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Um especificador aí

A certain specifier

Resumos

Neste estudo, tratamos do aí modificador de sintagmas nominais indefinidos, que parece acrescentar um traço de especificidade ao SN ao qual modifica, semelhantemente ao que faz o certo. Com base em análises realizadas por Hintikka (1986) e Enç (1991) sobre o certain do inglês, comparamos sentenças com aí e certo especificadores, pretendendo demonstrar que eles manifestam equivalência de traços semânticos, mas tendem a conduzir a implicaturas conversacionais diferenciadas.

Especificadores; Traços semânticos; Implicaturas comversacionais


In this article we deal with a type of aí which seems to add a specificity feature to indefinite noun phrases, similar to the linguistic item certo. Based on analyses of the English certain carried out by Hintikka (1986) and Enç (1991), we compare sentences with aí and certo. We aim to demonstrate that such specificity items show equivalence of semantic features, but tend to lead to different conversational implicatures.

Specifiers; Semantic features; Conversational implicatures


UM ESPECIFICADOR AÍ* * Agradeço à Prof. Roberta Pires de Oliveira (UFSC) pela dedicada e incansável orientação prestada no decorrer da elaboração deste artigo, que fez parte do meu processo de qualificação no Curso de Doutorado em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Agradeço também aos professores Edair M. Gorski (UFSC) e Heronides M. de M. Moura (UFSC) pela leitura deste texto e valiosas sugestões.

(A Certain Specifier)

Maria Alice TAVARES

(PG-Universidade Federal de Santa Catarina)

ABSTRACT:In this article we deal with a type of which seems to add a specificity feature to indefinite noun phrases, similar to the linguistic item certo. Based on analyses of the English certain carried out by Hintikka (1986) and Enç (1991), we compare sentences with and certo. We aim to demonstrate that such specificity items show equivalence of semantic features, but tend to lead to different conversational implicatures.

KEY-WORDS: Specifiers; Semantic features; Conversational implicatures

RESUMO: Neste estudo, tratamos domodificador de sintagmas nominais indefinidos, que parece acrescentar um traço de especificidade ao SN ao qual modifica, semelhantemente ao que faz o certo. Com base em análises realizadas por Hintikka (1986) e Enç (1991) sobre o certain do inglês, comparamos sentenças come certo especificadores, pretendendo demonstrar que eles manifestam equivalência de traços semânticos, mas tendem a conduzir a implicaturas conversacionais diferenciadas.

PALAVRAS-CHAVE: Especificadores; Traços semânticos; Implicaturas comversacionais

0. Introdução

A sentença (1) a seguir é ambígua: podemos ter um dêitico locativo que aponta para um ponto no espaço próximo ao ouvinte (valor de nesse lugar), ou um dêitico locativo que aponta para um menino dentre um conjunto de meninos, sendo a leitura do sintagma nominal um menino acompanhado do correspondente a um dos meninos dentre os que estão aí (um desses aí). Podemos ter ainda um modificador, que parece fornecer ao sintagma nominal (SN) um traço [+específico], isto é, o SN referir-se-ia a um menino que, embora indefinido, seria específico. Neste caso, o menino não estaria sendo apontado, podendo, inclusive, não estar presente no contexto.

Tomamos como objeto de estudo o modificador de SN, propondo que ele acrescenta um traço de especificidade ao SN indefinido que modifica, semelhantemente ao que faz o certo (por exemplo, em (2)), tornando o conjunto um SN indefinido específico. Seria a contribuição do especificador para o SN indefinido que modifica exatamente a mesma do certo? Se não, o que distingue o uso especificador dos itens sob estudo?

Com o intuito de averiguar a natureza das semelhanças e diferenças entre e certo modificadores, realizamos a seguir uma análise de SNs indefinidos com e certo,1 1 Uma análise mais aprofundada acerca das três possibilidades de interpretação da sentença (1), as dêiticas e a modificadora de SN indefinido, pode ser conferida em Tavares (2000). bem como de SNs indefinidos sem eles, considerando em especial os planos sintático, semântico e pragmático. Baseamo-nos especialmente em descrições do certain do inglês feitas por Hintikka (1986) e Enç (1991), e no conceito de implicatura conversacional (Grice 1975; Levinson 1983).

Cumpre mencionar que as sentenças que ilustram este trabalho foram criadas por nós.2 2 A única execeção é a sentença (50), extraída da fala de um personagem de novela televisiva. Trata-se de sentenças possíveis na língua, baseadas em dados fornecidos por Enç (1991) e dados extraídos de programas televisivos. Testamos tais sentenças com alunos e professores de graduação e pós-graduação e com alunos de segundo grau da rede pública estadual.

1. Itens de especificidade e certo ¾ propriedades sintáticas e semânticas

Enç (1991:08) afirma que um SN indefinido, caracterizado por ela como não possuindo antecedentes no discurso,3 3 A noção que nos interessa aqui é a de indefinitude, portanto não apresentamos a noção de definitude proposta por Enç (1991). pode ser específico ou não específico. Será não específico se não estiver relacionado a referentes anteriores. Em contraste, será específico se estiver relacionado a referentes previamente estabelecidos no discurso, isto é, se receber interpretação partitiva. Enç apoia-se em dados do turco, língua em que a ambigüidade entre SNs indefinidos específicos e não específicos é resolvida através da marcação de caso: SNs indefinidos com morfologia de caso aparente são específicos e recebem interpretação partitiva, enquanto SNs indefinidos sem morfologia de caso são não específicos e recebem interpretação não partitiva. Para a autora, partitivos são sempre específicos, pois mantêm uma relação de inclusão ¾ de subconjunto ¾ com referentes mencionados anteriormente. Observem-se alguns exemplos nossos:

Em (3), o SN uma menina é indefinido, uma vez que não possui antecedentes no discurso (é a primeira menção à menina) e, como não está relacionado a referentes anteriores, é também não específico. Em (4), o SN uma menina é indefinido, não possuindo antecedentes no discurso (é a primeira menção à menina que quebrou o vaso). Entretanto, esse SN é específico, pois mantém relação de inclusão com o SN antecedente várias meninas, isto é, trata-se de um partitivo implícito, referindo-se a uma das meninas do conjunto de meninas que entraram no quarto.

