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O perigo da (re)escravização: disputas judiciais de manutenção da liberdade na Mariana setecentista

RESUMO

Neste artigo examinam-se algumas das ações cíveis de manutenção da liberdade produzidas em Mariana (Minas Gerais) durante o período colonial. Para evitar a redução ao cativeiro, indivíduos ameaçados recorreram à justiça. Os autores dos processos optaram por alcançar uma escritura pública que atestasse seu estatuto jurídico de alforriado (ou livre), ou obter outros instrumentos capazes de resguardar a liberdade que já usufruíam. Na arena pública de embates eles mobilizaram várias estratégias. Ciente disso, busca-se relacionar as informações acerca das ameaças à liberdade e os modos como ela pôde ser defendida em juízo para abordar aspectos das relações escravistas até agora pouco explorados. Em especial, observa-se como as diferentes formas de obtenção da liberdade influenciavam a experiência pós-escravidão e como tais diferenças eram significativas para os egressos do cativeiro.

Palavras-chave:
alforria; manutenção da liberdade; justiça

ABSTRACT

This article examines civil lawsuits brought to maintain the freedom of former slaves in Mariana, a town in the Captaincy of Minas Gerais, during Brazil’s colonial period. To avoid reduction to slavery, threatened individuals took their matters to court. The authors of the lawsuits chose to obtain a public deed that certified their legal status as freed people (alforriados), or other instruments capable of safeguarding the freedom they already enjoyed. In the public sphere, they employed several strategies to achieve their goals. Given that, we strive to relate information about threats to freedom and the way by which it was possible to defend it in court, in order to understand aspects of slavery hitherto unexplored. It is of particular concern how the different ways to obtain freedom influenced the post-emancipation stage and how these differences proved relevant to the experience of former slaves.

Keywords:
Manumission; Maintenance of Freedom; Court of Law

Era o início da ocupação das Minas Gerais quando, em 1705, Pedro Alves Nunes libertou Maria de Araújo. Na ocasião, sua carta de alforria foi escrita pelo pároco e assinada “perante muitas testemunhas por não haver, naquele tempo, notário público” nas proximidades. Anos mais tarde, em 2 de abril de 1721, Maria buscou provar no juízo da Vila do Carmo (futura cidade de Mariana)2 2 A Vila do Ribeirão do Carmo foi fundada em 1711 e elevada à categoria de cidade em 1745, quando se tornou a sede do bispado. “que era forra ha[via] 16 anos”.3 3 Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana - 2º Ofício, Justificações, Códice 165, Auto 3907. Ela pretendia, com isso, que o juiz ordinário proferisse sentença que a declarasse liberta e mandasse “passar seu Instrumento”, ou seja, uma “escritura pública e autêntica com a qual se prova[va] a verdade” (Bluteau, 1728BLUTEAU, Rafael. Vocabulario Portuguez & Latino, aulico, anatomico, architectonico... v.4. Coimbra: no Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1728, v.4., v.4, p.155). Portanto, Maria já vivia na posse de sua liberdade, cujo domínio fora atestado em um escrito particular e, ainda assim, recorreu à justiça para produzir um novo título, este último emitido em instância pública, o que lhe conferiria maior credibilidade.

