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A independência do Brasil na historiografia escolar portuguesa (1880-1960)

The Independence of Brazil in Portuguese School Historiography (1880-1960)

RESUMO

A historiografia escolar portuguesa buscou gerar certos consensos acerca da separação entre Brasil e Portugal. Objetivando revelá-los, consultamos um universo de 61 livros didáticos dirigidos às distintas fases da formação escolar lusitana de aquém e além-mar, publicados entre 1880-1960. O exame deste material demonstrará a sutileza das manobras analíticas em torno do melindroso tópico, as quais, via de regra, pretendiam minimizar o foco na ruptura histórica e em suas nefastas consequências para o Império português. Não obstante, o assunto também suscitou silêncios estratégicos, quando não a formulação de resumos superficiais, visando evitar que o episódio brasileiro se tornasse um paradigma de inspiração independentista em mãos de estudantes das escolas ultramarinas, que adotavam manuais elaborados na metrópole. Simultaneamente, discutiremos as transformações político-ideológicas e historiográficas que moldaram as abordagens escolares ao processo de autonomização do Brasil dentro do recorte cronológico proposto.

Palavras-chave:
Independência do Brasil; manuais escolares; historiografia escolar portuguesa

ABSTRACT

The Portuguese school historiography has tried to generate certain consensuses about the separation between Brazil and Portugal. In order to reveal them, we have consulted a universe of 61 textbooks aimed at the distinct phases of Lusitanian school education, both inland and overseas, published between 1880-1960. The examination of this material will show the subtlety of the analytical maneuvers around the sensitive topic, which, as a rule, intended to minimize the focus on the historical rupture and its dire consequences for the Portuguese Empire. Nevertheless, the subject also gave rise to strategic silences, if not the formulation of superficial summaries, in order to avoid the Brazilian episode becoming an independence-inspired paradigm in the hands of students from overseas schools, which adopted textbooks prepared in the metropolis. Simultaneously, I will discuss the political-ideological and historiographical transformations that shaped the school approaches to Brazil’s autonomy process within the proposed chronological frame.

Keywords:
Independence of Brazil; School textbooks; Portuguese school historiography

1- INTRODUÇÃO

A presente investigação examinará um conjunto de 61 manuais escolares portugueses elaborados entre os anos de 1880 e 1960, adotados em sucessivas fases da formação escolar lusa - desde o ensino primário ementar ao ensino liceal -, que versavam sobre a temática do processo de separação política entre Brasil e Portugal. Eventualmente, este tópico também integrou as lições do material didático empregado em escolas regimentais e no ensino técnico e profissional. Esclarecemos de antemão que não pretendemos utilizar o mote da independência do Brasil para realizar uma “história do livro” ou “dos livros de história” portugueses, incorrendo no risco de simplificá-los à “história de um tema, de uma noção, de um personagem, de uma disciplina” (Choppin, 2004CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa, São Paulo: FE; USP, v. 30, n. 3, pp. 549-566, set./dez. 2004. , p. 554). Tampouco empreenderemos uma investigação voltada a questões mais amplas do processo de ensino e aprendizagem do sistema escolar luso. Em vez disso, investigaremos uma componente mais pragmática deste universo didático, relacionada ao modo como os manuais escolares portugueses organizaram e explicaram os ensinamentos sobre o nascimento da soberania brasileira. Portanto, trata-se de um trabalho monográfico, focado na crítica da historiografia escolar lusitana (1880-1960), cuja finalidade será apreender o(s) sentido(s) construído(s) e vulgarizado(s) sobre a desanexação brasileira do Império luso.

Posto isto, consideramos que o conceito de “historiografia escolar” merece alguns esclarecimentos prévios. Tomamos a referência conceitual cunhada por Rafael Montés para expressar “el interés por lo explícitamente manifestado por los manuales escolares de historia” correspondente a “una de sus primeras inquietudes que estuvieron a la base de su estudio, especialmente en su dimensión política e internacional” (Montés, 2002MONTÉS, Rafael Valls. La Historiografía escolar española en la época contemporánea: de los manuales de historia a la historia de la disciplina escolar. In: ÁLVAREZ, Carlos Forcadell; MARTÍN, Ignacio Peiró. Lecturas de la historia: nueve reflexiones sobre historia de la historiografía. Zaragoza: Institución Fernando el Católico, 2002. pp. 191-220. , p. 196). O autor precisa que, no caso espanhol, este campo de estudos constituiu-se no âmbito da própria renovação historiográfica nacional protagonizada por autores como Gonzalo Pasamar e Ignacio Peró. Mapeando as contribuições desses investigadores, Montés argumenta que “esto ocurrió no sólo por sus estudios sobre los manuales escolares y sus autores”, mas também pela “renovación conceptual y metodológica que impulsaron mediante su recepción de la nueva sociología del conocimiento y, más específicamente, de la sociología de la ciencia y de la profesionalización”. Subsequentemente, o autor espanhol acrescenta que “sus investigaciones sobre la difusión y divulgación de la historia” também foram decisivas para a formação da área temática designada por “historiografía escolar española” (Montés, 2002MONTÉS, Rafael Valls. La Historiografía escolar española en la época contemporánea: de los manuales de historia a la historia de la disciplina escolar. In: ÁLVAREZ, Carlos Forcadell; MARTÍN, Ignacio Peiró. Lecturas de la historia: nueve reflexiones sobre historia de la historiografía. Zaragoza: Institución Fernando el Católico, 2002. pp. 191-220. , p. 196).

No escopo do nosso trabalho priorizaremos esta concepção da historiografia escolar como agente de difusão e divulgação histórica. Paralelamente, orientaremos o nosso percurso analítico a partir das reflexões de Jörn Rüsen, o qual considera os livros didáticos “a ferramenta mais importante do ensino de história” (Rüsen, 2010RÜSEN, Jörn. O livro didático ideal. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA; Isabel; MARTINS, Estevão Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de ensino de história. Curitiba: Ed. da UFPR, 2010. pp. 108-127. , p. 109), tendo sido, durante muito tempo, um dos meios principais “para levar os resultados da investigação histórica até a cultura histórica de sua sociedade” (Rüsen, 2010RÜSEN, Jörn. O livro didático ideal. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA; Isabel; MARTINS, Estevão Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de ensino de história. Curitiba: Ed. da UFPR, 2010. pp. 108-127. , p. 109). Com base nestas concepções, desvelaremos como a historiografia escolar lusa corroborou para a formação de uma cultura histórica atinente ao tópico da autonomização política do Brasil.

Desenvolvendo seu ponto de vista sobre os textos históricos didáticos, Rüsen reconhece a “orientação cultural na vida da sociedade” (Rüsen, 2010RÜSEN, Jörn. O livro didático ideal. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA; Isabel; MARTINS, Estevão Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de ensino de história. Curitiba: Ed. da UFPR, 2010. pp. 108-127. , p. 109) como função pública daqueles. Mais além, o teórico alemão sugere a centralidade que a comunidade de professores e historiadores profissionais deve exercer no cerne dos debates e processos relativos à aplicação dos conhecimentos históricos na (re)elaboração deste material. Sob a luz destas ponderações, procuraremos desvendar as condições de produção dos manuais investigados, priorizando os aspectos relativos às suas filiações historiográficas e propondo alguns elementos que possam fomentar a renovação das abordagens a respeito da independência brasileira. Ademais, com base no axioma rüseniano que identifica o ensino de história como “uma das instâncias mais importantes para a formação política” (Rüsen, 2010RÜSEN, Jörn. O livro didático ideal. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA; Isabel; MARTINS, Estevão Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de ensino de história. Curitiba: Ed. da UFPR, 2010. pp. 108-127. , p. 110), trataremos das politizações e ideologizações do tema em pauta.

