Hábito alimentar do bagre Sciades herzbergii (Siluriformes, Ariidae) da Ilha dos Caranguejos, Maranhão, Brasil

Feeding habits of the catfish Sciades herzbergii (Siluriformes, Ariidae) in Caranguejos Island, Maranhão, Brazil

dieta; Ariidae; diversidade

diet; Ariidae; diversity

COMUNICAÇÃO COMMUNICATION

Hábito alimentar do bagre Sciades herzbergii (Siluriformes, Ariidae) da Ilha dos Caranguejos, Maranhão, Brasil

Feeding habits of the catfish Sciades herzbergii (Siluriformes, Ariidae) in Caranguejos Island, Maranhão, Brazil

E.B. Ribeiro; Z.S. Almeida; R.N.F. Carvalho-Neta

Universidade Estadual do Maranhão - UEMA - São Luís, MA

Palavras-chave: dieta, Ariidae, diversidade

ABSTRACT

The article describes the feeding habits of the catfish Sciades herzbergii caught in the Crabs Island (Ilha dos Caranguejos), an important coastal area of the Maranhão state, Brazil. A total of 167 individuals were collected: 110 females and 57 males. All the stomach contents were identified to the closest taxonomic level. The frequency of occurrence, biomass, numerical frequency and index of relative importance (IRI) of food items were determined for both genders. Stomach repletion was predominant, demonstrating good feeding conditions for S. herzbergii. The main alimentary items in the diet of this catfish were crustaceans, fish, oligochaets and polychaets, and the decapods crustaceans were the most representative.

Keywords: diet, Ariidae, diversity

Sciades herzbergii é uma espécie estuarino-residente abundante no litoral maranhense, a qual apresenta relativa importância comercial na pesca artesanal do estado. Estudos anteriores indicam que S. herzbergii é uma espécie da família Ariidae dominante na Ilha dos Caranguejos (Carvalho-Neta e Abreu-Silva, 2010). Porém, apesar da importância ambiental da Ilha dos Caranguejos (que faz parte de uma Área de Proteção Ambiental estadual desde 1991), ainda são escassos os estudos abordando características bioecológicas da ictiofauna ocorrente na área, aspectos essenciais para o monitoramento, o manejo e a conservação dos recursos pesqueiros (Carvalho-Neta et al., 2012).

Para a determinação do potencial sustentável de um recurso pesqueiro, faz-se necessário um abrangente estudo que envolva, entre outros aspectos, o estudo da estrutura trófica que se estabelece em um ecossistema aquático. Dessa forma, estudos sobre hábitos alimentares de peixes de importância comercial podem subsidiar planos de manejo voltados para a exploração racional de estoques de peixes e de outros organismos marinhos. Na perspectiva de fornecer informações científicas que auxiliem na compreensão das relações tróficas de Sciades herzbergii na Ilha dos Caranguejos, neste estudo objetivou-se analisar a dieta da espécie por meio do exame dos conteúdos gástricos.

A Ilha dos Caranguejos está situada na Baía de São Marcos entre as coordenadas 03º2'18''- 02º42'25'' S e 44º40'25''- 44º26'46'' W. Essa região é classificada como "ilha de pequena altitude" e é considerada a maior faixa contínua de manguezal do Maranhão.

Na área de estudo, os exemplares de S. herzbergii foram capturados em armadilhas fixas de pesca, conhecidas como tapagem. Foram feitas quatro coletas no período de setembro/2007 a abril/2008, em três igarapés explorados pela pesca artesanal, denominados pelos pescadores locais como Tronco, Pescada e Açu.

Após as capturas, os espécimes foram transportados em caixas isotérmicas para o laboratório, onde foram registrados os dados biométricos de peso (g), comprimento total (cm) e comprimento padrão (cm). Os exemplares foram dissecados para a retirada dos estômagos, os quais foram analisados e tiveram os itens alimentares extraídos e identificados com auxílio de estereomicroscópio e chaves de identificação específica para os diferentes táxons.