De difícil compreensão à primeira vista, percebe-se logo que posse e domínio não se confundiam. Segundo Pascoal José de Melo Freire, a posse era a faculdade de desfrutar da coisa, enquanto o domínio era a faculdade de deter a coisa com título. Para completar tal interpretação, o jurisconsulto português, um dos mais renomados no final do século XVIII, afirmou que “aquela consiste mais no fato”, isto é, “a posse só se adquire com o nosso ânimo”; já o domínio pode ser transferido como se faz aos herdeiros, pois nasce do direito e não do fato (Freire, 1967FREIRE, Pascoal J. de Melo. Instituições de Direito Civil Português: tanto público como particular. Lisboa: Boletim do Ministério da Justiça (BJM), 1967. Livro Terceiro, Título II.). Sendo assim, cabe sublinhar as correspondências entre domínio da liberdade e estatuto jurídico, sua posse e a condição social. Como o estado legal de um indivíduo era declarado num documento escrito - título ou instrumento -, este constituía o atestado do domínio da liberdade pelo liberto ou livre de cor. Assim eram as cartas ou escrituras de alforria, os assentos de batismo, as verbas de testamentos, as sentenças de ações judiciais etc. Diferentemente, a condição social - ou o modo de vida de um forro e seus filhos - estava relacionada ao usufruto da liberdade e ao jeito como se apresentavam publicamente para assim serem reconhecidos, ou como se dizia na época, para que assim fossem “tidos, havidos e reputados”. Por isso, Maria de Araújo enfatizou que “vivia na posse da liberdade” à vista de todos e que tal modo de vida estava fundamentado no domínio que lhe fora conferido por uma carta de alforria. Ao relacionar uma coisa à outra, sua vivência como alforriada à emissão desse papel particular, ela passou a requerer uma escritura pública que lhe servisse de novo título de liberdade.

Reconhecendo o ônus da sua iniciativa, fica uma curiosidade: o que a teria motivado? Nada foi explicitado nos autos, mas parece que se tratava de uma medida de proteção para firmar seu direito e, com isso, manter-se em liberdade. Talvez Maria de Araújo tivesse perdido sua alforria e não quisesse permanecer sem título, considerando a fragilidade de tal situação. Tal informação, contudo, não consta nos autos. O único indício de transformação da sua rotina encontrado é o fato de se ter retirado da freguesia de Bento Rodrigues, onde havia morado desde que fora alforriada, e mudado, com Alves Nunes, para a Vila de Sabará. Certamente, o ajuizamento de sua ação cível estava relacionado a esse deslocamento que caracterizava um fator de risco para os libertos, ainda mais quando aliado à permanência na casa e companhia do patrono. Ao manter tal vínculo, estando numa localidade em que era completamente desconhecida, é provável que Maria tenha percebido a necessidade de produzir um título público capaz de ratificar (ou substituir) a antiga carta particular de alforria, a fim de frustrar possíveis ameaças de reescravização.

Nas duas últimas décadas, esse tipo de preocupação e agência dos libertos passou a chamar a atenção dos especialistas em escravidão no Brasil e a integrar a pauta dos debates acerca da experiência dos alforriados. Além da viabilidade da ascensão econômica há muito ressaltada (Faria, 2000FARIA, Sheila de Castro. Mulheres forras - riqueza e estigma social. Tempo, Rio de Janeiro, v.5, n.9, p.65-92, 2000.; Oliveira, 1988OLIVEIRA, Maria Inês C. O liberto: o seu mundo e outros, Salvador, 1790-1890. São Paulo: Corrupio, 1988.), os historiadores têm lançado luz sobre os casos em que não só a subsistência, mas a própria manutenção da liberdade esteve em risco (Russell-Wood, 2005RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.; Lara, 2007LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.). Cada vez mais, a instabilidade característica dos anos de trabalho forçado e dos períodos de negociação da alforria começa a ser vista como algo que também marcou a fase seguinte - a de luta pela conservação da liberdade conquistada.

Impossível não admitir que tal instabilidade influenciasse as escolhas dos egressos do cativeiro. E o receio que sentiam se justificava diante da prática efetiva de redução ao cativeiro, o que nos ajuda a entender a iniciativa de Maria de Araújo ao buscar a intermediação judicial para produzir um título de liberdade inconteste. Evitar a reescravização estava na ordem do dia. Em vista disso, o clássico dualismo entre escravidão e liberdade começa a ser repensado. No lugar de uma rígida oposição, sobressaem as possíveis zonas de interseções e uma linha tênue que não mais admite a afirmação de que o estatuto jurídico de um liberto ou livre de cor fosse inalterado, ou que a reescravização fosse uma exceção.