Seguidamente, elucidamos que a cronologia adotada se justifica a partir da composição dos primeiros programas da disciplina histórica em Portugal. De acordo com Luís Reis Torgal, “de início não havia propriamente regras definidoras dos temas a abordar, dependendo o ensino do professor e, depois, dos compêndios orientadores, que começaram a aparecer”. Assim, o primeiro programa com os conteúdos fixados para o ensino da história data de 1872, tendo sido avaliado por este autor como “muito vago”. Foi, então, a partir do “programma de 1880” que já se podem referenciar conteúdos mais estruturados. No que dizia respeito à história nacional portuguesa, “apesar das indicações serem mais vagas, o programa termina com o ‘estabelecimento do regime constitucional em Portugal e dificuldades que encontrou e venceu’” (Torgal, 1998TORGAL, Luís Reis. Ensino da história. In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Maria Amado; CATROGA, Fernando (Orgs.). História da história em Portugal. Séculos XIX-XX: da historiografia à memória histórica . 1. Ed. Lisboa: Editora Temas e Debates , 1998. pp. 85-152. , p. 90).

Foi, portanto, à volta do tópico sobre o constitucionalismo monárquico português, instituído pelo programa de 1880, que a independência do Brasil começou a constituir parte das lições de história de Portugal integradas nos compêndios e manuais escolares. Desde então, a temática foi se solidificando nos índices de conteúdos e páginas dos livros da disciplina histórica, dos quais chegaram, inclusive, a migrar para os compêndios de leitura e de geografia. Isto acontecia porque as fronteiras entre as disciplinas humanísticas não nasceram rígidas no sistema escolar português, como comprova a determinação da reforma Jaime Moniz (1894-95), para que os programas das disciplinas “se estabelecessem não apenas com os conhecimentos trazidos de trás, mas igualmente entre as ciências vizinhas” (Ó, 2009Ó, Jorge Ramos do. Ensino Liceal (1836-1975). Lisboa: Secretaria-Geral do Ministério da Educação, 2009. , pp. 32-33).

A partir da República, veremos que outras componentes historiográficas, políticas e ideológicas irão moldar o tratamento do 7 de setembro de 1822. Com a subsequente ascensão do autoritarismo político (1926) e a consolidação do regime estadonovista português (1933), para além destas questões, surgem distintos elementos subordinantes para as explanações manualísticas do episódio em questão, dentre os quais destacamos o relacionamento bilateral entre Portugal e Brasil.

Outras questões também foram decisivas para a escolha do período cronológico desta investigação. Neste sentido, lembramos que a renovação dos manuais não era constante, ou, pelo menos, não acompanhava o ritmo das transformações educativas impostas pelos sucessivos momentos políticos perscrutados. Assim, “a longevidade de alguns manuais escolares, que resistiam tenazmente às diversas reformas curriculares” com o intuito de servir a “uma estratégia nacionalista de fixação da memória coletiva”, acabou por fortalecer a “credibilidade que gozavam alguns autores” (Serrano, 2002SERRANO, Clara de Melo. A independência dos Países Ibero-americanos nos Manuais Escolares Portugueses. In: VALLS, Rafael (Dir.). Os processos independentistas Ibero-americanos nos manuais de História. Vol. 3: Brasil e Portugal. Madri: Fundación Mapfre, 2002. pp. 39-68. , p. 45). Diante deste caráter continuísta da instrução discente em terras lusitanas, julgamos que apenas em um espaço de tempo mais alongado poderíamos captar os matizes interpretativos acerca da independência do Brasil.

Todavia, a preservação dos conteúdos livrescos sobre a história pátria portuguesa explica-se por uma questão crucial. Ora, salvaguardadas as sensíveis mutações de cunho crítico-interpretativo, esta literatura produzida entre finais do século XIX e meados do século XX esteve alinhada com a concepção de uma “História acontecimento” embasada “na exposição narrativa de tipo tradicional”, à volta “de heróis e exemplos” de “reis e rainhas, batalhas e vitórias, de grandes feitos de um povo” (Vieira, 2013VIEIRA, Helena Isabel Almeida. A disciplina de História no Ensino Técnico (1926-1973): percurso entre a teoria e a prática. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Letras, Universidade do Porto. Porto, 2013., p. 85). Portanto, em sua íntegra, estes manuais assumiam a função de uma espécie de panteão nacional folheável em que se resumiam os pontos altos da história lusitana dignos de serem memorizados por seus leitores-estudantes. Nesta senda, buscaremos soluções plausíveis à seguinte aporia: como a separação de uma das colônias mais importantes do Império português foi abordada dentro desta visão sacralizadora do seu passado nacional? Incumbidos desta tarefa, propomos uma prévia e breve incursão pelas lições escolares acerca do “descobrimento” e da colonização do Brasil como meio de confrontarmos estes conteúdos com aqueles dedicados à gênese do Império brasileiro.

O “DESCOBRIMENTO” DO BRASIL

Os “descobrimentos” portugueses são retratados simultaneamente como o momento apoteótico da história pátria portuguesa e como o acontecimento fundante da civilização moderna, no seio do qual “Portugal” soube criar “um logar glorioso entre todas as nações do mundo” (Chagas; Magno, 1913CHAGAS, Franco; MAGNO, Aníbal. Primeiros esboços da História de Portugal: Ensino Primário. Lisboa: Tipographia Paulo Guedes, 1913., p. 91). Na realidade, a consagração histórica deste “período áureo” da história lusitana e “universal” estava a serviço de uma estratégia que tinha por finalidade resistir à “nova partilha imperialista do mundo” (Catroga, 1998CATROGA, Fernando. Ritualizações da História. In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Maria Amado; CATROGA, Fernando (Orgs.). História da história em Portugal. Séculos XIX-XX: da historiografia à memória histórica. 1. Ed. Lisboa: Editora Temas e Debates, 1998. pp. 221-361., p. 301). Por isso, o tratamento deste tema sugeria uma constante integração cultural e histórica entre a metrópole e suas colônias, “porque elas são a mais sólida garantia do nosso futuro e da nossa influencia mundial” (Chagas; Magno, 1913CHAGAS, Franco; MAGNO, Aníbal. Primeiros esboços da História de Portugal: Ensino Primário. Lisboa: Tipographia Paulo Guedes, 1913., p. 152).

No repertório dos “novos mundos ao mundo” que Portugal “descobriu” (Mattoso; Henriques, 19--MATTOSO, António G.; HENRIQUES, António. Casa Lusitana: Leituras da História de Portugal. 11. Ed. Lisboa: Editora da Livraria Sá da Costa, [19--]. , p. 155), o Brasil surge como uma referência constante em quase todos os manuais consultados, embora nem sempre abordada da mesma maneira. Assim, os livros de final do século XIX, em harmonia com a sua própria conjuntura de produção, podem ser identificados como espaços políticos de resistência aos apetites expansionistas do Império britânico (e demais potências imperiais europeias) pelos territórios que os portugueses dominavam na Ásia e, sobretudo, na África. Em face desta realidade, tais manuais priorizavam o emprego de uma lógica defensiva em suas unidades, atribuindo um protagonismo maior às viagens ao redor do continente africano e à figura de Vasco da Gama, e, em menor grau, ao personagem de Pedro Álvares Cabral.