O grau de enchimento dos estômagos (estágio de repleção) obedeceu à seguinte escala: estágio 1 – estômago vazio; estágio 2 – ¼ de estômago cheio; estágio 3 – ½ de estômago cheio; estágio 4 – estômago totalmente cheio. Para o grau de digestão dos itens alimentares, utilizou-se a escala: estágio 1 – digerido; estágio 2 – semidigerido; estágio 3 – não digerido.

Essas duas escalas foram adaptadas a partir de Héran (1987). Como Crustacea representou o maior percentual de recursos alimentares, utilizou-se uma escala específica para análise da digestão desses organismos: estágio 10 – itens intactos de consistência firme; estágio 20 – início da digestão e ação das enzimas digestivas; estágio 30 – abdômen separado do cefalotórax e de difícil identificação dos indivíduos que se aglomeram em uma massa; estágio 40 – restos indistinguíveis formando uma massa pastosa e, em geral, os olhos permanecem.

As possíveis diferenças entre comprimento e peso de machos e fêmeas foram testadas por meio da ANOVA. A correlação linear foi empregada para a comparação entre estrutura em comprimento total do peixe e comprimento do estômago, bem como peso total e peso do estômago.

A contribuição de cada presa na constituição da dieta foi indicada pela frequência relativa da porcentagem de ocorrência (FO), frequência relativa da porcentagem numérica (FN) e frequência relativa da porcentagem da biomassa (BM), conforme Hyslop (1980). A frequência relativa foi calculada pelo número de indivíduos de uma determinada presa dividido pelo número total de presas.

O índice de importância relativa (IIR) - no qual a porcentagem da frequência de ocorrência (% FO) de cada categoria de presa é associada com a porcentagem da biomassa (% BM) ou volume (% V) e a porcentagem numérica (% N) – também foi determinado, utilizando-se a seguinte equação IIR = (%FN+%BM) x %FO indicada por Cortés (1997).

A diversidade de itens alimentares foi calculada utilizando-se o índice de Simpson e o índice Shannon-Wiener. Calculou-se também a riqueza de espécies (índice de Margalef) e a equitabilidade dos táxons identificados na dieta dos bagres. Para analisar a similaridade entre os recursos alimentares, foi utilizado o coeficiente de Bray-Curtis.

Foram amostrados 167 exemplares de Sciades herzbergii, sendo 110 fêmeas e 57 machos. O comprimento total dos bagres variou de 48,5cm a 21,2cm, e os pesos oscilaram entre 1100g e 66,13g. A análise estatística revelou não haver diferença estatística significativa (P≤0,05) da relação peso/comprimento entre machos e fêmeas.

Os pesos dos estômagos com alimento variaram de 90,98g a 2,2g, enquanto os estômagos vazios variaram entre 33,8g e 1,17g. O comprimento dos estômagos variou entre 6cm e 29,5cm. Na análise entre os parâmetros comprimento total do bagre e comprimento do estômago, observou-se uma correlação positiva (Fig. 1a). Os pesos relacionados com o total corporal do peixe e o peso do estômago também se correlacionaram positivamente (Fig. 1b).

Para o grau de repleção, obtiveram-se os seguintes percentuais: 57% dos indivíduos com estômagos "cheios"; 23% com "1/2 de estômagos cheios"; 16% "com ¼ de estômagos cheios"; 4% de estômagos vazios. Em todas as coletas, os estômagos totalmente cheios foram mais representativos em comparação com as outras categorias de repleção, sendo que os maiores valores foram observados nas coletas do período chuvoso (dez/07 e fev/08).

Para o grau de digestão dos conteúdos estomacais, os dados demonstraram que 55% estavam no estágio "semidigerido"; 29% "digerido" e apenas 16% no estágio "não digerido". Em todas as coletas, os estômagos com alimento semidigerido foram mais frequentes em comparação com as outras categorias de digestão.

Na análise da frequência de ocorrência, os itens mais abundantes nos estômagos de machos e fêmeas de S. herzbergii nos quatro períodos de coleta foram Crustacea Decapoda, seguidos de Osteichthyes, Polychaeta, Oligochaeta, fragmentos de algas e Platyhelminthes. Em frequência de biomassa, obtiveram-se para fêmeas (n= 110): 43% de crustáceos, 2% de peixes, 1% de poliquetos, 1% de oligoquetos e 1% de fragmentos de algas. Para machos (n= 57), obtiveram-se: 49% de crustáceos e 3% de peixes.

