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A “vida com saudades”: remédios religiosos para curar sentimentos, “mover afetos” e “mudar corações” no Reino de Portugal da primeira metade do século XVIII

The “life with yearnings”: religious remedies to heal feelings, “move affections” and “change hearts” in the Kingdom of Portugal in the first half of the 18th century

RESUMO

Este artigo analisa discursos religiosos sobre a saudade e seus remédios a partir do Sermão das soledades de Nossa Senhora, pregado pelo dominicano português João Franco em Portugal durante a década de 1720. A partir de uma abordagem histórico-cultural e do diálogo com a historiografia voltada às práticas de escrita, aos discursos espirituais católicos e às sensibilidades, o objetivo é identificar e discutir os entendimentos cristãos do sentimento de saudade, seus possíveis efeitos nos corpos e nas almas, bem como seus supostos remédios, dentre os quais estavam a companhia e as lágrimas. Tal análise considera esses entendimentos e as instruções dadas aos fiéis pelo dominicano levando em consideração os sentidos compartilhados à época, que conformavam uma mentalidade religiosa, voltada, sobretudo, à ênfase na devoção mariana em Portugal nas primeiras décadas do século XVIII.

PALAVRAS-CHAVE:
sermões da soledade; João Franco; sensibilidades

ABSTRACT

This text analyses religious discourses about yearning and its “remedies” based on the sermon of the solitudes of Our Lady, preached by portuguese Dominican João Franco in Portugal in the 1720’s. Taking a historical-cultural approach and dialoguing with historiography dedicated to the writing practices, the Catholic spiritual discourses and the sensitivities, the objective is to identify and discuss the Christian understanding of the feeling of yearning, its possible effects on the bodies and souls, as well as its supposed remedies, such as company and tears. Such analysis considers this understanding and the instructions given to the faithful by the Dominican, through the senses shared at the time, which conform a religious mentality, focused, above all, on the emphasis on Marian devotion in Portugal in the first decades of the 18th century.

KEYWORDS:
sermons of solitude; João Franco; sensitivities

O PADRE JOÃO FRANCO, SEUS SERMÕES E O SERMÃO DAS SOLEDADES

A produção historiográfica sobre o tema “saudade” tem merecido diferentes enfoques e perspectivas, e nem sempre a palavra que se refere a esse sentimento - cujo sentido se altera historicamente e está sujeito aos significados atribuídos pelas distintas culturas - ganhou destaque na produção escrita ao longo dos séculos, estando, usualmente, associada a termos como “sofrimentos”, “nostalgias”, “melancolias” e “tristezas” decorrentes de “ausências” ou “perdas” de algo, de alguém, ou mesmo de alguma prática ou condição sociopolítica.1 1 Veja-se estudos de Georges Minois sobre a solidão (2019) e sobre o riso (e seu contraponto) (2003), de Jean Starobinski sobre a melancolia (2016) e de Anne Vicent-Buffault sobre as lágrimas (1997). No Brasil, merecem destaque os estudos de Durval Muniz de Albuquerque Júnior sobre a saudade como tema acionado nos escritos de poetas portugueses do século XX, a demonstrar relações com a temporalidade (Albuquerque Júnior, 2013, 2016). Em termos teóricos, historiadores têm oferecido diferentes reflexões sobre seu ofício ante as constantes manifestações de alguns grupos sociais que expressam “saudade” de um tempo passado hipoteticamente melhor que o presente; ou, ainda, sobre as formas como o passado histórico é tratado a partir da autoridade da memória. Nesse sentido, limitamo-nos a indicar Hartog (2017). Segundo uma perspectiva artística, Augustin de Tugny (2015TUGNY, Augustin. Prefácio, “O presente da saudade”. In: JESUS, Samuel de. Saudade: da poesia medieval à fotografia contemporânea, o percurso de um sentimento ambíguo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 7-10., p. 4) apontou que, “na lusofonia, a saudade parece dizer duma situação do sujeito no tempo e no espaço que se constrói entre a perda do passado e a esperança de um retorno”. Sem o tempo, aliás, conforme apontado pelo historiador Antonio Rezende (2006REZENDE, Antonio Paulo. As seduções do efêmero e a construção da história: as múltiplas estações da solidão e os círculos do tempo. In: ERTZOGUE, Marina; PARENTE, Temis (orgs.). História e sensibilidade. Brasília: Paralelo, 2006. p. 35-56., p.l49), “perde-se a medida da saudade”. A partir de um enfoque antropológico, Feldeman-Bianco (1992FELDMAN-BIANCO, Bela. Saudade, imigração e a construção de uma nação (portuguesa) desterritorializada. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, Campinas, v. 9, n. 1, p. 35-49, 1992., p. 35-36) descreve a saudade, em uma dimensão individual, como “experiência desenraizada localizada entre as memórias do passado e o desejo de futuro”, por exemplo a saudade da terra, e em uma dimensão coletiva, como sendo o “caráter nacional português […], sinônimo de portugalidade”. Essa percepção da saudade como um sentimento próprio do português já existia no século XVII, como se constata na afirmação feita por Francisco Manuel de Melo: “parece que… toca mais aos portugueses, que a outra nação do mundo o dar-se conta desta generosa paixão” (Melo [16-?] apudCarvalho, 1951CARVALHO, Joaquim de. A problemática da saudade. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA PARA O PROGRESSO DAS CIÊNCIAS, 13., 1951, Porto. Anais […]. Porto: Imprensa Portuguesa, 1951. p. 229-237., p. 337). Já estudos sociológicos recentes, como a vasta obra de Zygmunt Bauman (2011BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos: sobre ética pós-moderna. Tradução de Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.), têm demonstrado que as sociedades líquidas modernas ocidentais apresentam tendências à disseminação de diferentes tipos de saudades: do passado, de casa, do pertencimento, da comunidade e da esperança. Em Portugal, estudos sobre saudade são publicados há tempos2 2 Com recorte filosófico e literário, cabem destacar três publicações: Joaquim de Carvalho com o texto “Problemática da saudade” de 1951; António Braz Teixeira com Filosofia da saudade de 1986; Carolina Vasconcelos com a obra A saudade portuguesa, divagações filológicas e literário-históricas em volta de Inês de Castro e do cantar velho “Saudade minha - quando te veria?” de 1996; e o crítico literário Eduardo Lourenço e a obra Mitologia da saudade de 1999. e, dentre eles, destacamos a pesquisa de Lúcio Silva (1960SILVA, Lúcio Craveiro da. A saudade em Antônio Vieira. Colóquio, Revista de Artes e Letras, Lisboa, n. 9, p. 60-62, 1960.) sobre a saudade em Antônio Vieira3 3 Para uma análise dos “percursos de saudade” e da ausência do padre Antônio Vieira “entre a sua pátria e os seus ‘degredos’”, ver Araújo (2010). (apudBettiol, 2008BETTIOL, Maria Regina Barcelos. A escritura do intervalo: a poética epistolar de Antônio Vieira. 2008. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) - Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008., p. 101). Silva destaca, em tom quase literário, que

a saudade, historicamente, surgiu dos lamentos de amor e ausência. Floresceu na “solidão amena e deleitosa”, onde a ausência, o abandono, a falta e a carência levam a uma doce tristeza, ao “dó da alma”. Estes “males da solidão”, que nascem de se já não gozar de um bem que antes se possuía, levam ao desejo de voltar a desfrutar no futuro e a viver esse sentimento agridoce, o coração ferido, com suave lembrança. (Silva, 1960SILVA, Lúcio Craveiro da. A saudade em Antônio Vieira. Colóquio, Revista de Artes e Letras, Lisboa, n. 9, p. 60-62, 1960., p. 61)

Na historiografia voltada para os sentimentos, a saudade ainda é objeto de pesquisa relativamente pouco explorado. Parodiando Arlette Farge, quando se trata de “sofrimento”, podemos dizer que os temas mais estudados e que tangenciam o sentimento da saudade contemplam descontinuidades como a morte/homenagem fúnebre/luto, viagens/viajantes, casamentos/divórcios/correspondências e “migrações e as separações que ocupam um bom lugar na história da vida privada” (Farge, 2011FARGE, Arlette. Lugares para a história. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 14). Estas seriam, devido à existência de fontes e à capacidade de associação direta a um evento ou acontecimento, as temáticas mais facilmente delimitáveis e perceptíveis. Mas sentimentos como saudade, tranquilidade e amor “não parecem despontar na história através de acontecimentos”, sendo apenas consequências de determinados fatos, motivos pelos quais se apresentam como “entidade[s] não estudadada[s] enquanto tal”. Em razão disso, ainda segundo Farge (2011FARGE, Arlette. Lugares para a história. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 14), “os gestos que o[s] provocam, as racionalidades que a ele[s] conduzem, as palavras que o[s] dizem de tal ou tal maneira e aquelas que o[s] acompanham […] não figuram como um objeto pleno sobre o qual refletir”.

