Acessibilidade / Reportar erro

Fasciíte necrosante pós-osteossíntese de fratura transtrocantérica do fêmur Trabalho realizado no Hospital Felício Rocho, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Resumos

A fasciíte necrosante é uma rara e potencialmente letal infecção de partes moles. A seguir, descreveremos o caso de uma paciente portadora de fratura transtrocantérica do fêmur que evoluiu com fasciíte necrosante após a osteossíntese da fratura. Uma revisão da literatura acerca do tema será abordada.

Fasciíte necrosante; Infecção; Fraturas do quadril; Fraturas do fêmur


Necrotizing fasciitis is a rare and potentially lethal soft tissue infection. We report a case of trochanteric femur fracture in a patient who underwent fracture fixation and developed necrotizing fasciitis. A literature review on the topic will be addressed.

Necrotizing fasciitis; Infection; Hip fractures; Femoral fractures


Introdução

Fasciíte necrosante é uma infecção rara, diagnosticada erroneamente como uma infecção benigna. Faz-se necessário um alto grau de suspeição clínica para o pronto diagnóstico e imediato tratamento. A variável mais importante que influencia na mortalidade é o momento do desbridamento cirúrgico.

Ortopedistas são frequentemente os primeiros a avaliar pacientes com fasciíte necrosante e, portanto, devem conhecer sua apresentação clínica e o seu tratamento. O diagnóstico oportuno, o desbridamento cirúrgico e a antibioticoterapia parenteral de largo espectro são as chaves para o adequado tratamento.

O objetivo deste trabalho foi descrever a evolução fatal de uma paciente que apresentou fasciíte necrosante após osteossíntese de fratura transtrocantérica e fazer uma revisão da literatura dessa grave infecção.

Relato de caso

Paciente de 71 anos, feminina, com relato de queda no banheiro. Apresentava dor, impossibilidade para marcha, encurtamento, rotação externa e limitação dos movimentos do membro inferior esquerdo. Portadora de hipertensão arterial, diabetes, insuficiência cardíaca congestiva, cirrose hepática, esquistossomose com hipertensão porta e plaquetopenia. Radiografias da pelve e quadril esquerdo demonstravam fratura transtrocantérica instável (31-A2.2/AO-ASIF).

Paciente operada no quarto dia de internação após liberação da clínica médica. Feita estabilidade relativa da fratura (osteossíntese com DHS) e controle pós-operatório no CTI.

No segundo dia de pós-operatório, recebeu alta do CTI e foi iniciada fisioterapia motora com carga parcial progressiva com andador. Recebeu alta hospitalar no oitavo dia de internação.

Seis dias após a alta, a paciente retornou ao hospital com queixa de dor na perna esquerda. Apresentava edema, equimose e empastamento da panturrilha esquerda. O duplex-scan dos membros inferiores evidenciou trombose venosa profunda (TVP) no membro inferior esquerdo.

Iniciada anticoagulação com enoxaparina, subcutânea, seguida de warfarina, via oral.

Após dois dias, a paciente relatou dor persistente na face medial da coxa esquerda e apresentou febre (38ºC). Ausência de alterações cutâneas na ferida operatória.

Exames laboratoriais foram solicitados: hemoglobina: 7,5 g/dL; leucócito total: 2.400 mm3 (bastões: 7%, segmentados: 82%); plaquetas: 46.000/mm3; RNI: 1,94; TTPA: 41/26; PCR: 28,7 mg/dL.

A paciente evoluiu no dia seguinte com hipotensão (PA: 80 × 40mmHg), prostração e aparecimento de flictenas na região medial na coxa esquerda. Ausência de alívio da dor com o uso de opióides. Iniciada antibioticoterapia empírica (meropenem), sem melhora.

Suspeita de fasciíte necrosante por causa de dor intensa, rápido aparecimento de lesões bolhosas na coxa esquerda e refratariedade à analgesia.