Em pesquisas recentes, Grinberg ressaltou que o trânsito entre a escravidão e a liberdade ocorria nos dois sentidos, isto é, tanto um escravo poderia ser manumitido quanto os libertos, de fato, eram puxados de volta ao cativeiro (Grinberg, 2006GRINBERG, Keila. Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX. In: LARA, Silva Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria N. (Org.) Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas: Ed. Unicamp, 2006. p.101-128.). Chalhoub, por sua vez, dedicou-se a examinar o que chamou de “precariedade estrutural da liberdade”, destacando as dificuldades de homens e mulheres manterem-se no estado livre, dado o costume de conceder alforrias condicionais (cujas obrigações limitavam o usufruto da liberdade), de revogá-las e de vender como escravos os que eram livres de cor. Para esse autor, a liberdade transformou-se numa experiência ainda mais arriscada após a lei de 7 de novembro de 1831, que proibiu a entrada no país de escravos africanos, procedentes do comércio atlântico. A manutenção do tráfico, em desrespeito à legislação, tornou ilegal grande parte da escravaria, flexibilizando os critérios de prova da propriedade escrava e, consequentemente, criando uma atmosfera de insegurança e condições favoráveis à usurpação da liberdade dos sujeitos de cor da sociedade brasileira (Chalhoub, 2012CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.).

Tomadas em conjunto, essas novas abordagens trouxeram contribuições significativas ao tratar dos constrangimentos e da efetividade das práticas de reescravização dos alforriados e de escravização ilegal dos livres. No entanto, suas análises continuam restringindo o sentido de tais ocorrências a um contexto específico: o de crise do sistema escravista. Para outras conjunturas, quando a escravidão seguia como elemento incontestavelmente estruturador da sociedade, os estudos precisam avançar, e este artigo visa contribuir com tal empreitada. Ao longo do século XVIII e nas duas primeiras décadas do século XIX, a vida dos egressos do cativeiro foi marcada por frequentes ameaças de retorno ao cativeiro em Mariana, importante centro escravista no interior da América portuguesa.

Os acordos de libertação não garantiam a permanência de seus beneficiados em estado livre.4 4 A redução ao cativeiro como consequência da revogação da alforria é o aspecto mais conhecido das experiências de reescravização. Essa possibilidade estava prevista nas Ordenações Filipinas, Livro 4, Título 63 - Das doações e alforria que se podem revogar por causa da ingratidão. Quanto à necessidade de ajuizar uma ação de redução ao cativeiro surgem muitas dúvidas, sendo sua obrigatoriedade firmada apenas na década de 1840. Mas parece que a existência e o grau de confiabilidade de um título de liberdade poderiam proporcionar maiores ou menores chances de um forro se opor às intimidações do patrono, seus herdeiros e terceiros. Daí sua importância, como de início aponta a história de Maria de Araújo. Para muitos de seus contemporâneos, a emissão e a guarda, bem como a ocultação e a falta desse documento, constituíram questões cruciais, inclusive para os coartados que já desfrutavam de autonomia e tinham satisfeito o valor de seu corte.5 5 Coartação é um acordo de liberdade que prevê o pagamento a prazo. Sua concessão e as condições do ajuste - o número de parcelas, o tempo para quitação, a autorização para sair da companhia do senhor, o território que o coartado poderia percorrer em busca de trabalho etc. - eram frequentemente registradas em um escrito particular, isto é, um papel de corte que costumava ficar em poder do coartado. O que acontecia quando um forro que detinha carta de alforria registrada em cartório descobria que estava sendo caçado por capitães do mato, à ordem do seu ex-senhor? Ou quando uma coartada, ao invés de receber título de liberdade, era ameaçada de reescravização depois de ter vivido fora do domínio senhorial por muitos anos? Ou quando uma mulher, filha de escrava, após ser tratada como livre pelo pai, ficava sabendo que estivera na iminência de ser vendida e teve sua alforria negociada por outros familiares? Como veremos adiante, nessas situações de vulnerabilidade, afirmar o domínio da liberdade ou garantir ao menos a permanência do seu usufruto por outros meios constituíam alternativas reivindicadas no Juízo Geral da cidade de Mariana.

