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Baixada Fluminense: dinâmicas fluviais e sociais na constituição de um território

RESUMO

A Baixada Fluminense tem sua identidade territorial marcada pelos rios, e seu nome está relacionado com a configuração fisiográfica da região. O artigo busca contribuir com a história da construção dessa identidade, no século XIX e início do século XX, sob uma perspectiva teórica que se situa na interface entre história ambiental e história dos sistemas sociotécnicos, possibilitando articular dinâmicas fluviais e sociais. O pano de fundo são as mudanças sociais e políticas no Brasil e no Rio de Janeiro no século XIX e até a década de 1930. A análise foi dividida em três diferentes períodos: (i) entre o início da ocupação do território, no final do século XVI, até a primeira metade do século XIX, quando os rios possibilitaram a prosperidade de alguns povoamentos; (ii) a estagnação econômica e subsequente decadência da região na segunda metade do século XIX e o início de sua representação como local pantanoso insalubre no final desse século, tendo os rios como foco dessa insalubridade; (iii) grandes intervenções sobre os rios na década de 1930, realizadas pelo DNOS, possibilitando um novo ciclo de desenvolvimento econômico da região.

Palavras-chave:
rios urbanos; Baixada Fluminense; história ambiental; história dos sistemas sociotécnicos

ABSTRACT

The territorial identity of Baixada Fluminense is marked by rivers, its name derived from the region’s physiographic configuration. In this article we look to contribute to the history of how this identity was constructed in the nineteenth century and the beginning of the twentieth, adopting a theoretical perspective situated on the interface between environmental history and the history of sociotechnical systems, thus enabling an articulation of fluvial and social dynamics. The backdrop is formed by the social and political changes in Brazil and Rio de Janeiro from the nineteenth century to the 1930s. The analysis divides into three periods: (i) from the beginning of the territory’s occupation at the end of the sixteenth century to the first half of the nineteenth century, when the rivers enabled some settlements to prosper; (ii) the region’s economic stagnation and subsequent decline in the second half of the nineteenth century and its first depictions as an insalubrious marshland area at the end of the same century, with its rivers identified as the focal point of this unhealthiness; (iii) large-scale interventions on the rivers implemented in the 1930s, undertaken by the DNOS, which prompted a new cycle of economic development of the region.

Keywords:
urban rivers; Baixada Fluminense; environmental history; history of sociotechnical systems

A Baixada Fluminense tem sua identidade territorial marcada pelos rios. A ideia de identidade territorial é construída no campo da geografia a partir de uma relação material e simbólica do conjunto de pessoas com um território, ligada às dinâmicas efetivas de apropriação desse espaço (Haesbaert, 2007HAESBAERT, Rogério. Identidades territoriais: entre a multiterritorialidade e a reclusão territorial (ou: do hibridismo cultural à essencialização das identidades). In: ARAUJO, Frederico G. de; HAESBAERT, Rogério (org.). Identidades e territórios: questões e olhares contemporâneos. Rio de Janeiro: Access, 2007. p. 33-56.). A expressão Baixada Fluminense (BF) está relacionada à configuração fisiográfica da região. Uma área plana, rebaixada em relação ao nível do mar ou quando comparada com seu entorno, atravessada por rios e canais meandrados e com extensas planícies de inundação. De fato, os rios e a questão das inundações marcam a história da região. Busca-se, neste artigo, contribuir com a história da construção dessa identidade territorial sob uma perspectiva teórica que se situa na interface entre história ambiental e história dos sistemas sociotécnicos, possibilitando articular dinâmicas fluviais e sociais.

Em obra publicada em 2008, Christof Mauch e Thomas Zeller recorrem a autores do campo da história que enfatizam a importância dos rios para a humanidade, tais como Lewis Mumford - para o qual grandes culturas históricas prosperaram graças ao movimento de homens, instituições, invenções e bens ao longo de uma estrada natural formada por um grande rio - e Roy Mann (1973MANN, Roy B. Rivers in the City. New York: Praeger, 1973.), que analisa a relação entre rios e cidades identificando as intervenções realizadas nas margens dos cursos hídricos - as quais representariam profunda ameaça à paisagem fluvial (Mauch; Zeller, 2008MAUCH, Christof; ZELLER, Thomas. Rivers in History: Perspectives on Waterways in Europe and North America. Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh Press, 2008.).

No entanto, somente nas décadas recentes os historiadores começaram a dedicar atenção aos rios em si, abordando as transformações ambientais nos cursos de água, recorrendo a trabalhos de geomorfólogos e biólogos que estudaram os impactos da ação do homem sobre os rios ao longo do tempo (Mauch; Zeller, 2008MAUCH, Christof; ZELLER, Thomas. Rivers in History: Perspectives on Waterways in Europe and North America. Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh Press, 2008.). Os impactos podem ser diretos (no leito do rio), indiretos (fora do leito) e mesmo mudanças ambientais que, mesmo que ocorram a certa distância, podem interferir na qualidade da água e no próprio curso do rio (Mauch; Zeller, 2008MAUCH, Christof; ZELLER, Thomas. Rivers in History: Perspectives on Waterways in Europe and North America. Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh Press, 2008.).

No campo da história ambiental se multiplicaram no período mais recente estudos sobre rios. Em Rivers of Empire: Water, Aridity and the Growth of the West, de Donald Worster, examina-se como o Estado e o capital se combinaram para controlar a água tendo como objetivo viabilizar a acumulação capitalista. A obra aborda uma sociedade hidráulica moderna, baseada na manipulação intensa e em grande escala da água em um ambiente árido, partindo da crença de que seu controle tecnológico, mediante irrigação, abriria o Oeste americano ao desenvolvimento (Worster, 1985WORSTER, Donald. Rivers of Empire: Water, Aridity, and the Growth of the American West. New York: Pantheon Books, 1985.).

A sociedade hidráulica definida por Worster, capaz de impor padrões hidráulicos sociotécnicos de larga escala, não é formada por um bloco monolítico de poder, mas por uma convergência de interesses entre proprietários agrícolas e burocracia técnica, capaz de dar nova forma à natureza, de disciplinar a sociedade em um projeto de conquista e dominação - uma burocracia agrogerencial que manipula o conhecimento para controlar e dominar camponeses e rios, numa perspectiva de maximização da produção agrícola (Worster, 1982WORSTER, Donald. Hydraulic Society in California: An Ecological Interpretation. Agricultural History, v. 56, n. 3, p. 503-515, 1982.; 1985WORSTER, Donald. Rivers of Empire: Water, Aridity, and the Growth of the American West. New York: Pantheon Books, 1985.). Para além do caso norte-americano, Worster demonstraria que a necessidade de água para diferentes usos mudou irrevogavelmente muitas das paisagens e ecossistemas do Ocidente e levou a uma redistribuição de poder e ao surgimento de novas elites burocráticas e econômicas (Worster, 1993WORSTER, Donald. The Wealth of Nature: Environmental History and Ecologic Imagination. Oxford: Oxford University Press, 1993.).

Outro trabalho pioneiro foi realizado por Richard White (1995WHITE, Richard. The Organic Machine: The Remaking of the Columbia River. New York: Hill and Wang, 1995.), onde o autor explora a relação entre a história natural do rio Columbia e a história de brancos e nativos norte-americanos no noroeste do Pacífico, argumentando não haver uma clara demarcação entre natureza e civilização. De acordo com White, os rios do século XX são criações humanas, mas também têm vidas próprias, “além do nosso controle”.

