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Rufina: uma escrava senhora de escravos em Pernambuco, 1853-1862

Rufina: A Slave-owning Female Slave in Pernambuco, 1853-1862

RESUMO

Os fragmentos de vida que reunimos sobre Rufina ajudam a melhor compreender problemas ainda pouco estudados pela historiografia. Neste artigo, dois pontos serviram como fios condutores da análise: a posse de escravos por escravos e a noção de direito de propriedade a partir das concepções de cativos e libertos. Com isso, o objetivo principal é analisar, mediante fragmentos de vida de Rufina, a sua inserção no mundo da liberdade, buscando compreender a construção de hierarquias sociais no interior das propriedades escravistas, bem como a noção de direito de propriedade que ela trouxe como herança da escravidão. Discutimos, também, as condições que favoreceram sua ascensão social ainda em cativeiro e em que momento se formou sua visão sobre os direitos como proprietária, pautados em costumes construídos nas terras dos beneditinos.

Palavras-chave:
escravos senhores de escravos; libertos; Beneditinos

ABSTRACT

The fragments of life we have gathered about Rufina will help to better understand issues that have been little studied by historiography. In this article, two points served as a conduit for our analysis: the possession of slaves by slaves, and the notion of ownership rights that slaves and freed slaves both had. Therefore, our main objective is to analyze, through fragments of Rufina’s life, her insertion in the world of freedom, seeking to understand the construction of social hierarchies within the slave properties, as well as the notion of property rights she inherited from slavery. We also discuss the conditions that allowed her social rise whilst still in captivity, and the moment when she formed her understanding of ownership, based on customs practiced on the lands run by the Benedictine monks.

Keywords:
slave-owning slaves; freed slaves; Benedictine monks

Assim como tantas outras mulheres escravizadas ou forras que tiveram suas trajetórias discutidas em pesquisas recentes, os fragmentos de vida que reunimos sobre a escrava senhora de escravos e depois liberta Rufina Maria Manoela nos ajudarão a melhor compreender problemas ainda pouco estudados pela historiografia. Neste artigo, dois pontos em particular nos chamaram a atenção e serviram como fios condutores em nossa análise sobre a trajetória de nossa personagem: 1. A posse de escravos por escravos; 2. A noção de direito de propriedade a partir das concepções de cativos e libertos. O primeiro ponto sem dúvida merece atenção especial, uma vez que poucos historiadores se dedicaram ao tema em razão da ausência ou da dificuldade de encontrar fontes que ofereçam informações expressivas sobre essa face da escravidão que ainda carece de muitas reflexões.

A segunda questão pode ser encontrada, considerando as devidas particularidades, nos estudos clássicos de E. P. Thompson (Inglaterra, século XVIII) e de Eugene Genovese, este mais especificamente sobre a escravidão (Estados Unidos, século XIX). Ambos destacaram o empenho dos grupos subalternos (camponeses e escravos, respectivamente) em defender o que acreditavam ser seus direitos, travando duras lutas na arena jurídica ou no cotidiano das relações sociais, mesmo quando as forças eram claramente desiguais. Muitos desses sujeitos se utilizaram de justificativas apoiadas não no direito positivo, mas sim nas tradições e nos costumes locais, que davam algum suporte às suas demandas judiciais ou embates diretos contra os grandes proprietários de terras ou escravistas (Thompson, 1987THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.; Genovese, 1988GENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988.).

Neste estudo, grande parte das informações sobre a trajetória de Rufina encontra-se em um processo-crime datado de 1862, quando a então liberta acusou o Abade do Mosteiro de Olinda, o Fr. Manoel da Conceição, de destruir sua casa. Muitos dados contidos nesse processo se referem à época em que era escrava, revelando que já possuía dois cativos e recursos suficientes para construir uma casa de pedra e cal. Esse processo contribui também para compreender diversos aspectos de sua vida: transição do cativeiro para a liberdade; redes familiares e de solidariedade, hierarquias sociais e a precariedade da liberdade. Entre as diversas possibilidades de análise está a relação paternalista envolvendo sua família e outro monge, o Fr. Felipe Paim, que foi administrador da Fazenda de São Bento na época da construção da casa. Foi durante o seu governo como Abade do Mosteiro de Olinda (1854 e 1860) que Rufina e parte de sua família conseguiram a alforria.2 2 Processo-Crime: Autora: Rufina Maria Manoela. Réu: D. Abade do Mosteiro de Olinda Fr. Manoel da Conceição Monte. 1862, seção de Manuscritos, Série: Irmandades Religiosas, Cx.4: São Bento de Jaguaribe. Museu de Igarassu.

É importante destacar que nesse contexto histórico em que viviam Rufina e sua família, cidades como Olinda e Recife transformavam paulatinamente sua configuração urbana, atraindo mais e mais pessoas livres pobres e egressos do cativeiro em busca da subsistência, mesmo que precária. Principalmente a capital, que passou por profundas transformações em meados do século XIX, com construções modernas sob a liderança do engenheiro francês Louis Vauthier, como pontes, edifícios, teatro e obras hidráulicas (Poncioni, 2010PONCIONI, Claudia. O Brasil visto por Louis Léger Vauthier (Pernambuco, 1840-1846) - Diário e cartas. Navegações (Ensaios), v.3, n.2, p.121-129, jul./dez. 2010.). As estradas de ferro também passaram a movimentar negócios e pessoas de toda a província, servindo “para o ingresso, na capital, de tantos deserdados das terras do interior”, como afirma Maciel Silva (2016SILVA, Maciel Henrique. Nem mãe preta, nem negra fulô: histórias de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador. Jundiaí, SP: Paco, 2016., p.58).

Mesmo diante do crescimento das migrações para o Recife, Rufina e os membros de sua família preferiram não deixar o mundo que conheciam para se aventurar no sonho de liberdade e progresso que a cidade provocava nas pessoas. Além disso, a liberta possuía bens de “algum valor” (como afirmou uma testemunha) na propriedade em que fora cativa, além de uma rede de proteção que lhe havia conferido resultados positivos, pelo menos até 1862.

“POR SER MULHER E DESVALIDA”

Uma breve descrição do processo se faz necessária, ao mesmo tempo que se apresentam as principais questões deste artigo. Em 1862, a liberta Rufina, por intermédio de seu advogado, acusou o Fr. Manoel da Conceição de ter procurado “com carícias e afagos captar” a sua “benevolência para fins” contrários à sua honestidade. Como a liberta não cedeu “de bom grado” aos seus caprichos, negando ser sua “auxiliar em negócios tais”, o Abade passou então a persegui-la, revoltando-se contra ela, buscando pretextos para vingar-se daquela que um dia havia servido “humildemente” àquele Mosteiro. Durante muito tempo teria ela sofrido “silenciosa e resignadamente as suas injúrias e ameaças”.

Essas transcrições são necessárias para melhor visualizarmos a estratégia narrativa de Rufina por meio de seu advogado. Em sua defesa, a primeira parte da acusação procura apresentar uma pessoa humilde, fiel serva que recebera tratamento imerecido. Mas não sabemos até que ponto a atitude desonrosa do Abade era verdadeira, mesmo porque esse fato foi mencionado apenas na introdução da acusação, não voltando à cena no decorrer do processo. Claro que a liberta poderia ter se utilizado dessa história como estratégia para minar a credibilidade do Abade, colocando em evidência uma prática bastante comum entre parte do clero brasileiro, bem conhecida na historiografia.3 3 Para uma discussão mais aprofundada sobre o assunto, ver: TORRES-LONDOÑO, 1999; SERBIN, 2008.