A partir do século XX, os manuais introduzem novos elementos interpretativos nas narrativas acerca do “achamento” do Brasil. Destacam-se aqui as teses da intencionalidade de seu encontro, já presentes no Compendio de Geografia Elementar de 1919, onde se afirmava que “até há bem pouco a descoberta de Pedro Álvares Cabral, era considerada como casual”, motivada por “uma tempestade” que “levara os navios para uma corrente que os conduzira ao Brasil”. Porém, “a crítica moderna, o aparecimento de documentos referente ao acontecimento, as viagens anteriormente realizadas, tanto ao norte do continente novo (Lavrador), como às terras centrais (viagem de Duarte Pacheco Pereira), o próprio Tratado de Tordesilhas” e também “a alteração que nêle exigiu D. João II, o mapa de Alberto Cantino feito em Lisboa, e em que estava esboçado o litoral do continente norte-americano em ligação com o do sul (Brasil)” seriam algumas provas que “fazem hoje pôr de lado a casualidade da descoberta para se aceitar a intenção de D. Manuel em descobrir mais terras, ainda dentro da linha de marcação”. Finalmente, o autor conclui argumentando que “a ideia de que os navios foram arrastados por violentos temporais não é admissível”, porque, “na época em que a esquadra navegava, as tempestades sopram de noroeste-sudeste, devendo, portanto, afastar os veleiros da costa da América para o mar, isto é, para a Europa ou África” (Sá, 1919SÁ, Mario de Vasconcelos. Compendio de Geografia Elementar: parte III, para quinta classe dos liceus. Pôrto: Livraria Chardon de Lélo, 1919., pp. 54-57).

A partir do Estado Novo é possível assinalar uma vigência mais harmônica entre os impactos historiográficos das teses acerca da “intencionalidade” do “descobrimento” da Terra de Vera Cruz nos livros escolares. Tal fato deve-se às contribuições especiais de alguns historiadores como Capistrano de Abreu, Jaime Cortesão e Damião Péres, responsáveis pelo desenvolvimento de novas teorias acerca da chegada dos portugueses ao Brasil com base na carta de Pero Vaz de Caminha. Da década de 1930 em diante, alguns manuais se mostravam mais atualizados com estes estudos históricos: “Antes da armada de Pedro Álvares Cabral ter aportado às plagas do Brasil, a existência das terras a Ocidente era já uma certeza para os Portugueses” (Mattoso; Henriques, 19--MATTOSO, António G.; HENRIQUES, António. Casa Lusitana: Leituras da História de Portugal. 11. Ed. Lisboa: Editora da Livraria Sá da Costa, [19--]. , p. 131). Outros autores indagavam se a existência das terras do Atlântico Sul já era conhecida pelos navegadores portugueses: “Em 3 de maio de 1500, Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, ou foi tomar posse dessas terras, se é certo que já havia chegado Duarte Pacheco, no reinado de D. João II” (Pimenta, 1944PIMENTA, Romeu. A nossa história contada às crianças. Porto: Livraria Figueirinhas, 1944., p. 100).

No entanto, independentemente da expressividade destas teses nos manuais averiguados, ressalvamos que a ação heroica de Pedro Álvares Cabral permaneceu indiscutível. Ou seja, ainda que se admita a hipótese da intencionalidade devido à menção a “muitos factos” que “provam, que as terras do Brasil eram conhecidas dos portugueses antes de 1500”, a gesta do “descobridor” não é posta em causa, pois, ainda que “sabia-se, vagamente da existência de terras para Oeste dos Açores”, coube “a Cabral a honra de o demonstrar” (Portugal no mundo, 1966PORTUGAL NO MUNDO: livro de leituras para a 4ª classe. Lourenço Marques, Província de Moçambique, 1966., p. 65). Portanto, não se questiona a grandeza do feito realizado por Cabral, o qual, “por acaso ou de propósito”, chefiou a armada que avistou aquelas terras “em 1 de Maio de 1500, dia de Santa Cruz, razão porque o Navegador as baptizou com o nome de terras de Vera Cruz” (Livro de Leitura da Terceira..., 1965LIVRO DE LEITURA DA TERCEIRA classe. Luanda: Edições ABC, 1965., pp. 88-89). Muito pelo contrário, ressaltamos que a personalidade cabralina ombreava com a do Infante D. Henrique e a de Vasco da Gama no panteão nacional dos manuais escolares portugueses, não obstante o menor investimento memorial feito nos finais do século XIX. Nos manuais escolares, o culto à figura do “descobridor” seria complementado pelo dos colonizadores das novas terras Brasilis. Vejamos.

A COLONIZAÇÃO DO BRASIL

Quase todos os manuais escolares analisados realçam a ação colonizadora de D. João III no Brasil, e embora o tratamento deste tema possa variar, não foi possível distinguir maiores contradições em seu desenvolvimento. Nos livros do período monárquico, é possível observar certa ênfase sobre os efeitos negativos que o investimento inicial na colonização das futuras terras do Brasil trouxe para a defesa dos domínios lusos na África e nos territórios orientais. Assim, afirmava-se que “para dar maior desenvolvimento á colonisação do Brasil e ás conquistas orientaes”, D. João III teria determinado “que os portugueses evacuassem as praças de Alcacer, Arzilla e outras que ocupavam em Africa”, atitude valorada como “um grande erro”, ou “abandono, que fez tomar aos mouros, grande ousadia contra os christãos, tomando-o como prova de fraqueza d’estes” (Affreixo, 1882AFFREIXO, José Maria da Graça. Compendio de História de Portugal. Coimbra: Casa Minerva, 1882., p. 93). Além disso, continuamente, a colonização do Brasil era associada às empreitadas da expansão católica pelo mundo através de lições como “A primeira missa no Brasil”, ressaltando-se a oratória e os “méritos literários” do Padre António Vieira, denominado “o sagrado Cicero” e “pai da eloquência portuguêsa” (Mascarenhas, 1901MASCARENHAS, Arsénio Augusto Torres. Noticias de Alguns Homens Mais Notáveis: Episódios da História Portuguesa. 2. Ed. Lisboa: Typographia do Commercio, 1901., p. 100).

Por sua vez, os manuais republicanos promoveram uma relativa atualização de conteúdos, mediante a qual realizaram-se “mudanças terminológicas e de foro ideológico” (Magalhães, 2011MAGALHÃES, Justino. A República e o Livro Escolar. In: PROENÇA, M. C. (Coord.). Educar: Educação para Todos. Ensino na I República. 1. Ed. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República - CNCCR, 2011. pp. 98-111. , pp. 99-100) feitas à luz dos valores que o governo republicano intencionava socializar na formação escolar portuguesa. Deste modo, a influência da ideologia republicana plasmou-se na leitura da colonização brasileira, especialmente no desprezo dispensado à ação dos jesuítas e ao tratamento dos índios, talvez porque estes elementos estavam interligados e porque eram incompatíveis com o perfil anticlerical e laicista do novo regime em ascensão. Por essas razões, em alguns manuais, o tema em causa era retratado de modo sucinto e a ênfase deslocava-se para aspectos mais operacionais da gestão do processo colonizador, a exemplo da divisão da “nova possessão em capitanias” que foram distribuídas “por súditos portugueses, impondo-lhes a obrigação de formarem nelas estabelecimentos permanentes” (Mascarenhas, 1915MASCARENHAS, Arsénio Augusto Torres de. Compendio de História de Portugal : Ensino Secundário Oficial. Aprovado por decreto de 7 de setembro de 1907 para uso dos alunos das três primeiras classes dos Liceus. 7. Ed. Lisboa: Tipografia Corrêa e Rapozo, 1915. , p. 115).