Nesse tribunal, dezenas de ações cíveis foram autuadas por libertos e coartados (que já viviam em liberdade) e sofreram ameaças de redução ao cativeiro. Recorreram à instância pública “para que não fossem mais perturbados”. Todos queriam, portanto, neutralizar os riscos de retomada do domínio senhorial. Em vista dessas características comuns, tais litígios são aqui designados como ações cíveis de manutenção da liberdade. O medo da volta ao cativeiro foi o que motivou a busca pela mediação pública como uma medida preventiva, capaz de fazer frente às intenções e tentativas de reescravização, quando esta aparecia no horizonte como um terrível prenúncio. No juízo marianense, além da existência ou não do título de liberdade, outras garantias e fatores de risco tiveram destaque na escolha dos recursos mobilizados em defesa dos interesses dos litigantes. Com seus defensores, eles souberam acionar e manipular os instrumentos então disponíveis para reivindicar o que consideravam ser seu direito: continuar em liberdade. Resta-nos agora compreender suas experiências à luz de suas estratégias.

Há muito tempo, o uso de ações cíveis como fonte para a história da escravidão tem permitido que nos aproximemos dos escravizados e alforriados, desvelando-se suas identidades, desejos, valores e projetos de vida. Continuando nesse percurso, considero mais proveitoso, em termos metodológicos, que as versões de um conflito que tanto nos chama a atenção sejam analisadas de maneira dialética aos tipos processuais, aos dispositivos legais e argumentos jurídicos invocados pelos litigantes. Paralelamente ao esforço de reunir, selecionar e destacar as informações registradas em diversas partes dos autos (petições, itens justificativos, libelos, contrariedades e inquirições de testemunhas), faz-se necessário compreender como elas se associam aos procedimentos estabelecidos ou solicitados pelos agentes da justiça (em despachos dos juízes, audiências públicas, cotas, arrazoados dos advogados, embargos etc.). Esse é o desafio posto aos historiadores, possível de ser enfrentado quando se estabelece um diálogo com o Direito. Ao aceitá-lo, pretendo aqui relacionar as informações acerca das ameaças à liberdade e os modos como ela pôde ser defendida na justiça, a fim de abordar aspectos das relações escravistas até agora pouco explorados. Em especial, observarei como as diferentes formas de obtenção da liberdade influenciavam a experiência pós-escravidão, e como tais diferenças eram significativas para os egressos do cativeiro. Passemos então aos casos.

A MANUTENÇÃO DA LIBERDADE COM OU SEM O TÍTULO DE ALFORRIA

Depois de negociar sua liberdade, dando em troca um moleque e dinheiro, Francisco Ferreira da Costa recebeu sua carta de alforria em 1753. Estando com o documento em mãos, ele tratou de obter o reconhecimento de sua letra e sinais em março de 1756 e, logo depois, em julho daquele mesmo ano, o crioulo fez o seu registro em cartório. Portanto, ele cuidou de firmar a validade de um escrito particular e de assegurar sua perenidade ao lançá-lo no livro de notas do tabelião público da cidade de Mariana, podendo solicitar a emissão de uma cópia em caso de perda, furto ou destruição da alforria original. Não obstante tantos cuidados, Francisco ainda sentiu necessidade de, em 1758, constituir prova de sua liberdade e reconhecê-la judicialmente para produzir uma escritura pública. Por isso moveu uma justificação.6 6 AHCSM - 2º Ofício, Justificação, Códice 142, Auto 2904. Assim como Maria de Araújo, personagem já conhecida do leitor, ele queria que o juiz o declarasse “isento de cativeiro” e lhe desse “seu instrumento em forma autêntica para seu título”. Acreditava que dessa maneira conseguiria que “nenhum capitão do mato, nem feitores de [Dona Maria Alves da Cunha, sua patrona], nem outra pessoa alguma” o perturbasse.