Mas a defesa preferiu não insistir na questão do suposto assédio, procurando defender aguerridamente seu direito como proprietária da casa, processando o Abade com base no artigo 269, combinado com o 270 do Código Criminal do Império. No primeiro encontramos o crime de roubo ou furto, “fazendo violência à pessoa ou à coisa”. A pena prevista era a de galés perpétuas, de 1 a 8 anos. O artigo seguinte dizia que seria considerada “violência feita à pessoa” todas as vezes que, “por meio de ofensas físicas, de ameaças ou por qualquer meio”, uma pessoa fosse impedida de defender as suas coisas. Isso valia ainda para quem realizasse arrombamentos exteriores ou interiores.4 4 Código Criminal do Império. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/221763.

Rufina, diante de tais prejuízos causados pelo réu, pedia à Justiça que o Abade lhe pagasse o valor de 4 contos de réis. Em sua defesa, a liberta apresentou sete testemunhas, seis moradores da redondeza e um soldado que fora enviado ao local do crime. Todos eles afirmaram que sabiam, “de ouvir dizer”, que a casa pertencia a Rufina, mas que a terra era propriedade do Mosteiro. Diziam ainda que sabiam que ela e sua família estavam sob a proteção do Fr. Felipe. Os próprios monges que testemunharam (Fr. Felipe, Fr. José e Fr. Joaquim) afirmaram que a Ordem de São Bento permitia que os seus ex-escravos permanecessem nas propriedades em que viviam, desde que pagassem foro. Contudo, a liberta não possuía contrato de aforamento com o Mosteiro, segundo os mesmos depoimentos, contrariando as “regras” da Congregação, vivendo, assim, irregularmente na fazenda. Certamente, esse fato foi possível em razão dos laços paternalistas que manteve com o antigo administrador da fazenda, o Fr. Felipe, descrito por todas as testemunhas como o grande “protetor” da liberta.

Já o Fr. Manoel da Conceição é retratado pela acusação como violento e sem pudor, capaz de declarar em alto e bom tom que “viria deitar-lhe o teto em terra, mesmo quando a queixosa dentro estivesse!”, enviando alguns escravos em plena madrugada, com toda a família ainda dormindo. Para completar a imagem do Fr. Manoel, o advogado de Rufina escrevera que ela foi despertada “pelo estrondo das telhas e madeiras” que caíam, e “pelas estrepitosas gargalhadas que acompanhavam a queda de tais objetos”.

Diante de tamanha violência, a liberta e sua família se aproveitaram dos laços de amizade e dependência aos quais estavam ligados, e se “homiziaram”5 5 No sentido de se esconder, proteger-se. na propriedade vizinha: o engenho Jaguaribe, pertencente ao capitão Manoel Francisco Souza Leão, Delegado do Termo de Igarassu. Segundo uma das testemunhas, o escravo Gonçalo (cativo da liberta Rufina) teria ouvido sua senhora mandar chamar o capitão Manoel, que logo enviou seus subordinados para testemunharem o fato do destelhamento. Rufina foi então acolhida em seu engenho, onde ficou por vários dias, esperando a chegada do Fr. Felipe, que se deslocou da Paraíba para intervir em favor da liberta. O capitão Manoel de Souza Leão, por sua vez, conseguiu um advogado para ela, enquanto o Fr. Felipe se comprometia com as custas do processo, fato este também conhecido por todos.

Segundo o capitão, este ouviu da liberta que o ocorrido se deu por ela ser “mulher e desvalida”, levando-o a oferecer em seu favor uma das casas de seu engenho. Apresentar-se como “desvalido” era uma estratégia muito utilizada em diferentes instâncias, com o objetivo de equilibrar as forças em disputas com poderosos ou na busca por auxílios/benefícios em seu favor. Por isso, discursos políticos e propostas para o estabelecimento ou manutenção de instituições paliativas de proteção e socorro aos “desvalidos” ocupavam lugar de destaque nos debates e nas medidas tomadas pelo Estado brasileiro. Esses discursos remontam a um período anterior ao tempo de Rufina, atravessando o século XX e chegando ao XXI como estratégia narrativa capaz de convencer autoridades diversas, as quais poderiam se “sensibilizar” no momento de destinar recursos ou proferir uma sentença.6 6 Basta uma pesquisa rápida na Coleção de Leis do Império do Brasil e demais publicações disponíveis no portal da Câmara dos Deputados para constatar tal prática. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/busca/?wicket:interface=:0:1; acesso em: 10 nov. 2017.

Fica claro, nas diferentes narrativas apresentadas no processo (acusação, testemunhas e acusado), que havia uma evidente relação de dependência e proteção envolvendo Rufina, sua família, o Fr. Felipe e os proprietários dos engenhos Jaguaribe e Inhamam. Nesse sentido, como bem observou Adriana Alves, “a inserção ou exclusão dos libertos no mundo dos livres dependia não apenas dos bens adquiridos, mas, principalmente, das relações de poder estabelecidas”. Por isso, “mulheres e homens necessitavam construir grupos de influências e proteção” (Alves, 2010ALVES, Adriana D. R. As mulheres negras por cima: o caso de Luzia Jeje: escravidão, família e mobilidade social - Bahia, c.1780-c.1830. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, 2010., p.225).

Quem mais enfatizou a “vergonhosa” relação de proteção envolvendo os diversos personagens dessa trama foi o acusado Fr. Manoel. Segundo sua defesa, tudo não passava de uma “vindita” empreendida pelo D. Abade da Paraíba Fr. Felipe de S. Luiz Paim, seu inimigo declarado desde o tempo em que havia tomado dele a abadia de Olinda. Fr. Manoel em nenhum momento negou ter mandado destelhar a dita casa, afirmando que possuía direitos sobre ela, já que pertencia ao Mosteiro de Olinda.

Nessa parte de seu depoimento revela-se um ponto determinante e possivelmente convencedor de seu direito de propriedade. Não um direito individual, privado, mas institucional e sacrossanto, pois tudo pertencia ao Patriarca São Bento, e a Congregação era apenas administradora de seu patrimônio, assim afirmavam os beneditinos. Nas palavras do acusado, Rufina ocupava o terreno em que foi construída a casa apenas “por favor” e “graça”, acolhida pelos beneditinos em uma propriedade que não lhe pertencia e, assim, nenhum direito possuía sobre aquela moradia. Mas a liberta pensava de modo diferente.

Além disso, a violência do ato, a humilhação, os diversos danos causados, nada disso foi considerado pelo acusado em seu depoimento ou mesmo pelo juiz em sua sentença. O que estava em discussão era o direito à propriedade. Em sua fala, o Fr. Manoel questionava quem havia dado o poder a Rufina de chamar “ao domínio e senhorio daquela casa”. O Abade se defendia dizendo que as testemunhas apresentadas por Rufina depuseram sobre o fato do destelhamento, “mas não o direito de propriedade”. Concluía reafirmando que o crime cometido fora praticado em solo que pertencia ao seu Mosteiro, e não à liberta Rufina.

Seguindo o transcurso do processo (iniciado em janeiro), em 13 de agosto de 1862 o juiz considerou que Rufina não possuía direito de propriedade sobre a casa em questão. Logo, como “o crime de dano supõe o requisito de ser alheio à propriedade danificada ou pertencer a outrem que não aquele que a danifica”, deixava de ter base a acusação contra o Abade, considerando improcedente a queixa. Por fim, a liberta foi condenada às custas do processo.