Contudo, encontramos alusões às relações jesuítas-indígenas dentro do tema da colonização nos manuais monárquicos mantidos durante a República. Quase sempre sob a perspectiva da aculturação dos nativos no cerne das ações evangelizadoras dos jesuítas, os quais eram apresentados como sujeitos ativos da ação colonizadora, aqueles que “aprenderam a língua tapuia”, a “língua dos indígenas do Brazil”, e “converteram o gentio ás crenças christãs, adoçando-lhes os instintos ferozes” (Mascarenhas, 1915MASCARENHAS, Arsénio Augusto Torres de. Compendio de História de Portugal : Ensino Secundário Oficial. Aprovado por decreto de 7 de setembro de 1907 para uso dos alunos das três primeiras classes dos Liceus. 7. Ed. Lisboa: Tipografia Corrêa e Rapozo, 1915. , p. 158).

A partir do Estado Novo é possível perceber uma abordagem mais descritiva sobre a atuação dos agentes coloniais - jesuítas e bandeirantes -, não obstante estivessem eivadas de suavizações e abrandamentos acerca da violência intrínseca ao processo de colonização. Em ataque conjunto ao laicismo da I República e em harmonia com o projeto de recatolicização da sociedade portuguesa - segundo Manuel Braga da Cruz, a “revisão constitucional de 1935” estabeleceu como “orientação” do ensino público “os princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País” (Cruz, 1999CRUZ, Manuel Braga da. O Estado Novo e a Igreja Católica. 2. Ed. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1999. , p. 17) -, a centralidade total do tema recai sobre “a acção missionária da companhia de Jesus”. O referido grupo, “no Ultramar, foi enorme, e exerceu-se principalmente no Oriente e no Brasil”, devendo este país “a sua evangelização aos Jesuítas”; distinguindo-se entre eles os nomes dos “Padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta”, representantes daquela ordem, a maior responsável por seu “enorme progresso, tanto espiritual como material” (Barros, 1943BARROS, Tomaz de; LOBO, José. História de Portugal para a quarta classe do Ensino Primário: em harmonia com o novo Programa. Porto: Editora Educação Nacional, 1943. , p. 72).

Dentre os bandeirantes, nomeiam-se, como “um dos mais célebres”, o famigerado “António Raposo Tavares, que passa largos anos na selva, tantos que, ao regressar, vem tão desfigurado, que não é reconhecido pela própria família”. Estes “heróis” eram retratados como homens fiéis ao seu rei, os quais, em nome de tal lealdade, resistiam às adversidades naturais e climáticas dos sertões, dilatando as fronteiras da colônia brasileira e desenvolvendo a atividade econômica mineradora, a mais significativa para os cofres do Reino. Naturalmente, esta representação paladínica dos jesuítas e dos bandeirantes deixava completamente de fora a questão da escravização indígena e da africana, tema que poderia custar caro às idealizações do modelo colonial português veiculadas nestes conteúdos escolares.

Seguindo a cronologia das abordagens sobre o Brasil, mencionamos ainda o problema das invasões holandesas e, subsequentemente, o decurso de sua liberação política do domínio luso.

A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

De um modo geral, reforçamos a hegemonia do cânone positivista como marco da produção historiográfica escolar portuguesa sobre a independência brasileira durante todo o contexto cronológico que analisamos. Muito embora este tópico estivesse longe de ser considerado como um ponto alto da história pátria lusitana, ao contrário do seu “descobrimento” e da colonização, tal conteúdo foi construído nos moldes de uma visão monumentalizada do passado e não esteve isento de ser desenvolvido na perspectiva dos mitemas e mitologias nacionais, dos quais se pretendia “extorquir uma mais-valia simbólica” no presente a fim de fomentar o “patriotismo e a unidade nacional” (Catroga, 1998CATROGA, Fernando. Ritualizações da História. In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Maria Amado; CATROGA, Fernando (Orgs.). História da história em Portugal. Séculos XIX-XX: da historiografia à memória histórica. 1. Ed. Lisboa: Editora Temas e Debates, 1998. pp. 221-361., p. 222). A partir destas ilações, nos propomos a investigar como a separação política entre Brasil e Portugal foi tratada no cerne de uma paideia e de um regime historiográfico essencialmente cívico-patriótico.

Em primeiro lugar, destacamos um ponto convergente em todos os livros esquadrinhados. Trata-se da heroicização de D. Pedro IV de Portugal - ou D. Pedro I do Brasil - na elaboração dos textos escolares sobre a autodeterminação brasileira. Outro aspecto preponderante presente na organização destes ensinamentos consiste na sua associação à lição principal sobre o reinado de D. João VI, denominado “o Clemente”, alcunha empregada por diversos autores para destacar o temperamento deste rei, “sempre disposto a perdoar” (Romão et al., 1942ROMÃO, José et al. Resumo de História de Portugal: segundo os programas do Ensino Primário. 3. Ed. Lisboa: Livraria Albano de Sousa e Barbosa, 1942., p. 81). Assim, os manuais do período monárquico apontavam a figura do herdeiro do trono joanino como o grande artífice da emancipação política da ex-colônia americana, porque, ao suceder “seu pae” e ao tornar-se “imperador do Brazil”, agiu como uma espécie de visionário, “um principe que percebia as cousas, vio bem que o nosso tempo já não era tempo para absolutismos, e antes quiz dar elle uma constituição do que ir o povo arrancar-lh’a” (Chagas, 1880CHAGAS, Manuel Pinheiro. História Alegre de Portugal: leitura para o povo e para as Escolas. Lisboa: David Corazzi Editor, 1880., p. 122). A ligação familiar dos Bragança (rei e príncipe-regente feito Imperador) era constantemente ressaltada como elo remanescente entre as realidades luso-brasileiras, fórmula que também concedia centralidade à dinastia portuguesa no processo de nascimento do estado político brasileiro.

O enfoque nuclear na ação bragantina repercutiu na minimização, quando não na omissão absoluta, das contribuições populares e mesmo das considerações sobre o próprio contexto interno do Brasil, que culminaram no 7 de setembro de 1822. Some-se a isto a predominância de uma perspectiva consubstancialmente passiva da condução do processo emancipatório brasileiro, entendido como o desdobramento de uma série de acontecimentos que se consumaram em Portugal e na Europa, tais quais as invasões napoleônicas, a Revolução Liberal portuguesa, o retorno do Rei a Portugal, a formação das cortes vintistas e a elaboração da constituinte de 1822.