Se cada época, cultura e grupo carrega um modo de dizer e expressar suas saudades - que nem por isso devem ser reduzidas a um sentido único em determinado contexto -, neste texto, estamos interessados, especificamente, nas formas e palavras ditas por um religioso português no início do século XVIII e nas suas motivações espirituais para a promoção da reflexão sobre esse sentimento. Para tanto, analisamos um sermão específico, dentre os inúmeros sermões que o padre dominicano João Franco4 4 Nasceu em Lisboa na segunda metade do século XVII, sendo um destacado frade ao longo da primeira metade do século XVIII, pregando e atuando como confessor e diretor espiritual; professou a regra da Ordem dos Pregadores em 1704 e ganhou notoriedade intelectual na sociedade portuguesa com suas publicações e seus sermões divulgados em todo o Reino. Foi mestre em teologia, consultor do Santo Ofício e, em 1754, tornou-se Prior no Convento da Ordem dos Pregadores da cidade de Lisboa, instituição na qual também ensinou teologia escolástica por muitos anos (Machado, 1759, p. 170; Silva, 1859, p. 358). pregou e escreveu no Portugal do século XVIII, o “Sermão das soledades de Nossa Senhora”,5 5 Valemo-nos do primeiro volume - de um total de 12 - dos sermões do autor, publicados em Portugal ao longo dos anos 1730. Este tomo agrega 30 sermões e foi publicado em 1734, encontrando-se disponível para pesquisa na Biblioteca Nacional de Portugal. e que, muito provavelmente, foi pregado na década de 1720.6 6 O sermão das soledades foi o penúltimo publicado na obra e, ao contrário dos demais, infelizmente, não indica a data e o local em que foi proferido. Este, no entanto, não foi o único sermão dedicado à soledade - como veremos na sequência -, mas foi o primeiro a ser publicado, no ano de 1734 (e os demais em 1736 e 1741), sendo aquele dedicado exclusivamente ao tema “saudade”. Nesse caso, a nossa principal fonte - o sermão - diz, nomeia, refere explicitamente a saudade. Importa, teoricamente, pensar como um padre do século XVIII entendia (a partir de preceitos doutrinários católicos) a saudade e como a utilizava - em suas pregações e publicações - como recurso retórico para defender a vivência de outros sentimentos pelos fiéis ouvintes/leitores, como a devoção, a piedade e o sofrimento em nome da salvação. O pregador português refere-se à saudade como uma dor (a dor sentida pela Virgem Maria com a morte de seu filho) e, também, aos remédios da saudade, eficazes para os humanos, mas que, para a Virgem, renovariam a dor e, portanto, a própria saudade. É sobre os discursos da saudade presentes nesse sermão que nos debruçamos neste artigo, com o propósito de contribuir tanto com a produção historiográfica dedicada às práticas de escrita religiosa em Portugal do século XVIII com seus discursos espirituais, quanto com aquela que, inspirada nos estudos histórico-culturais, tem refletido sobre as sensibilidades na história.

João Franco foi autor de obras de espiritualidade e de um conjunto grandioso de sermões. Suas publicações foram relativamente extensas, tratando de devoções, virtudes, preparação para a morte, teologia e doutrina católica. Entre seus livros, destacamos Mestre da vida que ensina a viver e morrer santamente (1731), Terceiro instruído na virtude (1742) e Mestre da virtude (1745). Seus sermões foram proferidos especialmente em dias de santos ou festivos, em várias igrejas, conventos e seminários de diversas cidades portuguesas, com destaque para Lisboa, sendo que ele os reuniu em 12 tomos que foram publicados ao longo dos anos 1730 em diferentes oficinais tipográficas (Fleck; Dillmann, 2019FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. Remédios para a tristeza: as instruções religiosas de Francisco de Sales em Introdução à Vida Devota, Portugal (séculos XVII-XVIII). Topoi, Rio de Janeiro, v. 20, n. 41, p. 317-340, 2019.).

A historiografia dedicada à sermonística/parenética já demonstrou quanto essa modalidade de divulgação da fé era importante para a conversão e para a mudança de hábitos dos indivíduos (Massimi, 2005MASSIMI, Marina. Palavras, almas e corpos no Brasil Colonial. São Paulo: Edições Loyola, 2005.). Cabe lembrar, no entanto, que, se era através da audição de sermões que os religiosos modernos - pós-Concílio de Trento - conseguiam mais eficazmente difundir a mensagem cristã e instruir as almas, a recepção por meio da leitura, nos séculos XVII e XVIII, também obteve impacto importante, pois, segundo Delumeau (2003DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente (séculos 13-18). V. II. Tradução de Álvaro Lorencini. Bauru, SP: Eudsc, 2003., p. 41), foi nesse período que a literatura dos sermões alcançou considerável volume. Também Federico Palomo (2006PALOMO, Federico. A Contra-Reforma em Portugal, 1540-1700. Lisboa: Livros Horizonte, 2006., p. 79) apontou para um aumento exponencial, entre os séculos XVII e XVIII em Portugal, de edições de sermões “impressas sob formatos diversos e destinadas a públicos e usos variados […] com o intuito claramente modelador”, além de obras de oratória sacra e destinadas ao exercício da pregação, citando, entre outros, Antônio Vieira, Antônio das Chagas e Manuel Bernardes, este último o autor da obra Nova floresta, publicada no início do século XVIII.

Geralmente, os sermões apresentavam um ordenamento estrutural na sua forma, com introdução, apresentação temática, argumentação apoiada em conhecimentos bíblicos e teológicos e conclusão. Mesmo em seu formato escrito, eles não perdiam o tom da oratória e o discurso retórico como aquele de quem se dirige a um público ouvinte (Pécora, 1994PÉCORA, Alcir. Teatro do sacramento. São Paulo: Edusp, 1994.). O Vocabulario portuguez & latino de Bluteau (1712-1728BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, 8 volumes., p. 605) define sermão como oração, arrazoado ou discurso “de orador eclesiástico”. Os sermões de Franco se assemelhavam aos sermões barrocos e, guardadas as devidas ressalvas quanto ao estilo literário, em alguma medida, se aproximavam dos sermões de Antônio Vieira, pois reforçavam as dualidades, os contrastes e as metáforas. João Franco era admirador do padre Antônio Vieira, a quem considerava “o maior mestre dos púlpitos”, reconhecendo, no prólogo do primeiro volume de seus sermões, a existência de algumas imperfeições, sob a justificativa de que se dedicava não apenas à sermonística e à pregação, mas ao “estudo (ainda hoje contínuo) das Escolas”, às “obrigações da religião” e “muitas coisas a que acudir” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608.).

