacionado ao conteúdo e ao valor que se faz do objeto e da situação, verificamos que, nessa última versão, as hesitações, pausas e cortes de palavras foram maiores e, por meio delas, os alunos indicavam suas apreciações sobre o que era falado e sobre a situação escolar em si.

No Exemplo 5, a estudante repete e corrige várias palavras, reformula frases, e ao mesmo tempo sempre sorri, parecendo apoiar-se na blusa para diminuir a gesticulação; no Exemplo 6, além das repetições, a estudante alonga-se na pronúncia das vogais finais, enquanto pensa no que irá dizer, de pé; no Exemplo 7, o estudante repete palavras, hesita em algumas frases e pronuncia alguns termos que indicam elaboração de pensamento (“hum”), diminuindo o volume de sua voz e olhando para o chão. No último Exemplo, embora haja menos hesitações, a estudante corrige palavras e acaba aumentando o tom da voz no final de sua fala, que concorre com gestos no ar com as mãos para exemplificar.

Como apontam Dolz & Schneuwly (2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. ), diferentemente da escrita, “o discurso oral transcrito traz todos os traços de seu processo de produção (hesitações, retomadas, falsas iniciações, como traços do processo de planejamento, por exemplo)” (Dolz & Schneuwly 2004: 233). Nesse sentido, além das hesitações que são comuns ao discurso oral, como advertem os autores, foi percebido que os alunos realizaram mais hesitações do que na primeira versão, possivelmente, devido à preocupação em não demonstrarem pelo tom vocal, seus juízos de valor, porém, essas próprias oscilações em cotejo com os outros modos do gênero revelaram atitudes avaliativas tanto do evento em si (o debate), como da situação (a presença dos cachorros na escola), mesmo que involuntariamente, articulando entonação e valoração.

Enfim, nas duas versões, foi percebido como a multimodalidade indicou avaliações que os enunciadores tinham do discurso e da situação em que se encontravam, mesmo quando quiseram controlar os usos desses modos, na segunda versão, confirmando a tese bakhtiniana de que “com o tom emotivo-volitivo indicamos exatamente o momento do meu ser ativo na experiência vivida” (Bakhtin 2010_______. 2010. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Paulo: Pedro & João Editores.: 91).

Considerações finais

O trabalho com o gênero debate dentro da sequência didática, como apresentado, aponta, certamente, para a tensão em se abordar um gênero - abrangente por natureza - em um ensino situado que se esbarra em diversas dificuldades, como divisão do tempo escolar e currículos de ensino. Sabemos que qualquer atividade com gênero na escola requer adaptações de sua esfera de origem. Todavia, como afirmam Dolz & Schneuwly (2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. : 82) “o que muda são os tipos de graus de variação”. Logo, tentamos introduzir o debate de forma a dar conta das práticas de uma comunidade, partindo de situação vivenciada por seus membros.

Entretanto, nem sempre professores terão oportunidades como a apresentada, mas isso não os impede de estarem atentos aos acontecimentos da escola e da sociedade, uma vez que, mesmo em um trabalho planejado, pode-se partir dos contextos dos alunos e dos acontecimentos do mundo.

Por outro lado, o trabalho desenvolvido confirmou haver dimensões mais e menos ensináveis dos gêneros (Dolz & Schneuwly 2004DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michèle, SCHNEUWLY, Bernard. 2004. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras. p. 81-108. ), evidenciadas nos módulos. De modo geral, ao refletirmos sobre os resultados de nosso trabalho, duas considerações finais podem ser feitas, as quais, em certa medida, respondem às urgências apontadas na introdução:

  1. Gêneros orais e, em especial, debates, podem ser reconhecidos por formas (perguntas e respostas, argumentação, réplica, tréplica, presença de moderação etc.), mas variam de acordo com as situações de interação e interlocutores e englobam outros gêneros, confirmando a relatividade assinalada por Bakhtin (2003_______. 2003. Os gêneros do discurso. In: M. Bakhtin, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. p. 277-326.), que precisa ser reconhecida nas práticas de ensino;

  2. A multimodalidade é aspecto relevante para a descrição do debate oral, quando considerado num trabalho didático, por evidenciar elementos constituintes daquele, que, articulados, agem na produção da entonação e da valoração constitutivas de qualquer enunciado.