Segundo Enç (1991:02), adjetivos4 4 Encontramos diferentes denominações para o uso do certo aqui investigado: adjetivo (Enç, 1991); pronome indefinido adjetivo (Cunha, 1994); expressão quantificadora ¾ a certain (Hintikka, 1986). Optamos por chamá-lo 'item de especificidade' e 'modificador de SN', embora não tenhamos aprofundado a questão de qual a denominação mais adequada. como certain, specific, etc, constituem uma exceção à sua proposta, já que atuam sempre como especificadores, embora não exijam interpretação partitiva. Por exemplo, (5) pode ser verdadeira em um contexto em que os atletas a serem treinados vêm de um conjunto previamente estabelecido, ao passo que (6) não apresenta relação de partitividade, sendo a primeira menção ao político. Em ambos os casos, temos SNs indefinidos específicos.

No português, SNs indefinidos contendo ou certo podem estar em relação de partitividade com referentes discursivos anteriores ou não, assemelhando-se a SNs com certain no inglês. Vejam-se a seguir:

Em (7a/b), os SNs indefinidos providos de e certo referem-se a uma menina que faz parte do conjunto das meninas que entraram no quarto. Ou seja, há relação de partitividade implícita com um antecedente presente no contexto discursivo e a interpretação é a de que se trata de uma menina específica, parte de um conjunto dado anteriormente. Em (7c), o SN também é específico, pois apresenta leitura partitiva independentemente da presença de um adjetivo especificador. Soaria estranho dizer (7c) se a menina que quebrou o vaso não fosse uma das que entrou no quarto.

Diferentemente, em (8a/b) e (9a/b), os SNs indefinidos trazem a primeira menção à atleta e ao deputado, e, portanto, embora específicos, não mantêm relação com referentes discursivos lexicalmente explícitos no discurso anterior. A interpretação das sentenças (8a/b) é de que Cátia deve vencer uma atleta específica. Já a sentença (8c), em que temos um SN indefinido sem adjetivo de especificidade, nada informa acerca da especificidade da atleta, sendo possível a interpretação de que se Cátia vencer qualquer atleta, será a primeira do ranking. Em (9a/b), trata-se de um deputado específico. Diferentemente, em (9c), podemos ter a leitura de que Letícia deseja falar com qualquer um dos deputados que votou contra o projeto de lei, ou seja, um deputado não-específico.

Os SNs indefinidos das sentenças (8c) e (9c) não estão marcados positivamente para a especificidade, uma vez que não estão em relação de partitividade nem são modificados por um item de especificidade, o que não significa necessariamente que se trata de qualquer atleta ou qualquer deputado, mas sim que nada é informado pelo falante acerca da especificidade do SN indefinido. Nas sentenças com e certo, a especificidade está marcada no SN ¾ informa-se que a menina, a atleta e o deputado em questão são específicos. Ou seja, semanticamente, os sintagmas um N aí e um certo N eqüivalem-se, fornecendo e certo um traço de especificidade ao nome por eles modificado.

Portanto, SNs indefinidos com e certo são marcados para a especificidade: não referem-se a qualquer elemento, mas sim a um elemento específico. Em contraste, SNs indefinidos sem ou certo não são marcados para a especificidade, podendo ser entendidos como mais ou menos específicos. Nas sentenças (8c) e (9c), por exemplo, não são específicos. Entretanto, na sentença (7c), em que pode estar em jogo uma interpretação de partitividade relativamente ao já dito, uma menina tem interpretação partitiva, o que, de acordo com Enç, implica ser o SN específico.

Ressalta o traço de especificidade acrescentado a um SN indefinido por e certo o fato de eles barrarem a leitura genérica de sentenças:

.

(10a) pode ter leitura genérica, isto é, sendo x um gato, x (caracteristicamente) come carne. Pode também ter leitura específica, isto é, há um x, x um gato, tal que x come carne, o que ocorre, por exemplo, em Tenho dois gatos. Um gato come carne, o outro come ração, caso em que o SN um gato tem leitura partitiva implícita: um dos meus gatos come carne.Já (10b/c) só permitem leitura específica, conseqüência do traço [+específico] de e certo.

Cremos que o de especificidade faça parte do SN ao qual modifica, à semelhança do certo de especificidade, uma vez que aparece em apenas uma posição: após o nome. Além disso, se o SN objeto tiver sua posição alterada, por exemplo, sendo anteposto ao verbo, o continua ocupando sua posição adjacente ao nome, movendo-se junto com este:

Se movermos apenas o , teremos não mais um modificador, mas sim um dêitico. Semelhantemente, ao movermos somente o certo, este deixará de ser modificador, recebendo outro valor (por exemplo, em (18), algo como "foi verdade") ou mesmo tornando a sentença agramatical:

Parece ser possível também o uso do posposto a um adjetivo (como em (20)). A existência de outro nome entre o nome modificado e o é vetada, pois este item especifica o nome mais próximo. Assim, não podemos entender , em (22) e (24), como modificando um casaco. Nesses exemplos, talvez possa haver a leitura de como modificando cinco botões e bastante tempo, mas tais leituras soam bastante estranhas:5 5 Ressaltamos que os sinais ? e * que antecedem algumas das sentenças listadas no corpo do texto referem-se à estranheza ou à impossibilidade de uma interpretação do aí presente em tais sentenças como item de especificidade, embora leituras dêiticas do item possam ser possíveis nos mesmos contextos.

O certo somente ocorre em SNs indefinidos com o determinante um ou nulo, enquanto o ocorre também com numeral, algum/alguns, entre outros modificadores:

As restrições ao certo poderiam ser devidas à posição anteposta ao nome ocupada por ele: o certo seria vetado quando já houvesse um modificador em tal posição, como em *"ALGUM CERTO homem". O mesmo não se daria com o , que aparece sempre posposto ao nome: "algum homem AÍ". Entretanto, os modificadores do inglês specific e particular ocupam posição inicial e não são restringidos pela presença de outro modificador: "two SPECIFIC women", "some SPECIFIC documents" (Enç, 1991:04). Dessarte, a propriedade de ocorrer somente com determinante um ou nulo parece ser propriedade idiossincrática do certo, partilhada pelo certain do inglês, e não uma restrição posicional.