Os rios também passaram a ser objeto de estudos no campo da história dos sistemas sociotécnicos,1 1 O conceito de sistema sociotécnico enfatiza a impossibilidade de separação entre técnica e sociedade, noção que vai ao encontro dos trabalhos mencionados nesta seção. incluindo trabalhos sobre a história de sistemas de transporte fluvial, de produção de energia hidroelétrica e de abastecimento de água que têm os rios como suporte fundamental. Henshaw (2011HENSHAW, Robert. River of Commerce. In: HENSHAW, Robert (ed.). Environmental History of Hudson River: Human Uses that Changed the Ecology, Ecology that Changed Human Uses. New York: Sunny Press, 2011. p. 195-200.), por exemplo, afirma que a história do rio Hudson nos últimos 400 anos está ligada ao transporte e que, nos anos 1950, grandes usinas hidroelétricas foram construídas na parte sul do baixo Hudson para facilitar o fornecimento de energia à cidade de Nova York. Backouche (2016BACKOUCHE, Isabelle. La trace du fleuve: la Seine et Paris (1750-1850). 2ème ed. Paris: Ed. EHESS, 2016.), por sua vez, demonstra como o rio Sena deixou de ser um espaço vital para a vida parisiense na virada para o século XIX, ao tornar-se uma via de navegação nacional cada vez mais apartada da cidade.

Os limites entre história ambiental e história de sistemas sociotécnicos são fluidos. Os trabalhos de história ambiental citados apresentam forte diálogo com o campo da história dos sistemas sociotécnicos. Autores como Pritchard (2013PRITCHARD, Sara B. Joining Environmental History with Science and Technology Studies: Promises, Challenges and Contribution. In: JORGENSEN, Dolly; JORGENSEN, Finn A.; PRITCHARD, Sara B. New Natures: Joining Environmental History with Science and Technology Studies. Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh Press, 2013. p. 1-21.), destacam essa fluidez, perspectiva ainda pouco explorada no Brasil. Os autores argumentam que os dois campos podem se alimentar mutuamente, construindo novas perspectivas teóricas. Por exemplo, o entendimento da produção do conhecimento técnico sobre a natureza como processo social, os estudos sobre a formação de profissionais de determinados campos, como a engenharia e as ciências naturais, bem como sobre constituição da expertise nesses campos, podem contribuir para um conhecimento aprofundado de como o “meio ambiente” é percebido, construído, contestado e moldado pelos atores sociais.

Os rios proporcionam um campo fértil para o desenvolvimento dessa abordagem. São objeto de estudo e intervenção das ciências naturais e da engenharia. Nesse elemento da natureza, que pode ser definido como ambiente fluvial, as dimensões natural e humana estão completamente imbricadas. Os rios passam a ser entendidos não mais como elemento natural, mas como resultante de um conjunto de processos, em parte moldados pela ação humana, em parte independentes dessa ação, mas quase sempre entrelaçados, de forma a se tornarem inseparáveis (Castonguay; Evenden, 2012CASTONGUAY, Stéphane; EVENDEN, Matthew. Introduction. In: CASTONGUAY, Stéphane; EVENDEN, Matthew (ed.). Urban Rivers: Remaking Rivers Cities and Space in Europe and North America. Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh Press, 2012. p. 1-18.; Pádua, 2010PÁDUA, José Augusto. As bases teóricas da história ambiental. Estudos Avançados, São Paulo: USP, v. 24, n. 68, p. 81-101, 2010.; Worster, 1991WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 198-215, 1991.).

Pritchard (2011PRITCHARD, Sara B. Confluence: The Nature of Technology and the Remaking of the Rhône. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2011.), em estudo sobre o rio Rhône, usa um conceito que busca traduzir essa visão, definindo-o como “envirotechnical landscape” a partir do entendimento de sua remodelação por diversos agentes - políticos, experts científicos e pessoas comuns; isto é, transformações tanto institucionais quanto informais. A convergência de fatores humanos e não humanos, a mistura de sistemas ecológicos e tecnológicos define o Rhône como “envirotechnical landscape”. Evenden (2018EVENDEN, Matthew. Beyond the Organic Machine? New Approaches in River Historiography. Environmental History, n. 23, p. 698-720, 2018.) afirma que ela estende a noção de “máquina orgânica” de Richard White para além das dimensões “naturais”’ da “tecnologia”, para desafiar as próprias fronteiras entre essas categorias e artefatos (natureza e tecnologia).

Ao longo do tempo, as grandes obras de engenharia que transformam os rios para a instalação de sistemas sociotécnicos tornaram-se sinônimo de desenvolvimento e progresso econômico, passando a fazer parte do projeto de construção do Estado Nacional. Molle et al. (2009MOLLE, François; MOLLINGA, Peter; WESTER, Philippus. Hydraulic Bureaucracies and the Hydraulic Mission: Flows of Water, Flows of Power. Water Alternatives, v. 2, n. 3, p. 328-349, 2009.) afirmam que, nos últimos 150 anos, a transformação dos recursos hídricos pelo Estado, dentro do que Pritchard (2011PRITCHARD, Sara B. Confluence: The Nature of Technology and the Remaking of the Rhône. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2011.) define como transformações institucionais, foi uma estratégia política emergente para controlar o espaço, a água e as pessoas. Essa estratégia é identificada pelos autores como parte importante da estruturação dos Estados modernos. Reiteram a interpretação de Worster, para quem o controle da água deu lugar ao surgimento de uma elite poderosa que “incluía cientistas e engenheiros que construíram uma capacidade sofisticada de manipular o ambiente ribeirinho natural, uma especialização que eles voluntariamente colocaram a serviço de autoridades ainda mais poderosas” (Worster, 1982WORSTER, Donald. Hydraulic Society in California: An Ecological Interpretation. Agricultural History, v. 56, n. 3, p. 503-515, 1982., p. 505). Por frequentemente trabalharem a serviço do Estado, conformando as burocracias modernas, Molle et al. (2009MOLLE, François; MOLLINGA, Peter; WESTER, Philippus. Hydraulic Bureaucracies and the Hydraulic Mission: Flows of Water, Flows of Power. Water Alternatives, v. 2, n. 3, p. 328-349, 2009.) usam o conceito de hidrocracia para se referir a esse quadro de profissionais. Salientam ainda que, adquirindo interesses corporativos próprios e tendo sua influência fortemente relacionada ao considerável orçamento destinado a elas, as “hidrocracias” adquiriram grande poder em diversos países. Dentre os exemplos, mencionam a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (Ifocs) no Brasil, criada no início do século XX para “combater” a seca no Nordeste do país, e posteriormente reformada tornando-se o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). Embora o tema careça de maiores estudos para as cidades brasileiras, a formação de uma burocracia técnica a serviço do Estado, voltada para a concepção de canais e, mais tarde, das primeiras redes de abastecimento de água e de saneamento, é perceptível no Rio de Janeiro desde a segunda metade do século XIX, destacando-se nomes como Pedro de Alcântara Bellegarde, Pereira Passos, André Rebouças e Saturnino de Britto, bem como as obras de canais, túneis e pontes que imprimem novas marcas na paisagem e nos rios.

Na Baixada Fluminense, observa-se que os rios ora serviram como meio de transporte entre a capital do país e seu interior, levando à prosperidade de diversas vilas fluviais na região, ora foram considerados como fonte de insalubridade - sendo alvo de grandes intervenções na década de 1930, no âmbito da ação agora da hidrocracia do DNOCS.

Neste artigo, buscamos compreender a história dos principais rios da região - entendendo-os como sistemas tecnológicos e ambientais, na perspectiva apresentada por Pritchard (2011PRITCHARD, Sara B. Confluence: The Nature of Technology and the Remaking of the Rhône. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2011.). No pano de fundo estão as mudanças sociais e políticas que ocorreram no Brasil e no Rio de Janeiro entre o século XIX e a década de 1930.