Aqui, torna-se necessário situarmos o leitor nos debates recentes sobre os principais temas que compõem nossa discussão, apontando os caminhos percorridos por outros historiadores.

ESCRAVIZADAS E LIBERTAS

Vários estudos, principalmente sobre a vida nos centros urbanos, demonstraram os perigos e problemas enfrentados cotidianamente pelas mulheres no mundo do trabalho. A necessidade de buscar a sobrevivência colocava em risco aquelas que trabalhavam tanto “portas adentro” quanto “portas afora”, sujeitas à violência física e psicológica da casa e da rua, sempre questionadas quanto à sua honra, sua honestidade, seu caráter. Olhares suspeitos acentuados quando a cor negra evidenciava a herança africana.7 7 Sobre o cotidiano de tensões e conflitos das mulheres no século XIX e a discussão de conceitos como honra e honestidade, cf.: GRAHAM, 1992; SILVA, 2004; SANTOS, 2007. Sobre o cotidiano do trabalho doméstico no Recife, ver: CARVALHO, 2003; SILVA, 2004; SILVA, 2016.

Principalmente para os libertos e libertas, que vivenciaram todas as dificuldades e limitações da vida em cativeiro e passaram a experimentar a precariedade da liberdade. Em estudo recente, Antonia Pedroza (2015PEDROZA, Antonia Márcia N. Tramas do Direito e da Justiça local: a luta de Hypolita pela sua liberdade e de seus filhos em Crato (Ceará) e em Exu (Pernambuco) no século XIX. Afro-Ásia, Salvador: UFBA, v.51, p.137-176, 2015.), seguindo a trajetória de Hypolita (escravizada ilegalmente), demonstra como a herança escrava evidenciada na cor da pele da personagem colocava em suspeição sua condição de livre, o que ocorria com todos os indivíduos que se encontravam na mesma condição. Sidney Chalhoub também destacou “o problema da liberdade no Brasil escravista” do século XIX. Ele destacou as limitações impostas à liberdade e as restrições constitucionais infligidas aos libertos, chamando atenção para o constante perigo de revogação da liberdade e reescravização ilegal, o acesso limitado à instrução primária e a suspeita recorrente sobre os livres de cor. Seus direitos de cidadãos não permitiam ascender em carreiras diversas, tanto na política (no máximo como vereadores) como na Igreja (nunca como Bispos) ou na esfera militar (Chalhoub, 2010CHALHOUB, Sidney. Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século XIX). História Social, n.19, p.33-62, 2º sem. 2010., p.34-40).

Outro caso que nos ajuda a melhor compreender as experiências das ex-escravas na frágil fronteira entre a escravidão e a liberdade foi escrito por Maria Helena Machado sobre a trajetória de Ovídia, uma escrava que assumiu a identidade de uma liberta. Machado destaca que as restrições adicionais e as estratégias de controle sobre as libertandas se iniciavam ainda durante o processo de alforria. “Mil condições” eram impostas, principalmente acerca de seu “gozo de ir e vir”. Os senhores, de forma geral, ao concederem a liberdade aos seus cativos, esperavam, principalmente em relação às mulheres, a perpetuação dos laços de dependência. Ao submeter a mulher liberta ao controle senhorial, esta tornava-se o “elo na cadeia de dominação de toda a família” (Machado, 2010MACHADO, Maria Helena P. T. Corpo, gênero e identidade no limiar da abolição: a história de Benedicta Maria Albina da Ilha ou Ovídia, escrava (Sudeste, 1880). Afro-Ásia, Salvador: UFBA, v.42, p.157-193, 2010., p.160-161).

Segundo Maria Inês Cortez de Oliveira (1988OLIVEIRA, Maria Inês C. de. O liberto: seu mundo e os outros. Salvador, 1790/1890. São Paulo: Corrupio, 1988., p.47), a mulher forra não teria sua condição modificada de forma significativa após a libertação. Como mão de obra e como mulher, ela continuaria duplamente aviltada, sempre ocupando um lugar menor na sociedade escravista. No entanto, estudos recentes têm demonstrado que muitas libertas enfrentaram as barreiras impostas à sua condição social e de gênero e conseguiram ascender economicamente. Juliana Barreto Farias (p.129), referindo-se ao Rio de Janeiro do século XIX, afirma que africanas libertas “eram reconhecidas por sua altivez e autonomia” e “chegaram mesmo a formar ‘pequenas fortunas’”. Outros historiadores, como Sandra Graham (1992_______ . Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.; 2012GRAHAM, Sandra L. Uma certa liberdade. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana B.; GOMES, Flávio (Org.) Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012.), Camillia Cowling (2013COWLING, Camillia. Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro. Chapel Hill, NC: The University of North Carolina Press, 2013.) e Maciel Silva (2004_______. Pretas de honra: trabalho, cotidiano e representações de vendeiras e criadas no Recife do século XIX (1840-1870). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, 2004.; 2016) também evidenciaram a luta das mulheres escravizadas e libertas contra as adversidades da sociedade escravista, tomando como fio condutor disputas contra senhores, maridos e outros agentes sociais. Contudo, nenhum desses autores revelou uma face ainda pouco conhecida da historiografia: a posse de escravos por escravas.

Esse fenômeno foi pouco destacado pela historiografia, identificado principalmente em alguns estudos sobre alforria em razão da prática da “substituição”, quando um escravo oferecia outro cativo em troca da liberdade.8 8 Sobre o assunto, ver: COSTA, R., 2017b. Outras pesquisas utilizaram diferentes tipos de fontes, mas o número é reduzido. Alguns poucos estudiosos apontaram a existência desse fenômeno e até dedicaram dois ou três parágrafos ao assunto. Por exemplo, D. Mauro Maia Fragoso (2013FRAGOSO, D. Mauro Maia. Antônio Teles: escravo e mestre pintor setecentista, no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. RIHGB, Rio de Janeiro, ano 174, n.458, p.13-50, jan./mar. 2013., p.17-18), em seu artigo sobre o escravo Antônio Teles, mestre pintor do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, registrou (sem discutir) a existência de escravos-senhores sepultando seus cativos, entre 1784 e 1807.

Gabriela Amorim Nogueira (2011NOGUEIRA, Gabriela A. “Viver por si”, viver pelos seus: famílias e comunidades de escravos e forros no “certam de sima do Sam Francisco” (1730-1790). Dissertação - Mestrado em História. Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Santo Antônio de Jesus, 2011., p.167), em seu estudo sobre o alto sertão da Bahia, entre 1730 e 1790, encontrou 14 escravos-senhores. A autora destacou a capacidade desses escravos de “viver por si” e alcançarem liberdade suficiente para acumular bens materiais, utilizando seus cativos no “cultivo de lavouras e/ou cuidado com o gado, bens que, provavelmente, escravos proprietários de escravos tinham”. Contudo, dedicou poucos parágrafos ao tema. Carlos Eugênio Líbano Soares (2013SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Sacramento ao pé do mar: batismo de africanos na freguesia da Conceição da Praia, Bahia, 1700-1751. Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v.7, n.2, p.47-74, 2013., p.47-74), ao analisar assentos de batismo da cidade de Salvador na primeira metade do século XVIII, encontrou 33 escravos-senhores. No entanto, também não desenvolveu o tema.