Nem nem certo modificadores aparecem em SNs definidos ¾ o uso do em SNs definidos induz à leitura dêitica:

Também não é possível alterar a posição do item de especificidade no interior do SN. Se certo for posposto ao nome e for anteposto, eles passarão a exercer outro papel que não acréscimo de especificidade ou então teremos sentenças agramaticais:

Segundo Enç (op. cit., p. 21), somente SNs não-específicos podem ocorrer em sentenças existenciais. Estas afirmam existência, por isso excluem SNs que pressupõem existência, caso dos específicos.7 7 Urge mencionar uma exceção a tal veto: é possível o uso, em sentença existencial, de SNs específicos (e definidos), como na sentença Tem a menina em resposta a uma interrogação como Tem alguém no prédio? Contudo, SNs com certain, embora específicos, podem aparecer em sentenças existenciais quando não possuem interpretação partitiva:

O mesmo parece ser válido para e certo no português:

Sentenças existenciais com SNs indefinidos não específicos, como Tem uma pessoa que é contra a tua eleição, podem ser lidas como há pelo menos um x no mundo, enquanto as sentenças existenciais com e certo parecem não permitir essa leitura. Por exemplo, (34a/b) são interpretadas como significando que há uma pessoa específica que é contra a eleição.

A leitura preferencial dos SNs indefinidos com certo e com é a de escopo amplo ($y "x). Desse modo, em (36a/b), a leitura mais provável é a de que todos os repórteres foram enviados para cobrir um mesmo acontecimento:

Havendo informações complementares, torna-se possível também a leitura de escopo restrito ("x $y) para os SNs em questão, à semelhança do que ocorre com SNs com certain (cf. Hintikka, 1986; Enç, 1991). Vejam-se:

Até aqui, observamos semelhanças e diferenças de natureza sintática e semântica entre e certo especificadores. Ambos integram o SN e são posicionados junto ao nome indefinido, sendo que alterações nessa ordem resultam em sentenças agramaticais ou em mudança da função de e certo, que deixam de ser especificadores. Entretanto, certo aparenta ser mais rígido do que quanto à distribuição, uma vez que este parece poder vir depois de um adjetivo (cf. 20) e em SNs com determinantes como um, algum/alguns, numerais e nulo, ao passo que certo sempre vem adjungido ao nome e apenas em SNs com determinantes um ou nulo. Há, porém, mais semelhanças do que diferenças entre e certo modificadores no plano sintático: ambos podem aparecer em sentenças existenciais e ter escopo amplo ou restrito, além de serem barrados em SNs com determinantes definidos.

No âmbito semântico, e certo fornecem um traço de especificidade ao SN indefinido que modificam, resultando a estrutura em um SN indefinido específico em que a leitura genérica está barrada (cf. 10b/c). Todavia, percebemos haver diferenças entre, por um lado, um SN indefinido que é específico por possuir interpretação partitiva (cf. 7c) e um SN indefinido que é específico por ser modificado por um item de especificidade; e, por outro lado, entre um SN indefinido específico com e um SN indefinido específico com certo. Qual seria a natureza dessas diferenças?

2. Itens de especificidade e certo ¾ propriedades pragmáticas

2.1. A identidade do nome referido

O uso de ou de certo não apenas marca a especificidade de um SN indefinido, mas põe em jogo determinadas implicaturas conversacionais (cf. Grice 1975; Levinson 1983). Vejamos os três SNs indefinidos a seguir, os quais possuem leitura partitiva e, portanto, específica:

Na sentença (39a), o SN indefinido um livro é um partitivo implícito, do que resulta a leitura de que Mirela pegou um dos livros que estavam na mesa. SNs de leitura partitiva, como definido por Enç, são sempre específicos. Nas sentenças (39b/c), os SNs indefinidos não apenas possuem leitura partitiva implícita, mas também itens de especificidade. Teríamos em (39b/c) um caso de especificidade "redundante", isto é, por partitividade e pela presença de um item de especificidade? Cremos que não, pois a especificidade relacionada ao emprego de e certo é marcada pelo aparecimento dessas formas dentro do SN, enquanto a especificidade por partitividade do tipo que ocorre em (39a) necessita a observação do contexto discursivo anterior. O fato de haver esse contexto discursivo anterior disponível para (39b/c) talvez reforce a especificidade marcada por e certo no SN, mas tais itens transmitem a leitura específica ao nome indefinido independentemente da existência de um contexto anterior que a permita. O mesmo acontece com SNs indefinidos contendo certain no inglês, para os quais, segundo Enç (1991:19), uma leitura partitiva não é suficiente nem necessária.

Além disso, podemos perceber outra diferença entre (39a), por um lado, e (39b/c), por outro. Em (39b/c), o falante parece não estar dizendo apenas que Mirela pegou um dos livros que estavam na mesa, isto é, não parece estar dizendo apenas que se trata de um livro específico. O uso do e do certo pode suscitar implicaturas como a de que o falante ou o falante e o ouvinte conhecem a identidade do que é referido no SN indefinido. Assim, em (39b/c), é possível haver a leitura de que se trata não apenas de um livro específico, mas ainda de um livro cuja identidade é conhecida pelo falante. Talvez o falante queira implicar que Mirela pegou, dentre os livros que estavam na mesa, o livro que era esperado que ela pegasse ou mesmo que o livro pego é de identidade conhecida, mas que não vem ao caso, leituras que não se pode depreender de (39a).

As sentenças (39b/c) também são passíveis de envolver uma implicatura de conhecimento mútuo. Por exemplo, um contexto em que falante e ouvinte, sabendo que Mirela acredita em fim do mundo, imaginam que, se fosse pegar um dos livros que estavam na mesa, pegaria o livro das profecias de Nostradamus. Tal expectativa seria confirmada pelo falante ao empregar as sentenças (39b/c), sem a necessidade de identificar nominalmente o livro pego, pois estaria fazendo referência indireta a ele. Portanto, ao empregar o ou o certo neste contexto, o falante quer implicar que não apenas ele mas também o ouvinte sabe exatamente de que livro se trata.