De modo particular, os manuais do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX apresentam dois nichos interpretativos essenciais sobre o tópico em apreço. O primeiro condiz com a retirada da Corte para o Brasil (1808), fato que, anos depois, teria contribuído para que “D. João VI elevara-o á cathegoria de reino em 1815”, e o segundo diz respeito aos impactos da eclosão e da consolidação da Revolução Liberal do Porto (1820). Neste caso, é habitual encontrar descrições sobre as consequências da insurreição, dentre as quais destacam-se principalmente a nomeação de “nova regencia”, a convocação das “cortes constituintes”, o retorno da “família real ao reino” e o juramento real “as bases da constituição em 1821” (Affreixo, 1882AFFREIXO, José Maria da Graça. Compendio de História de Portugal. Coimbra: Casa Minerva, 1882., p. 165), sendo todos estes fatos explicados como antecedentes determinantes para a definição da independência luso-americana.

Durante a República, o liberalismo, juntamente a aportes hermenêuticos de cunho antimonárquico e antiabsolutista, deram as notas das principais leituras sobre a desanexação Brasil-Portugal. Sob este prisma, encontramos relatos enfáticos a respeito das consequências desastrosas que a transferência da família real ao Rio de Janeiro trouxe à realidade política e socioeconômica portuguesa. Em alguns casos, os autores de manuais republicanos priorizavam esta análise em detrimento do próprio episódio da independência brasileira. Assim o fez Eurico de Seabra em sua Historia Summaria de Portugal: “D. Maria I faleceu em 1816” e “continuando D. João VI a residir no Brazil e tomando o título de rei do reino unido de Portugal, Brazil e Algarve”, a situação “no paiz era” de “enorme miséria ocasionada pelas devastações das guerras [...] o reino estava exhausto e todos os rendimentos os levava a corte do Brazil”. Além disto, acentuou-se que “a administração de Portugal estava confiada a uma regência, que era absolutamente dominada em tudo por Beresford, comandante inglez e instructor do nosso Exercito”. Segundo tal leitura, ele e outros oficiais ingleses “militavam em Portugal, tratando arrogantemente os nossos e levantando por toda parte protestos os mais legítimos” (Seabra, 1909SEABRA, Eurico de. Historia Summaria de Portugal: Ensino secundário official, I, II e III classes. 2. Ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1909., p. 166).

Neste mesmo manual, assinalamos a heroicização dos propulsores da Revolução Liberal, constantemente definida como uma “conspiração contra o governo absoluto e contra a administração inglesa”. O autor discorreu sobre os “12 conspiradores enforcados no Campo de Sant’anna, em Lisboa, e o valente e illustre general Gomes Freire de Andrade, em S. Julião da Barra”, sendo o último designado por “homem glorioso e venerado, a primeira vitima da liberdade em Portugal”. Mais adiante, nomeou “Manoel Fernandes Thomaz” e “Silva Carvalho”, entre “outros”, como responsáveis pelo levante do Porto, “uma revolução, que, com o exército á frente, visava a expulsão da ingerência britannica, e ao estabelecimento do constitucionalismo” em Portugal e suas colônias. Apresentando estes revolucionários como homens à frente do seu tempo, os identificou como os responsáveis pela reunião das Cortes “em janeiro de 1821”, pois “redigiram uma Constituição, que foi decretada em 23 de setembro de 1822”, a qual “ficou exaggeradamente liberal para o tempo em que foi publicada”, devido às suas prescrições em favor da “soberania da nação”, da criação de “três poderes: executivo, legislativo e judicial, perfeitamente independentes”, e do “direito de voto”, que “pertenceria a todos os cidadãos portugueses” (Seabra, 1909SEABRA, Eurico de. Historia Summaria de Portugal: Ensino secundário official, I, II e III classes. 2. Ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1909., p. 166). Eurico Seabra não fez qualquer menção ou conexão entre o liberalismo ou o constitucionalismo português e a independência do Brasil, apenas referindo-se a este país para tratar posteriormente da “Regencia de D. Pedro; Sua morte e cognome” (Seabra, 1909SEABRA, Eurico de. Historia Summaria de Portugal: Ensino secundário official, I, II e III classes. 2. Ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1909., p. 173), sem quaisquer referências ao 7 de setembro de 1822.

Ao analisar os manuais escolares e as suas representações da história pátria portuguesa, Luis Reis Torgal atenta para o fato de que “os compêndios republicanos” preservaram os mesmos condicionamentos político-ideológicos do liberalismo oriundos do período monárquico-constitucionalista, sem maiores alteridades deste “quadro de valorações”. Porém, “só lhe acrescentam a justificação da República” (Torgal, 1998TORGAL, Luís Reis. Ensino da história. In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Maria Amado; CATROGA, Fernando (Orgs.). História da história em Portugal. Séculos XIX-XX: da historiografia à memória histórica . 1. Ed. Lisboa: Editora Temas e Debates , 1998. pp. 85-152. , p. 106). Em nossa análise, pudemos compartilhar desta mesma observação, e, a modo de ilustração, apresentamos aqui o trecho do Compendio de História Geral escrito por Arsenio Augusto Torres de Mascarenhas.

Curiosamente, o autor discorreu sobre a independência do Brasil a partir de uma lição intitulada “A república brasileira”:

Com a retirada da família real portuguesa para o Brasil por ocasião da primeira invasão francesa foi aquella nossa possessão elevada á categoria de reino em 1815. Entretanto, as ideias separatistas fermentavam alí, e em 1817 rebentou em Pernambuco uma revolução republicana que não vingou. As côrtes de 1821 em Portugal com as suas insensatas medidas determinaram a emancipação. D. João VI, regressando a Lisboa, deixou no Rio de Janeiro seu filho primogênito D. Pedro, que em 12 de outubro de 1822 foi aclamado imperador e defensor perpetuo do Brasil com o nome de D. Pedro I. Todavia, o novo imperador não conservou as sympathyas do povo brasileiro por muito tempo e viu-se obrigado a abdicar a côroa do Brasil em seu filho D. Pedro, então menor, e partiu para Portugal a defender os direitos de sua filha ao throno d’este país contra o governo de D. Miguel, como detidamente se diz na história de Portugal (Mascarenhas, 1907MASCARENHAS, Arsénio Augusto Torres. Compêndio de História Geral: para uso dos alunos das quarta e quinta classes dos lyceus. Lisboa: Typographia do Annuario Comercial, 1907., pp. 380-381).

Para além do próprio título da matéria, destacamos as menções à revolução pernambucana de 1817 (embora não se mencione a sua violenta repressão militar promovida pela Coroa portuguesa) e às “medidas insensatas” das cortes de 1821, que certamente correspondem aos propósitos da recuperação da condição de metrópole do reino português e da recolonização do então reino brasileiro. Ademais, sublinhamos a referência do autor ao perfil do primeiro imperador brasileiro, incapaz de captar “as sympathyas do povo brasileiro por muito tempo”, fato que teria concorrido para a sua abdicação e retorno a Portugal, juntamente à questão da crise sucessória suscitada pela morte de D. João VI. Em seu conjunto, todos estes pontos de vista elencados por Mascarenhas nos autorizam a identificar o seu posicionamento crítico com relação à instituição monárquica tanto no Brasil como em Portugal, mesmo sem termos fundamentos para afirmar se era, de fato, um republicano militante.