Para se manter na posse da liberdade e impor maior barreira à ameaça de redução ao cativeiro, Francisco Ferreira da Costa recorreu à justiça para produzir um novo título, dessa vez, uma escritura pública. Com esse outro documento em mãos, esperava poder voltar a “andar por onde lhe parece[sse], tratando da sua vida sem ninguém o inquietar”. E mais: ele lançou mão desse recurso também para impedir sua reescravização por ordem e força senhorial. Agora, para puxá-lo de volta ao cativeiro, Dona Maria Alves da Cunha precisaria mover ação cível, na qual o crioulo deveria ser “ouvido e convencido” de que perdera seu direito à liberdade. Tal reivindicação pode ser entendida como uma tentativa de Francisco ampliar a sua margem de proteção. Ele pretendia garantir o usufruto da liberdade e repassar a sua ex-senhora a obrigação de disputar judicialmente o seu domínio. Em outras palavras, qualquer pendenga em torno do estatuto jurídico do crioulo e, consequentemente, da sua reescravização só poderia ser tratada como matéria de outro litígio que deveria ser proposto por Dona Maria, a quem caberia o ônus da prova.

Tendo o mesmo propósito, Antônio Rodrigues havia movido uma justificação em julho de 1752.7 7 AHCSM - 2º Ofício, Justificações, Códice 146, Auto 3088. Foi seu advogado, o Dr. Paulo de Souza Magalhães, quem afirmou que esse tipo de ação não era um “meio de tirar direito de quem tem”, ficando reservada à parte contrária a possibilidade de requerer judicialmente o retorno daquele jovem ao seu poder. Mas enquanto não obtivesse sentença favorável à reescravização, Antônio deveria ser mantido em liberdade, tal como se achava havia 4 anos, estando resguardado da prática violenta de redução ao cativeiro. Foi assim que ele procurou se defender ao tomar conhecimento de que o sargento-mor Rodrigo da Rocha e Souza “o quer[ia] cativar achando em busca dele para o levar para a sua casa para se servir de[le] como escravo”. Vale aqui destacar que o rapaz estava em situação mais vulnerável do que Francisco, porque não detinha nenhuma prova documental do seu estatuto jurídico para exibir em juízo. Ele contou que fora manumitido mediante pagamento ofertado pelo padrinho, e que havia perdido a alforria quando criança, por “não ter quem [a] guardasse”. Talvez por isso não tenha solicitado a emissão de uma escritura pública de liberdade. Antônio tão somente queria que, depois de provado o fato de viver em liberdade, fosse mandado que “ninguém entend[esse] com [ele] Justificante, [nem] oficiais de justiça nem capitães do mato”.

Anos mais tarde, em janeiro de 1772, foi a vez de Josefa Maria recorrer ao tribunal marianense para também conseguir que o juiz “manda[sse] que qualquer oficial de justiça cit[asse] ao Suplicado [Antônio Carvalho da Silva] para que não intend[esse] com [ela] Suplicante”.8 8 AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 611, Auto 23552. Tendo notícia de que era procurada para ser levada de volta à casa e companhia senhorial, a preta Mina acionou a justiça antes que acabasse reescravizada. Na petição que deu início ao processo, ela reivindicou que não fosse reduzida ao cativeiro “sem primeiro [ser] convencida por sentença”, ou seja, sem que esse ato fosse autorizado em juízo. Ela havia sido coartada pela sogra de Carvalho da Silva e, como tal, “esta[va] na sua liberdade, tratando de sua vida” e nesse estado desejava ser mantida, opondo-se à vontade do parente de sua falecida senhora. Para sustentar o pleito e afastar a suspeita de que fosse escrava fugida, Josefa Maria anexou aos autos uma certidão da verba do testamento em que fora coartada. Dessa maneira esperava reforçar seu pedido de proteção, para que em liberdade pudesse “mostrar ter satisfeito o seu coartamento”.