O uso de sentenças com certo gerando a implicatura de conhecimento mútuo entre o falante e a pessoa que é referida no SN indefinido é bastante comum:

Tais sentenças podem ser empregadas em um contexto em que o falante está comentando com Pedro a questão do trabalho que ainda não foi entregue e quis dizer indiretamente para uma terceira pessoa, provavelmente presente, capaz de ouvir o que foi dito, que ela já deveria ter trazido o trabalho. Pedro pode não saber a quem o falante está se referindo, mas este espera que a pessoa "alvo" entenda que se trata dela. O também é possível nesse contexto, caso em que não deve ser confundido com um dêitico, pois o falante não está apontando para alguém presente, mas dirigindo a ele uma "indireta". (40a) e (40b) permitem a interpretação, por parte de ouvintes desavisados, de que se trata de uma pessoa que não vem ao caso, ao invés da pretendida leitura de que o "culpado" está próximo. Ou seja, os ouvintes podem assumir implicaturas diferenciadas, dependendo de seu conhecimento anterior sobre os eventos comentados pelo falante.

Como salienta Levinson (1983:102), as máximas postuladas por Grice determinam o que os interlocutores precisam fazer para conversar de um modo maximamente eficiente, racional e cooperativo: devem falar sincera, relevante e claramente, fornecendo informação suficiente. No caso do uso de e certo modificadores, o ouvinte pode ter a impressão inicial de que o falante está fornecendo informação insuficiente, quebrando assim a máxima da quantidade. Realmente, o falante apenas menciona um certo x ou um x aí, um x específico, mas cuja identidade não é geralmente esclarecida de modo explícito na sentença, assim como também não fica claro na sentença se o falante conhece essa identidade.

Entretanto, em casos como (39b/c), o ouvinte, assumindo que as máximas da conversação estão sendo seguidas, pode inferir que o falante conhece a identidade do que é referido no SN indefinido específico, não desejando, porém, fornecer mais detalhes acerca dela. Em casos como (40), o ouvinte infere que, além do falante, ele ¾ ouvinte ¾ e/ou a pessoa referida no SN indefinido específico também conhecem a identidade do referente do SN. Ao optar por lançar uma "indireta", o falante não diz claramente de que pessoa se trata, dando margem para implicaturas acerca da possível identidade.

O uso de SNs indefinidos com e certo não trazem necessariamente a implicatura de que o falante conhece a identidade do indivíduo a que se refere. Assim, em (41b/c) a seguir, pode estar em jogo a implicatura de que se trata um professor de identidade conhecida, por algum motivo referido através de um SN indefinido (talvez porque o falante estivesse lançando uma "indireta") e não nominalmente. Contudo, o falante pode não saber exatamente qual é o professor, sabendo apenas que se trata, por exemplo, de um dos professores que estavam na escola naquele dia, ou de um dos professores do curso, isto é, um professor de um conjunto que o falante tem em mente. Ou seja, é possível que, por meio de um SN indefinido com ou certo, o falante implique estar se referindo a um indivíduo de identidade conhecida mas por algum motivo não explicitada ou a um indivíduo cuja identidade não é conhecida, havendo, nesse caso, implicaturas referentes não ao conhecimento da identidade, mas do conhecimento de uma ou mais das propriedades desse referente (na sentença em análise, ser um dos professores do curso, por exemplo). Essas duas leituras são possíveis para as sentenças (41b/c), bem como para as sentenças (39b/c).

Independentemente de qual implicatura referente à identidade do SN indefinido específico esteja em jogo ¾ se identidade conhecida ou apenas conhecimento de determinadas propriedades ¾ tal SN está sempre em relação partitiva implícita com um conjunto implícito, que está na mente do falante (cf. 41b/c ¾ um dos professores de um conjunto que está na mente do falante). Em contraste, sentenças desprovidas dos itens de especificidade e certo, como (41a), não trazem no SN uma marca de partitividade que aponta para a existência de um conjunto do qual o referente do SN é parte integrante, bem como não apontam para as implicaturas de ou identidade conhecida ou propriedades conhecidas.

A presença de uma oração relativa parece estabelecer uma idéia de partitividade. Por exemplo, em (42), não se trata de qualquer um dos pianos do mundo, mas dos que pertenceram a pianistas famosos. Da mesma forma, em (43) (retomada de (9)), não se trata de qualquer um dos deputados, mas somente dos que votaram contra o projeto de lei. Ou seja, a oração relativa restringe o referente do SN como pertencendo a um determinado grupo, delimitando uma de suas propriedades. Desse modo, em (42a), podemos ter a leitura de que Megui deseja comprar qualquer piano, desde que este tenha pertencido a um pianista famoso ¾ isto é, qualquer piano do conjunto explicitamente delimitado pela oração relativa. Em (43a), podemos ter a leitura de que Letícia deseja falar com qualquer um dos deputados que votou contra o projeto de l

Ao especificar uma propriedade do piano a ser comprado e do deputado com quem Letícia deseja falar, as orações relativas acima estabelecem um conjunto: o conjunto dos pianos que pertenceram a pianistas famosos e o conjunto dos deputados que votaram contra o projeto de lei. O emprego do e do certo modificador parece implicar ser de conhecimento do falante ainda outra ou outras propriedades relativamente ao piano e ao deputado em questão, isto é, há ainda outro ou outros conjuntos em jogo, embora não explicitados. É possível também que o falante não esteja a par tão somente de outras propriedades do piano e do deputado em questão, mas sim que conheça a identidade exata dos mesmos, tendo optado por não detalhá-la mais.

Dessarte, apesar de atuar sobre um conjunto já restrito, o modificador de SNs em (42b/c) e (43b/c) acrescenta mais restrições, não sendo, portanto, uma marca redundante. Deve haver alguma informação a mais que o falante detenha sobre o piano, somando-se ao conjunto de pianos que pertenceram a pianistas famosos. No entanto, o falante, por algum motivo, não quer expô-la e, para tanto, vale-se de um item de especificidade. Por exemplo, pode estar em jogo um piano da marca tal, um de cor marrom para combinar com as cortinas, um que não seja muito caro ou mesmo um individualizado, já escolhido por Megui (isto é, um de identidade conhecida). Igualmente, para (43b/c), pode estar em jogo um deputado de um determinado partido, de uma determinada cidade ou ainda um deputado individualizado.