Apenas três autores têm se dedicado de forma mais aprofundada a esse fenômeno. João José Reis (2016REIS, João José. De escravo a rico liberto: a trajetória do africano Manoel Joaquim Ricardo na Bahia oitocentista. Revista História, São Paulo, n.174, p.15-68, jan./jun. 2016., p.228), em seu estudo mais recente, destacou a trajetória do liberto Manoel Joaquim Ricardo, negociante que participou ativamente do tráfico negreiro. Segundo Reis, esse liberto chegou a possuir, ainda em cativeiro, pelo menos 10 escravos, em razão do alto grau de autonomia que conquistou. Uma pesquisa mais aprofundada tem sido desenvolvida por Daniele Santos de Souza sobre a cidade de Salvador no século XVIII, encontrando um número significativo de escravos senhores de escravos. A autora, a partir da análise de registros de batismo, identificou 113 escravos-senhores batizando seus próprios cativos. A autora afirma que poucos foram senhores de mais de um escravo, pois 84% dos escravos-senhores aparecem batizando apenas um cativo. Daniele Souza destaca ainda que, possivelmente, muitos desses senhores conseguiram comprar escravos africanos mais baratos graças ao contato direto com o tráfico transatlântico, pois muitos deles ou trabalhavam em embarcações ou mantinham contato com pessoas ligadas a essa atividade, tais como “comerciantes, pequenos investidores, capitães negreiros ou membros da tripulação” (Souza, 2017, p.4 e 8).

Logo, seu estudo evidencia esse fenômeno na área urbana, cujos escravos-senhores exerciam atividades na rua, nos sobrados ou no comércio, vivendo com maior autonomia e capacidade de juntar dinheiro. Segundo Daniele Souza, a aquisição de escravos por escravos estava vinculada ao período vigente do tráfico transatlântico, em momentos de baixa dos preços, “o que possibilitou a vulgarização da propriedade cativa, inclusive o acesso desses escravizados ao mercado de cativos” (Souza, 2017, p.4).

Destacamos ainda os estudos publicados recentemente de nossa autoria, que trazem análises aprofundadas sobre o tema. Nossa pesquisa revelou que, além de 18 cativos-senhores que utilizaram a substituição, outros 4 possuíam escravos que eram utilizados em tarefas que visavam gerar lucros para o seu senhor (Costa, R., 2017COSTA, Alex Andrade. Entre (dí)vidas: escravos, lavradores pobres e a luta pela sobrevivência. In: ENCONTRO ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NO BRASIL MERIDIONAL, 7., maio 2015, Curitiba, PR.a; Costa, R., 2017bCOSTA, Francisco A. Pereira da. Anais Pernambucanos. Recife: Arquivo Público Estadual, 1951-1966. v.1.). O feitor Nicolau é o caso mais emblemático, pois chegou a possuir 9 cativos e outros bens, somando cerca de um conto de reis (Costa, R., 2017aCOSTA, Robson Pedrosa. Escravos senhores de escravos, Pernambuco, séculos XVIII e XIX. História e Perspectivas, Uberlândia, v.57, p.149-176, jul./dez. 2017b.). Mas Nicolau, segundo Costa, apesar de suas posses e seu prestígio diante dos seus senhores monges, não alcançou a liberdade, morrendo cativo. Esse escravo viveu na mesma época e na mesma fazenda em que Rufina foi cativa e moradora quando liberta. Além disso, possuíam laços familiares espirituais, pois, de acordo com Ana Maria Soares (mulher livre e viúva de Nicolau), ela era “comadre pela terceira vez da preta Rufina”.9 9 Processo-crime. Terceira Testemunha.

A partir do exposto, pretendemos neste estudo avançar na discussão em dois pontos: 1. Abordar as peculiaridades da trajetória de Rufina enquanto mulher, escrava, liberta e senhora de posses; 2. Discutir as noções de direito entre os libertos e as relações paternalistas herdadas e reconstruídas após a liberdade.

DE ESCRAVA DE POSSES À LIBERDADE PRECÁRIA

Entre 1852 e 1853, época em que ainda era escrava, Rufina edificou uma casa de pedra e cal em uma das propriedades pertencentes ao Mosteiro de Olinda: a Fazenda de São Bento.10 10 Petição de Rufina Maria Manoela. Processo-crime. Segundo Pereira da Costa, as terras pertencentes aos beneditinos eram constituídas por “uma grande, importante e rendosa propriedade, com uma capela, casa de vivenda, vastos campos de cultura, e fornos de fabricação de cal, de excelente qualidade, conhecida no mercado como cal de S. Bento...” (Costa, F., 1951-1966_______. A Ordem de São Bento e os escravos do Santo, Pernambuco, séculos XVIII e XIX. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, 2013., v.1, p.403-404).11 11 O Mosteiro de Olinda possuía outras três importantes propriedades: os engenhos Goitá, Mussurepe e São Bernardo, todos localizados em Paudalho.

O viajante inglês Henry Koster (2002KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Ed. Massangana, 2002., p.378) visitou essa propriedade em 1811, relatando que se plantava mandioca, milho, arroz e outros mantimentos destinados a suprir as necessidades alimentícias dos monges, considerando-a como o “celeiro” do Mosteiro. Nessa época, a localidade apresentava um cenário geral de “cabanas no meio do matagal, construídas de barro e cobertas com folhas de coqueiros” de grande parte da população pobre dessa região (Koster, 2002, p.340). Certamente, 40 anos depois de sua estadia naquele lugar, o quadro geral pouco mudou, predominando a pobreza e a vegetação densa. Ao longo do século XIX, a fazenda manteve a mesma “vocação” de “celeiro”.12 12 Manuscritos do Arquivo do Mosteiro de São Bento de Olinda. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, v.XLII, 1948-1949 (1952). Já na época de Rufina a fazenda possuía 54 cativos pertencentes ao Mosteiro,13 13 Inventário de escravos existentes. Códice: 51 - Jaguaribe: recibos-gastos (1854-1870). Arquivo do Mosteiro de Olinda. além de outros que pertenciam aos próprios escravos (Costa, R., 2017_______. O segredo de São Bento: controvérsias sobre lei, direito e justiça e a posse de escravos pelos beneditinos, 1831-1872. In: CABRAL, Flavio; COSTA, Robson Pedrosa. História da escravidão em Pernambuco. Recife: Ed. UFPE, 2012.a). Somando todos os cativos da Ordem em Pernambuco, o número total era de aproximadamente 349 indivíduos.14 14 Cruzamento de dados a partir das referidas fontes: Livro dos Conselhos (1866-1871). Manuscritos do Arquivo do Mosteiro de São Bento de Olinda. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, v.XLII, 1948-1949 (1952).

Mesmo considerando todas as restrições e dificuldades da vida em cativeiro e predomínio da pobreza, Rufina foi capaz de reunir fundos suficientes para comprar escravos (pelo menos dois), objetos pessoais, e levantar uma casa de alvenaria. Além do processo-crime de 1862, outras evidências comprovam que ela possuía escravos ainda em cativeiro. Fr. Felipe, em seu depoimento, confirmou que os obreiros utilizados na construção eram escravos do Mosteiro, mas que Rufina retribuíra com os serviços de dois de seus escravos, chamados Caetano e Ana.15 15 Infelizmente, não obtivemos outras informações sobre esses cativos. Mas seria ela, de fato, escrava nessa época?