Baseando-nos em parte no trabalho de Simone Fadel (2009FADEL, Simone. Meio Ambiente, saneamento e engenharia no Império e na Primeira República. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.), dividimos essa história em três diferentes períodos: (i) o primeiro deles abarca desde o início da ocupação do território da Baixada, no final do século XVI, até a primeira metade do século XIX, quando os rios possibilitaram a prosperidade de alguns povoamentos na região; (ii) o segundo período caracteriza-se pela estagnação econômica e subsequente decadência da região na segunda metade do século XIX e pelo início de sua representação como local pantanoso insalubre no final desse mesmo século, sendo os rios o foco dessa insalubridade; (iii) o terceiro período tem início com as grandes intervenções realizadas sobre os rios na década de 1930, pela hidrocracia do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS) que possibilitaram um novo ciclo de desenvolvimento econômico da região.

OS RIOS DA BAIXADA COMO CANAIS NAVEGÁVEIS E AS VILAS FLUVIAIS NA BAIXADA FLUMINENSE

Até o século XIX, a ocupação da região que forma hoje a Baixada Fluminense (BF) ocorreu lentamente. Lamego resgata a concessão das primeiras sesmarias em 1558, no rio Guandu, nas terras de Sepetiba; em 1565, nos rios Magé e Iguaçu; em 1566, no rio Magé; em 1568, no rio Inhomirim, e, no mesmo ano, uma grande sesmaria doada a Brás Cubas (Lamego, 1964). Nessas grandes propriedades se cultivava, sobretudo, cana-de-açúcar, e a planície contava com dezenas de moendas e engenhos. Fragoso (2015FRAGOSO, João. E as plantations viraram fumaça: nobreza principal da terra, Antigo Regime e escravidão mercantil. História, São Paulo, v. 34, n. 2, p. 58-107, 2015.) nomeia 160 engenhos na baía de Guanabara em 1680.

O papel dos rios, representado na Figura 1, no processo de ocupação da região é central. Lamego se refere a eles como “admiráveis estradas naturais”:

Pelas águas do Meriti, do Sarapuí, do Iguaçu, do Pilar, do Saracuruna, do Inhomirim, do Suruí, do Majé, do Guapimirim, do Macacu e do Guaxindiba é que foram subindo os desbravadores. Ao longo de suas margens é que se foram alinhando engenhos e fazendas e por eles é que descia para o Rio de Janeiro a produção agrícola do recôncavo. (Lamego, 1964, p. 193)

Figura 1
Carta Topográfica da Capitania do Rio de Janeiro, Manoel Vieira Leão, 1767

O núcleo de São Bento, hoje no município de Duque de Caxias, correspondia a terras dos beneditinos, que ali tinham seu engenho. Na zona de Pilar, uma capela já servia de paróquia em 1612. Em 1820, Joze de Souza Azevedo Pizarro e Araujo - ou “Monsenhor Pizarro” - descreveu a importância da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Iguaçu (atual bairro do Pilar, em Duque de Caxias), os gêneros produzidos nessa área e a importância dos rios para o transporte:

Uma só Fabrica de assucar e outra de aguardente se conserva em seu territorio cujas producçoens ruraes sam a cana, legumes arroz, mandioca, e café. Esses efeitos, e os resultados das fabricas de Oleiros, que alli se estabeleceram, tem prompta saida por qualquer dos nove portos francos, e dispersos pelos Rios de Mantiquira, do Bananal, de Saracuruna, e do Pilar, todos navegaveis de canoas e de outros vasos maiores. Os dous primeiros desaguando no Rio do Couto, fazem barra juntos no de Iguaçú que sae ao mar da Enseiada, por onde vogam os barcos, e lanchas carregadas. Pelos mesmos canaes se introduzem as diversas qualidades de peixe, que fertilizando-os abundantemente, vam saborear o appetite dos habitantes do paiz.

Junto à Matriz acha-se formado um bonito arraial com Casas de vivenda cobertas de palha, em que habita por todo anno porção notavel de povo. O número de Casas excede à sessenta. (Pizarro, 1820PIZARRO, José de Sousa A. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias annexas a jurisdição do vice-rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1820. v. 1-4.)

De acordo com Soares (1962SOARES, Maria Terezinha S. Nova Iguaçu: absorção de uma célula urbana pelo grande Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Geografia, ano 24, n. 2, p. 155-256, abr./jun. 1962.), o problema do encharcamento de grandes planícies precisou ser enfrentado por todos aqueles que ocuparam a região, que oferecia, porém, “outros elementos que lhe permitiriam solucionar essa dificuldade. A multiplicidade de rios que desaguam na baía de Guanabara, à margem da qual está a cidade do Rio de Janeiro, possibilitou, no passado, a utilização do transporte por via aquática para evitar a área pantanosa” (Soares, 1962SOARES, Maria Terezinha S. Nova Iguaçu: absorção de uma célula urbana pelo grande Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Geografia, ano 24, n. 2, p. 155-256, abr./jun. 1962., p. 6).

Mesmo sendo marcada por áreas pantanosas, a percepção e as representações da BF não eram negativas até o início do século XX. Fadel (2009FADEL, Simone. Meio Ambiente, saneamento e engenharia no Império e na Primeira República. Rio de Janeiro: Garamond, 2009., p. 95), analisando relatos de viajantes que percorreram a região nas primeiras décadas do século XIX, destaca que “não existe nos mesmos qualquer descrição depreciativa sobre a natureza contemplada. Os textos estão repletos de palavras que transmitem o sentido de encantamento e prazer diante de todo o transcurso”.

O rio Iguaçu, com suas nascentes na serra do Tinguá, desenvolvia seu curso no sentido sudeste, com extensão total de cerca de 43 quilômetros, passando nas proximidades da Fazenda de São Bento e desaguando na baía de Guanabara. Ele permitia fácil comunicação com o rio do Pilar, onde se localizava a guarda e o porto do Pilar, que fora valorizado com a abertura do Caminho Novo para as Minas, servindo para a passagem das tropas e para o escoamento do ouro, ocupando posição protegida de ataques.

Com o Caminho Novo, que passou a ser usado, ainda que precariamente, a partir de 1707 servindo de ligação com o Rio de Janeiro, o Porto de Nossa Senhora da Piedade de Iguaçu também prosperou e foi objeto de sucessivos melhoramentos nas décadas seguintes. De acordo com Pizarro (1820PIZARRO, José de Sousa A. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias annexas a jurisdição do vice-rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1820. v. 1-4., p. 101), no início do século XIX havia em torno desse porto um “vistoso arraial” com casas cobertas de telha, duas fábricas de açúcar e algumas olarias. Ali, além da cana-de-açúcar, produzia-se mandioca, milho, feijão, arroz e café.

Na Freguesia de São João de Miriti, Pizarro enumera 11 fábricas de açúcar e três olarias, além da plantação de cana e outros gêneros alimentícios. Além do rio Meriti, o autor destaca a importância dos rios Pavuna e Sarapuí para esse distrito. Da Serra do Gericinó “e de outras montanhas visinhas, se originam vários rios, que abundantes comunicam às terras d’este districto sua fertilidade” (Pizarro, 1820PIZARRO, José de Sousa A. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias annexas a jurisdição do vice-rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1820. v. 1-4., p. 16).