No prólogo do primeiro tomo dos seus sermões, Franco destacou que “tudo o que disse nos púlpitos foi trabalho de tempo furtado aos bocadinhos”, defendendo a publicação de seus sermões sob o argumento de que sua ordem era conhecida como de “pregadores” e de que havia ausência de escritos dos “talentos” na pregação em Portugal. As motivações para a elaboração de seus sermões estavam associadas a momentos do calendário católico e temas específicos selecionados pelo religioso, todos com lições teológicas e doutrinárias. Assim, os sermões abordavam homenagens a santos, Quaresma, Pentecostes, Semana Santa, exéquias, procissões, aperfeiçoamento moral do clero, condições de saúde e climáticas do Reino etc. Seus sermões obedeciam a premissas básicas de erudição que serviam aos pregadores na composição de seus discursos, tais como as Sagradas Escrituras, a Patrística, os doutores da Igreja e os textos de espiritualidade (Palomo, 2006PALOMO, Federico. A Contra-Reforma em Portugal, 1540-1700. Lisboa: Livros Horizonte, 2006.).

Em relação especificamente aos sermões das soledades, era prática comum nos séculos XVII e XVIII que religiosos escrevessem sobre as dores de Maria no “sermão da soledade” ou “sermão da saudade”, e sobre os sentidos das amarguras, dores e tristezas da soledade de Maria. Na obra Bibliografia mariana portuguesa dos séculos XVII e XVIII, organizado por Maria da Graça Pericão em 1990PERICÃO, Maria da Graça. Bibliografia mariana portuguesa dos séculos XVII e XVIII. Didaskalia, Lisboa, 20, 2, p. 245-464, 1990., encontramos uma listagem de obras espirituais de variadas tipologias e também os títulos dos diversos sermões dedicados à Virgem Maria presentes em cada uma delas. Em relação, especificamente, aos sermões da soledade, foi possível acessar informações sobre os sermões proferidos e publicados em Portugal (ou ao menos aqueles que mereceram publicação e foram compilados pela autora), com os quais, possivelmente, João Franco tomou contato no início dos anos 1730.

Geralmente, os sermões eram publicados em data muito posterior à pregação, sendo bastante comum que sermões das últimas décadas do século XVII viessem a ser impressos apenas em meados do XVIII. Outro aspecto a ponderar é que alguns autores proferiam e publicavam mais de um sermão da soledade, como fez o próprio João Franco. Excetuando os que foram proferidos na América Portuguesa (Bahia e Rio de Janeiro, por exemplo), foram 112 sermões da soledade publicados entre o final do século XVII e todo o século XVIII, incluindo os três de João Franco. Eles foram proferidos em cidades como Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Évora, bem como em diversas vilas portuguesas. Até o ano de 1730, haviam sido publicados, em Portugal, 32 sermões do século XVII e 22 sermões do século XVIII (sendo 6 da América Portuguesa). Seguramente, um número maior foi proferido, muitos dos quais mereceriam a publicação nos anos subsequentes.

João Franco tinha ao seu dispor, portanto, um conjunto significativo de sermões da soledade escritos por outros autores espirituais, de variadas ordens religiosas, publicados até, pelo menos, 1730. Dentre aqueles que exclusivamente incluíram a palavra saudade no título7 7 É certo que a não inclusão da palavra “saudade” no título não elimina a possibilidade de que outros sermões, tal como o de Franco de 1734, tenham refletido diretamente sobre essa manifestação de sensibilidade humana. Dada a dificuldade de acesso a esse conjunto de fontes e aos limite deste texto, analisamos comparativamente apenas quando possível. Além disso, não é objetivo deste artigo realizar uma compreensão ampla e totalizante daquilo que os religiosos portugueses, de diferentes ordens, entendiam por “saudade” na primeira metade do século XVIII. do sermão, destacamos: Manuel da Conceição, que, em 1620, publicou o Tratado de sermões da paixão de Christo, no qual encontramos o “Sermão das saudades da Virgem”; Pedro do Rosário, que, em 1668, publicou “Sermam das saudades da Virgem Maria… Pregado em a noite de Sesta Feira Sancta em o Real Convento de Bellem”; Álvaro Leitão, que, em 1670, publicou a obra Sermoens das tardes das domingas da Quaresma e de toda a Semana Santa, na qual se encontra o “Sermam das saudades da Virgem Puríssima”; Francisco de Santa Maria, que publicou inúmeros sermões entre 1689 e 1738, entre os quais está o “Sermam das saudades da Virgem”, pregado na Capela Real em 1686; Manuel de Lima, que, em 1720, publicou Ideas sagradas e consagradas em vários sermoens panegyricos, que, em seu segundo volume, apresenta o “Sermam das saudades de Maria Santíssima”, pregado no Mosteiro da Rosa, de Lisboa.

Mas há ainda outros sermões pregados no século XVII e publicados no século seguinte que remetem à saudade. O “Sermão da soledade” pregado pelo jesuíta Simão da Gama, em 1680, no convento de Santa Mônica, de Lisboa, foi publicado, juntamente com outros dos seus sermões, em 1715. Nele, o jesuíta faz referência ao “mar de amarguras”, às “lágrimas pela cena triste” e à “solidão amargosa” da “mãe de Deus” (Gama, 1715GAMA, Simão. Sermoes varios. Setima Parte. Lisboa: Officina de Bernardo da Costa Carvalho, 1715., p. 132). O índice das coisas mais notáveis dos sermões de Simão apresenta a “soledade de Maria” como a “sua dor […] sobre toda a dor” e “com o alívio se acrescenta mais a sua dor” (Gama, 1715GAMA, Simão. Sermoes varios. Setima Parte. Lisboa: Officina de Bernardo da Costa Carvalho, 1715., p. 547), o que, em parte, demonstra o quanto a ideia de João Franco (1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 598) de que “os remédios da saudade renovam a saudade” ou, em outras palavras, que “os remédios […] para a saudade da Senhora foram […] feridas” já encontrava abordagens semelhantes em outros sermões da soledade proferidos anteriormente, embora o sermão de Simão da Gama não faça uso, em nenhum momento, da palavra saudade. Por outro lado, o padre Miguel da Visitação publicou, em 1701, um sermão proferido na Catedral do Porto, que se intitulava “Sermam da saudade, e soledade da Virgem SS. May de Deos, e Senhora Nossa”. O título, portanto, anunciava que o sermão tratava da pena da soledade de Maria, na sua “rigorosa saudade do seu amado Filho Jesus” (Visitação, 1701VISITAÇÃO, Miguel. Sermam da saudade, e soledade da virgem SS. Lisboa: Officina de Manoel Lopes Ferreyra, 1701., p. 5). Sendo assim, o tema da “saudade” e, fundamentalmente, da “saudade de Maria” não era um tema novo no universo letrado religioso português.

De acordo com o Vocabulario de Bluteau, “soledade” é “o estado de quem fica só, sem companhia, sem assistência, desamparado”. Já “solidão” é definida apenas como “retiro, lugar solitário” e “solitário”, portanto, ganha o sentido daquele “apartado da sociedade […] que passa a vida só”, “ermitão” (Bluteau, 1728BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, 8 volumes., v. 7, p. 708). Assim, a ideia de solidão, como certa condição de sofrimento, era chamada de “soledade”, e Bluteau cita o exemplo da soledade da Virgem, que se referia, na crença cristã, ao espaço de três dias entre a morte de Cristo e a Ressurreição. Bluteau vai além, observando que em Portugal e em Castela eram “celebres os Sermões da Soledade […], os que se fazem sobre esta matéria, na tarde de sexta-feira de Endoenças” e esclarecendo a diferença entre saudade e soledade, a partir de um sermão proferido pelo padre Pedro do Rosário, em 1668:

No Sermão, que pregou em Belem, no anno de 1668, censura o P. Fr. Pedro do Rosario aos que intitulaõ este Sermão Soledade, ao seu poz titulo Saudades da Virgem Maria, & na pag. 3 mostra o erro dos que dizem, que Saudades he o mesmo que Soledade, porque Saudades sempre suppõem amor, Soledade nem sempre suppõem amor; as Saudades incluem em si a Soledade, porque quem tem Saudades, ainda quando mais acompanhado, esta mais só, & a Soledade não inclue em si as Saudades, porque nem todos os que estão em Soledade tem Saudade. (­Bluteau, 1728BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, 8 volumes., v. 7, p. 704)

Essa diferenciação apontada por Bluteau é importante porque, quando consideramos os três sermões da soledade pregados e publicados por João Franco, observamos que apenas um deles trata especificamente da saudade. Muito provavelmente da década de 1720, os outros dois sermões a que nos referimos são o “Sermaõ das soledades gloriosas de Maria Santissima” pregado na Igreja de Nossa Senhora da Penna e publicado em 1736 (Franco, 1736FRANCO, João. Sermaõ das Soledades Gloriosas de Maria Santissima pregado na Parrochial de N. Senhora da Penna. In: FRANCO, João. Sermoens Varios. Tomo V. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1736, p. 220-235., p. 220-235), e “Sermaõ das soledades”, sem indicação do local de pregação e publicado em 1741 (Franco, 1741FRANCO, João. Sermaõ das Soledades. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo XII. Lisboa: Officina dos herdeiros de Antonio Pedroso Galram, 1741, p. 198-218., p. 198-218).