Indicado desbridamento do membro inferior esquerdo, todavia a paciente apresentava discrasia sanguínea (RNI: 7,36 e PTTA 73/26).

Trocado o antibiótico para tigeciclina endovenosa. Encaminhada, em caráter de emergência, ao centro cirúrgico para fasciotomia ampla do membro inferior esquerdo, desbridamento cirúrgico e coleta de material para análise (figs. 1-3).

Figura 1
- Fasciíte necrosante no membro inferior esquerdo
Figura 2
- Aspecto anterior da perna esquerda. Observar extensa necrose e presença de flictenas
Figura 3
- Extensa necrose na face anteromedial da coxa esquerda

Paciente com choque séptico grave, refratário ao uso de aminas. Evoluiu a óbito.

O resultado da hemocultura e das amostras coletada durante a cirurgia identificou Acinetobacter baumannii/haemolyticus multirresistente. O germe era sensível somente a sulfametoxazol-trimetoprima, tigeciclina e tetraciclina.

Discussão

A fasciíte necrosante foi descrita em 1871 pelo cirurgião militar americano Joseph Jones. Em 1883, Fournier identificou a fasciíte necrosante que acomete o períneoeagenitália externa. Mas foi Wilson Ben, em 1952, que descreveu a necrose do subcutâneo e da fáscia superficial.

A fasciíte necrosante segue a uma lesão da epiderme. Em 45% dos casos, não se consegue identificar o local da injúria inicial.1-33. Mulla ZD. Treatment options in the management of necrotising fasciitis caused by Gro*up A treptococcus. Expert Opin Pharmacother. 2004;5(8):1695-700. As extremidades são mais comumente acometidas, mas o envolvimento do tronco e do períneo está relacionado ao elevado índice de mortalidade.44. Levine EG, Manders SM. Life-threatening necrotizing fasciitis. Clin Dermatol. 2005;23(2):144-7.,55. Carter PS, Banwell PE. Necrotising fasciitis: a new management algorithm based on clinical classification. Int Wound J. 2004;1(3):189-98.

Pacientes com idade maior do que 65 anos apresentam maior incidência da doença.1

Inicialmente, a doença apresenta-se com um edema local. Todavia, com o envolvimento dos tecidos circunjacentes, a toxicidade local é deflagrada e simula uma celulite. Mas a dor apresenta-se de grande intensidade e desproporcional à lesão cutânea. A progressão das margens do eritema numa velocidade maior do que 1 cm/h é um sinal importante para o diagnóstico nos estágios iniciais da fasciíte necrosante.66. Wong CH, Chang HC, Pasupathy S, Khin LW, Tan JL, Low CO. Necrotizing fasciitis: clinical presentation, microbiology, and determinants of mortality. J Bone Joint Surg Am. 2003;85(8):1454-60. Com a evolução do processo necrótico subjacente, surgem flictenas serosas que podem tornar-se hemorrágicas.

Febre, calafrios, hipotensão, taquicardia e alteração do nível de consciência, geralmente, estão presentes.22. Bisno AL, Stevens DL. Streptococcal infections of skin and soft tissues. N Engl J Med. 1996;334(4):240-5.,66. Wong CH, Chang HC, Pasupathy S, Khin LW, Tan JL, Low CO. Necrotizing fasciitis: clinical presentation, microbiology, and determinants of mortality. J Bone Joint Surg Am. 2003;85(8):1454-60.

Insuficiência renal aguda está presente em 35% dos pacientes, coagulopatia em 29%, insuficiência respiratória aguda em 14% e bacteremia em 46% dos pacientes.77. Kaul R, McGeer A, Low DE, Green K, Schwartz B. Population-based surveillance for Group A streptococcal necrotizing fasciitis: clinical features, prognostic indicators, and microbiologic analysis of seventy-seven cases Ontario Group A Streptococcal Study. Am J Med. 1997;103(1):18-24.