O contexto discursivo pode servir de pista para precisarmos qual das leituras ¾ individuação ou não individuação ¾ estão presentes. Em contextos como Eu queria alugar uma casa AÍ, mas não encontrei nenhuma para alugar, temos uma leitura não individualizadora (isto é, o falante queria alugar uma casa do conjunto de casa que possuem janelas amarelas ou das que possuem três quartos, enfim uma casa dentre outras de um determinado conjunto não tornado explícito). Se o falante estivesse se referindo a um indivíduo de identidade conhecida, individualizada, não poderia usar a sentença acima, mas uma sentença como a seguinte: Eu queria alugar uma casa AÍ, mas ela não está para alugar.

A oração relativa, ao explicitar uma propriedade, explicita um conjunto. O item de especificidade aponta a existência de uma propriedade (ou a própria identidade do referente do SN) não explicitada pelo falante e, assim, de um conjunto implícito, com o qual o referente do SN indefinido está em relação de partitividade.

Ressalvamos que a propriedade que o falante conhece acerca do piano (por exemplo, ser um piano do conjunto de pianos marrons) não é implicada pelo uso de um item de especificidade, assim como a identidade, no caso de ser conhecida, não é implicada, mas tão somente é implicado o conhecimento dessa propriedade ou o conhecimento dessa identidade por parte do falante: ele implica apenas que sabe que existe algo a mais, algo que não disse explicitamente.

Observações acerca do que sabe o falante relativamente à identidade do referente do SN indefinido também são feitas por Hintikka (1986:335). O autor afirma que a expressão a certain é usada para indicar que algo é conhecido, mas não divulgado. Há, em casos como (44), a possibilidade de o falante não conhecer a identidade do que é referido no SN indefinido específico:

Hintikka defende que, na sentença acima, a expressão a certain é usada não para afirmar que o inquilino existe, mas sim tem uma força que é "bem caracterizada pelo Oxford Advanced Learner's Dictionary of Current English como "não nomeado, estabelecido ou descrito, mas possível de sê-lo". Para o autor, este "possível de sê-lo" significa que a certain tem prioridade lógica (escopo amplo) sobre operadores epistêmicos (como saber). Assim, a certain pode estar sinalizando, em (44), que o escritor sabe quem é o lorde em questão, havendo a implicação conversacional9 9 "Implicação conversacional" é a expressão empregada por Hintikka na análise da sentença transcrita por nós em (44). de que não o definiu por imaginar que o leitor não saiba de quem se trata. Todavia, segundo Hintikka, em casos como (44), o operador epistêmico implícito envolvido não é necessariamente o de quem diz, sendo possível a implicação conversacional de que alguém mais, embora não o falante, saiba quem é a pessoa referida.

Para Hintikka (1986:335), tais casos seriam usos subsidiários, "que têm algo da aura de um idioma". Em outros empregos, como o exemplificado abaixo, o falante saberia de quem se trata:

Entretanto, cremos que as duas possibilidades de leitura são permitidas para (45): o falante pode saber de quem se trata ou conhecer alguma das propriedades da mulher em questão, mas não necessariamente, havendo, neste último caso, a implicatura de que outra pessoa sabe (nos exemplos a seguir, Richard e Mirela obviamente sabem):

Ou seja, não é válido postular a presença de um operador epistêmico do falante sempre ligado ao uso do certo. Na verdade, e de acordo com Enç (1991:03), não é necessária a presença de nenhum tipo de operador epistêmico, pois podemos encontrar contextos em que ninguém conhece a identidade da coisa referida, como em (48), cuja leitura mais natural, para Enç, é a de um unicórnio que não se sabe qual, dentre os que vivem no jardim:

Uma propriedade das implicaturas é que elas são canceláveis, ou, mais exatamente, passíveis de anulação, uma vez que não integram o conteúdo semântico das expressões lingüísticas (Grice, 1967; Levinson, 1983). Podemos relacionar a essa propriedade os contextos em que SNs indefinidos com ou certo não permitem a implicatura de conhecimento de identidade ou de propriedades por parte do falante. Geralmente o emprego de e de certo implica que o falante conhece a identidade ou propriedades da pessoa ou coisa mencionada no SN indefinido. Contudo, dado um contexto adequado, essa implicatura pode ser anulada, como em (46) e (47), em que a identidade é conhecida por alguém que não o falante. Ou seja, ao acrescentar-se "não sei quem" ou "não sei qual", cancela-se a implicatura de que o falante tem em mente a identidade ou propriedades daquilo a que se refere.

3. Um casaco especial versus um casaco insignificante

Na seção anterior, observamos que o uso de e de certo modificadores, além de marcar especificidade, está ligado a implicaturas quanto ao conhecimento de informações acerca do SN indefinido além das mencionadas literalmente na fala. Entretanto, se o falante sabe mais do que disse, por que não revelou? Ao alcançar a implicatura de o falante conhece a identidade ou algumas propriedades do referente em questão, o ouvinte pode concluir que o falante não está sendo cooperativo, pois fornece menos informação comparativamente ao que sabe sobre aquilo a que se refere no SN indefinido. Todavia, outras implicaturas além das de conhecimento de identidade ou propriedades estão em jogo no emprego de e de certo especificadores, sobrepondo-se a estas: implicaturas referentes ao motivo de o falante não esclarecer mais acerca da pessoa ou coisa a que se refere.