No sermão da soledade, de 1734, Franco se refere à saudade como uma dor, um sentimento capaz de ferir e mobilizar a tristeza e a melancolia, e recomenda o emprego de dois “remédios” - a companhia e as lágrimas - para a cura dos enfermos de saudade, detendo-se brevemente na explicitação da eficácia (ou não) de cada um deles para as dores da Virgem Maria e, em última instância, para o consolo das saudosas almas pecadoras.

Embora não tenhamos qualquer informação sobre o pronunciamento deste sermão, somos levados a crer que tenha sido efetivamente pregado, como os demais publicados em sua obra, ainda que na sua própria instituição, o Convento dos Dominicanos. Eram sermões escritos como resultados de seus estudos, de suas experiências em atividade apostólica e das suas funções religiosas desempenhadas na Ordem dos Dominicanos. Uma vez publicados, certamente esses sermões alcançavam um público devoto de letrados, religiosos e leigos dispostos a aprender “comportamentos perfeitos” (Santos, 2006SANTOS, Zulmira. Vícios, virtudes e paixões: da novela como “catecismo” no século XVIII. Península, Revista de Estudos Ibéricos, v. 1, n. 3, p. 187-199, 2006., p. 189) e a consolar os (seus) corações saudosos. Aos ouvintes e leitores do seu sermão, Franco apresentava a sua interpretação da saudade, um sentimento a ferir a lembrança, a alma e o coração, que deveria ser remediado ou ao menos aliviado.

AS DORES DA SAUDADE

Neste sermão que aborda as dores da Virgem Maria, Franco procurou aproximar as noções, aparentemente pouco claras para ele, de “ferida”, “remédios” e “cura” da saudade. Ao enfatizar os sofrimentos da mãe de Jesus, o dominicano reforçava, por meio do exemplo, o sofrimento pela dor da saudade como um mecanismo de expiação, mas, principalmente, o próprio fortalecimento da devoção mariana entre os católicos. Se entre os pecadores a saudade poderia ser curável, em Maria a ausência de cura servia para comprovar seus atributos de santidade e seu poder de intercessão para a salvação, tornando-a “Rainha Soberana”, a quem os fiéis poderiam admirar e se condescender. Assim, Franco se propunha a alcançar seus objetivos, por exemplo o de “mudar corações endurecidos”, como dizia o Frade Bernardo do Desterro em 1733, ao emitir parecer favorável à concessão de “licença da religião” ao livro, alertando para as possíveis utilidades e méritos dos sermões.

Além disso, apresentando Maria como uma mulher sofredora, fragilizada por um padecimento da alma causado pela saudade, e demonstrando seus principais remédios, Franco acreditava poder proporcionar consolo e esperança a sujeitos saudosos e melancólicos por diversos motivos, como, por exemplo, mães que perderam seus filhos, esposas que choravam as ausências de seus maridos (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608.), ou ainda qualquer outro indivíduo que padecesse de alguma “doença da alma”.

Em última instância, era o amor o responsável por conduzir os remédios, isto é, a companhia e as lágrimas, para atenuar ou curar a saudade. Porém, o “coração saudoso” de Maria queixava-se do amor, pois “errou a cura da vossa saudade”, e os remédios renovavam sua dor (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 609). Daí a clareza do anúncio de João Franco (1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 598) sobre “o assunto deste sermão”: “o amor curando, sem curar”, “o amor ferindo com a cura”. Mas, antes de refletir sobre os remédios para a cura da saudade, é fundamental compreender o que era saudade para João Franco e qual seu entendimento sobre os efeitos das dores que ela provocava no corpo e na alma dos cristãos.

A/as saudade/saudades (ora no singular, ora no plural) nos sermões de João Franco é apresentada como uma dor que fere a alma, a “dor medida pelo bem perdido”, “a febre mais intensa do coração”, as “tristes memórias de um bem ausente”, as “lembranças do bem que se perdeu” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 604-606). Portanto, as noções de tristeza, perda, ausência e memória estão associadas à intensificação desse sentimento tido como nocivo à alma, apontando para a crença nos efeitos negativos da saudade para o espírito cristão.

Bluteau conceitua saudade tanto como “um finíssimo sentimento, e pena que hum bem ausente, com desejo de o lograr”, quanto como aquele sentimento que resulta

de hum bem perdido, porque também há saudades de bens, ainda não possuídos, nem perdidos, mas esperados; & assim nas obras dos Padres Espirituais, & Directores das almas, & particularmente nas Cartas espirituais do P. Fr. Antonio das Chagas, muytas vezes se acha Saudades do Ceo, Saudades da Celeste Patrica, etc. (Bluteau, 1728BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, 8 volumes., v. 7, p. 512, grifo do autor)

No Vocabulario organizado por este jesuíta do Setecentos, encontramos vários significados para saudade, entre os quais está a derivação de “soidade”, “soidão” (termo “ainda” conservado “na plebe de Portugal”) e “soledade”. Mas o termo saudade era, segundo Bluteau, usado pelos “cultos”, sujeitos eruditos, aqueles que elegantemente pervertem “mais o uso natural das línguas”, criando uma palavra portuguesa “sem igual nos idiomas mais cultos, e elegantes da Europa” (Bluteau, 1728BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, 8 volumes., v. 7, p. 512). O jesuíta acrescenta, ainda, que a palavra “na minha opinião não deyxa de ser assaz expressiva, porque não há Saudade sem desejo, nem desejo sem pena”.

Na primeira metade do século XVIII, a palavra saudade esteve também muito vinculada aos elogios fúnebres, como atestam alguns títulos de publicações com esse objetivo.8 8 Ver catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal a partir da pesquisa pela palavra-chave “saudade”. Sendo assim, expressões como “eterna saudade”, “clamores da saudade”, “suspiros da saudade”, “queixas da saudade”, “alívio da saudade”, “eccos da saudade”, “ideias da saudade”, “espelho da saudade”, “triste saudade”, “dor de saudade”, “aras da saudade” e, finalmente, “sermão da saudade” eram conhecidas pelos portugueses do Setecentos. De acordo com Bluteau, eram também empregadas, à época, expressões como “morrer de saudades”, “grandes saudades”, “maiores saudades” e “muitas saudades”. O jesuíta ressalta que o sentimento resultante da falta ou ausência de alguém, de alguma coisa ou de algum lugar aparecia também em alguns adágios portugueses, como os seguintes: “saudade é fraco remédio, mas é doce engano”, “se saudade matasse, muita gente morreria” ou, então, “as saudades são filhas do amor, e enteadas do engano” (Bluteau, 1728BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, 8 volumes., v. 7, p. 513).