Em texto publicado no Diario de Pernambuco de 28 de março de 1870, o monge Fr. Eugênio de Santa Escolástica escreveu uma longa declaração com o objetivo de rebater as críticas de um anônimo “inimigo rancoroso e desapiedado das instituições monásticas”. Em seu relato, esclarece ao público que os escravos Rufina, Cipriano e Cândida foram alforriados no governo do Fr. Felipe de São Luiz Paim (1854-1856) conforme as leis da Congregação. O abade pretendia demonstrar que esses escravos não eram mantidos ilegalmente em cativeiro, como tentava provar o “anônimo” (Costa, R., 2012COSTA, Robson Pedrosa. Um senhor de escravo em cativeiro: a trajetória de Nicolau de Souza, Pernambuco, 1812-1835. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.10, n.1, jan./jul. 2017a.). Como todas as testemunhas, inclusive o acusado Fr. Manoel, afirmam que a casa fora construída durante o governo do Fr. Joaquim do Desterro (1851-1854), não há dúvidas quanto ao fato de ainda ser escrava naquela época.

Nas Atas do Conselho, livro que reúne diversas decisões do Mosteiro, inclusive sobre a concessão da alforria, não há registro da liberdade de Rufina. Todavia, há o registro de Cipriano e Cândida, que conseguiram a liberdade em 1856,16 16 6 dez. 1856. Livro dos Conselhos. Manuscritos, 1952, p.190. corroborando o que consta no Diario de Pernambuco. Não sabemos por que seu nome foi omitido.

Mas o elo entre o Fr. Felipe e Rufina foi construído por sua filha Cristiana, primeira a se libertar, ainda em 1849.17 17 11 set. 1849. Livro dos Conselhos. Manuscritos, 1952. De acordo com o testemunho do Fr. José de Santa Júlia, foi ela (Cristiana), sob a proteção do Fr. Felipe, a escolhida para “botar sentido e guardar” a dita casa que seria construída. Com Cristiana viera toda a sua família, inclusive sua mãe, escrava na época. A família era composta ainda pelo pardo Cipriano, irmão de Cristiana, e pela parda Cândida com sua filha Antônia,18 18 O processo não deixa claro o grau de parentesco entre Rufina, Cândida e Antônia, mas estas são citadas como parte de sua família e moradoras daquela casa. todos cativos do Mosteiro. Todos estavam sob a proteção do Fr. Felipe e foram instalados naquela casa, sem pagarem qualquer foro ao Mosteiro, fato bem relatado no processo.

Neste ponto, poderíamos especular se Rufina ou mesmo Cristiana poderiam ter um relacionamento mais íntimo com o Fr. Felipe. Ora, as testemunhas revelam seu esforço em proteger a liberta Rufina. Em outros depoimentos, há indícios de uma primeira aproximação com Cristiana. De acordo com a testemunha Antônio Tristão (agricultor), a casa foi edificada pelo Fr. Felipe, que “libertou uma parda de nome Cristiana, filha de Rufina, escrava do Mosteiro”, levando-nos a inferir que houve uma intervenção direta do monge na concessão da alforria. Contudo, a decisão sobre a liberdade deveria passar primeiro pelo Conselho e depois pelo Abade Geral da Congregação.19 19 Capítulo Geral de 3 maio 1854, Livro 1848-1866. Arquivo do Mosteiro de Olinda. Certamente, os monges deveriam evidenciar o seu papel no processo de manumissão, para assim garantir a manutenção dos laços paternalistas após a liberdade.

Corroborando o depoimento dessa testemunha, a viúva de Nicolau, Ana Maria de Souza, afirmou que “elas” não pagavam foro ou renda porque “Cristiana era muito protegida por Fr. Felipe”. O mesmo foi dito pela quarta testemunha, José Vieira Fraga, declarando que “Cristiana era muito protegida” pelo monge. Enfim, difícil concluir o grau de envolvimento entre esses três personagens principais. É certo que havia um forte laço envolvendo toda essa “gente”. Laço claramente paternalista, duvidosamente amoroso.

Outro ponto que podemos afirmar com mais precisão é que Cristiana, assim como sua mãe, também era senhora de escravos ainda em cativeiro. Esse dado aparece em seu pedido de liberdade, submetido ao Conselho Beneditino do Mosteiro de Olinda, em 1849, oferendo “por si” um escravo. Não sabemos se ela possuía outros cativos ou se o havia adquirido com o único objetivo de realizar a troca. É certo que nesse contexto o preço dos escravos em Pernambuco crescia de forma acelerada (Vergolino et al., 2013VERGOLINO, José Raimundo O.; NOGUERÓL, Luiz Paulo F.; VERSIANI, Flávio R.; RESENDE, Guilherme. Preços de escravos e produtividade do trabalho cativo: Pernambuco e Rio Grande do Sul, século XIX. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 41., 2013, Foz do Iguaçu, PR: Anpec.), em razão das pressões inglesas e do consequente declínio do tráfico a partir de 1840, acentuando-se a partir de 1845 (Carvalho, 2003_______. De portas adentro e de portas afora: trabalho doméstico e escravidão no Recife, 1822-1850. Afro-Ásia, Salvador: UFBA, n.29/30, p.41-78, 2003., p.137). Cristiana poderia ter esse escravo há certo tempo e considerou vantajoso trocá-lo por sua liberdade. Mas, diferente do contexto destacado por Daniele Souza (2017), aquele em que Cristiana e sua família se libertaram não era de “vulgarização da propriedade”.

Seu irmão, Cipriano, preferiu pagar 600 mil réis. Ele acabou pagando um alto preço por sua liberdade em razão do contexto de redução da oferta de cativos, valor que estava de acordo com a média da capital pernambucana nesse período (Vergolino et al., 2013VERGOLINO, José Raimundo O.; NOGUERÓL, Luiz Paulo F.; VERSIANI, Flávio R.; RESENDE, Guilherme. Preços de escravos e produtividade do trabalho cativo: Pernambuco e Rio Grande do Sul, século XIX. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 41., 2013, Foz do Iguaçu, PR: Anpec., p.8). Cândida, por causa de seus “contínuos achaques”, foi alforriada pela quantia de 200 mil réis. O mesmo preço foi atribuído a sua filha Antônia, de 8 anos. Somando esses três últimos personagens, foi desembolsado, de uma só vez, um conto de réis para libertar três membros da família, além de um cativo em troca de Cristiana.

Como não há registro sobre a liberdade de Rufina no Livro dos Conselhos, não é possível afirmar como obteve a alforria. Mas é importante destacar que os poucos escravos que conseguiram a liberdade gratuitamente através do Conselho foram “agraciados” em razão de doenças graves, idade avançada ou, no caso das mulheres, por terem concebido mais de cinco filhos, de acordo com as diretrizes capitulares dos beneditinos.20 20 Capítulo Geral de 7 jun. 1829. Arquivo do Mosteiro de Olinda. Entre 1793 e 1865, apenas 9,4% dos cativos das propriedades beneditinas de Pernambuco conseguiram a alforria sem quaisquer ônus.

A família de Rufina é um caso que nos faz refletir sobre a capacidade dos escravizados de superar todas as barreiras construídas pela sociedade escravista. Todos os seus membros foram capazes de juntar recursos para conseguir a liberdade e ainda manter algum patrimônio após a emancipação. Todavia, a manutenção das relações paternalistas demonstra os limites da liberdade, mas elas se apresentavam necessárias em uma sociedade marcada pela precariedade material e jurídica que cercava grande parte dos libertos.