Um desses motivos, já discutido na seção anterior, resulta em um ato de fala indireto: se o falante não pretende dizer de forma direta a qual pessoa ou coisa está se referindo, pode empregar um item de especificidade, deixando a identidade do referente do SN indefinido específico implícita. Entretanto, outras implicaturas também podem estar em jogo. Vejam-se:

Podemos apontar como primeira leitura do SN indefinido em (49a) um livro dos que estavam na mesa; em (49b/c) um livro dos que estavam na mesa, cuja identidade ou propriedades o falante não quis detalhar mais, talvez por tal detalhamento não ser interessante para os fins da conversação corrente. Parece termos chegado aqui a uma diferença entre e certo: o está mais ligado à leitura de que a identidade do que é referido no SN indefinido não vem ao caso. Ou seja, o falante, ao utilizar o especificador, implica que é pouco importante para o ouvinte saber mais sobre o referente do SN ou que ele (falante) não quer dizer mais. Empregos semelhantes ao ilustrado em (50) mostram como o pode disparar uma implicatura de insignificância relativamente ao nome por ele modificado:

Em (50), ao empregar o SN indefinido com o , B parece dizer que nada de importante foi falado por Inara. Entretanto, A destaca o SN umas coisas aí como estranho em relação a mais de seis horas de conversa, não aceitando que tenha sido falado algo insignificante, inferência ligada ao SN com o na fala de B. Portanto, o pode relacionar-se às leituras de ser o referente do SN alguém ou algo insignificante ou cuja identidade não vem ao caso para o ouvinte.

Observe-se o seguinte exemplo, extraído da fala de um personagem de novela televisiva:

Fatos acontecidos antes permitem ao espectador saber que o falante tinha a intenção de não revelar nada acerca do que ia fazer para o ouvinte. Cremos que essa intenção motiva o emprego do no SN indefinido, sinalizando para o ouvinte uma leitura de que se trata de um assunto que não interessa a ele ou que não é de grande importância. Como o falante não deseja fornecer maiores detalhes acerca daquilo a que se refere, tenta implicar que se trata de algo que não merece maior atenção ou preocupação por parte do ouvinte.

Talvez o fato de o tender a referir-se a algo específico cuja identidade não vem ao caso favoreça a leitura de SNs indefinidos com tal item como trazendo uma valoração negativa:

(52a) pode ter somada à leitura de que se trata de um arquiteto específico a de que se trata de um arquiteto qualquer. Tomamos aqui qualquer não no sentido de qualquer arquiteto do mundo (neste caso, o SN um arquiteto aí seria não específico),10 10 Observe a diferença entre Qualquer homem gosta de prostituta. versus Um homem qualquer gosta de prostituta. No primeiro caso, qualquer quantifica homem, no segundo, qualquer modifica homem. mas um arquiteto específico que é incompetente, de baixa qualidade, isto é, em (52a), a irmã contratou "um qualquer", um ruim, ao invés de contratar um bom arquiteto. A idéia de um qualquer, de valoração negativa, parece não estar implicada pelo uso do certo em (52b).

Vejamos as seguintes sentenças, em contextos que favorecem leitura genérica: tempo de referência verbal [-específico] e presença de oração condicional:

Na sentença (53a), o falante está se referindo a qualquer arquiteto ¾ qualquer um do mundo e, nas sentenças (53b/c), a um arquiteto específico (por individuação ou por conhecimento de propriedades). Ressalta essa interpretação a naturalidade da inferência de que não se deve chamar arquitetos em geral a partir de (53a), mas não de (53b) e (53c). Na sentença (53c), o falante não está implicando, através do emprego do certo, algo de ruim relativamente aos referentes dos SNs indefinidos. Em contraste, na sentença (53b), com o , podemos ter a leitura de que se trata de um arquiteto de má qualidade. Ou seja, não qualquer arquiteto ¾ qualquer um do mundo ¾ mas um arquiteto qualquer no sentido de arquiteto incompetente (um qualquer).

O fato de a inferência de que não se deve chamar arquitetos é estranha a partir de (53b/c) indica que o falante não está tomando o conjunto de todos os arquitetos do mundo, mas sim destacando um arquiteto ou uma propriedade relativa a um determinado tipo de arquiteto. Talvez, em (53b), ele esteja destacando um dentre os de má qualidade, em oposição aos de boa qualidade, isto é, estabelecem-se dois conjuntos ¾ os bons e os ruins:

Já em (53c) não parece entrar em jogo a valoração negativa e a distinção entre bons e maus arquitetos. Ressaltamos que uma leitura sem valoração negativa também é possível a partir de (53b), com o , caso em que o falante possivelmente estaria se referindo a um arquiteto específico que ele tem em mente, mas que não vem ao caso para o ouvinte. Ou seja, a leitura de valoração negativa é uma implicatura passível de cancelamento.

As sentenças (53b/c) também são possíveis em contextos semelhantes aos de (39) e (40), quando o falante lança uma "indireta", implicando que não apenas ele conhece a identidade do que é referido no SN indefinido, mas também o ouvinte e/ou a pessoa referida em tal SN. Salientamos, porém, que o tipo de contexto ilustrado em (53), por ser fortemente genérico, é bastante desfavorável para o uso de SNs indefinidos específicos, isto é, trata-se de um contexto naturalmente inibidor para a presença de e de certo especificadores. Cremos que essa tenha sido a razão pela qual algumas das pessoas com quem testamos as sentenças que exemplificam este trabalho considerarem estranho o emprego de e de certo no contexto em questão.

Diferentemente do que ocorre com o , sentenças com o certo soam estranhas ao se tentar lhes impor uma leitura de insignificância:

A leitura preferencial de (55a) é a de que foi comprado um casaco de tipo comum ou mesmo de pouca qualidade. Em (55b), apesar da presença de nada de importante e de apontando para a idéia de insignificância, temos a impressão de que não se trata de um casaco comum, como se o falante estivesse implicando que o casaco tem algo de especial:

Temos, em (55), a leitura de que foi comprada uma coisa muito importante, pois super bonito ou que eu estava a fim de comprar faz tempo falsificam nada de importante. Sendo assim, a expressão nada de importante deve ter sido utilizada para ressaltar o seu contrário, isto é, que se trata de algo importante. Ou seja, com o certo, o ouvinte pode ser levado a crer que se trata de algo relevante, mesmo que o falante não explicite os motivos, o que parece ocorrer em (52b) e mesmo em (49c) ¾ um livro especial por algum motivo, talvez por ser o esperado.