Os Crustacea apresentaram-se como presas dominantes na alimentação de S. herzbergii. O grau de digestão desses organismos-presas mostrou: 55% dos estômagos com o abdômen separado do cefalotórax com difícil identificação dos indivíduos que se aglomeravam em uma massa; 30% em início da digestão e ação das enzimas digestivas; 7,5% com restos indistinguíveis formando uma massa pastosa; 7,5% com itens intactos de consistência firme. As principais espécies de Crustacea encontradas nos estômagos de S. herzbergii foram: Uca maracoani, Uca rapax, Uca leptodactyla, Ucides cordatus, Goniopsis cruentata, Ocypode quadrata e Litopenaeus schmitti.

O índice de importância relativa (IIR) dos itens alimentares indicou para fêmeas (n = 110): 43% de crustáceos, 1,5% de peixe, 0,5% de poliquetos e 0,5% de oligoquetos. Para machos (n= 57), obtiveram-se: 52,6% de crustáceos, 1,9% de peixe.

Os cálculos da riqueza e da diversidade de espécies presentes na dieta de S. herzbergii foram maiores no período chuvoso (Tab. 1). A dominância (D) foi crescente a partir do período de estiagem (set/2007) até um dos meses que mais chove na região (abril).

A análise de similaridade (Fig. 2) de todos os recursos alimentares identificados na dieta de S. herzbergii permitiu estabelecer três grupos diferenciados. O primeiro foi caracterizado por Polychaeta e Platyhelminthes, o segundo por Oligochaeta e fragmentos de algas, e o terceiro agrupamento envolveu Nematoda e Osteichthyes. A categoria Decapoda isolou-se dos demais, apresentando maior contribuição de itens alimentares e menor similaridade.

Os indivíduos de S. herzbergii apresentaram, em sua maioria, algum grau de repleção estomacal, indicando um processo alimentar diário contínuo em um ambiente com abundância de organismos-presas. Todavia, no período chuvoso, a frequência de repleção no estado cheio foi maior. Esse dado pode estar relacionado à atividade reprodutiva da espécie nesse período. De acordo com estudos realizados na região por Carvalho-Neta e Castro (2008), muitos indivíduos dessa espécie (80%) de bagre estão aptos a desovar na época chuvosa (dezembro a junho).

Quanto à digestão, a maioria dos conteúdos gástricos da espécie analisada apresentou-se no estágio semidigerido ou no não digerido, sugerindo que os peixes tenham se alimentado em um momento próximo ao período de captura ou apresentem um processo metabólico lento de partes corporais duras (carapaças) da maioria das presas, a exemplo dos crustáceos decápodes. Nesta categoria de alimento Crustácea, foram identificadas seis espécies de caranguejos e uma espécie de camarão. Outras categorias de recurso alimentar foram mais raras e de difícil identificação, em razão do alto grau de digestão dos itens.

Também foi verificada a presença de vermes nematoides aderidos aos crustáceos-presas encontrados nos estômagos dos bagres analisados. Apesar de terem sido contabilizados como itens, esses vermes não devem fazer parte da dieta de S. herzbergii. É provável que os nematoides sejam endoparasitos dos bagres ou mesmo de suas presas que são engolidas inteiras. Em estudos anteriores, Ribeiro e Carvalho-Neta (2007) verificaram essa possível relação, pois os vermes estavam presentes nas patas ainda não digeridas dos crustáceos-presas (caranguejos do gênero Uca).

Os crustáceos decápodes apresentaram-se como presas predominantes na alimentação de S. herzbergii e ficaram isolados na análise de agrupamento realizada para os táxons identificados nos estômagos dos bagres. A grande representatividade deste alimento pode ser devido às adaptações do aparelho bucal dos bagres ou atribuída à grande disponibilidade dos caranguejos no ambiente (Mishima e Tanji, 1982). De acordo com Zavala-Camim (1996), o comportamento de uma determinada espécie não está associado apenas à abundância de determinados organismos-presas no ambiente, mas ao tamanho dessa presa, à forma e disposição da boca do predador, ao tamanho dos dentes, à morfologia do aparelho digestório e às táticas de forrageio. Assim, além da disponibilidade das presas no ambiente, a forma da boca e as rígidas placas dentígeras de S. herzbergii atestam sua capacidade de realizar grande aproveitamento de material rígido, especialmente carapaças de crustáceos. Sabe-se que ressalvas devem ser consideradas sobre essa categoria de itens alimentares, visto que a carapaça e as patas articuladas dos crustáceos tendem a permanecer por mais tempo no estômago dos peixes quando comparados com os itens mais rapidamente digeríveis (Chaves e Vedel, 1996).