Ainda no contexto dos manuais republicanos, frisamos o livro Primeiros esboços da História de Portugal, no qual consta uma rara e breve menção aos atos de bravata do “povo” e das “tropas” do Rio de Janeiro, que, por fim, “declararam o Brazil independente e aclamaram D. Pedro seu imperador” (Chagas; Magno, 1913CHAGAS, Franco; MAGNO, Aníbal. Primeiros esboços da História de Portugal: Ensino Primário. Lisboa: Tipographia Paulo Guedes, 1913., p. 138). Da mesma maneira, distinguimos o manual História de Portugal: segundo o programa oficial para as classes VI e VII do Ensino Secundário, no qual inusitadamente José Bonifácio de Andrada e Silva é apresentado como personagem central para a definitiva separação entre Brasil e Portugal.

Vejamos:

Da entrada de José Bonifácio de Andrade e Silva para o govêrno data, pode dizer-se, a independência definitiva do Brasil. José Bonifácio convocou os procuradores das províncias para colaborarem nas reformas a realizar e declarou obrigatório, para a execução de qualquer lei portuguesa, o cumpra-se do Príncipe. Ao mesmo tempo o Senado da Câmara pede a convocação de Côrtes Constituintes e oferece a D. Pedro o título de Defensor Perpétuo. [...] Entretanto D. Pedro empreendera, por conselho de José Bonifácio, algumas viagens de propaganda. Ao regressar de uma delas, a que fizera a S. Paulo, recebeu, junto do Rio Ipiranga, despachos de Lisboa, que varreram de vez as últimas indecisões do seu espírito e o fizeram soltar o grito célebre: “Independência ou Morte!”. Era o dia 7 de setembro de 1822, data que os brasileiros tomaram como a da definitiva proclamação da sua independência, que Portugal só reconheceu, contudo, em 1825 (Perêa; Peres, 1921PERÊA, Manuel Paulo; PERES, Damião. História de Portugal: segundo o programa oficial para as classes VI e VII do Ensino Secundário. Coimbra: Coimbra Editora, 1921., pp. 273-274).

De todos os livros consultados, este foi o único a destacar com exclusividade o protagonismo de José Bonifácio de Andrada e Silva - formado em Filosofia Natural (1787) e Direito Canônico (1788) pela Universidade de Coimbra (Os Andrada e Silva, s.d.OS ANDRADA E SILVA: de Coimbra à Independência do Brasil. Disponível em: Disponível em: https://www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/Textos/brasileiros/andrada . Acesso em: 19 jul. 2021.
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) - no processo de independência do Brasil. Como é sabido, quando retornou ao seu país em 1819, tornou-se o ministro do Reino e dos Negócios Estrangeiros (de janeiro de 1822 a julho de 1823) e foi um dos maiores apoiadores da fundação de um império brasileiro governado pelo então príncipe regente, Pedro I. Em um sentido mais amplo, tal referência remonta ao papel desempenhado pela elite brasileira letrada em Coimbra na formação do novo Estado-Império-nação brasileiro, temática completamente excluída, com exceção deste caso, das abordagens manualísticas conferidas.

Por sua vez, os manuais do Estado Novo apresentam uma tendência comum de aprofundar a ênfase na preservação de laços históricos e culturais entre o Brasil soberano e sua antiga metrópole. Neste sentido, buscava-se eclipsar a real ruptura que a autonomização política da ex-colônia americana significava a partir da formulação de narrativas sintéticas e conclusivas como estas: “Quando o Brasil se tornou um dos maiores países do mundo, os Brasileiros não se esqueceram do bem que os Portugueses lhes fizeram e continuaram a usar a mesma Língua, da qual têm muito orgulho” (Belchior; Gonçalves, 196-?BELCHIOR, Jorge; GONÇALVES, Américo. Terra bem amada: Leituras para a terceira classe do ensino primário. Moçambique, Portugal: Impressor Académica, 196-?., p. 83). Em outro livro, dizia-se: “Hoje o Brasil é nação independente, mas é país irmão a que nos prendem os mais estreitos laços de sangue, e onde mais de quarenta milhões de pessoas falam a língua portuguesa” (Livro de Leitura da Terceira..., 1965LIVRO DE LEITURA DA TERCEIRA classe. Luanda: Edições ABC, 1965., p. 142). Tais interpretações procuravam projetar, dentro dos temários sobre a independência daquele país, a ideia de “uma nação independente, mas sempre ligada a Portugal pelos fortes laços que são a língua, a história e um vivo sentimento de fraternidade” (Barros; Lobo, 1943BARROS, Tomaz de; LOBO, José. História de Portugal para a quarta classe do Ensino Primário: em harmonia com o novo Programa. Porto: Editora Educação Nacional, 1943. , p. 119).

Todavia, convém considerar que estas versões edulcoradas sobre a desagregação brasileira do Império luso também buscavam atender às circunstâncias políticas e diplomáticas orientadas para a consolidação de uma parceria com o governo brasileiro no âmbito internacional. Daí justificava-se o olhar historicista acerca do espírito de “união” entre as duas nações atlânticas, que se pleiteava no presente mediante a concretização de uma Comunidade Luso-Brasileira, no seio da qual buscava-se garantir o apoio da velha terra Brasilis à política colonialista dirigida por Salazar.

Dentro desta lógica, o livro História de Portugal para a 4ª classe do Ensino Primário aclamava a “instituição da Comunidade Luso-Brasileira” como “um dos acontecimentos notáveis” do regime ditatorial português:

O Estado Novo, no desejo de fortalecer os laços de amizade existentes entre Portugal e o Brasil, promoveu a assinatura de um tratado solene entre as duas Pátrias irmãs, o qual instituiu a Comunidade Luso-Brasileira. Entre as diversas disposições deste Tratado, ficou estabelecido que os Portugueses seriam considerados no Brasil como Brasileiros, e, por sua vez, os Brasileiros, como Portugueses em Portugal (Barros; Lobo, 1943BARROS, Tomaz de; LOBO, José. História de Portugal para a quarta classe do Ensino Primário: em harmonia com o novo Programa. Porto: Editora Educação Nacional, 1943. , p. 150).

Para além da estratégia de aproximação com o governo brasileiro por meio da regulamentação daquela Comunidade que, de fato, nunca chegou a concretizar-se, em que pesem alguns avanços pontuais das relações luso-brasileiras ao longo do século XX, outras questões demandavam cautela na abordagem da emancipação do Brasil nos manuais estadonovistas. Ora, a exposição aprofundada deste tópico podia ter efeitos contrários aos pretendidos, pois, por analogia, ela prefigurava um exemplo a ser seguido pelas colônias ainda sob o domínio lusitano. Por isso, convinha tratar o tema com sutileza, silenciando as tensões do passado, razão pela qual omitiam-se fatos como a violência empregada pela metrópole para conter as sedições independentistas, ou a eclosão de enfrentamentos populares favoráveis e contrários à liberação política do país. Questões desta índole eram encobertas pelo engrandecimento dos vínculos de união cultural que subsistiam entre as duas pátrias, ao passo que se preconizava o alinhamento do Rio de Janeiro com a política externa portuguesa no presente.