Um dos motivos de o falante não explicitar aquilo a que se refere pode ser o fato de pretender atiçar a curiosidade do ouvinte acerca da identidade do referente do nome indefinido:

É possível também que o uso do certo provoque no ouvinte maior preocupação acerca da identidade do referente do SN indefinido, ao passo que o estaria ligado, embora não necessariamente, a uma menor preocupação devido à leitura de pouca importância que costuma acompanhar esse especificador, como em (58). Ou ainda, também em casos como (58), talvez certo possa facilitar a leitura de que a coisa a ser dita é positiva, em contraste com , que facilitaria a leitura de que a coisa a ser dita é negativa.

Com o , caso não haja um esclarecimento explícito de que o falante está se referindo a algo importante para ele, como em (59), a leitura preferencial é a de insignificância. Em (59), super bonito ou que eu estava a fim de comprar faz tempo parecem cancelar a idéia de insignificância trazida pela expressão nada de importante, bem como a implicatura de insignificância ligada ao . Ou seja, aquilo que cancela a idéia de insignificância quando do uso do precisa estar explicitado, enquanto a presença do certo em si aponta para o cancelamento de tal idéia.

Enfim, ao optar por SNs com os especificadores e certo, o falante pode não estar desrespeitando a máxima da quantidade, fornecendo poucas informações ao não detalhar mais o referente do SN indefinido. Talvez o falante não queira detalhá-lo mais por não ser importante para os objetivos da troca conversacional, isto é, longas explicações acerca da identidade ou propriedades do referente seriam desnecessárias, ocasionando um desvio daquilo que o falante deseja focalizar. Assim, ele pode usar um item de especificidade para, além de marcar a especificidade do SN e de implicar que conhece a identidade ou propriedades do referente, implicar também que estas não vêm ao caso ou são insignificantes (neste papel, temos especialmente o ). O falante pode também usar um item de especificidade para ressaltar que o referente do SN indefinido é importante para ele por algum motivo, motivo este depreensível através do contexto ou não (neste papel, temos especialmente o certo). O emprego do pode implicar ainda valoração negativa em relação ao referente do SN, qualificando-o como de baixa qualidade, um "qualquer". Em contraste, SNs indefinidos sem itens de especificidade não envolvem as implicaturas passíveis de serem disparadas pelo uso de SNs com e certo modificadores.

Ressaltamos que, embora o certo facilite a leitura de que o referente do SN é algo especial para o falante e o facilite a leitura de que o referente do SN é algo cuja identidade não vem ao caso, algo insignificante ou mesmo algo de pouca qualidade, o emprego de um determinado item de especificidade não está correlacionado necessariamente a uma determinada leitura. Tais leituras são implicaturas, portanto, relacionadas ao contexto de uso, não ao significado do item em si. Sendo assim, as implicaturas em questão são anuláveis. Por exemplo, ao se anular a implicatura de que o falante conhece a identidade do referente do SN indefinido (cf. (42), (43), (46), (47) e (48), também podemos ter anuladas implicaturas como a de que tal referente é especial, ou insignificante, ou de baixa qualidade. Conseqüentemente, restaria apenas a leitura de que se trata de alguém ou de algo específico cuja identidade é desconhecida pelo falante, havendo neutralidade para valorações extras. Além disso, as sentenças (49a/b/c) podem ser interpretadas como meramente referindo-se a um dos livros que estavam na mesa, isto é, uma simples leitura partitiva, em que não é implicado nada de especial ou de negativo a respeito do livro pego por Mirela.

A implicatura de ser o referente do SN indefinido insignificante também pode ser cancelada em contextos como a seguir, em que estão envolvidos os referentes de rainha e mãe, naturalmente importantes: Todos os ingleses admiram uma mulher AÍ ¾ a rainha e Todos os ingleses admiram uma mulher AÍ ¾ a própria mãe. Em ambos os casos, parece haver um estranhamento por conta de algo de grande relevância estar sendo modificado pelo , item que aponta para a insignificância. Esse estranhamento pode ser provocado intencionalmente pelo falante, para ressaltar a identidade do referente do SN indefinido.

Cabe ainda mencionar uma questão ligada à entonação: no SN indefinido com o certo, a entonação costuma ser ascendente, tendo o certo acento mais fraco que o nome por ele modificado. Diferentemente, o SN indefinido com o tem entonação descendente, tendo o acento mais fraco que o nome. Ou seja, os itens de especificidade geralmente têm o acento mais fraco dentre os itens do SN. Assim, em (60a), o certo é o especificador, com acento mais fraco, havendo a leitura de que o trabalho é sobre o . Em contraste, em (60b), temos um especificador, com acento mais fraco, havendo a leitura de que o trabalho é sobre o certo.11 11 Ressalve-se que não aprofundamos a questão da entonação, apenas testamos sentenças com alunos de graduação e pós-graduação.

As implicaturas de que não só o falante, mas também o ouvinte e/ou a pessoa referida no SN indefinido conhecem a identidade do que é aí referido (por exemplo, nas leituras "indiretas" de (39) e (40)) podem representar exceções à entonação mais fraca que acompanha os especificadores. É possível que certo e sejam mais destacados nas "indiretas", não só por não receberem acento fraco, mas também com o prolongamento da pronúncia respectivamente do [e] ([ceeerto]) e do [i] ([aiii]). Sendo assim, podemos considerar a entonação como um dos elementos disparadores de determinadas implicaturas em detrimento de outras. Além disso, a entonação também pode ser fator de desambiguização entre o modificador e o dêitico com valor de nesse lugar: este último parece sempre receber acento forte.

4. Considerações finais

Como conclusão, apresentamos o quadro a seguir, ressaltando semelhanças e diferenças entre SNs indefinidos com e certo, bem como algumas propriedades de SNs desprovidos de itens de especificidade, os quais, no entanto, não investigamos aprofundadamente neste estudo:

Há aspectos semânticos e pragmáticos envolvidos no emprego de e de certo como modificadores de SNs indefinidos. Os itens de especificidade por nós estudados são eqüivalentes quanto a traços semânticos, isto é, à contribuição trazida por eles ao sentido da sentença. Tais itens sempre acrescentam ao nome que modificam o traço [+específico], e, em conseqüência, o traço [-genérico]: um SN indefinido com adjetivo de especificidade não admite interpretação genérica. Diferentemente, SNs indefinidos desprovidos de especificadores não estão marcados positivamente para a especificidade, podendo receber uma leitura de caráter genérico do tipo qualquer x do mundo. Seguindo a proposta de Enç (1991), podemos dizer que esses SNs têm o traço [+específico] licenciado apenas quando estão em relação partitiva com um conjunto de referentes mencionado anteriormente.

e certo aproximam-se também quanto a um traço pragmático: ambos podem disparar a implicatura de que o falante conhece a identidade ou alguma propriedade do referente do SN. Entretanto, por ser este um traço pragmático ¾ uma implicatura ¾, é passível de ser cancelado: e certo especificadores também são admitidos em contextos em que o falante desconhece a identidade ou propriedades do referente do SN.