Naquele momento, nenhum recibo foi exibido, o que suscita a hipótese de que ela não os detinha. Em razão disso, é provável que Josefa Maria não tenha podido reclamar a produção de instrumento que atestasse o seu domínio da liberdade. Tal como Antônio Rodrigues (que não possuía prova documental de que era liberto), o que Josefa Maria objetivava era alcançar um mandado de citação. O que importava nesses dois casos era convencer o juiz de que um liberto sem alforria e uma cortada sem recibos da quitação do corte deviam ser mantidos na posse da liberdade, enquanto houvesse dúvidas em relação aos seus estatutos jurídicos. Para eles, bastava uma ordem do magistrado para que um oficial de justiça desse ciência à parte adversária de que não poderia coagi-los. Além, é claro, da ressalva de que a decisão de os puxar de volta ao cativeiro só poderia ser tomada no tribunal e não à força, por ordem senhorial e empenho de um capitão do mato.

Noutro processo, Manuel Rodrigues apresentou provas de que já havia liquidado o preço de sua coartação para continuar usufruindo da liberdade tal como fazia desde o início do corte e, diferentemente de Josefa Maria, buscou produzir pela via judicial sua escritura de alforria, mas o que ele obteve foi um mandado de manutenção.9 9 AHCSM - 2º Ofício, Notificações, Códice 178, Auto 4409. Não obstante o resultado, até certo ponto a história se repete: ao ser “vexado” pelas “terríveis ameaças” feitas pelo herdeiro da outorgante do corte, Manuel resistiu. Para se livrar das inquietações, ele pediu ao governador da capitania que, em vista dos documentos anexados a seu requerimento, incumbisse ao juiz de fora de Mariana o deferimento rápido da demanda. Apresentou seu papel de corte (produzido em 16 de setembro de 1797) e, em seguida, os 18 recibos de pagamento (registrados em diferentes datas entre 1800 e 1806), cuja soma excedia em 16 oitavas e 25 vinténs o importe de 100 oitavas de ouro, preço estabelecido no seu acordo de libertação.

Diante do exposto, o magistrado foi incumbido de deferir “breve e sumariamente” a causa, o que cumpriu aos 8 dias do mês de maio de 1806 ao autuar uma ação de notificação em que o réu foi citado para que executasse aquilo que fora solicitado pelo autor: a emissão e entrega da alforria. Em resposta, João Nogueira de Carvalho continuou se recusando a passar o título, declarou serem falsos alguns daqueles recibos e ilegítimos os demais herdeiros a quem o coartado havia efetuado parte dos pagamentos. Ao apontar a insatisfação da coartação, o réu buscou sustentar que “enquanto pend[ia] a obrigação ou solução das 100 oitavas, pend[ia] a alforria ou liberdade do sobredito Manuel Rodrigues”. Em outras palavras, ele colocava em dúvida a satisfação do corte e, consequentemente, a mudança do estatuto jurídico do crioulo e a condição de ele continuar vivendo como liberto. A objeção do herdeiro em passar a alforria foi retrucada pelo advogado do “pretinho” ao reiterar “que o corte [tinha] a predição de ser-lhe passado carta de liberdade, pago o preço” como estava. Dessa forma, o defensor de Manuel Rodrigues se recusava a debater acerca da quitação do corte e decorrente mudança do estatuto jurídico. Ele apenas reforçou a necessidade de o crioulo ter em seu poder um escrito de alforria, visto que o papel de corte como seus recibos e conta final não lhe serviram para escapar das intimidações que o “traz[iam] atropelado e inquieto”.