Já em Santo Antônio de Jacutinga (atualmente no município de Nova Iguaçu), Pizarro conta existirem, em 1820, 11 fábricas de açúcar, uma de aguardente e algumas de barro, além de diversificada produção agrícola. Destaca, novamente, a importância dos rios:

Banham o terreno da sua comprehensão os Rios Cachoeira, de Santo Antonio do Mato, Douro, e Riachaõ, que engrossados por outros, desde as Serras da Cachoeira, e de Tinguá, despejam volumosas aguas nos de Iguaçú, Guandú, e Serapuy, pelos quaes navegam barcas, lanchas, e canoas carregadas de effeitos do Continente, recebendo-os nos 5 portos dispersos pelo Rio Iguaçú, e nos 4 espalhados pelo Rio Serapuy. (Pizarro, 1820PIZARRO, José de Sousa A. Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias annexas a jurisdição do vice-rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1820. v. 1-4., p. 166)

O rio Sarapuí - que nasce a aproximadamente 900 metros de altitude, na serra de Bangu, no município do Rio de Janeiro - guardava um leito sinuoso, desaguando diretamente na baía. Tanto o rio Iguaçu quanto o Sarapuí apresentavam inúmeros afluentes,2 2 O rio Iguaçu recebe pela margem esquerda as águas dos afluentes Tinguá, Pati e Capivari, e pela direita dos afluentes Botas e Sarapuí. Este, por sua vez, tinha como afluentes principais até o século XIX os rios Socorro, Santo Antônio e da Prata e vários riachos mais tarde canalizados. mas a navegação e a ocupação das margens deste último eram mais problemáticas, formando brejos e pântanos que começaram a ser canalizados na primeira metade do século XIX. Hoje, de sua nascente até a foz no rio Iguaçu, o rio Sarapuí percorre cerca de 36 quilômetros.

O papel desempenhado pelos rios era extremamente relevante e seus portos facilitavam não só o escoamento da produção aurífera, mas também de outros produtos para o porto do Rio de Janeiro. Com o desenvolvimento da cultura da cana-de-açúcar, Iguaçu é elevada, no ano de 1719, à categoria de freguesia curada, ou seja, Freguesia com Cura (padre), evidenciando o reconhecimento, por parte das autoridades coloniais, de seu potencial econômico (Rodrigues, 2006RODRIGUES, Adrianno O. De Maxambomba a Nova Iguaçu (1833-90’s): economia e território em processo. 2006. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2006.).

Em meados do século XVIII a região foi marcada pelo processo de decadência da lavoura açucareira, que não apresentava a produtividade necessária para enfrentar a forte concorrência internacional. A região, que havia se retraído ao longo da primeira metade do século XVIII, busca se reconstruir economicamente na segunda metade do século, mas apenas com a chegada e instalação da Corte portuguesa na cidade do Rio de Janeiro, em 1808, ganharia de fato novo impulso. Soares (1962SOARES, Maria Terezinha S. Nova Iguaçu: absorção de uma célula urbana pelo grande Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Geografia, ano 24, n. 2, p. 155-256, abr./jun. 1962., p. 166) indica que os múltiplos interesses comerciais que ligavam o Rio de Janeiro e os portos da BF faziam a população do recôncavo sentir-se cada vez mais ligada à capital em pleno crescimento. Foi, todavia, um desenvolvimento limitado, impulsionado pelo fato de a região ser uma rota de passagem, tendo os rios papel central, em função do transporte fluvial de mercadorias.

Em certos portos fluviais da BF se desenvolveram aglomerações que não deviam sua existência às necessidades de organização da zona circundante, e sim às necessidades do movimento de mercadorias e de viajantes. A povoação em torno de Nossa Senhora da Piedade de Iguaçu, por exemplo, é elevada à categoria de vila em 1833. Segundo Soares, essa mudança de status político-administrativo se deu em razão da importância que adquiriu no tráfego entre o porto e seu hinterland, uma vez que não apresentava muitas das características que fazem de um aglomerado uma verdadeira cidade.

No século XIX, o desenvolvimento da região se baseou na economia do café. A BF passa a ser a rota de escoamento da produção vinda do Vale do Paraíba. Segundo Lamego (1964), na época em que o café passou a ser cultivado em mais larga escala nas fazendas do vale do Paraíba e na zona iguaçuana, maior foi a prosperidade de Iguaçu, chegando a possuir grandes armazéns e estabelecimentos comerciais que giravam com vultosos capitais:

Tornou-se a vila um verdadeiro entreposto comercial, pois os negociantes aí estabelecidos, adquirindo o café que vinha de cima, supriam as fazendas do interior com as mercadorias necessárias ao seu consumo e custeio, muito embora tivessem a concorrência do comércio que se fazia através dos portos do Pilar, de Inhomirim e da Estrêla. (Lamego, 1964, p. 200)

Em 1839, o rio Iguaçu servia ao tráfego comercial e de viajantes em direção à região da Estrada da Polícia e à Estrada do Rodeio e, por estas, à região de Minas e ao Vale do Paraíba. Essa região, que havia começado a afirmar-se ainda no século XVIII com o Caminho Novo para as Minas, se beneficiou da comercialização do café, que proporcionou o surgimento da primeira estrada brasileira aberta para o transporte desse grão - a Estrada Real do Comércio (Royse, 2009ROYSE, Flávia. Recuperação ambiental de rios urbanos: diretrizes para o Rio Botas na Baixada Fluminense. 2009. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2009. ). A estrada, que passava pela Villa de Iguaçu, concluída em 1822, tornou-se a principal via de escoamento de grãos e dos demais produtos do Vale do Paraíba para o porto do Rio de Janeiro. Contudo, se um novo meio de escoamento da produção se implanta na região, esta não se configurou como grande produtora e sim como um dos maiores entrepostos para a exportação dos grãos.

Observa-se que ao longo do século XVIII os rios, apesar de serem meandrados, não foram objetos de grandes intervenções para facilitar a navegação. O caráter rural da área foi determinante para a manutenção da estrutura hidrológica dos rios. No século XIX, a navegação a vapor, que transforma a dinâmica de rios na Europa e na América do Norte, não chega a ser adotada.

No Rio de Janeiro, a força do motor a vapor será adotada na implantação do sistema ferroviário. A Estrada de Ferro Pedro II, que ligava o Campo da Aclamação (atual Praça da República, no Rio de Janeiro) até a estação Belém, inaugurada em 1858 (atual Japeri), se deu sobre as terras planas da BF, com o objetivo de escoar a produção de café que vinha do Vale do Paraíba, substituindo o sistema formado pela Estrada Real e pelos rios e portos da região.

Vale lembrar que, ao longo do século XIX, os rios da BF também foram mobilizados para o abastecimento de água da cidade do Rio de Janeiro. Antonio Rebouças coordenou os estudos sobre o uso dos mananciais do entorno da cidade (Silva, 1965SILVA, Rosauro M. Do Poço Cara de Cão à Adutora do Guandu. Revista de Engenharia do Estado da Guanabara, v. 31, n. 1, p. 5-22, 1965.; Telles, 1984TELLES, Pedro Carlos da S. História da engenharia no Brasil. Rio de Janeiro: Clube de Engenharia, 1984.). No relatório resultante desses estudos, o engenheiro apontou como manancial mais promissor o rio d’Ouro, sendo identificado como único inconveniente a distância que precisaria ser percorrida pelas tubulações entre a serra do Tinguá e a cidade do Rio de Janeiro. Ainda assim, o engenheiro considerou que tal fato não inviabilizava o projeto (Rebouças, 1880REBOUÇAS, Antonio. Projecto do futuro abastecimento: considerações gerais. Revista de Engenharia, v. 4, p. 70-71, 1880.). Com efeito, desses estudos resultou o Sistema Acari, composto por cinco adutoras que captavam água na serra do Tinguá. Essas estruturas, contudo, não chegaram a modificar de forma substancial a estrutura hidráulica dos rios.

A EMERGÊNCIA DO TRANSPORTE FERROVIÁRIO E A ESTAGNAÇÃO ECONÔMICA DA BAIXADA FLUMINENSE

Até meados do século XIX, a navegação e as obras de captação de água para a capital não tinham promovido grandes alterações nos cursos hídricos da BF. O impacto das ferrovias sobre os rios, contudo, foi significativo. A própria estrada de ferro veio a se tornar uma barreira para o escoamento das águas. Além disso, o desmatamento para obtenção de lenha, tanto para os engenhos de açúcar quanto para as ferrovias, acabaria por favorecer também o assoreamento dos rios. Enfim, a concorrência econômica do transporte ferroviário com a navegação, somada ao custo da mão de obra para assegurar a limpeza manual dos rios para permitir o transporte fluvial (até a abolição, realizada por escravos), fez declinar a importância conferida aos rios da região.