Para o dominicano Franco, as dores da saudade feriam “por dentro” e “por fora”. Enquanto as dores internas (“por dentro”) afligiam o coração e deviam ser consideradas “grandes dores”, as dores externas (“por fora”) renovavam as dores já sentidas internamente, podendo ser denominadas de “dores do inferno”, expressas em desamparos, suspiros e lágrimas daqueles que acompanhavam o sujeito saudoso. Quanto à dor sentida por Maria:

Não há cousa mais custosa ao meu sentimento (dizia a Senhora) não há cousa tão mortificativa do meu gosto, como o conservar-se-me a vida, depois que vós meu querido filho padecestes a morte. Muito melhor me fora padecer eu essa morte, do que continuar-se-me esta vida. Uma morte, que acaba com a vida, é muito boa morte; porém uma vida, com que se alenta a morte, é muito penosa vida. (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 602)

No sermão da saudade e soledade do padre Miguel da Visitação, o religioso refere-se à mãe “sem alivio, sem consolação, & sem cõpanhia na sua saudade” (Visitação, 1701VISITAÇÃO, Miguel. Sermam da saudade, e soledade da virgem SS. Lisboa: Officina de Manoel Lopes Ferreyra, 1701., p. 7), estabelecendo a mesma relação dual entre morte e vida que João Franco estabelece para definir a saudade de Maria: “he tão morta de saudade como Mãy, que vive morrendo, & vivendo morre; porque quando se vive na pena da saudade de hum filho morto, he vivendo como morto, & he morrendo como vivo” (Visitação, 1701VISITAÇÃO, Miguel. Sermam da saudade, e soledade da virgem SS. Lisboa: Officina de Manoel Lopes Ferreyra, 1701., p. 9). Sob essa perspectiva, as dores de saudade de Maria promoviam o estado de quem “vive morrendo, & vivendo morre” (Visitação, 1701VISITAÇÃO, Miguel. Sermam da saudade, e soledade da virgem SS. Lisboa: Officina de Manoel Lopes Ferreyra, 1701., p. 9).

OS REMÉDIOS DA SAUDADE

Desde o século XV, em função da Devotio moderna, os fiéis eram instados a vivenciar uma experiência de fé solitária, individualizada, interiorizada e silenciosa. Uma espiritualidade que valorizava o “voltar-se para si mesmo” e o “retirar-se para ler e meditar” (Minois, 2019MINOIS, Georges. História da solidão e dos solitários. Tradução de Maria das Graças de Souza. São Paulo: Unesp, 2019., p. 169-170). Essa solidão para meditação e comunicação com o divino e isolamento do fiel no seu esforço para a conquista do céu, nos séculos XVII e XVIII, valia para a introspecção do sentimento religioso, mas não necessariamente para a solução dos problemas cotidianos e sentimentos humanos de algum modo sofríveis como a saudade. Se o recolhimento e a individualidade eram armas para reforçar a fé e a salvação, o partilhar da dor na companhia do outro era a arma para suportar o sofrido sentimento de saudade. Assim, o primeiro e mais eficaz remédio para a saudade, segundo o dominicano João Franco, era a companhia, pois “ter companhia nas saudades é remédio muito aprovado, e experimentado no mundo”. Tal assertiva fica mais evidente na sua percepção de que a companhia era o “contrário” da solidão9 9 Outra forma de combate à solidão e à “melancolia da vida solitária”, de acordo com os Pais da Igreja, era o trabalho. Tal como um eremita que se dedicava a trabalhos manuais, a Igreja recomendava “Rezem e trabalhem”, pois “um solitário só deve abandonar a oração para trabalhar com as mãos”, sendo esta “a única terapêutica eficaz para a tristeza e a acedia” (Starobinski, 2016, p. 45). e que ela seria “tão útil” que “parece não podem ter as saudades melhor remédio” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 598). Alguém que acompanhasse e comunicasse as penas, partilhasse da dor e olhasse para o sujeito saudoso, poderia auxiliar significativamente no alívio do padecimento sofrido:

Esta eficácia acredita o amor com grandes razões, porque se tenho quem me acompanhe nas penas, se tenho quem olhe com bons olhos para a minha dor, essa companhia, e essa vista desfaz grande parte do que padeço. E a razão é muito clara, e manifesta, porque a companhia serve para comunicar a pena, e ninguém comunicou a sua pena, que não desse parte dela; porque comunicar a pena e dar parte da pena, tudo é um: logo se a companhia serve para comunicar as penas, se o comunicar as penas é dar parte das penas, segue-se, que na parte das penas, que dou, diminuo as que sinto; segue-se que alivio as penas que sinto, na parte que lhe diminuo. (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 598)

Na Europa Moderna, a companhia era, de alguma forma, conhecida como mecanismo tranquilizador de indivíduos melancólicos que, em situações extremas dessa condição, poderiam afundar-se na solidão e, por que não dizer, no saudosismo. Jean Starobinski menciona recomendações feitas pelo médico francês André du Laurens (Andreas Laurentius, 1558-1609), que, em sua obra Discours de la conservation de la veue: des maladies melancholiques, reeditada e publicada em vários idiomas ao longo do século XVII, dizia:

Os melancólicos jamais devem estar sozinhos, sempre é preciso lhes dar companhia que lhes seja agradável, sempre se deve elogiá-los e lhes dar uma parte do que querem, por medo de que esse humor, que é por natureza rebelde e teimoso, se amedronte; às vezes é preciso repreendê-los em suas loucas imaginações, ralhar com eles e fazê-los envergonhar-se de sua covardia, tranquiliza-los o mais possível, elogiar suas ações. (Laurens apudStarobinski, 2016STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 54)

Assim, no discurso religioso a companhia era remédio para a saudade, servindo para comunicar, partilhar e aliviar a dor. No discurso médico a companhia era remédio para a melancolia e solidão e desempenhava uma dupla função, na medida em que servia para agradar e elogiar, mas também para repreender e envergonhar.

Para João Franco, a companhia podia ser um remédio para a cura e para a não cura da saudade. Em se tratando das saudades dos mortais, dos pecadores, era muito eficaz, extremamente “proveitoso para todos” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 599), por ser capaz de auxiliar a enxugar as lágrimas do outro com suas próprias lágrimas, uma vez que chorar junto (“chorar a minha dor”) e dividir a dor era motivo de alívio ao sofrível coração dos “queixosos das saudades”. O dominicano ressaltava, ainda, que “se tenho quem me ajude a chorar a minha dor, dou-lhe um grande alivio, porque é certo que com as minhas lágrimas, e com as alheias, hei de chorar muito mais depressa a minha dor” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 599).

A percepção de que a saudade era curável mediante a administração dos seus contrários remete, ainda que hipoteticamente, à teoria médica hipocrático-galênica vigente no período, que estabelecia o tratamento das doenças através de agentes contrários aos seus causadores. Assim, a saudade, um sentimento tipicamente sofrido por aqueles que estavam ou se sentiam sós, podia ser aliviada a partir da companhia; o choro individual podia ser aliviado com o choro acompanhado e a solidão com a convivência: “quero trocar esta vida solitária por aquelas penas com companhia” ou “antes quero penas com companhia, que vida com saudades”.