Portanto, a questão da unidade entre Brasil e Portugal era prioritária nos manuais escolares estadonovistas, sobretudo naqueles adotados nas províncias ultramarinas. Assim o comprova o poema do Padre Moreira das Neves presente em Caminhos Portugueses: Livro de Leitura da 4ª Classe:

Fui ao Brasil e vim mais português porque vi Portugal no coração da terra brasileira, que Deus fez por força e amor da sua própria mão. Ver o Brasil pela primeira vez é jamais esquecê-lo. Num clarão que o circunda de luz, de lés-a-lés, é sempre um mundo novo em ascensão. Relembro as ondas... E, para além delas, o Cruzeiro do sul feito de estrelas e a sombra de Pedro Álvares Cabral. Brasil de além do Mar: - Quanto mais cresces mais na voz e nos olhos te pareces com os olhos e a voz de Portugal (Neves, 1965NEVES, Moreira das. Brasil. In: Caminhos portugueses: Livro de leitura da 4ª classe. Porto: Editora Lello, 1965. p. 161. , p. 161).

Observe-se que a moral subjacente a este tipo de ensinamentos aparentemente “ingênuos” sobre o Brasil estava facilitada pelo emprego de uma linguagem simples, que os manuais escolares sempre cuidaram em elaborar tendo em consideração as capacidades cognitivas correspondentes à faixa etária de seus leitores. No caso específico dos livros de leitura, assinalamos uma superioridade de recursos didáticos em comparação aos de outras disciplinas, uma vez que admitiam certa diversidade textual, a exemplo de poesias e fábulas, para além do gênero meramente narrativo. Contavam ainda com o emprego de artifícios iconográficos que ilustravam o sentido principal das lições. Estes elementos acabavam por reforçar a credibilidade do descrito, provavelmente despertavam o interesse dos jovens leitores e certamente favoreciam a memorização das temáticas trabalhadas. Além destes aspectos, as lições acerca do Brasil frequentemente apresentavam fragmentos de textos algumas vezes adaptados de autores brasileiros. Este é o caso de Terra Amiga, excerto de Monteiro Lobato presente no último livro de leitura que citamos, no qual assim descreveu-se o reencontro da personagem Dona Benta com o seu avô no cenário de uma vila portuguesa: “foi deste tronco que um galho robusto se transplantou para o Brasil. Porque todo o Brasil não é mais que um rebento vicejante do velho Portugal!” (Lobato, 1965LOBATO, Monteiro. Terra Amiga. In: Caminhos Portugueses: Livro de leitura para a 4ª classe. Porto: Edições Lello, 1965. p. 169., p. 169).

Novamente, este tipo de narrativa, que também se difundia nas escolas ultramarinas, buscava suplantar qualquer ideia de ruptura entre o Brasil e Portugal, ao mesmo tempo em que sugeria ligações indeléveis entre os dois países, varrendo para debaixo do tapete da história os registros de temáticas delicadas, como a escravidão indígena e a africana, bem como a participação dos nativos e cativos no processo de autonomização brasileiro. Aliás, em nenhum manual sequer encontramos qualquer tipo de explicação sobre a opção monárquica e muito menos sobre a manutenção da ordem escravagista preservada pelo “novo” Império brasileiro. Entende-se. Sobretudo no que toca à questão do trabalho forçado. Não convinha reavivar a discussão deste problema que ainda ecoava no presente, especialmente naquele contexto compreendido a partir da década de 1960 em diante, aquando os movimentos de libertação africanos já estavam em guerra com as tropas de Salazar.

Contudo, encontramos duas alusões à escravidão em dois manuais estadonovistas. No primeiro caso, a História da Civilização: Idade Média, Moderna e Contemporânea, escrita por António Mattoso, atribuiu a longevidade do sistema escravagista aos “descontentamentos” que “fizeram aumentar o partido republicano”, a mesma razão que “conseguiu que a República triunfasse em 1889” (Mattoso, 1952MATTOSO, António G. História da Civilização: Idade Média, Moderna e Contemporânea. 5. Ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1952., p. 581). Embora reconheça a larga existência da escravidão e a localize no tabuleiro do cenário político dos estertores do império brasileiro, o autor não se detém a discutir o seu processo de nascimento, desenvolvimento e/ou extinção, demonstrando economia analítica no tratamento mais geral do tópico. Surpreendentemente, neste e em nenhum outro livro encontramos qualquer alusão à Lei Áurea, sancionada e declarada a 13 de maio de 1888, pela princesa Isabel de Bragança, que então ocupava a regência do Brasil na ausência de seu pai, o imperador D. Pedro II. Nem mesmo este episódio sacralizado pela historiografia brasileira escolar do mesmo período chegou a ser convocado para favorecer a imagem da família real portuguesa no processo de abolição da escravatura e de extinção do tráfico de escravizados às vésperas da implantação da república no Brasil.

A segunda referência está contida no Compêndio de História Geral e Pátria II - Moderna e Contemporânea: ensino técnico e profissional, e nela sugeriu-se o emprego da mão-de-obra escravizada de nativos e africanos como condição ou justificativa para o próprio desenvolvimento econômico do Brasil. Os dois autores do livro, António Mattoso e António Henriques, defenderam o argumento de que “os primeiros colonos tinham tentado resolver” o problema da demanda de trabalho “com a escravidão dos índios”, os quais demonstraram “indolência natural”, “espírito de independência” e “inadaptabilidade aos trabalhos agrícolas”, para além da “proteção que encontravam junto dos jesuítas”, identificados como “defensores intemeratos da sua liberdade”. Diante disto, os “povoadores” decidiram procurar trabalhadores de “outra procedência”, ou seja, da África, de onde “começaram a chegar, em levas sucessivas” para “labutar nos campos, nos engenhos de açúcar, nas fábricas, nas casas particulares” e “em toda a parte onde havia trabalho a se realizar” (Mattoso; Henriques, 1961MATTOSO, António G.; HENRIQUES, António. Compêndio de História Geral e Pátria II - Moderna e Contemporânea: Ensino técnico e profissional. Porto, Porto Editora, 1961. , p. 121).

Nas duas ocasiões supracitadas, respectivamente, o problema da escravidão foi desenvolvido de modo acrítico e a partir de explicações que buscavam validar as lógicas extrativistas a fim de resguardar o próprio processo colonial português em terras brasileiras. O tema era (e é) espinhoso e, por isso, consideramos que o silêncio prevaleceu sobre as suas possíveis elaborações, especialmente naquela conjuntura específica do Estado Novo, regime que promoveu a exaltação do paradigma civilizacional lusitano nas distintas etapas da formação escolar. Por isso, antes de expor as feridas históricas de seu modelo colonial, os manuais estadonovistas preferiram divulgar um arquétipo de nação multirracial e pluricontinental, um “exemplo vivo de convívio e de solidariedade humana [...] de unidade e de convivência”, um “Portugal, uno e indivisível”. Esta seria a característica particular da formação histórica e geográfica da pátria portuguesa, constituída por “várias parcelas” de povos distintos, todas “ligadas por um passado histórico inolvidável e pela fé no seu destino comum” (Livro de Leitura da Terceira..., 1965LIVRO DE LEITURA DA TERCEIRA classe. Luanda: Edições ABC, 1965., p. 117); façanha alcançada pela conduta de “não discriminação racial”, “pela larga tolerância usada” na “criação do mesmo clima moral”, empregada no contato “com os povos descobertos”, com os quais “o Português” conseguiu formar “elementos integrantes da mesma unidade pátria” (Livro de Leitura da Terceira..., 1965LIVRO DE LEITURA DA TERCEIRA classe. Luanda: Edições ABC, 1965., pp. 103-104).