De acordo com Góes, a prosperidade da BF baseava-se “no saneamento da terra, realizado pela pujante aristocracia rural que a explorava”. O enfraquecimento dessa aristocracia e o fim do trabalho escravo foram, segundo o autor, os principais motivos do abandono da limpeza dos rios: “à mingua de braços, não é mais possível cuidar dos rios, que se obstruem…” (Góes, 1939GÓES, Hildebrando de A. O saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, 1939., p. 15).

Ao analisar o impacto das ferrovias, Soares mostra que os rios da BF, assumindo a função de vias de comunicação com o porto do Rio de Janeiro, contribuíram de maneira importante para estabelecer e manter uma unidade real e duradoura entre o Rio de Janeiro e a BF até meados do século XIX.

Essa unidade só seria comprometida pelo aparecimento das estradas de ferro, pois, ligando diretamente o litoral da baía ou, depois, a própria capital à base da serra do Mar e, logo a seguir, ao planalto, elas iriam, de início, contribuir para que se desfizessem os laços profundos que durante três séculos haviam unido o Rio à Baixada da Guanabara (Soares, 1962SOARES, Maria Terezinha S. Nova Iguaçu: absorção de uma célula urbana pelo grande Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Geografia, ano 24, n. 2, p. 155-256, abr./jun. 1962., p. 166).

Além do impacto das ferrovias, os portos da bacia do Iguaçu sofreram com a concorrência do porto da Estrela, bem mais próximo da zona central do vale do Paraíba, com navegação a vapor, “onde o transporte de café iria subir a 30.000 toneladas anuais, descidas da serra em lombos de burros e ali embarcadas” (Lamego, 1964, p. 201).

Muitos portos fluviais, sem função, foram extintos. O rio Iguaçu tornou-se assoreado; na época das chuvas ele passou a deixar seu leito menor, ocupando uma vasta planície de inundação. Formaram-se novos brejos e pântanos. Assim, nesse período surgiu a imagem de uma Baixada insalubre, ambiente hostil, onde os terrenos alagadiços transformaram-se em criadouros de mosquitos, que perdurou durante as primeiras décadas do século XX (Fadel, 2009FADEL, Simone. Meio Ambiente, saneamento e engenharia no Império e na Primeira República. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.).

Essa insalubridade se associou a uma imagem de improdutividade. Com as novas frentes de produção do café migrando para o vale do rio Paraíba, seguindo as ferrovias, os núcleos de população associados aos portos entraram em decadência e ruína. Esse processo de decrescimento econômico e demográfico e a morte das antigas vilas é comparável ao que se observou em outras cidades brasileiras, como Airão (AM), no ciclo da borracha (Leonardi, 1999LEONARDI, Victor. Os historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia Brasileira. Brasília: Ed. UnB, 1999.). Como assinala Soares, no caso da BF, esses núcleos (vilas-portos) formados sobretudo por uma população em trânsito, nunca tiveram a autonomia que dá às aglomerações o caráter de verdadeiros centros urbanos.

Nas palavras de Maia Forte, citadas por Lamego (1964, p. 201),

Iguaçu era um fantasma de vila, abandonada, cuja escassa população vivia prêsa do impaludismo. Restringia-se a sua existência a vida artificial que lhe dava o oficialismo, a Câmara Municipal, a vida judiciária, isto mesmo durante certas horas do dia. A noite, Iguaçu mergulhava no sono agitado pelos excessos da impiedosa malária.

Como assinala Lamego (1964, p. 202), a decadência não foi exclusiva da vila de Iguaçu, acometendo igualmente as vilas de Jacutinga, do Pilar, de Estrela, de Porto das Caixas e de Inhomirim, “todas elas nascidas, evolucionadas e mortas, sob as contingências de um sistema de transportes que acabou e de vias circulatórias que se desviaram”.

Essa decadência foi expressa também por Góes (1939GÓES, Hildebrando de A. O saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, 1939., p. 15):

Do passado explendor da Vila de Estrela, belo porto fluvial, término da estrada que cortava os sertões de Minas, Goiáz e Mato Grosso, só resta um casarão único, de muros rotos, que ameaça desabar.

Da antiga e florescente vila de Iguassú, existe, apenas, uma rua, calçada de pedras irregulares, que está sendo integrada, aos poucos, no seio da mataria que a margeia.

Até então, não havia um projeto político-econômico claro do governo imperial para a região.

AS GRANDES OBRAS DE SANEAMENTO E A TRANSFORMAÇÃO DOS RIOS DA BAIXADA

No final do século XIX, a identidade da BF havia mudado. Em meio século ela havia passado de região próspera a área insalubre, deprimida economicamente e acometida por frequentes surtos de malária. Há registros da preocupação do Governo Imperial com o saneamento da região nesse período, mas, apesar da realização de alguns estudos e da celebração de um contrato, foram executadas apenas ações pontuais - tanto pelo Estado quanto por particulares.

Em 1883, por exemplo, o major Rangel Vasconcelos realizou estudos sobre as “pirexias palustres”3 3 Febres de áreas úmidas. que acometiam a região e propôs soluções para o saneamento dos rios Iguaçu, Meriti, Pilar e Irajá (Góes, 1934GÓES, Hildebrando de A. Relatório apresentado pelo engenheiro chefe da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Ministério da Viação e Obras, 1934., p. 264). As propostas de Vasconcelos, entretanto, não saíram do papel por falta de recursos. Alguns anos depois, em abril de 1889, o Governo Imperial celebrou um contrato com os engenheiros João Teixeira Soares e Joaquim Pereira dos Santos. Desta vez, o foco do contrato era prioritariamente o norte da província do Rio de Janeiro. Mais uma vez, segundo Góes (1934GÓES, Hildebrando de A. Relatório apresentado pelo engenheiro chefe da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Ministério da Viação e Obras, 1934.), nada se realizou e a concessão foi cancelada.

Durante a Primeira República (1889-1930), os governos federal e estadual realizam algumas ações de saneamento visando o restabelecimento da agricultura e do povoamento da região (Góes, 1939GÓES, Hildebrando de A. O saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, 1939.). Essas ações são, todavia, marcadas por concessões de obras que auferiam enormes vantagens e direitos sobre o território a empresas privadas (Souza, 2006SOUZA, Marlucia dos Santos. Os impactos das políticas agrárias e de saneamento na Baixada Fluminense. Revista Pilares da História, ano 4, n. 6, p. 17-25, abr. 2006.).

Em 1894 é criada a Comissão de Estudo e Saneamento da Baixada do Estado do Rio de Janeiro, chefiada primeiramente pelo engenheiro João Teixeira Soares, substituído 6 meses depois por Marcelino Ramos da Silva. Em dezembro de 1888, já no fim do Império, Soares havia sido contratado com Joaquim Pereira dos Santos para drenar as terras, dragar os rios, retificar, escavar e preparar os leitos dos rios principais e afluentes com vista à navegação. Agora sob o governo republicano, além da realização de estudos minuciosos sobre a hidrografia, meteorologia, economia e povoamento da região, a comissão deveria buscar, com seu projeto de saneamento, o aproveitamento dos cursos hídricos para navegação e irrigação.

Apesar dos estudos realizados por essa Comissão, as obras efetivamente executadas até sua extinção em 1902 foram bastante pontuais.

Os serviços iniciados e concluídos pela Comissão limitaram-se à dragagem de um canal no rio Estrela e de um banco de areia nesse mesmo rio. Além desses, a comissão iniciou, mas não concluiu, a dragagem de canais no porto da Piedade, na barra do Macacu e no rio Imbariê (Góes, 1934GÓES, Hildebrando de A. Relatório apresentado pelo engenheiro chefe da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Ministério da Viação e Obras, 1934., p. 325).