A dor de grande intensidade é o sintoma mais sensível e observado em quase 100% dos pacientes com fasciíte necrosante.88. Young MH, Aronoff DM, Engleberg NC. Necrotizing fasciitis: pathogenesis and treatment. Expert Rev Anti Infect Ther. 2005;3(2):279-94.

O diagnóstico é eminentemente clínico e é essencial o alto grau de suspeição. A média de tempo entre o início dos sintomas e o diagnóstico é de 2-4 dias.99. Wysoki MG, Santora TA, Shah RM, Friedman AC. Necrotizing fasciitis: CT characteristics. Radiology. 1997;203(3):859-63.

Contagem de leucócitos > 15.400 células/mm3 e um nível de sódio sérico < 135 mmol/l apresentam sensibilidade de 90% para fasciíte necrosante. A especificidade é de 76% e o valor preditivo positivo de 26%, o que demonstra ser útil apenas para afastar a doença.1010. Wall DB, Klein SR, Black S, de Virgilio C. A simple model to help distinguish necrotizing fasciitis from nonnecrotizing soft tissue infection. J Am Coll Surg. 2000;191(3):227-31.

Níveis de fosfocreatina > 600 UI/L apresentam 58% de sensibilidade e 95% de especificidade.1111. Simonart T. Group a beta-hemolytic streptococcal necrotising fasciitis: early diagnosis and clinical features. Dermatology. 2004;208(1):5-9.

A ressonância magnética tem alta sensibilidade (93% a 100%) para o diagnóstico. Tecido inflamatório liquefeito e edema em torno da fáscia são detectados pelo aumento do sinal nas imagens ponderadas em T2 e ausência de atenuação do gadolíneo em T1.

O "teste do dedo" é um procedimento simples sob anestesia local. Faz-se uma incisão de 2 cm até a fáscia profunda e o dedo enluvado é inserido. A presença de tecido subcutâneo liquefeito, a ausência de sangramento e a pouca aderência do tecido subcutâneo durante dissecção romba definem um teste positivo. Uma amostra do tecido é ressecada e enviada para análise bacterioscópica, cultura e anatomopatológico.

Histologicamente, a fasciíte necrosante é caracterizada por necrose focal supurativa da fáscia, gordura e nervos, edema dos septos fibrosos e infiltração por polimorfonucleares.

Antibioticoterapia empírica parenteral pode ser iniciada com imipenem, meropenem, ampicilina/sulbactam ou piperacilina/tazobactam associados a clindamicina. O antibiótico é complementar ao desbridamento.

Em pacientes alérgicos à penicilina, ceftazidima, associada a clindamicina, é uma opção.1212. Smith RJ, Berk SL. Necrotizing fasciitis and nonsteroidal anti-inflammatory drugs. South Med J. 1991;84(6):785-7.

A mortalidade da fasciíte necrosante varia de 6% a 76%.1313. Wong CH, Khin LW, Heng KS, Tan KC, Low CO. The LRINEC (Laboratory Risk Indicator for Necrotizing Fasciitis) score: a tool for distinguishing necrotizing fasciitis from other soft tissue infections. Crit Care Med. 2004;32(7):1535-41. Pacientes com mais de 60 anos apresentam alto índice de mortalidade. Trombocitopenia, alteração da função hepática, hipoalbuminemia, insuficiência renal aguda, aumento lactato sérico estão associados com mortalidade.1414. Golger A, Ching S, Goldsmith CH, Pennie RA, Bain JR. Mortality in patients with necrotizing fasciitis. Plast Reconstr Surg. 2007;119(6):1803-7.

A mortalidade pode chegar a 100% nos casos não operados e no caso de mionecrose.77. Kaul R, McGeer A, Low DE, Green K, Schwartz B. Population-based surveillance for Group A streptococcal necrotizing fasciitis: clinical features, prognostic indicators, and microbiologic analysis of seventy-seven cases Ontario Group A Streptococcal Study. Am J Med. 1997;103(1):18-24. Entretanto, a taxa de mortalidade cai para 12% se o diagnóstico e o tratamento forem feitos nos primeiros quatro dias do início dos sintomas.1515. Morantes MC, Lipsky BA. "Flesh-eating bacteria": return of an old nemesis. Int J Dermatol. 1995;34(7):461-3.

