Acessibilidade / Reportar erro

Forensic linguistics: an introduction to language in the Justice System

NOTAS SOBRE LIVROS BOOKNOTES

Por/by: Cristiane Fuzer

Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria

Gibbons, John. 2005. Forensic linguistics: an Introduction to Language in the Justice System. Malden, USA; Oxford, UK; Victoria, Australia: Blackwell Publishing. 337 p.

Os resultados de pesquisas em Lingüística Aplicada podem ser empregados na solução de muitos problemas do mundo real, como em questões de ensino e aprendizagem (especialmente de língua estrangeira) e, mais recentemente, em questões relacionadas ao Direito. Em décadas recentes, tem ocorrido, o crescimento da Lingüística Forense, que envolve a aplicação de pesquisas lingüísticas (análise do discurso, dialetologia, variação lingüística, estilística, fonética, morfologia, sintaxe) e temas sociais relacionados com a lei.

No livro Forensic linguistic, John Gibbons apresenta, em linguagem acessível a diversas audiências (sociólogos, antropólogos, lingüistas, estudantes de língua e direito da graduação e pós-graduação), uma introdução à interface entre linguagem e lei. Como professor no Departamento de Língua Inglesa e Literatura na Hong Kong Baptist University, presidente da International Association of Forensic Linguistics e membro do conselho do International Journal of Applied Linguistics, Forensic Linguistics e Discurso y Sociedade, Gibbons expõe resultados de vários estudos, tanto de sua autoria quanto de diversos pesquisadores, sobre o uso e o funcionamento da linguagem no contexto jurídico. Além disso, a participação, em diversas audiências em júri, como testemunha especializado em linguagem, deu-lhe experiência na área e a possibilidade de realizar análise lingüística de diversos casos. Embora busque evitar a dependência de uma teoria particular, deixa clara a influência da teoria de Halliday (1985), seu colega, ao propor um modelo de comunicação legal que se baseia em quatro aspectos principais: nível gráfico e fônico, nível lexical, nível oracional e nível discursivo.

Após uma pertinente introdução dos principais sistemas legais utilizados na sociedade - sistema de lei tradicional, sistema islâmico (Shari'ah), lei romana e lei comum, Gibbons (2005) realiza, de modo didático, no decorrer dos nove capítulos que compõem a obra, o que propõe como objetivo central: "abrir as portas para a relação fascinante e importante entre a linguagem e a lei em seus diversos aspectos" (p. 13). A obra está organizada em duas partes. Na primeira parte, composta dos capítulos 1 ao 4, o autor examina a natureza da linguagem legal, demonstrando que a lei é predominantemente uma instituição lingüística, e explora a linguagem de processos legais. Na segunda parte, composta dos capítulos 5 ao 9, discute a dificuldade de compreensão da linguagem legal, enfatizando os recursos lingüísticos que colocam em desvantagem grupos minoritários da sociedade. Também nessa parte são considerados crimes que envolvem o uso da linguagem (como injúria, difamação) e as evidências lingüísticas em textos que servem de provas numa lide.

No capítulo 1, Gibbons aborda a relação entre a linguagem oral e a escrita no contexto jurídico. A partir da categorização proposta por Tiersma (1999), o autor concentra seus estudos na linguagem dos documentos operativos, que inclui atos, ordens, estatutos, casos de júri, investigações policiais, gerenciamento de prisioneiros, petições, testamentos e contratos. É especialmente interessante sua abordagem sobre o movimento do sistema oral para o sistema escrito nas transcrições de depoimentos. Além de utilizar as noções de metáfora gramatical e densidade lexical (Halliday, 1985), identifica quatro fatores desse movimento: padronização, descontextualização, planejamento/edição e tom impessoal.