PROPRIEDADE, FAMÍLIA E REDES PATERNALISTAS

Ainda escrava, Rufina obteve ajuda não apenas de escravos e do seu protetor, Fr. Felipe. Pessoas livres e poderosas fora da propriedade também compunham a malha de solidariedade e os laços de dependência nos quais estava inserida. Apesar de considerarmos um caso raro de uma escrava que conseguiu comprar escravos, outros historiadores têm demonstrado diferentes realidades e ações praticadas por mulheres para ascender econômica e socialmente. Valéria Costa (2012COSTA, Valéria G. Monica da Costa e Thereza de Jesus: africanas libertas, status e redes sociais no Recife oitocentista. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana B.; GOMES, Flávio (Org.) Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012.), em seu estudo sobre as africanas libertas Monica da Costa e Thereza de Jesus, discute as redes de solidariedade, a construção de famílias e laços paternalistas que envolveram a trajetória dessas mulheres. Elas foram capazes de constituir fortunas em meio à pobreza generalizada do Recife da segunda metade do Oitocentos, protegendo os indivíduos que compunham a engrenagem familiar que dava suporte às suas vidas.

Solange Rocha analisou a trajetória de três mulheres escravizadas na Paraíba Imperial que utilizaram diferentes estratégias para alcançar a liberdade, explorando as brechas do sistema escravista em diferentes contextos e situações ao longo do século XIX. Mesmo diante das limitações impostas aos escravos e de toda a rede opressiva do regime escravista, escravas como Juliana se prepararam por longo período reunindo fundos suficientes para tornar-se uma pessoa livre (Rocha, 2012ROCHA, Solange P. Mulheres escravizadas na Paraíba oitocentista: trabalho, contradições e lutas por liberdade. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana B.; GOMES, Flávio (Org.) Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012.). Sandra Graham, buscando fragmentos de vida de mulheres escravizadas e libertas, percorreu diferentes situações que demonstram as redes de “clientela” das quais eram parte integrante. Mulheres que conseguiram comprar sua liberdade e até mesmo aplicar suas economias, comprando terrenos, casas e, claro, escravos, como Sabina e Rosa. Mulheres contemporâneas a Rufina, todas inseridas em um universo pautado na “onipotente troca de favores”, tanto na área rural quanto na urbana, cada uma com suas particularidades (Graham, 2012, p.134-148).

A história de Rufina nos ajuda a compreender a realidade vivida por ex-escravos no mundo dos livres, ao analisarmos sua experiência de liberdade e sua percepção de direito construída ainda em cativeiro. Não se sabe ao certo como ela conseguiu juntar dinheiro e adquirir os bens citados no processo. No depoimento do Fr. Manuel, o Abade questiona como Rufina, quando ainda era cativa, possuía “escravos e fundos correspondentes a fazer uma casa de pedra e cal!”. Em suas palavras: “Apelo para os seus respectivos títulos, que sejam apresentados!”.21 21 Interrogatório do réu. Processo-crime. Certamente, os escravos senhores de escravos não possuíam documentos comprobatórios de suas posses, tornando-se necessária alguma pessoa livre intermediando a transação, pois, legalmente, “o escravo nada adquiria, nem adquire, para si; tudo para o senhor...” (Malheiros, 1866MALHEIROS, Agostinho M. P. A escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866., p.50-51).

Sobre os recursos utilizados para a construção da casa, há divergências entre as testemunhas quanto às origens dos materiais empregados. Alguns afirmaram que os tijolos foram feitos na olaria da fazenda, o mesmo ocorrendo com a cal, a pedra e demais materiais, todos produzidos pelos escravos do Mosteiro. Nenhum cativo de Rufina trabalhou na obra. O serviço foi realizado pelos escravos Eugênio e Cipriano (este último filho de Rufina, escravo na época), dedicados ao trabalho de pedreiros. Outros escravos envolvidos na construção foram José Gomes, Ângelo e Quirino, responsáveis pelo corte da madeira e carpintaria.

Entretanto, de acordo com o próprio Fr. Felipe, a casa foi edificada às custas da escrava Rufina; ele declarou que lhe havia concedido apenas a madeira do teto e as portas. Segundo ele, sua atitude fazia parte de uma prática antiga dos beneditinos, em favor não apenas das pessoas que foram suas servas, mas também de estranhos que assim necessitassem.

Em seu depoimento, outras relações são reveladas, deixando evidente o alcance da rede de alianças que compunha a trajetória de Rufina. De acordo com o monge, as telhas destinadas a cobrir a casa foram doadas pelo coronel Manoel Pereira de Moraes, que participou da Revolução Praieira de 1848 (Carvalho, 1986CARVALHO, Marcus J. M. A Guerra do Moraes: a luta dos senhores de engenho na praieira. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, 1986., p.3). O Fr. Felipe dizia ainda que as tábuas das portas e janelas foram compradas por ele mesmo com o dinheiro de Rufina. Os tijolos utilizados na construção foram fabricados em sua maior parte no engenho Inhamam, com o “consentimento e coadjuvação” do referido coronel Moraes, e o “restante comprado no Recife, conduzidos em canoas para Olinda e daí em ‘quartãos’”22 22 Quartão: “Cavallo pequeno mas robusto, próprio para carga, o mesmo que quartau” (FIGUEIREDO, 1899). até o lugar da casa. Destacou ainda que o escravo Thomé (pertencente ao Mosteiro) trabalhou na construção do ladrilho da casa em um domingo, recompensado também por ela com um patacão e uma garrafa de vinho. O processo revela ainda a existência de um terceiro escravo pertencente a Rufina, chamado Gonçalo, mas não sabemos ao certo se ela já o possuía na época do cativeiro ou se fora adquirido apenas quando liberta.

Outro depoimento, o do capitão Manoel Francisco de Souza Leão, proprietário do Engenho Jaguaribe, revelou um pouco mais sobre a vida material de nossa personagem. Em seu relato, afirmava ter visitado aquela casa convidado pela liberta, informando que em seu interior havia móveis de “algum valor”, citando, entre eles: um sofá, louças, cadeiras, camas e “outros” que a própria queixosa teria lhe mostrado. Certamente, não eram objetos de grande valor material e podem ter sido adquiridos ainda em cativeiro ou durante os 6 anos de liberta (1856-1862).

É importante destacarmos que, como bem apontou Alex Andrade Costa, objetos hoje considerados de pequeno valor, tais como garfos, colheres de prata e mesa grande, nem sempre estavam presentes em grande parte das casas de pessoas livres pobres no século XIX (Costa, A., 2015, p.1). Muito menos habitações de pedra e cal, como bem evidenciou Gilberto Freyre (1998FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano. Rio de Janeiro: Record, 1998.). Mas seria Rufina pobre ou mulher de posses? Em seu depoimento, Antônio Tristão (agricultor e morador da redondeza) disse “que sabia que existia uma casa naquela fazenda habitada por uma preta liberta chamada Rufina, pobre que vivia de lavar roupa”. Contudo, difícil imaginar que ela tenha conseguido comprar, mantendo a profissão de lavadeira, três escravos e materiais para construir uma casa de pedra e cal.

Outros indícios demonstram que a casa construída por ela possuía um valor significativo. No processo instaurado contra o Fr. Manoel, Rufina exige uma indenização de 4 contos de réis para compensar os danos causados com a intervenção violenta daquele monge. Sem dúvida, era uma avaliação exorbitante, considerando que a vistoria constatara a danificação apenas das telhas e ripas, chegando ao montante de 200 mil réis de prejuízo.