Possivelmente influenciado por essa teoria médica e também pela dualidade da literatura barroca, João Franco aponta esses contrários como remédios eficazes para a saudade. Para a Virgem Maria, a companhia, no entanto, não era o contrário adequado para a cura das dores da saudade. No discurso religioso, se o ódio dos homens foi capaz de matar Cristo, ter a companhia desse ódio não curaria a dor de saudade da Virgem, antes, renovaria sua ferida, logo, a companhia era entendida como a não cura: “Curar a dor com a sua causa não é curá-la, é renová-la. Ninguém há neste mundo, que, querendo curar feridas, as cure com a causa delas. O veneno mata, mas não cura” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 600). Haveria, portanto, de ser pelos contrários da causa. No sermão das soledades do tomo 12, João Franco refere o isolamento, a fuga e a solidão de Maria, pois diante da morte de Cristo, a Senhora

ficou tão sentida, ficou tão magoada, e ficou tão aflicta, que vendo-se só, e sem Filho, de tudo quis ficar só, e de tudo quis fogir. Fogio de tudo o que lhe podia fazer companhia; fogio de tudo o que lhe podia servir de alivio; fogio de tudo o que lhe podia dar consolação. (Franco, 1741FRANCO, João. Sermaõ das Soledades. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo XII. Lisboa: Officina dos herdeiros de Antonio Pedroso Galram, 1741, p. 198-218., p. 199-200)

O segundo remédio para as dores da saudade eram as lágrimas, as “sangrias dos olhos” e os “correios do coração” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 602-603). Para o dominicano (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 603), o amor era o elemento que acionava os remédios, assim, “receita[va]” lágrimas com “muita razão” para curar saudades. As lágrimas assumiam, em razão disso, a condição de remédios para o “ataque das saudades”, pois “só os olhos podem dar cura às feridas do coração”, aliviando o coração e desfazendo as penas, as saudades:

São as lagrimas sangrias, que dá o amor, quando tem ao coração enfermo, são as saudades a febre mais intensa do coração, e se a sangria é o remédio da febre, só quando se sangra o coração pelos olhos, é que pode ter remédio a febre do coração. (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 604)

No século XVIII, as lágrimas estavam também associadas aos modos de ler e à crença de que o choro apaziguava o Criador. Apesar das mudanças observáveis na leitura, que passou a assumir uma forma mais individual e íntima nesse período (Vincent-Buffault, 1997), os efeitos esperados de uma leitura solitária seguiam sendo as lágrimas, os suspiros e os soluços que uma obra poderia provocar. Também a literatura religiosa - e mesmo as ações catequéticas e sermonísticas promovidas nos territórios coloniais ibéricos desde o século XVI - possuía, em alguma medida, essa pretensão de fazer chorar, ao enfatizar cenas emotivas da narrativa bíblica ou dos diversos exemplos cotidianos acionados a partir da tradição moral cristã, com a finalidade de promover a conversão, o arrependimento, o desengano, a confissão e a penitência.

Desde o século XVII, oradores como o jesuíta Nicolas de la Pesse diabolizavam a hilaridade, o riso, e em seus sermões recomendavam a procura da dor e das lágrimas, uma vez que “o signo do verdadeiro cristão é verter lágrimas” (Minois, 2003MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena Assumpção. São Paulo: Unesp, 2003., p. 341). Para La Pesse, era “preciso chorar sem parar, ouvintes cristãos, para apaziguar Deus; mas, depois de ter enfraquecido sua cólera por nossas lágrimas, é necessário ainda chorar para satisfazer sua justiça” (apudMinois, 2003MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena Assumpção. São Paulo: Unesp, 2003., p. 341). Embora a Igreja estivesse orientada para as “lágrimas triunfantes” e para a “salvação na tristeza”, nem todos os religiosos encaravam a tristeza e as lágrimas como absolutamente necessárias, tal como Francisco de Sales, que invertia essa perspectiva, entendendo que triste era o inimigo que desejava que “todos fossem como ele” (Minois, 2003MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena Assumpção. São Paulo: Unesp, 2003., p. 377; Fleck; Dillmann, 2019FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. O padre dominicano João Franco e suas instruções sobre enfermidades, agonia e morte, Portugal, século XVIII. In: FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro (orgs.). O Universo Letrado da Idade Moderna: escritoras e escritores portugueses e luso-brasileiros, séculos XVI-XIX. São Leopoldo: Editora Oikos, 2019, p. 254-286., p. 328). Para Pierre de Besse, autor de Demócrito cristão (1615), “entregar-se às lágrimas denota[va] fraqueza de coração”, e para François Bonal, autor de O cristão da época (s.d.), criticava a “religião amedrontada” que consagrava “a tristeza como coisa celeste” (Minois, 2003MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena Assumpção. São Paulo: Unesp, 2003., p. 382).

Se no século XVIII predominou uma religião que “hasteia uma seriedade imperturbável; só admite lágrimas” para a cura da saudade (Minois, 2003MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena Assumpção. São Paulo: Unesp, 2003., p. 448), a medicina assumiu outros entendimentos em relação às suas causas e à sua cura, como se pode constatar nas expressões “medicina ilustrada”, “medicina doméstica”, “medicina botânica” e “medicina racional”, que constam no título de algumas das obras de referência do período. Isso, contudo, não impediu que no Setecentos expressões como “medicina da alma” e “medicina do amor” ainda fossem empregadas com alguma frequência e que suas orientações fossem observadas para rechaçar paixões e amores (humanos ou divinos), especialmente na primeira metade do século XVIII português.10 10 Modelos mais racionalistas na ciência médica, identificados como uma medicina ilustrada em Portugal, seriam adotados a partir de meados do XVIII por influência de Luiz A. Verney e Antônio Ribeiro Sanchez. Ainda assim, a relação entre medicina ilustrada e a assim denominada medicina da alma se manteve até o final do Setecentos, como se pode observar na obra Medicina teológica (1794), de Francisco de Mello Franco (Stein, 2015, p. 25, 82). Na concepção de João Franco, as lágrimas eram “remédio muito aprovado na medicina do amor” e, por sua reconhecida “virtude medicinal”, podiam curar as saudades. Lágrimas estavam associadas às dores, sendo que nas orações dirigidas a Deus os leitores deveriam solicitar tempo para chorar as dores, para chorar as lágrimas, já que “ninguém chorou neste mundo lágrimas, que não chorasse dores” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 605). A partir dessa compreensão, chorar era salutar ao corpo e à alma: “muitos vivem chorando, que morreriam de dor, se não lançassem pelos olhos o que padecem” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 605).

Em relação à devoção à Maria, entretanto, as lágrimas não possuíam uma dimensão curativa, porque “saudades extraordinárias não se curam com um remédio tão vulgar” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 606). Na narrativa de João Franco, o sentimento da saudade poderia ser medido pelo valor do bem perdido e pela capacidade de reavê-lo. Se fosse possível encontrar o que havia sido perdido, o remédio das lágrimas teria sido eficaz, mas, se não fosse possível encontrar o bem perdido, as lágrimas enquanto remédio produziriam efeito contrário, aumentando a dor da saudade. As lágrimas dos discípulos11 11 O sermão da soledade do jesuíta Simão da Gama recomendava aos leitores/ouvintes que “não choreis a morte de Jesus Christo; porque já não tem remédio. Chorai as vossas culpas, que forão causa della”, depondo “as tristes paixoens, que abafão em vosso coraçaõ os ternos sentimentos da piedade” (1715, p. 133). teriam ferido o coração da “magoadísima Maria”, pois ao lembrarem a perda “estas lágrimas não curavam, estas lágrimas não consolavam” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 608). Certas reflexões filosóficas atuais aproximam-se desse entendimento da saudade que João Franco construiu para com a Virgem Maria. De acordo com Tugny (2015TUGNY, Augustin. Prefácio, “O presente da saudade”. In: JESUS, Samuel de. Saudade: da poesia medieval à fotografia contemporânea, o percurso de um sentimento ambíguo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 7-10., p. 7), para aquele que se entrega à saudade, qualquer tentativa de livrar-se desse sentimento ou de acabar com ele, em última instância, significaria o desejo de “melhor se entregar” a ele, para renová-lo e instaurá-lo de novo.