No segundo capítulo, Gibbons mostra como a tentativa de alcançar-se uma expressão precisa do significado tem levado a uma linguagem legal técnica e especializada, que se justifica por evitar a necessidade de explanações longas e incômodas cada vez que é feita referência a noções ou processos técnicos. Com razão, argumenta que a lei não é uma questão de jargão (como geralmente se pensa), mas um sistema legal que vê o mundo social e físico de um modo específico. Nesse sentido, descreve o léxico dos advogados, da polícia e de prisioneiros, considerando aspectos da gramática, atos de fala e discurso (este entendido como a língua em uso), e mostra como os vários elementos do seu modelo de comunicação legal (contexto, significado, sistemas verbal e não-verbal e esquemas do mundo sócio-cultural e do mundo material) estão envolvidos nas questões de interpretação da lei.

A interação legal é o tema do terceiro capítulo. Entendendo o registro legal como um uso "hierárquico, autoritário, monológico e estranho" da linguagem (p. 76), Gibbons examina como as relações entre as pessoas no contexto legal são construídas através da linguagem e como o poder é manifestado pela linguagem, a qual é considerada o recurso interpessoal mais poderoso. Para isso, analisa fragmentos de documentos legais e discursos de advogados, policiais, testemunhas e acusados, considerando os aspectos do nível grafo-fônico, as formas de endereçamento, vocabulário erudito, indicadores lingüísticos de poder, tomadas de turno na fala, estratégias de questionamento e estratégias pragmáticas. Com isso, Gibbons mostra como a linguagem pode ser usada no sistema judicial para impor uma versão particular de um evento e influenciar a percepção das testemunhas.

No quarto capítulo, são examinadas as estruturas de gênero que embasam a representação da realidade primária (a delegacia de polícia, o tribunal do júri, o escritório do advogado) e da realidade secundária (crimes e disputas que são objetos do processo legal). Após discutir a concepção de gênero na perspectiva de modelos que podem ser seguidos ou intencionalmente modificados, Gibbons descreve as estruturas descritiva, expositiva e, especialmente, narrativa em relatos de caso, denúncias, entrevistas policiais, mostrando a inter-relação entre essas estruturas nos textos.

A dificuldade de compreensão da linguagem da lei por parte das pessoas leigas dos assuntos jurídicos é a preocupação que Gibbons demonstra no capítulo 5, a partir do qual se inicia a segunda parte da obra. O autor retoma as particularidades da linguagem legal (planejamento e distância do contexto no nível da escrita, elementos técnicos e especializados da linguagem legal e uso de poder interpessoal) discutidos nos capítulos anteriores e argumenta que os textos legais podem ser mais fáceis de se compreender quando princípios lingüísticos são cuidadosamente aplicados. Gibbons acredita que os textos e os processos legais podem ser mais acessíveis a advogados e ao público em geral sem sacrificar a exatidão legal necessária. Alerta que, sem a compreensão pública, a lei está um constante risco de se tornar um mecanismo de opressão e injustiça ao invés de ordem e justiça.

No capítulo 6, o autor mostra como o uso do poder da linguagem e do registro especializado em processos legais pode se tornar problemático quando uma das partes vem de um grupo que tem menos poder na sociedade e está menos apto a competir com o processo legal. Para ilustrar essa situação, são apresentados interessantes estudos da comunicação entre representantes do sistema legal e pessoas que não têm domínio da linguagem e da operação desse sistema, especialmente aquelas pertencentes a certos grupos, como crianças, minorias étnicas, estrangeiros, surdos, pessoas com baixo status sócio-econômico, mulheres vítimas de assédio sexual. É discutido como a linguagem usada no sistema judicial pode trazer desvantagens para essas pessoas.

No sétimo capítulo, Gibbons se dedica à interpretação e à tradução legal, enfocando problemas que envolvem os grupos minoritários mencionados no capítulo anterior, a saber: a) problema na comunicação de idéias, de conteúdo conceitual que pode ser comunicado de modo impreciso ou parcial; b) problema de coerção (pessoas vulneráveis podem ser pressionadas ou manipuladas a dizer outra coisa em vez de dizer o que acreditam ser verdade); c) problema de trauma (em pessoas vulneráveis, o processo legal provoca sofrimento desnecessário e injustificável). As pertinentes soluções propostas por Gibbons para esses problemas se fundamentam em: informação (treinamento de profissionais da lei e formação de serviços de aconselhamento às minorias que se envolvem em um processo legal), mediação (pessoas que compreendem a linguagem e operação da lei e a linguagem e situação dos leigos), modificação dos procedimentos legais (de modo a torná-los menos alheios, incompreensíveis e ameaçadores às pessoas de diferentes culturas).