Não podemos confirmar o valor real daquela casa. Contudo, o interesse e empenho dos envolvidos são indícios de que não seria um valor desprezível. Se consideramos que os escravos pertencentes ao Mosteiro pagaram por sua liberdade entre 400 e 600 mil réis, 4 contos era uma soma bem elevada para o padrão de um liberto “pobre”. O mais provável é que Rufina estivesse seguindo as orientações do seu protetor Fr. Felipe, que desejava provocar e intimidar seu rival Fr. Manoel, o qual não aceitou a ousadia da proposta. Assim, podemos especular que aquela morada poderia facilmente ser avaliada em pelo menos um conto de réis, quantia significativa para uma pessoa que se encontrava escravizada.

Como conseguiu, então, juntar essa quantia? O mais provável é que tenha se beneficiado do roçado concedido pelos beneditinos, costume sempre presente na documentação. Poderia, também, ter alugado seus cativos para agricultores e proprietários da redondeza, inclusive para os próprios monges. Outros estudos já evidenciaram a existência dessa prática em diferentes regiões, contribuindo para a formação de pecúlio entre os cativos, que o utilizavam principalmente para conquistar a liberdade. Os próprios escravos de Rufina podem ter sido utilizados nas referidas roças para aumentar os rendimentos da família. Infelizmente, não sabemos quais os rendimentos obtidos com esses possíveis roçados, mas, dada a existência de um número significativo de escravos senhores de escravos nas propriedades beneditinas de Pernambuco (pelo menos 22), é razoável afirmar que era um negócio lucrativo (Costa, R., 2017COSTA, Robson Pedrosa. Um senhor de escravo em cativeiro: a trajetória de Nicolau de Souza, Pernambuco, 1812-1835. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.10, n.1, jan./jul. 2017a.b).

Eliana Rea Goldschmidt (2010GOLDSCHMIDT, Eliana Rea. A carta de alforria na conquista da liberdade. IDE, São Paulo, v.33, n.50, p.114-125, 2010., p.120-121) constatou que a possibilidade de os cativos acumularem pecúlio, inclusive no meio rural, também era uma realidade, já que foram capazes de comprar sua alforria. Considerando que a Fazenda de São Bento tinha como missão produzir bens alimentícios destinados ao abastecimento do Mosteiro e que os monges administradores delegavam sua gestão aos escravos feitores, havia grande espaço de autonomia para os cativos que desejavam produzir em roçado próprio e negociar sua produção no mercado local ou mesmo com os próprios religiosos. Por certo, esse foi o principal veículo de obtenção de lucros alcançados pelos cativos dessa propriedade. Primeiramente como um negócio de família (como Rufina, seus filhos e agregados), depois, com a incorporação de escravos (como Caetano, Ana e Gonçalo).

As relações de poder no interior da propriedade contribuíram para o favorecimento de uns em detrimento de outros, como no caso do feitor Nicolau. Esse escravo foi acusado por um dos monges de ser o responsável pela má administração da fazenda, que se encontrava em 1822 à sua “guarda e jurisdição”. O monge não sabia ao certo nem o número total de escravos que o feitor possuía, afirmando ser ele senhor de 6 ou 8 cativos, os quais cultivavam “grande terreno para seus lucros com grande detrimento” dos demais cativos da propriedade, que não conseguiam “plantar para sustentarem seus filhos”.23 23 14 maio 1822. Livro dos Conselhos, p.169-170. Manuscritos, 1952. Este caso é analisado de forma detalhada por COSTA, R., 2017a.

Como Rufina e Nicolau possuíam (segundo a viúva Ana Maria) laços de parentesco espiritual, esse fato pode ter beneficiado a sua família na distribuição das roças sob o controle do feitor. Como bem destacou Valéria Costa, a “relação de compadrio era uma forma que as famílias encontravam para estabelecer alianças, proteção e respeito mútuos entre pessoas do mesmo grupo ou diferentes status”. Essas relações poderiam se concretizar em laços clientelistas compostos por troca de favores e concessões de privilégios, além de promessas de obediência, prestação de serviços e lealdade (Costa, V., 2012, p.103).

Outra possibilidade de ganhar dinheiro eram as festas da região. A mais importante realizada na Fazenda de São Bento era em comemoração a Nossa Senhora do Rosário, totalmente organizada pelos negros da propriedade, como testemunhara Henry Koster. Segundo o viajante, a festividade reunia uma multidão considerável, e a “gente preta” estendia suas esteiras ao ar livre, conversando e comendo bolos e doces das mais variadas espécies, expostos à venda em grande quantidade (Koster, 2002, p.378). A festa, que durava 3 noites, oferecia grande oportunidade para negócios diversos, como a venda de quitutes, objetos artesanais e produtos da roça. É possível que essa festividade tenha mantido sua regularidade nos anos seguintes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir sobre uma realidade tão complexa e tão pouco estudada nos leva a mais perguntas que respostas. Contudo, algumas problematizações são possíveis a partir da historiografia sobre a posse de escravos entre as pessoas livres e libertas, tema amplamente debatido e que nos traz questões que servirão de fundamento para nossas conclusões. Diversos historiadores dedicados aos egressos do cativeiro e aos livres pobres têm demonstrado que a maioria dos proprietários em diferentes partes do Brasil durante o século XIX possuíam entre um e cinco cativos, a exemplo dos estudos de Déborah Reis (2006REIS, Déborah Oliveira M. dos. Araxá, 1816-1888: posse de escravos, atividades produtivas, riqueza. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 34., 2006, Salvador: APEC.) sobre Araxá e de Nunes Neto (2005NUNES NETO, Antonio P. Aspectos da escravidão de pequeno porte no Recife no século XIX. RIAHGP, Recife, n.61, jun. 2005.) sobre o Recife. Já no agreste de Pernambuco, segundo o estudo de Versiani e Vergolino (2002VERSIANI, Flávio R.; VERGOLINO, José Raimundo O. Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Brasília: Ed. UnB, out. 2002. (Textos para discussão, 252)., p.362), 54% dos senhores de escravos não possuíam mais que cinco cativos, e 27,2% de sua amostra não possuíam escravos.

Segundo Márcio Soares (2006SOARES, Márcio de S. A remissão do cativeiro: alforrias e liberdades nos Campos dos Goitacases, c.1750-c.1830. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, 2006., p.278), ter um escravo era símbolo de mobilidade social, principalmente em um contexto no qual muitas pessoas livres e mesmo brancas não possuíam recursos suficientes para adquirir um cativo. Ser senhor significava um importante papel nos “processos de hierarquização social, entre os próprios descendentes de escravos”. A posse em si de pelo menos um escravo pode ser considerada como um diferencial capaz de conferir ao pequeno senhor algum “poder e prestígio”, em contraposição àqueles que nada possuíam (Soares, 2006, p.305-306). Podemos citar também o estudo de Roberto Guedes (2008GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798-c.1850). Rio de Janeiro: Mauad; Faperj, 2008., p.242). Segundo o autor, uma das principais (ou até a maior) expressão de mobilidade social em uma sociedade escravista era a passagem de cativo para liberto proprietário de escravos. E essa condição, afirma o autor, “não raro ‘embranquecia’”.