Durante os governos dos presidentes Rodrigues Alves (1902-1906) e Afonso Pena (1906-1909) observa-se certa desatenção das autoridades federais em relação à BF. Parecem ignorá-la, malgrado o discurso higienista crescente, que marca a reforma de Pereira Passos no Rio de Janeiro, limitada ao território do antigo Distrito Federal. Em 1903, Rodrigues Alves e Oswaldo Cruz iniciaram a campanha pela erradicação da febre amarela no Rio de Janeiro, mas a BF não recebeu atenção. Em 1918 o médico Artur Neiva Belisário publica Saneamento do Brasil, onde aponta as falhas das políticas de saúde da época, concluindo que, à exceção de São Paulo - e em certa medida Minas Gerais e Rio Grande do Sul -, os estados brasileiros praticamente só cuidavam das condições sanitárias das capitais, permanecendo as populações rurais em completo abandono (Santos, 1985SANTOS, Luiz Antonio de C. O pensamento sanitarista na Primeira República: uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 193-210, 1985.).

De fato, só no mandato de Nilo Peçanha a região da BF parece ganhar certa relevância, quando se observam avanços no movimento sanitarista para além do meio urbano. Um aliado importante foi a IFOCS, criada em 1909 por Francisco Sá, então ministro da Viação e Obras Públicas.

Em 1910 o Governo Federal criou a Comissão Federal de Saneamento e Desobstrução dos Rios que Deságuam na Baía de Guanabara, cuja direção é novamente conferida a Marcelino Ramos da Silva até sua morte, quando assumiu Fábio Hostílio de Moraes Rego. A comissão fez avanços, valendo-se até mesmo dos estudos realizados pela Comissão de 1894 para elaborar o edital para a realização de uma concorrência pública.

Dentre as empresas com experiência em obras de saneamento, foi escolhida aquela que apresentou a proposta mais barata - a firma alemã Gebrueder Goedhart A. G. (Góes, 1934GÓES, Hildebrando de A. Relatório apresentado pelo engenheiro chefe da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Ministério da Viação e Obras, 1934.). A empresa executou, além da retificação de parte do rio Sarapuí, a limpeza, desobstrução e dragagem de diversos rios na Baixada Fluminense, conforme sintetizado a seguir.

  • a) Limpeza e desobstrução dos rios da bacia do rio Meriti; do rio Sarapuí e afluentes a montante da Estrada de Ferro da Leopoldina; do rio Iguaçu de alguns rios da bacia do rio Estrela - incluindo os rios Saracuruna, Canal da Taquara, Imbariê e Inhomirim - além da dragagem dos rios Meriti, Iguaçu e Estrela.

  • b) Abertura dos canais da barra do rio Meriti - que servia como dreno do pântano existente entre os dois rios; de um canal de ligação entre os rios Sarapuí e Iguaçu, de um canal na barra do rio Iguaçu; do canal da barra do rio Estrela; do canal do Mosquito - possibilitando que a água do “banhado do Mosquito” escoasse para o rio Imbariê. (Góes, 1934GÓES, Hildebrando de A. Relatório apresentado pelo engenheiro chefe da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Ministério da Viação e Obras, 1934.)

A empresa concluiu os serviços contratados em 1916 e a Comissão foi extinta. O objetivo das ações de “saneamento” era duplo: melhorar a qualidade do ambiente e ganhar terras para a produção agrícola. O saneamento consistia na dragagem de vários rios que deságuam na baía de Guanabara e na eliminação dos pântanos, que eram na realidade extravasamentos naturais dos leitos dos rios. Considerados foco de malária, esses extravasamentos dos rios passam a ser alvo de críticas, mas o objetivo das canalizações e retificações também era tornar as terras atrativas para as atividades agrícolas. O argumento da insalubridade ganha destaque, como parte de um projeto de melhoria da saúde pública formulado pelo movimento sanitarista nacional. Hochman (1998HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil. São Paulo: Hucitec: Anpocs, 1998.) caracteriza esse movimento e sua base ideológica. Segundo o autor, o caráter contagioso da doença impunha a existência de uma autoridade capaz de agir sobre todo o território, sobre todos os indivíduos - restringir liberdades individuais, alterar direitos de propriedade e violar autonomias políticas, desafiando liberdades individuais e o pacto federativo vigente.

Um fator de natureza institucional que reforça esse movimento é, como assinala Santos, a vinda da missão Rockefeller e o início das as atividades dessa Fundação no Brasil, em 1917. As atividades da Fundação ganharam impulso no Distrito Federal e no interior dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, onde ela se associou aos governos federal e estaduais no combate à ancilostomíase e à malária.

Os relatórios da primeira Comissão de Saneamento da BF já indicavam que a insalubridade da região não era natural, isto é, consequência apenas da sua topografia, dos índices de pluviosidade e da sinuosidade dos rios. A ação do homem é destacada, mencionando-se as obras de construção de estradas e ferrovias sem estudos mais aprofundados, as quais criaram barreiras para o escoamento das águas.

O objetivo da Comissão era a integração econômica desse território, restaurando a navegabilidade dos rios e criando a possibilidade da instalação de atividades agrícolas (Fadel, 2009FADEL, Simone. Meio Ambiente, saneamento e engenharia no Império e na Primeira República. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.). Apesar de ter sido extinta em 1916, ela deixou um levantamento detalhado da situação dos rios da BF, com um conjunto de propostas de intervenção.

A cultura da laranja, trazida para Nova Iguaçu no final do século XIX, passa a ser amplamente incentivada, uma vez que o clima, o relevo e solo eram propícios. Além disso, a proximidade com os principais mercados consumidores (Rio de Janeiro e São Paulo), a possibilidade de escoamento pelas estradas de ferro e o apoio governamental - tanto para a produção como para a exportação - foram fundamentais para o desenvolvimento dessa nova atividade (Rodrigues, 2006RODRIGUES, Adrianno O. De Maxambomba a Nova Iguaçu (1833-90’s): economia e território em processo. 2006. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2006.). Para dinamizá-la, entretanto, era necessário melhorar as condições ambientais da região e ganhar as terras alagadas.

Assim, em 1920 uma nova comissão de saneamento foi criada: a Comissão de Melhoramentos dos Rios da Baía do Rio de Janeiro. Desta vez, os serviços de saneamento da porção oeste da baía de Guanabara foram concedidos à firma brasileira Empresa de Melhoramentos da Baixada Fluminense. Porém, o escopo inicial da proposta, que consistia em sanear cerca de 2 mil quilômetros quadrados, nunca foi executado, e os serviços realizados restringiram-se ao aterro parcial de Manguinhos, na cidade do Rio de Janeiro. Além disso, a empresa desapropriou em 1921 a fazenda São Bento (localizada no que é hoje o Segundo Distrito de Duque de Caxias) e iniciou seu saneamento, tendo como objetivo instalar uma colônia agrícola. Após a rescisão do contrato, em 1931, a área da fazenda foi integrada ao patrimônio nacional (Góes, 1934GÓES, Hildebrando de A. Relatório apresentado pelo engenheiro chefe da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Ministério da Viação e Obras, 1934.).