Finalmente, esperamos ter endossado a discussão sobre gêneros (orais) discursivos no contexto de ensino, além de contribuir com uma reflexão acerca do caráter multimodal do debate formal, fazendo de nossa própria descrição um aparato para o trabalho de professores do Ensino Fundamental e Médio e para outros pesquisadores. Os princípios descritos nas análises estão sintetizados no quadro que finaliza nosso texto, a fim de fomentar futuros trabalhos com a multimodalidade:

Quadro 1 -
Análise de enunciados pelo eixo da multimodalidade

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  • _______; MOURA, Eduardo. 2012. Multiletramentos na escola. (eds.) São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
  • STREET, Brian. Glossário Ceale, s/d. Disponível em: <Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/multimodalidade >. Acesso em 17 fev. 2014.
    » http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/multimodalidade
  • 1
    . Para um aprofundamento sobre os gêneros e práticas de ensino constantes nos PCN, recomendamos a leitura de Rojo (2000).
  • 2
    . Este trabalho é fruto do desenvolvimento e aplicação de uma sequência didática apresentada como trabalho final da disciplina LP 210A – Tópicos em Língua Materna, ministrada pela professora Márcia Rodrigues de Souza Mendonça, no primeiro semestre de 2013, no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UNICAMP. Agradecemos à professora por contribuições (In comunicação ao longo das aulas) e pela leitura da primeira versão do artigo. Algumas reflexões iniciais foram apresentadas em forma da comunicação oral “Gêneros orais e ensino: reflexões sobre um trabalho didático com o debate”, no III Vozes da Linguística Aplicada, promovido pela Unigranrio, em 2014. Os resultados preliminares, por sua vez, foram ainda debatidos em forma da comunicação oral “Gênero oral e multimodalidade: a sequência didática como mediadora no ensino de língua materna”, no VIII SIGET – Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais, em 2015, realizado na USP. O artigo ora apresentado, entretanto, traz aprofundamento nas análises e reflexões geradas sobre os desdobramentos do trabalho didático prático em forma de texto teórico inédito. Finalmente, agradecemos ao Prof. Dr. Lucas Vinício de Carvalho Maciel (UFSCAR) pelas contribuições no que diz respeito à associação entre o conceito bakhtiniano de entonação à multimodalidade e pela leitura da versão final do texto.
  • 3
    . Uma das autoras deste artigo era a professora regular da turma.
  • 4
    . A turma tinha 3 aulas semanais de Língua Portuguesa, as quais aconteciam em um mesmo dia. Portanto, planejamos trabalhar os módulos em 3 semanas (9 aulas de 45 minutos).
  • 5
    . Esclarecemos aqui que não consideramos entonação, na perspectiva de Bakhtin, como sinônimo de entonação vocal, mas reconhecemos sua relação com a oralidade. Ainda no texto “Os gêneros do discurso” (2003: 290), o teórico explica a entonação como “fator estilístico e na leitura muda de um discurso escrito.” Maciel (2014MACIEL, Lucas Vinício de Carvalho. 2014. Relações dialógicas em narrativas. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada, Instituto de Estudos da Linguagem) - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas.), por exemplo, explorou o discurso bivocal aludido pelo filósofo, divisando os diversos tipos de discursos (bivocais) existentes e as tentativas da escrita de reproduzirem as entonações vocais da oralidade. Para aprofundamento no assunto, recomendamos a leitura completa da tese do pesquisador.
  • 6
    . As sílabas ou palavras que estiverem transcritas em letras maiúsculas evidenciam que foram pronunciadas de maneira mais forte, em um volume mais alto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2014
  • Aceito
    19 Set 2017
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