Finalmente, podemos afirmar que, do conjunto de abordagens à autodeterminação brasileira formuladas durante o Estado Novo, disseminou-se uma concepção idealizada do Brasil, enaltecedora de sua grandeza e desenvolvimento, qualidades constantemente atribuídas à sua matriz lusa e cristã. A projeção desta imagem encomiástica da antiga colônia americana almejava comprovar a vocação de seus próprios colonizadores.

O Brasil era, portanto, “A Nova Lusitânia”, conforme lição presente no livro Casa Lusitana: Leituras da História de Portugal:

Tratado com carinhos de filho, o Brasil cresce à imagem e semelhança de Portugal. Orgulho da Metrópole e sua glória, ocupa lugar único no coração de todos os Portugueses, que nele se revêem, com olhos amorosos, e lhe chamam contentes, a Nova Lusitânia (Mattoso; Henriques, 19-MATTOSO, António G.; HENRIQUES, António. Casa Lusitana: Leituras da História de Portugal. 11. Ed. Lisboa: Editora da Livraria Sá da Costa, [19--]. , p. 206).

Nitidamente, esta aclamação colocava o Brasil como paradigma da colonização lusitana e o sinalizava como o resultado final da “obra civilizatória” portuguesa que ainda estava em curso nas zonas de ocupação lusa no “Ultramar”, espaço definido nos manuais por “torrão natal de homens de várias raças, mas obra grandiosa de uma só Nação: Portugal!” (Livro de Leitura da Terceira..., 1965LIVRO DE LEITURA DA TERCEIRA classe. Luanda: Edições ABC, 1965., p. 80).

CONCLUSÃO

Ao cabo desta investigação concluímos que, do ponto de vista quantitativo, o tema da independência do Brasil não foi contemplado de modo unânime dentro do universo dos manuais trabalhados. Enquanto a maior parte destes continha lições sobre o “descobrimento” e a colonização da terra Brasilis, comprovamos que apenas 35% dos compêndios apresentavam o tópico da emancipação política brasileira. Aliás, como já demonstramos, este era um assunto delicado, razão que muitas vezes suscitou silêncios, abrandamentos, eufemismos e superficialidades em suas formulações. Durante todo o período cronológico percorrido, confirmamos que os livros de leitura e de história foram os espaços nos quais tal temática foi desenvolvida com maior frequência. Aqueles primeiros tendiam a discuti-la de modo mais superficial e fantasiado, ao passo que os segundos se esforçavam em apresentar a questão a partir de explicações mais fatuais, harmonizadas com um modelo historiográfico essencialmente positivista, que naturalmente incorporou uma perspectiva lusocêntrica e eurocêntrica, com exceções de alguns casos em que se mencionavam eventos particulares do contexto emancipatório brasileiro.

Em contrapartida, do ângulo qualitativo, verificamos que, em seu conjunto, os manuais inclinaram-se a produzir os mesmos consensos acerca da problemática em torno da dissociação Brasil-Portugal, em que pesem as sutis variações interpretativas subordinadas às lógicas dos sucessivos contextos históricos analisados. Neste sentido, atestamos que a historiografia escolar portuguesa acabou por difundir uma imagem empolada do “Brasil-português” em detrimento do “Brasil independente”, no ímpeto de estimular a autoestima nacional e mobilizar a defesa e a continuidade do sonho imperial lusitano. Tal estratégia buscava responder aos desafios intrínsecos à sobrevivência do império português, os quais atravessaram todo o período cronológico estudado (1880-1960).

Para enunciar algumas destas dificuldades, lembramos a vigência da Conferência de Berlim (1884-85), que descartou os argumentos fundamentados no direito histórico dos colonizadores e estipulou um novo ordenamento jurídico, condicionando o reconhecimento da dominação europeia sobre os territórios africanos à sua ocupação efetiva. Anos depois, recordamos a forte reação inglesa aos planos portugueses de ligação entre Angola e Moçambique esboçados no “Mapa cor de rosa” (Costa, 2011COSTA, Rui Manuel Pinto. Das raízes do mapa cor de rosa ao ultimatum. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Lisboa: Editora da SGL, série 129, n. 1-12, pp. 30-57, 2011. , p. 30). Daí resultou o Ultimatum inglês (1890), missiva do governo britânico que exigia a evacuação das tropas lusitanas daqueles territórios. Mais adiante veio a elaboração do Relatório Ross (1925ROSS, Edward Alsworth. Report on Employment of Native Labor in Portuguese Africa. New York: The Abbott Press, 1925.), que denunciava o emprego do trabalho forçado nas possessões angolanas e moçambicanas (cf. Ross, 1925ROSS, Edward Alsworth. Report on Employment of Native Labor in Portuguese Africa. New York: The Abbott Press, 1925., p. 12). Nas décadas seguintes, paulatinamente afirmou-se, no cenário internacional, uma forte pressão descolonizadora, com especial atenção voltada à situação africana. Paralelamente, desde a década de 1950, a União Indiana demonstrava ao governo de Lisboa, então chefiado por Salazar, suas pretensões anexionistas perante as possessões portuguesas de Goa, Damão e Diu (A União Indiana invade..., s.d.A UNIÃO INDIANA INVADE Goa. s.d. Disponível em: Disponível em: https://ensina.rtp.pt/artigo/invasao-goa/ . Acesso em: 7 ago. 2021.
https://ensina.rtp.pt/artigo/invasao-goa...
).

Toda esta conjuntura tornou imperativa a formulação contínua de projetos de autodefesa e autopropaganda do Império português, no seio dos quais a educação exerceu um papel central, sobretudo no que concerne à internalização da utopia imperial na formação da juventude estudantil. Elementos centrais destes estratagemas, os manuais escolares exploraram simbolicamente a imagem da terra de Vera Cruz para expurgarem a ideia de decadência do presente e do futuro da nação portuguesa, tática explorada pelas várias famílias político-ideológicas que condicionaram a produção manualística averiguada. Enfim, identificamos uma componente puramente pragmática na construção das narrativas escolares sobre o parto do Brasil-Império-nação. À medida que o país crescia e ganhava relevo no cenário internacional, revelava-se como uma potente parceria global para sua velha metrópole. Assim, a joia da coroa do reino lusitano de outrora foi se convertendo em uma espécie de mito litúrgico capaz de conferir halos sagrados à mística imperial desde os últimos anos da Monarquia, passando pela República, até a ascensão e a consolidação do Estado Novo, altura em que encontrou sua convocação máxima.

Para efeitos de conclusão, indicaremos alguns elementos que poderiam renovar as abordagens ao tema da independência brasileira que acabamos de examinar: 1) análises internas e conjunturais do Brasil que não estejam centradas exclusivamente no papel da elite e da dinastia de Bragança; 2) visibilidade de “novos” sujeitos históricos, tais quais os povos escravizados, a população indígena, as mulheres, as camadas populares, os viajantes, etc.; 3) referências a pesquisas históricas sobre as guerras pela independência, a repressão violenta destas e os conflitos deflagrados contra as ordens das Cortes de Lisboa, no intuito de evidenciar a complexidade deste momento de ruptura no mundo luso-brasileiro. A partir destas referências, será possível socializar conhecimentos sobre a dimensão histórica de outros aspectos relacionados ao mundo atual, a exemplo do direito de autodeterminação dos povos, da soberania nacional, das consequências locais e globais dos processos de descolonização, dos movimentos sociais e dos sistemas de governo.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2021
  • Aceito
    04 Jul 2022
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