A legislação sobre a linguagem é o tema do oitavo capítulo, no qual se apresentam, com propriedade, noções sobre o direito do uso de certas linguagens em público. Também é esclarecido o significado do direito ao silêncio, que pode ser intencional, causado por incapacidade de falar por razões psicológicas ou emocionais ou falta de conhecimento, indisposição para falar ou, ainda, imposto por outra pessoa durante uma audiência. Contudo, os crimes de linguagem (comportamentos lingüísticos que se tornam objetos de ação legal) ocupam maior espaço no capítulo. Para definir se um determinado comportamento lingüístico é ou não um crime (no sentido de que é ofensivo ou prejudicial a alguém), Gibbons sugere uma metodologia que inclui: análise do ato lingüístico em si, exame do senso comum sobre o ato lingüístico (além da consulta às regulamentações legais, que geralmente fornecem definições vagas) e exame de outras instâncias do comportamento lingüístico (a fim de determinar suas características). Cabe ao lingüista analisar o detalhe semântico do ato e as condições necessárias para que ele se realize num dado contexto, conforme a perspectiva teórica de Searle (1969) sobre atos de fala performativos. Gibbons apresenta uma série de exemplos para explicar as categorias de crimes de linguagem, tais como: perjúrio, suborno, ameaça (chantagem), conspiração, difamação e calúnia.

Gibbons deixa para o último capítulo a explicitação do que parece ser sua tese central: a importância da evidência lingüística (também chamada "lingüística forense") nos processos legais visando à busca da justiça. Apesar de raramente a evidência lingüística ser solicitada ou usada (já que dificilmente profissionais do Direito admitem que lingüistas tenham relevante especialização nessa área, a qual aqueles preferem ver mantida sob o seu domínio), Gibbons defende a qualificação de lingüistas que possam atuar como peritos em casos judiciais. Basicamente, há duas áreas principais em que o lingüista, por meio de análise que considere os níveis da fonologia, do léxico, da gramática, do discurso, do registro, do gênero e da variação sócio-lingüística, pode oferecer evidências: questões de comunicação e questões de autoria. Assim, Gibbons propõe uma metodologia de lingüística forense, que envolve, conforme o caso, o exame de alguns ou todos destes quatro aspectos: a) cuidadosa análise das características lingüísticas da comunicação considerada problemática; b) análise dos significados das formas lingüísticas; c) exame da proficiência de linguagem dos participantes; d) análise do contexto. Com base em trabalhos prévios que ele próprio realizou e em experiências e estudos de outros profissionais, Gibbons apresenta vários casos reais para exemplificar o quanto a lingüística forense é útil na explicitação da autoria de um crime e na revelação de dados importantes na constituição de provas, visando à execução de processos judiciais mais transparentes e justos.

Portanto, a leitura do livro Forensic linguistics pode auxiliar não só estudantes e profissionais das áreas de Lingüística e Direito interessados nesse assunto, mas também cidadãos que têm ou podem vir a ter algum tipo de envolvimento com o sistema judicial da lei comum vigente nas sociedades democráticas atuais. As informações extraídas das mais diversas fontes, desde legislações, documentos processuais, até estudos de casos concretos e teorias de linguagem, dão consistência à argumentação construída por Gibbons, que aponta para a necessidade de a sociedade reconhecer as contribuições da lingüística forense para a revelação de desentendimentos e para a convicção do culpado e a liberdade do inocente.

E-mails: crisfuzer@yahoo.com.br; crisfuzer@via-rs.net

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Fev 2008
  • Data do Fascículo
    2007
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br