Como diferença entre as formas pesquisadas, apontamos que parece ter preferência quando o falante pretende implicar que a identidade ou propriedades daquilo a que se refere não vêm ao caso para os fins da conversação corrente, não sendo relevantes para o ouvinte. O certo, em contraste, parece favorecer implicaturas como a de ser o referente algo importante para o falante por algum motivo. Além disso, o , diferentemente do certo, pode trazer valoração negativa, qualificando o nome por ele modificado como de baixa qualidade, ruim, "qualquer". Essas implicaturas relacionam-se ao contexto de uso e às intenções do falante, uma vez que não estão obrigatoriamente presentes a cada uso de ou de certo especificadores nem relacionadas de modo categórico a nenhum dos itens investigados.

Consideramos, portanto, que as diferenças entre e certo especificadores são diferenças de natureza pragmática e não semântica, pois cada um deles movimenta um conjunto diferenciando de implicaturas, as quais são passíveis de cancelamento dependendo do contexto de uso e das intenções do falante. Quanto ao aspecto semântico, temos o traço [+específico] transmitido ao SN indefinido por e certo em todos os seus empregos como modificadores.

Finalizamos deixando algumas sugestões de continuidade para este trabalho. Seria interessante investigar a relação do uso especificador do com uma fala mais informal e do uso especificador do certo com uma fala mais formal, ou mesmo a relação do com a fala e do certo com a escrita, hipóteses levantadas por várias pessoas com quem testamos os dados. Seria igualmente interessante investigar a possibilidade de emprego de outros itens de origem adverbial como modificadores, caso do em "Um cara lá me disse que tu não vinhas." Estaria esse apontando para um lugar (com valor de "naquele lugar"), situando o falante em um lugar (algo como "um cara que está lá/estava lá") ou atuando como modificador de SN? Se este é um modificador de SN, quais as semelhanças e diferenças entre ele e o modificador?

  • CUNHA, C. F. da (1994) Gramática da Língua Portuguesa 12ª ed. Rio de Janeiro: MEC-FAE.
  • ENÇ, M. (1991) The Semantics of Specificity. Linguistic Inquiry 22: 01-25.
  • GRICE, H. P. (1975) Logic and Conversation. In: COLE, P. & J. L. MORGAN (eds.). Syntax and Semantics 3: Speech Acts New York: Academic Press: 41-58.
  • HINTIKKA, J. (1986) The Semantics of A certain Linguistic Inquiry 17: 331-336.
  • LEVINSON, S. C. (1983) Conversational Implicature. In: Pragmatics Cambridge: Cambridge University Press: 97-166.
  • TAVARES, M. A. (2000) Estudo de uma mudança ž gramaticalização do como modificador de SNs. UFSC. Mimeo.
  • *
    Agradeço à Prof. Roberta Pires de Oliveira (UFSC) pela dedicada e incansável orientação prestada no decorrer da elaboração deste artigo, que fez parte do meu processo de qualificação no Curso de Doutorado em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Agradeço também aos professores Edair M. Gorski (UFSC) e Heronides M. de M. Moura (UFSC) pela leitura deste texto e valiosas sugestões.
  • 1
    Uma análise mais aprofundada acerca das três possibilidades de interpretação da sentença (1), as dêiticas e a modificadora de SN indefinido, pode ser conferida em Tavares (2000).
  • 2
    A única execeção é a sentença (50), extraída da fala de um personagem de novela televisiva.
  • 3
    A noção que nos interessa aqui é a de indefinitude, portanto não apresentamos a noção de definitude proposta por Enç (1991).
  • 4
    Encontramos diferentes denominações para o uso do
    certo aqui investigado: adjetivo (Enç, 1991); pronome indefinido adjetivo (Cunha, 1994); expressão quantificadora ¾
    a certain (Hintikka, 1986). Optamos por chamá-lo 'item de especificidade' e 'modificador de SN', embora não tenhamos aprofundado a questão de qual a denominação mais adequada.
  • 5
    Ressaltamos que os sinais
    ? e
    * que antecedem algumas das sentenças listadas no corpo do texto referem-se à estranheza ou à impossibilidade de uma interpretação do
    presente em tais sentenças como item de especificidade, embora leituras dêiticas do item possam ser possíveis nos mesmos contextos.
  • 6
    O uso do
    em SNs com determinante nulo parece melhor em sentenças existenciais. Por exemplo:
    A: Deveriam tirar todas as árvores das ruas, pois elas só servem para sujar as calçadas.
    B:
    Mas tem árvores AÍ
    que são muito úteis.
  • 7
    Urge mencionar uma exceção a tal veto: é possível o uso, em sentença existencial, de SNs específicos (e definidos), como na sentença
    Tem a menina em resposta a uma interrogação como
    Tem alguém no prédio?
  • 8
    Exemplo do OED extraído de Cowper, 1785 (
    apud Hintikka, 1986:335).
  • 9
    "Implicação conversacional" é a expressão empregada por Hintikka na análise da sentença transcrita por nós em (44).
  • 10
    Observe a diferença entre
    Qualquer homem gosta de prostituta.
    versus
    Um homem qualquer gosta de prostituta. No primeiro caso,
    qualquer quantifica
    homem, no segundo,
    qualquer modifica
    homem.
  • 11
    Ressalve-se que não aprofundamos a questão da entonação, apenas testamos sentenças com alunos de graduação e pós-graduação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Maio 2002
    • Data do Fascículo
      2001
    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
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