Conclusão

A fasciíte necrosante é uma doença infecciosa grave. Necessita de um alto grau de suspeição clínica para iniciar a antibioticoterapia e o desbridamento.

Apesar do diagnóstico de fasciíte necrosante e da indicação de desbridamento, a discrasia sanguínea impossibilitou a cirurgia em tempo hábil para que o quadro clínico fosse revertido.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Dufel S, Martino M. Simple cellulitis or a more serious infection? J Fam Pract. 2006;55(5):396-400.
  • 2
    Bisno AL, Stevens DL. Streptococcal infections of skin and soft tissues. N Engl J Med. 1996;334(4):240-5.
  • 3
    Mulla ZD. Treatment options in the management of necrotising fasciitis caused by Gro*up A treptococcus. Expert Opin Pharmacother. 2004;5(8):1695-700.
  • 4
    Levine EG, Manders SM. Life-threatening necrotizing fasciitis. Clin Dermatol. 2005;23(2):144-7.
  • 5
    Carter PS, Banwell PE. Necrotising fasciitis: a new management algorithm based on clinical classification. Int Wound J. 2004;1(3):189-98.
  • 6
    Wong CH, Chang HC, Pasupathy S, Khin LW, Tan JL, Low CO. Necrotizing fasciitis: clinical presentation, microbiology, and determinants of mortality. J Bone Joint Surg Am. 2003;85(8):1454-60.
  • 7
    Kaul R, McGeer A, Low DE, Green K, Schwartz B. Population-based surveillance for Group A streptococcal necrotizing fasciitis: clinical features, prognostic indicators, and microbiologic analysis of seventy-seven cases Ontario Group A Streptococcal Study. Am J Med. 1997;103(1):18-24.
  • 8
    Young MH, Aronoff DM, Engleberg NC. Necrotizing fasciitis: pathogenesis and treatment. Expert Rev Anti Infect Ther. 2005;3(2):279-94.
  • 9
    Wysoki MG, Santora TA, Shah RM, Friedman AC. Necrotizing fasciitis: CT characteristics. Radiology. 1997;203(3):859-63.
  • 10
    Wall DB, Klein SR, Black S, de Virgilio C. A simple model to help distinguish necrotizing fasciitis from nonnecrotizing soft tissue infection. J Am Coll Surg. 2000;191(3):227-31.
  • 11
    Simonart T. Group a beta-hemolytic streptococcal necrotising fasciitis: early diagnosis and clinical features. Dermatology. 2004;208(1):5-9.
  • 12
    Smith RJ, Berk SL. Necrotizing fasciitis and nonsteroidal anti-inflammatory drugs. South Med J. 1991;84(6):785-7.
  • 13
    Wong CH, Khin LW, Heng KS, Tan KC, Low CO. The LRINEC (Laboratory Risk Indicator for Necrotizing Fasciitis) score: a tool for distinguishing necrotizing fasciitis from other soft tissue infections. Crit Care Med. 2004;32(7):1535-41.
  • 14
    Golger A, Ching S, Goldsmith CH, Pennie RA, Bain JR. Mortality in patients with necrotizing fasciitis. Plast Reconstr Surg. 2007;119(6):1803-7.
  • 15
    Morantes MC, Lipsky BA. "Flesh-eating bacteria": return of an old nemesis. Int J Dermatol. 1995;34(7):461-3.
  • Trabalho realizado no Hospital Felício Rocho, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2014

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2012
  • Aceito
    22 Mar 2013
Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia Al. Lorena, 427 14º andar, 01424-000 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: 55 11 2137-5400 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbo@sbot.org.br