Se todas essas considerações foram pensadas para a realidade dos livres e libertos, o que dizer de escravos que possuíam escravos? O que dizer de uma escrava com dois cativos e pelo menos uma casa própria estimada em cerca de um conto de réis? Não só isso. Se levarmos em conta os recursos acumulados por toda a sua família, que passara a habitar aquela casa, podemos ter uma ideia da posição de destaque que alcançaram ainda em cativeiro, considerando, claro, as condições materiais e simbólicas de seus “iguais” e mesmo de toda a sua vizinhança, composta por pessoas pobres.

Outro ponto a destacar seria a conclusão apressada sobre a ação movida por Rufina. À primeira vista, poderíamos pensar que seria um passo muito maior do que a sociedade escravista lhe permitiria. Afinal, havia inúmeras restrições à sua condição. Além disso, de acordo com a legislação vigente, a liberta teria concebido uma perspectiva de direito de propriedade que não conseguiu convencer o juiz, baseando-se nos costumes da própria Congregação e na herança patrimonial herdada do cativeiro. Contudo, nada parecia, naquele momento, tão claro como poderíamos concluir. Rufina reconhecia a importância de defender seu patrimônio, conquistado dentro do cativeiro.

Ela se convenceu (ou foi convencida) de que possuía direitos sobre aquela casa, e levou adiante a denúncia contra o Abade, mesmo compreendendo que este fazia parte de uma camada poderosa, que conhecera bem durante os anos de cativeiro. Também poderia ter sido apenas uma peça de um jogo maior, envolvendo os interesses particulares da alta cúpula da Ordem de São Bento, que disputava mais poder e influência em detrimento de seus “inimigos”. Todavia, podemos pensar também que ela teria construído sua própria noção de direito, que aprendera a usufruir nos tempos do cativeiro.

Em seu depoimento, o Fr. José de Santa Júlia afirma que cabia aos senhores concederem as habitações aos seus escravos, pois fazia parte dos costumes beneditinos concederem como “esmola” aos ex-cativos a morada que haviam ocupado enquanto cativos, mas pagando os devidos foros. Como as práticas costumeiras faziam parte dos dispositivos de controle da Congregação Beneditina, é possível que ela tenha incorporado alguns de seus elementos, convencendo-se de que tinha direito sobre aquele chão.

Por fim, a historiografia discutida neste artigo apresenta trajetórias de escravas e libertas e seu trânsito entre a escravidão e a liberdade, revelando muitos aspectos expressivos sobre as diversas faces da sociedade escravista. Hypolita, Ovídia e Juliana são apenas alguns exemplos de mulheres que experimentaram os perigos, os amores, as tramas políticas e as possibilidades de ascensão social e/ou econômica sem perder de vista a precariedade e restrições impostas em decorrência de gênero, cor e origens sociais. Mas desconhecemos, até o momento, estudos que tenham se dedicado a mulheres escravas que ascenderam ainda em cativeiro. Ou seja, senhoras de escravos e outras posses antes mesmo de se tornarem egressas da escravidão. Esta, provavelmente, é a maior contribuição deste estudo: provocar um desvio, ou pelo menos um sopro que ajude a estimular novos caminhos que contribuam para repensar a dinâmica multifacetada do escravismo, principalmente acerca das possibilidades e conquistas de mulheres escravizadas em um mundo cercado de barreiras construídas para evitar sua transposição.

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  • VERSIANI, Flávio R.; VERGOLINO, José Raimundo O. Preços de escravos em Pernambuco no século XIX. Brasília: Ed. UnB, out. 2002. (Textos para discussão, 252).
  • 1
    Agradeço a Maciel Henrique Carneiro Silva e a Valéria Gomes Costa pela leitura e por sugestões valiosas para o aprimoramento deste artigo. Agradeço também aos avaliadores que deram importantes contribuições.
  • 2
    Processo-Crime: Autora: Rufina Maria Manoela. Réu: D. Abade do Mosteiro de Olinda Fr. Manoel da Conceição Monte. 1862, seção de Manuscritos, Série: Irmandades Religiosas, Cx.4: São Bento de Jaguaribe. Museu de Igarassu.
  • 3
    Para uma discussão mais aprofundada sobre o assunto, ver: TORRES-LONDOÑO, 1999TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família: concubinato, Igreja e escândalo na colônia. São Paulo: Loyola, 1999.; SERBIN, 2008SERBIN, Kenneth P. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja católica no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008..
  • 4
    Código Criminal do Império. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/221763.
  • 5
    No sentido de se esconder, proteger-se.
  • 6
    Basta uma pesquisa rápida na Coleção de Leis do Império do Brasil e demais publicações disponíveis no portal da Câmara dos Deputados para constatar tal prática. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/busca/?wicket:interface=:0:1; acesso em: 10 nov. 2017.
  • 7
    Sobre o cotidiano de tensões e conflitos das mulheres no século XIX e a discussão de conceitos como honra e honestidade, cf.: GRAHAM, 1992; SILVA, 2004; SANTOS, 2007SANTOS, Maria Emilia V. dos. “Moças Honestas” ou “Meninas Perdidas”: um estudo sobre a honra e os usos da justiça pelas mulheres pobres em Pernambuco Imperial (1860-1888). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, 2007.. Sobre o cotidiano do trabalho doméstico no Recife, ver: CARVALHO, 2003; SILVA, 2004; SILVA, 2016.
  • 8
    Sobre o assunto, ver: COSTA, R., 2017b.
  • 9
    Processo-crime. Terceira Testemunha.
  • 10
    Petição de Rufina Maria Manoela. Processo-crime.
  • 11
    O Mosteiro de Olinda possuía outras três importantes propriedades: os engenhos Goitá, Mussurepe e São Bernardo, todos localizados em Paudalho.
  • 12
    Manuscritos do Arquivo do Mosteiro de São Bento de Olinda. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, v.XLII, 1948-1949 (1952).
  • 13
    Inventário de escravos existentes. Códice: 51 - Jaguaribe: recibos-gastos (1854-1870). Arquivo do Mosteiro de Olinda.
  • 14
    Cruzamento de dados a partir das referidas fontes: Livro dos Conselhos (1866-1871). Manuscritos do Arquivo do Mosteiro de São Bento de Olinda. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, v.XLII, 1948-1949 (1952).
  • 15
    Infelizmente, não obtivemos outras informações sobre esses cativos.
  • 16
    6 dez. 1856. Livro dos Conselhos. Manuscritos, 1952, p.190.
  • 17
    11 set. 1849. Livro dos Conselhos. Manuscritos, 1952.
  • 18
    O processo não deixa claro o grau de parentesco entre Rufina, Cândida e Antônia, mas estas são citadas como parte de sua família e moradoras daquela casa.
  • 19
    Capítulo Geral de 3 maio 1854, Livro 1848-1866. Arquivo do Mosteiro de Olinda.
  • 20
    Capítulo Geral de 7 jun. 1829. Arquivo do Mosteiro de Olinda.
  • 21
    Interrogatório do réu. Processo-crime.
  • 22
    Quartão: “Cavallo pequeno mas robusto, próprio para carga, o mesmo que quartau” (FIGUEIREDO, 1899FIGUEIREDO, Cândido de. Novo diccionário da língua portuguesa comprehendendo... Lisboa: T. Cardoso & irmao, 1899.).
  • 23
    14 maio 1822. Livro dos Conselhos, p.169-170. Manuscritos, 1952. Este caso é analisado de forma detalhada por COSTA, R., 2017a.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2018
  • Aceito
    28 Set 2018
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