Um último remédio indicado por João Franco é aquele que “ordinariamente se aplica às saudades”, os “retratos”,12 12 João Franco se refere ao retrato de Jesus, provavelmente muito útil no sermão proferido ao público católico. pois “com [eles] se costumam mitigar os sentimentos dos amantes, e, por isso, sendo vós tão amantes, este é o remédio, que vos trago, para o vosso sentimento” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 608). Os retratos poderiam assim ser entendidos tanto como um alívio da saudade quanto como uma fonte que alimentaria essa saudade (Tugny, 2015TUGNY, Augustin. Prefácio, “O presente da saudade”. In: JESUS, Samuel de. Saudade: da poesia medieval à fotografia contemporânea, o percurso de um sentimento ambíguo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 7-10., p. 9). Por sua condição de objeto e símbolo da saudade, podemos compará-los às fotografias, que contemporaneamente se constituem em “evocações do passado acariciadas pelo olhar de quem as vivenciou e tenta reavivá-los”, servindo “para matar a saudade que nos mata” (Tugny, 2015TUGNY, Augustin. Prefácio, “O presente da saudade”. In: JESUS, Samuel de. Saudade: da poesia medieval à fotografia contemporânea, o percurso de um sentimento ambíguo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 7-10., p. 6).

No sermão da soledade de 1741, João Franco também faz menção ao retrato, que seria a imagem de Cristo a aliviar a mágoa, o enternecimento, a saudade:

Tenho acabado o meu discurso, mas ainda de todo não está acabado, porque ainda lhe falta o melhor de tudo. Como o vosso enternecimento se não moveo ainda á força de discursos, he necessário, que venha agora o mesmo Filho desta magoada Mãy a mover o vosso enternecimento. Adorada Senhora, se na pena da saudade costumão servir de alivio os retratos, agora vos quero mostrar o retrato de vosso Filho, para que tenha alivio a vossa saudade. Do vosso Esposo dissestes vós nos Cantares, que era branco, e encarnado. E parece, que dissestes isto olhando para este retrato. (Franco, 1741FRANCO, João. Sermaõ das Soledades. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo XII. Lisboa: Officina dos herdeiros de Antonio Pedroso Galram, 1741, p. 198-218., p. 216)

Mas se por um lado João Franco, especialmente no sermão publicado em 1734, defendia que o choro, a companhia e o retrato eram os remédios mais indicados para a cura ou alívio das saudades sentidas pelo público ouvinte ou leitor católico, por outro, ao construir uma imagem da saudade, não descuidou de recomendar a vida devota e, sobretudo, de promover o reconhecimento das culpas: “Católicos […] eis aqui o estado, em que puseram as vossas culpas ao vosso redentor” (Franco, 1734FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608., p. 608).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As compreensões de João Franco a respeito da saudade estavam pautadas pelos interesses religiosos de revigoramento da fé católica e de certa ordenação do modo de viver e experienciar essa fé, especialmente a fim de animar a devoção à Virgem, vigentes no Setecentos. Ao longo do período moderno, Maria assumiu a imagem de madona do catolicismo, tendo sido apropriada pelas monarquias como “figura vitoriosa para construir ou consolidar o seu poder”, para os “desígnios missionários no Novo Mundo” e para a difusão da sua devoção através da imitação de suas virtudes (Barnay, 2013BARNAY, Sylvie. Maria. In: VAUCHEZ, André. Cristianismo: dicionário dos tempos, dos lugares e das figuras. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 263-265., p. 264).

Ao conceber a saudade da Virgem Maria como um modelo de sentimento sofrido e incurável, o dominicano recomendava ao seu público ouvinte e leitor que atentasse para os valores de adoração e devoção tanto à Virgem quanto a Cristo. À ideia de piedade em relação ao sofrimento mariano e de veneração aos seus padecimentos de saudade, responsável por reanimar a devoção na Sexta-feira Santa, soma-se à pretensão de, religiosamente, aliviar corações saudosos e talvez consolar mães que perdiam seus filhos, pessoas que perdiam seus cônjuges, bem como auxiliar sujeitos solitários e melancólicos.

A solidão, diferentemente da companhia, que era um dos remédios para a cura da saudade, favorecia o próprio indivíduo saudoso. Ao enfatizar que Maria teria fugido para a sua solidão (Franco, 1741FRANCO, João. Sermaõ das Soledades. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo XII. Lisboa: Officina dos herdeiros de Antonio Pedroso Galram, 1741, p. 198-218., p. 201), aumentando sua “dor maior”, sua saudade, João Franco acabava por defender o sofrimento saudosista e o estado solitário/melancólico como um venerável meio de alcançar valorosos bens salvíficos. Lágrimas, arrependimento e culpa faziam parte da cultura católica do período moderno e eram atitudes esperadas do bom cristão, especialmente das mulheres.13 13 A historiadora Natalie Davis assim descreveu como franciscanos encaravam os modos como as mulheres francesas do início do século XVI deveriam viver e sentir, privilegiando o recolhimento e o silêncio, sem espaço para discutir leituras, dogmas ou a própria bíblia: “O que os bons frades esperavam de mulheres urbanas eram as lágrimas e o arrependimento, que, adequadamente, se seguiriam a um sermão de Quaresma cheio dos truques retóricos e dos gestos dramáticos” (Davis, 1990, p. 72). Para o dominicano, “he verdade, que haviaõ muitos, que acompanhavaõ a Senhora, que a ouviaõ gemer, e que a viaõ chorar. E por isso não foraõ eles os que se pozeraõ longe dela, ella soy a que se poz longe deles” (Franco, 1741FRANCO, João. Sermaõ das Soledades. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo XII. Lisboa: Officina dos herdeiros de Antonio Pedroso Galram, 1741, p. 198-218., p. 216). Reforçava, em razão disso, também a positividade da solidão voluntária, do recolhimento - tal como das religiosas, das viúvas, das moças, dos monges, dos tímidos, dos celibatários -, da meditação, do estar só e do automartírio com a própria saudade sentida (Minois, 2019MINOIS, Georges. História da solidão e dos solitários. Tradução de Maria das Graças de Souza. São Paulo: Unesp, 2019.).

As saudades seriam mensuradas tanto pelo valor do bem e pela capacidade de reavê-lo quanto pelas penas padecidas, como, aliás, ressaltaria o autor alguns anos depois em outro sermão da soledade (Franco, 1741FRANCO, João. Sermaõ das Soledades. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo XII. Lisboa: Officina dos herdeiros de Antonio Pedroso Galram, 1741, p. 198-218., p. 203). A duração, intenção e motivo do sentimento deviam ser considerados quando do sofrimento da saudade. Essa dor, para João Franco, seriam “penas da alma”, compreendidas como “muito mayores que as penas do corpo”. E a=penas as mães, não todas, mas aquelas que “são boas”, saberiam sentir “as penas dos filhos” (Franco, 1741FRANCO, João. Sermaõ das Soledades. In: FRANCO, João. Sermoens varios. Tomo XII. Lisboa: Officina dos herdeiros de Antonio Pedroso Galram, 1741, p. 198-218., p. 208). Assim, sentir e padecer as dores das saudades como um reconhecimento do seu “ser pecador” eram reações esperadas dos católicos e remetiam às práticas e comportamentos devotos. Dos fiéis esperava-se a construção de imagens ideais de adoração à Virgem, de louvor a Cristo na Semana Santa e de promoção do arrependimento dos enganos da vida, em sintonia com a cultura cristã-católica presente em Portugal nas primeiras décadas do século XVIII.