Ainda na década de 1920 havia sido criada a Fiscalização da Baixada Fluminense, incorporada em 1932 à Fiscalização do Porto do Rio de Janeiro - a qual passa a executar os serviços constantes do contrato rescindido com a Empresa de Melhoramentos da Baixada Fluminense. De forma sintética, é possível constatar que, até 1932, apesar do crescimento do movimento sanitarista e da preocupação com o saneamento da região, nenhuma obra regional de grande vulto pôde ser empreendida em decorrência da instabilidade política (Góes, 1934GÓES, Hildebrando de A. Relatório apresentado pelo engenheiro chefe da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Ministério da Viação e Obras, 1934.). No decorrer da década de 1930, entretanto, as mudanças no cenário político brasileiro possibilitaram a execução de grandes obras de engenharia que iriam contribuir para as alterações no uso do solo na BF a partir de então (Quintslr, 2018QUINTSLR, Suyá. A (re)produção da desigualdade ambiental na metrópole: conflito pela água, ‘crise hídrica’ e macrossistema de abastecimento no Rio de Janeiro. 2018. Tese (Doutorado) - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2018. ).

As tentativas de saneamento da BF empreendidas até a década de 1930 possibilitaram o loteamento e ocupação de certas áreas, notadamente os territórios referentes aos atuais municípios de Nilópolis e São João de Meriti, além da porção sul de Duque de Caxias (Simões, 2006; Abreu, 1988ABREU, Maurício de A. A evolução urbana do Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Iplanrio: Zahar, 1988.). Entretanto, as obras executadas até então, segundo Góes (1934GÓES, Hildebrando de A. Relatório apresentado pelo engenheiro chefe da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Ministério da Viação e Obras, 1934.; 1939GÓES, Hildebrando de A. O saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, 1939.), careciam de estudos que embasassem sua concepção, bem como de uma visão abrangente da macrodrenagem, portanto não avaliavam adequadamente suas implicações. Além disso, a descontinuidade administrativa característica da Primeira República levou à sucessiva criação e extinção de comissões e mudanças em suas direções, ao que se somava a insuficiência de verbas.

Em julho de 1933, com o objetivo de resolver definitivamente o problema de saneamento das áreas baixas do estado do Rio de Janeiro e promover sua integração à economia nacional, o governo federal criou a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, sob responsabilidade do Departamento Nacional de Portos e Navegação, chefiada por Hildebrando Góes. Em 1936, a Comissão é transformada na Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense (DSBF), ficando subordinada ao Ministério de Viação e Obras Públicas (Brasil, 1936BRASIL. Lei 248 de 16 de setembro de 1936. Crea a Directoria do Saneamento da Baixada Fluminense. Diário Oficial da União, Seção 1, 22 set. 1936, p. 20.812.). No ano seguinte é criado o Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), com abrangência nacional, e a DSBF passa a fazer parte desse órgão. Cabe destacar que, até então, a denominação Baixada Fluminense era utilizada para designar todas as baixadas litorâneas do estado do Rio de Janeiro localizadas entre a costa e a Serra do Mar.

As intervenções realizadas pela DSBF devem ser compreendidas no quadro das mudanças em curso no Brasil a partir da Revolução de 1930 e da ascensão de Getúlio Vargas ao Executivo nacional (Quintslr, 2018QUINTSLR, Suyá. A (re)produção da desigualdade ambiental na metrópole: conflito pela água, ‘crise hídrica’ e macrossistema de abastecimento no Rio de Janeiro. 2018. Tese (Doutorado) - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2018. ). A rejeição da ideologia liberal sustentou o avanço da participação estatal na economia e no planejamento em todo o mundo capitalista (Ianni, 1979IANNI, Octavio. Estado e Planejamento no Brasil (1930-1970). 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.). Apesar de Steven Topik (1987TOPIK, Steven. A presença do Estado na economia política do Brasil, de 1889 a 1930. Rio de Janeiro: Record, 1987.) sustentar que o Estado Brasileiro já era o mais intervencionista da América Latina na Primeira República, essa intervenção estatal na atividade econômica se expandiu no Estado Novo, a partir de 1937. De acordo com Ianni (1979IANNI, Octavio. Estado e Planejamento no Brasil (1930-1970). 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979., p. 50-51), nos 15 anos em que Vargas esteve no poder “criaram-se novas condições para a formação e o desenvolvimento de uma espécie de tecnoestrutura estatal no Brasil” - o que envolveu a criação, pelo Governo Federal, de comissões, departamentos e institutos, e a formulação de planos com o objetivo de estudar e coordenar as atividades produtivas em geral.

Assim, em conformidade com essas diretrizes mais gerais de incentivo e disciplinamento das atividades econômicas, foram estabelecidas as seguintes atribuições à DSBF: o estudo e planejamento dos trabalhos de saneamento na região; o estudo das bacias hidrográficas e do regime dos cursos d’água; o levantamento do cadastro imobiliário; a elaboração de um plano de desenvolvimento econômico da BF; e a organização de um plano de imigração agrícola para toda a região (Brasil, 1936BRASIL. Lei 248 de 16 de setembro de 1936. Crea a Directoria do Saneamento da Baixada Fluminense. Diário Oficial da União, Seção 1, 22 set. 1936, p. 20.812.).

As obras realizadas na região aqui enfocada compreenderam a recuperação de áreas periodicamente alagadas pelas marés, a defesa contra as inundações, a dragagem de novos leitos para rios assoreados e/ou obstruídos que formaram brejos, e o que Góes (1939GÓES, Hildebrando de A. O saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, 1939.) denominou como “obras de arte”, isto é, pontes que precisavam ser reconstruídas, já que algumas obstruíam o fluxo dos rios.

Desse modo, construiu-se um complexo sistema de mitigação de enchentes, envolvendo a construção de pôlderes, diques ao longo das margens dos rios e canais auxiliares. Em alguns casos, a instalação de bombas se mostrou necessária para facilitar o escoamento das águas, em especial quando as fortes chuvas coincidem com a subida da maré (Góes, 1939GÓES, Hildebrando de A. O saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, 1939.). Em outros, comportas automáticas foram consideradas suficientes para garantir o adequado escoamento.

Ao longo do rio Meriti foram construídos 11 quilômetros de diques e canais, “ganhando-se uma área de 6 milhões de metros quadrados, extremamente valorizada, porque se acha localizada nos subúrbios do Rio de Janeiro” (Góes, 1939GÓES, Hildebrando de A. O saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, 1939., p. 30). O mesmo sistema foi implementado nos rios Sarapuí, Iguaçu e Pilar.

Essas obras são descritas por Góes:

Levantam-se, ao longo das margens dos rios, diques que impedem o alagamento das terras pelas marés. O seu coroamento fica, em geral, a um metro acima da préa-mar máxima. Pelo lado interno dos diques, escavam-se canais destinados a coletar as águas pluviais caídas na área beneficiada, que neles se lançam atravez da rêde secundária. O seu escoamento para o rio se faz por meio de bombas, quando a préa-mar coincide com fortes chuvas locais ou por meio de comportas automáticas (“tide-gates”), quando baixa a maré. (Góes, 1939GÓES, Hildebrando de A. O saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, 1939., p. 30)

Essas obras hidráulicas existem ainda hoje em diversos rios na BF. Entretanto, a quase ausência de política habitacional para as classes populares ao longo de décadas levou à ocupação de muitas áreas de pôlder e até mesmo de diques na região, colocando em risco não apenas essas estruturas, mas também a população que nelas reside.

Novos leitos foram dragados em diversos rios assoreados na região, a exemplo do rio Iguaçu, a montante da estrada Rio-Petrópolis, e dos rios Pilar, Capivari, Babi, Botas, das Velhas e Maxambomba. Assim, na bacia do Iguaçu, até 1939, já haviam sido dragados 37 quilômetros. Na bacia do rio Sarapuí tinham sido dragados 10 quilômetros, na bacia do rio Estrela (incluindo os rios Inhomirim, Saracuruna e Imbarê), fora dragado um trecho de 6 quilômetros (Góes, 1939GÓES, Hildebrando de A. O saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, 1939.).