Apesar da predominância dos crustáceos, outros itens compuseram a alimentação S. herzbergii. Todavia, como os crustáceos tiveram maior frequência de ocorrência, biomassa e importância relativa na dieta de machos e fêmeas, durante todas as épocas do ano, é possível considerar S. herzbergii como uma espécie carcinófaga especializada em crustáceos decápodes.

Conclui-se que os aspectos observados na dieta de S. herzbergii demonstram expressiva adaptação da espécie ao ambiente estuarino da Ilha dos Caranguejos, já que os recursos alimentares principais utilizados destacaram-se por serem, quase em sua maioria, autóctones quanto à fonte de origem. A espécie pode ser classificada como carcinófaga, com forte tendência à especialização alimentar em crustáceos decápodes.

Recebido em 17 de agosto de 2011

Aceito em 20 de julho de 2012

E-mail: [e-mail]

• CARVALHO-NETA, R.N.F.; ABREU-SILVA, A.L. Sciades herzbergii oxidative stress biomarkers: an in situ study of estuarine ecosystem (São Marcos' Bay, Maranhão, Brazil). Braz. J. Oceanogra, v.58, p.11-17, 2010.
• CARVALHO-NETA, R.N.F.; CASTRO, A.C.L. Diversidade das assembleias de peixes estuarinos da Ilha dos Caranguejos, Maranhão. Arq. Cienc. Mar., v.41, p.48-57, 2008.
• CARVALHO-NETA, R.N.F.; TORRES Jr., A.R.; ABREU-SILVA, A.L. Biomarkers in Catfish Sciades herzbergii (Teleostei: Ariidae) from polluted and non-polluted areas (São Marcos' Bay, Northeastern Brazil). Appl. Biochem. Biotechnol., v.166, p.1-12, 2012.
• CHAVES, P.T.C.; VEDEL, A.L. Aspectos da alimentação de Genidens genidens (Valenciennes) (Siluriformes, Ariidae) na baía de Guaratuba, Paraná. Rev. Brasil. Zool., v.13, p.669-675, 1996.
• CORTÉS, E.A critical review of methods of studyng fish feeding based on analysis of stomach contents: application to elasmobranch fishes. Can J. Fish Aquat. Sci., v.54, p.726-738, 1997.
• HÉRAN, R.A. Análises de contenidos estomacales em peces Caracas: Inf. Tec. Inst. Esp. Oceanografia. 1987. 74p.
• HYSLOP, E.J. Stomach contents analysis - a review of methods and their application. J. Fish Biol., v.17, p.411-429, 1980.
• MISHIMA, M.; TANJI, S. Nicho alimentar de bagres marinhos (Teleostei, Ariidae) no complexo estuarino lagunar de Cananéia (25ºS, 48ºW). Bol. Inst. Pesca, v.9, p.131-140, 1982.
• RIBEIRO, E.B.; CARVALHO-NETA, R.N.F. Ecologia trófica de Sciades herzbergii (Siluriformes, Ariidae) da Ilha dos Caranguejos MA. In: VIII Congresso de Ecologia do Brasil, 2007, Caxambu. Anais... Caxambu: SEB, 2007. p.1-3. Disponível em:<http://www.seb-ecologia.org.br/viiiceb/pdf/890.pdf>. Acessado em: 09 ago. 2011.
• ZAVALA-CAMIN, L.A. Introdução aos estudos sobre alimentação natural em peixes Maringá: EDUEM, 1996. 129p.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  10 Jan 2013
• Data do Fascículo
  Dez 2012

Histórico

• Recebido
  17 Ago 2011
• Aceito
  20 Jul 2012