FONTES

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  • FRANCO, João. Sermaõ das Soledades de Nossa Senhora. In: FRANCO, João. Sermoens varios Tomo I. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1734, p. 595-608.
  • FRANCO, João. Sermaõ das Soledades Gloriosas de Maria Santissima pregado na Parrochial de N. Senhora da Penna. In: FRANCO, João. Sermoens Varios Tomo V. Lisboa Occidental: Nova Officina de Mauricio Vicente de Almeida, 1736, p. 220-235.
  • FRANCO, João. Sermaõ das Soledades. In: FRANCO, João. Sermoens varios Tomo XII. Lisboa: Officina dos herdeiros de Antonio Pedroso Galram, 1741, p. 198-218.
  • GAMA, Simão. Sermoes varios Setima Parte. Lisboa: Officina de Bernardo da Costa Carvalho, 1715.
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REFERÊNCIAS

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  • ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Pedagogias da saudade: a formação histórica de consciências e sensibilidades saudosistas. A vida e o trabalho do poeta e professor português António Corrêa d’Oliveira. Revista História Hoje, v. 2, n. 4, p. 149-174, 2013.
  • ARAÚJO, Joel Gonçalves. António Vieira, entre o degredo e a pátria: percursos de saudades. 2010. Dissertação (Mestrado em Cultura Clássica) - Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Portugal, 2010.
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  • VASCONCELLOS, Carolina M. A saudade portuguesa, divagações filológicas e literário-históricas em volta de Inês de Castro e do cantar velho “Saudade minha - quando te veria?”. Lisboa: Guimarães Editores, 1996.
  • VICENT-BUFFAULT, Anne. História das lágrimas Tradução de Helena Moura. Lisboa: Círculo de Leitores, 1997.
  • 1
    Veja-se estudos de Georges Minois sobre a solidão (2019MINOIS, Georges. História da solidão e dos solitários. Tradução de Maria das Graças de Souza. São Paulo: Unesp, 2019.) e sobre o riso (e seu contraponto) (2003MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena Assumpção. São Paulo: Unesp, 2003.), de Jean Starobinski sobre a melancolia (2016STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.) e de Anne Vicent-Buffault sobre as lágrimas (1997VICENT-BUFFAULT, Anne. História das lágrimas. Tradução de Helena Moura. Lisboa: Círculo de Leitores, 1997.). No Brasil, merecem destaque os estudos de Durval Muniz de Albuquerque Júnior sobre a saudade como tema acionado nos escritos de poetas portugueses do século XX, a demonstrar relações com a temporalidade (Albuquerque Júnior, 2013ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Vestida de saudade viva: o sentimento saudoso como tra(d)ição na poesia de Maria Teresa Horta. Revista Esboços, Florianópolis, v. 23, n. 35, p. 285-315, 2016., 2016ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Pedagogias da saudade: a formação histórica de consciências e sensibilidades saudosistas. A vida e o trabalho do poeta e professor português António Corrêa d’Oliveira. Revista História Hoje, v. 2, n. 4, p. 149-174, 2013.). Em termos teóricos, historiadores têm oferecido diferentes reflexões sobre seu ofício ante as constantes manifestações de alguns grupos sociais que expressam “saudade” de um tempo passado hipoteticamente melhor que o presente; ou, ainda, sobre as formas como o passado histórico é tratado a partir da autoridade da memória. Nesse sentido, limitamo-nos a indicar Hartog (2017HARTOG, François. Crer em História. Tradução de Camila Dias. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.).
  • 2
    Com recorte filosófico e literário, cabem destacar três publicações: Joaquim de Carvalho com o texto “Problemática da saudade” de 1951; António Braz Teixeira com Filosofia da saudade de 1986TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da saudade. Lisboa: Imprensa nacional Casa da moeda, 1986.; Carolina Vasconcelos com a obra A saudade portuguesa, divagações filológicas e literário-históricas em volta de Inês de Castro e do cantar velho “Saudade minha - quando te veria?” de 1996VASCONCELLOS, Carolina M. A saudade portuguesa, divagações filológicas e literário-históricas em volta de Inês de Castro e do cantar velho “Saudade minha - quando te veria?”. Lisboa: Guimarães Editores, 1996.; e o crítico literário Eduardo Lourenço e a obra Mitologia da saudade de 1999LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999..
  • 3
    Para uma análise dos “percursos de saudade” e da ausência do padre Antônio Vieira “entre a sua pátria e os seus ‘degredos’”, ver Araújo (2010ARAÚJO, Joel Gonçalves. António Vieira, entre o degredo e a pátria: percursos de saudades. 2010. Dissertação (Mestrado em Cultura Clássica) - Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Portugal, 2010.).
  • 4
    Nasceu em Lisboa na segunda metade do século XVII, sendo um destacado frade ao longo da primeira metade do século XVIII, pregando e atuando como confessor e diretor espiritual; professou a regra da Ordem dos Pregadores em 1704 e ganhou notoriedade intelectual na sociedade portuguesa com suas publicações e seus sermões divulgados em todo o Reino. Foi mestre em teologia, consultor do Santo Ofício e, em 1754, tornou-se Prior no Convento da Ordem dos Pregadores da cidade de Lisboa, instituição na qual também ensinou teologia escolástica por muitos anos (Machado, 1759MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana, historica, critica, e cronológica, na qual se comprehende a noticia dos autores portugueses, e das obras… Tomo IV. Lisboa: Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759, p. 179., p. 170; Silva, 1859SILVA, Innocêncio. Dicionario bibliographico portuguez. Estudos de Innocencio Francisco da Silva aplicáveis a Portugal e ao Brasil. T. III. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859., p. 358).
  • 5
    Valemo-nos do primeiro volume - de um total de 12 - dos sermões do autor, publicados em Portugal ao longo dos anos 1730. Este tomo agrega 30 sermões e foi publicado em 1734, encontrando-se disponível para pesquisa na Biblioteca Nacional de Portugal.
  • 6
    O sermão das soledades foi o penúltimo publicado na obra e, ao contrário dos demais, infelizmente, não indica a data e o local em que foi proferido.
  • 7
    É certo que a não inclusão da palavra “saudade” no título não elimina a possibilidade de que outros sermões, tal como o de Franco de 1734, tenham refletido diretamente sobre essa manifestação de sensibilidade humana. Dada a dificuldade de acesso a esse conjunto de fontes e aos limite deste texto, analisamos comparativamente apenas quando possível. Além disso, não é objetivo deste artigo realizar uma compreensão ampla e totalizante daquilo que os religiosos portugueses, de diferentes ordens, entendiam por “saudade” na primeira metade do século XVIII.
  • 8
    Ver catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal a partir da pesquisa pela palavra-chave “saudade”.
  • 9
    Outra forma de combate à solidão e à “melancolia da vida solitária”, de acordo com os Pais da Igreja, era o trabalho. Tal como um eremita que se dedicava a trabalhos manuais, a Igreja recomendava “Rezem e trabalhem”, pois “um solitário só deve abandonar a oração para trabalhar com as mãos”, sendo esta “a única terapêutica eficaz para a tristeza e a acedia” (Starobinski, 2016STAROBINSKI, Jean. A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 45).
  • 10
    Modelos mais racionalistas na ciência médica, identificados como uma medicina ilustrada em Portugal, seriam adotados a partir de meados do XVIII por influência de Luiz A. Verney e Antônio Ribeiro Sanchez. Ainda assim, a relação entre medicina ilustrada e a assim denominada medicina da alma se manteve até o final do Setecentos, como se pode observar na obra Medicina teológica (1794), de Francisco de Mello Franco (Stein, 2015STEIN, Tarcila Nienow. “Os dois braços da boa medicina”: a medicina do corpo e da alma na obra de Francisco de Mello Franco. 2015. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2015., p. 25, 82).
  • 11
    O sermão da soledade do jesuíta Simão da Gama recomendava aos leitores/ouvintes que “não choreis a morte de Jesus Christo; porque já não tem remédio. Chorai as vossas culpas, que forão causa della”, depondo “as tristes paixoens, que abafão em vosso coraçaõ os ternos sentimentos da piedade” (1715, p. 133).
  • 12
    João Franco se refere ao retrato de Jesus, provavelmente muito útil no sermão proferido ao público católico.
  • 13
    A historiadora Natalie Davis assim descreveu como franciscanos encaravam os modos como as mulheres francesas do início do século XVI deveriam viver e sentir, privilegiando o recolhimento e o silêncio, sem espaço para discutir leituras, dogmas ou a própria bíblia: “O que os bons frades esperavam de mulheres urbanas eram as lágrimas e o arrependimento, que, adequadamente, se seguiriam a um sermão de Quaresma cheio dos truques retóricos e dos gestos dramáticos” (Davis, 1990DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna. Tradução de Mariza Corrêa. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990., p. 72).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2020
  • Aceito
    13 Jul 2020
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