Dentre os resultados alcançados, aponta-se a redução dos focos de malária e o seu “ressurgimento econômico” (Góes, 1939GÓES, Hildebrando de A. O saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, 1939., p. 57). Contudo a recolonização rural, outro objetivo enunciado, foi bastante limitada. De fato, a economia fluminense, notadamente a produção agrícola, baseada no açúcar e no café, atravessava uma longa crise que teve sua origem ainda no século XIX e que se agravou na virada para o século XX (Ferreira, 1994FERREIRA, Marieta de Moraes. Em busca da Idade de Ouro: as elites políticas fluminenses na Primeira República (1889-1930). Rio de janeiro: Ed. UFRJ, 1994.). Ao longo das décadas de 1910 e 1920 não houve real recuperação da economia, com exceção de certo progresso na produção de café. Ao iniciar-se a década de 1930, o boom cafeeiro do norte do estado estava esgotado, assim como a agroindústria açucareira, em razão da impossibilidade de exportação do açúcar e do encolhimento do mercado interno; não se vislumbravam alternativas econômicas que permitissem um maior dinamismo da economia, apesar das tentativas de incentivo da diversificação agrícola por parte de Nilo Peçanha (Ferreira, 1994FERREIRA, Marieta de Moraes. Em busca da Idade de Ouro: as elites políticas fluminenses na Primeira República (1889-1930). Rio de janeiro: Ed. UFRJ, 1994.). Ainda assim, vale destacar a proliferação da citricultura nos territórios de Nova Iguaçu, Belford Roxo e Queimados - que prosperou por alguns anos até a crise desencadeada pela Segunda Guerra Mundial.

O relatório de Góes ressalta também a valorização das terras da BF após as obras da DSBF:

Seguindo exemplo do governo, grandes propriedades abandonadas são adquiridas por empresas particulares, que, após os primeiros melhoramentos indispensáveis, retalham as grandes áreas e vendem os lotes, facilitando o pagamento a longo prazo. Várias companhias já se acham organizadas com este objetivo, obtendo resultados completamente satisfatórios. (Góes, 1939GÓES, Hildebrando de A. O saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense, 1939., p. 58)

De fato, as obras executadas pelo DNOS na década de 1930 liberaram grandes áreas da BF para a acumulação capitalista, permitindo que se faça aqui um paralelo com a situação do oeste norte-americano descrita por Worster (1982WORSTER, Donald. Hydraulic Society in California: An Ecological Interpretation. Agricultural History, v. 56, n. 3, p. 503-515, 1982.; 1985WORSTER, Donald. Rivers of Empire: Water, Aridity, and the Growth of the American West. New York: Pantheon Books, 1985.). Com o início dos loteamentos, as áreas saneadas foram aos poucos incorporadas ao tecido urbano da cidade do Rio de Janeiro, dando início ao processo de metropolização.

O desejo de domínio da natureza por parte das burocracias estatais - expresso principalmente pelas obras de “disciplinamento” dos rios - que marca as obras de saneamento da BF não estava desconectado das tendências mundiais (Quintslr, 2018QUINTSLR, Suyá. A (re)produção da desigualdade ambiental na metrópole: conflito pela água, ‘crise hídrica’ e macrossistema de abastecimento no Rio de Janeiro. 2018. Tese (Doutorado) - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2018. ). Segundo Molle et al. (2009MOLLE, François; MOLLINGA, Peter; WESTER, Philippus. Hydraulic Bureaucracies and the Hydraulic Mission: Flows of Water, Flows of Power. Water Alternatives, v. 2, n. 3, p. 328-349, 2009., p. 328), grandes projetos hidráulicos foram uma estratégia política de controle do espaço, da água e da população, além de “parte importante das formas cotidianas de formação do Estado” desde meados do século XIX. De acordo com os autores, as hidrocracias que levaram esses projetos adiante adquiriram grande poder em diversos contextos nacionais.

Com efeito, o engenheiro Hildebrando de Araújo Góes, que chefiou os trabalhos da Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e dirigiu o DNOS até 1946, ganhou grande notoriedade e permaneceu por anos como importante figura pública no Brasil. Participou, por exemplo, da ampliação do Porto do Rio de Janeiro e de obras de combate a inundações em outras regiões. Em 1945, com o fim do Estado Novo, elegeu-se Deputado pelo estado da Bahia para a Assembleia Nacional Constituinte, mas, com a posse de Eurico Dutra, renunciou ao mandato para ser nomeado Prefeito do Rio de Janeiro, então, Distrito Federal. Posteriormente, elegeu-se mais duas vezes Deputado Federal pela Bahia (Quintslr, 2018QUINTSLR, Suyá. A (re)produção da desigualdade ambiental na metrópole: conflito pela água, ‘crise hídrica’ e macrossistema de abastecimento no Rio de Janeiro. 2018. Tese (Doutorado) - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, 2018. ).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos contextos da Europa e da América do Norte a forma de muitos rios mudou dramaticamente ao longo dos séculos XIX e XX. Transformados por especialistas que agiam, na maior parte dos casos, em nome dos Estados-nação centralizadores para atender as necessidades de ordem política, econômica e social, os rios incorporaram novas estruturas. Seus cursos foram modificados para se tornarem canais artificiais, tidos como a melhor maneira de transportar mercadorias. Para acomodar volumes de carga crescentes e barcaças maiores, os canais foram padronizados em largura e profundidade, o que exigiu o emprego da dragagem em escala inédita.

No contexto da BF, ainda no período imperial, os rios assumiram a função de navegação, mas os custos e os interesses envolvidos impediram que grandes obras fossem assumidas pelo Estado; as ações limitavam-se à dragagem para facilitar a circulação de embarcações. Assim, seu traçado foi até então preservado e, em torno dos portos fluviais, estabeleceram-se prósperas vilas em diversos pontos da região. Com o fim da dragagem realizada via de regra por particulares, as calhas dos rios vão progressivamente se obstruindo e extravasam seus leitos, passando a ocupar grandes áreas planas.

Foi somente no século XX que um projeto econômico do governo central para a Baixada se consolidou. Nos marcos das teorias higienistas, as terras deveriam ser saneadas, os rios “corrigidos”, “disciplinados”, para possibilitar o escoamento mais rápido das águas e viabilizar a ocupação agrícola. Com as ações das diversas comissões de saneamento formadas a partir do início desse século e, em especial, das intervenções realizadas nos anos 1930, a fisionomia dos rios se transforma. A eles são incorporadas novas estruturas (comportas, barragens, pontes, diques, bombas e canais). Assim como na Europa e na América do Norte, a construção dessas estruturas se torna sinônimo de desenvolvimento, progresso técnico e econômico, e até mesmo da construção de um Estado Nacional potente. De fato, esse processo está relacionado, no Brasil, ao projeto de Vargas de centralização do poder no Executivo federal, o que envolveu a formação de uma burocracia nos moldes weberianos e, em última instância, de uma hidrocracia que se consolidou ao aplicar o conhecimento técnico racional aos rios de diversas regiões - incluindo a BF. Pode-se afirmar que é a partir desse momento e pela ação das hidrocracias que tais rios passam a ser o que Pritchard (2011PRITCHARD, Sara B. Confluence: The Nature of Technology and the Remaking of the Rhône. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2011.) definiu como “envirotechnical landscape”.

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  • 1
    O conceito de sistema sociotécnico enfatiza a impossibilidade de separação entre técnica e sociedade, noção que vai ao encontro dos trabalhos mencionados nesta seção.
  • 2
    O rio Iguaçu recebe pela margem esquerda as águas dos afluentes Tinguá, Pati e Capivari, e pela direita dos afluentes Botas e Sarapuí. Este, por sua vez, tinha como afluentes principais até o século XIX os rios Socorro, Santo Antônio e da Prata e vários riachos mais tarde canalizados.
  • 3
    Febres de áreas úmidas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2018
  • Aceito
    08 Dez 2018
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