A seu favor, o Dr. Manuel Pedro Gomes julgou conveniente que Manuel fosse “manutenido na posse de sua liberdade”. Essa decisão assegurava a conservação do usufruto da liberdade, mas não o seu domínio, visto que não foi ordenada a emissão da alforria requerida. Ao invés disso, o juiz resguardou o direito de o réu litigar por meio de outra ação cível, “ou a redução à escravidão … ou o resto do preço que diz lhe dever, ou porque o Suplicante [Manuel Rodrigues] pagasse a quem não devesse, ou porque sejam falsos alguns dos recibos”. Dito de outra forma, o magistrado não arbitrou sobre o estatuto jurídico de Manuel Rodrigues, até porque, conforme já mencionado, o crioulo não se dispôs a disputá-lo. Como alternativa, o Dr. Gomes lhe proporcionou um instrumento legal para que ele vivesse em liberdade durante o tempo em que seu título de liberdade - e, portanto, a definição do seu estatuto jurídico - fosse alvo de desentendimentos e disputas.

A necessidade de afastar o risco pronunciado do retorno ao domínio senhorial não deixa dúvida de que acordos de libertação resultantes de um pagamento a prazo, assim como alforrias pagas à vista, poderiam ser desprezados ou contestados. Fosse por aproveitar da fragilidade de um escrito particular de libertação, ou porque este fora perdido, por vontade ou discordância quanto às condições de quitação por parentes dos falecidos senhores, o fato é que cartas de alforria (menosprezando seu registro em cartório), certidões de verba testamentária com a concessão da coartação, papéis de corte e recibos das parcelas quitadas (incluindo os que foram passados pelo outorgante e seus familiares) não afastavam seus beneficiados de embaraços e ameaças de reescravização. Contudo, a esses diferentes papéis dava-se grande importância.10 10 Isso é o que Rebecca Scott e Jean Hébrard demonstram a partir da experiência de Rosalie, uma africana da Senegâmbia que vivia em Saint-Domingue (depois Haiti) e migrou com sua família, em busca de refúgio, no início do século XIX. Mesmo sendo emancipada, ela fez questão de obter uma carta de alforria antes de chegar a Cuba e, estando nesse território onde o sistema escravista continuva pujante, esforçou-se para validar tal título de liberdade a fim de permanecer fora do cativeiro. Por diferentes razões, todos os documentos que alcançou eram frágeis em termos legais, mas foram por ela empenhados como “provas de liberdade”. Sobre essa história de conquista e defesa do estado livre, ver SCOTT; HÉBRARD, 2014. Eles serviram para tais indivíduos buscarem proteção judicial, da qual resultava a produção de novos documentos que os mantinham afastados do cativeiro, mesmo quando não se tomava uma decisão definitiva a respeito do estatuto jurídico.

Em defesa da liberdade então usufruída, Francisco Ferreira da Costa solicitou a emissão de um novo título de liberdade, dessa vez, uma escritura pública; Antônio Rodrigues e Josefa Maria, que viviam na posse da liberdade sem provas do seu domínio, optaram por obter um mandado de citação; enquanto Manuel Rodrigues, ao apresentar os recibos do pagamento da coartação, pediu a entrega de sua alforria e conseguiu um mandado de manutenção depois que teve tal quitação questionada. Para além das hipóteses já elencadas, impossível definir com exatidão o que determinou as diferentes reivindicações que fizeram. De todo modo, da análise conjunta dos processos tem-se a confirmação da relevância dada à produção e porte de todo e qualquer documento que fizesse frente às ameaças de reescravização. Mais interessante ainda é constatar que os egressos do cativeiro puderam se servir até mesmo de mandados de citação e mandados de manutenção na falta de um título de liberdade e diante da dificuldade de requerer ou disputar sua produção.

Viver sem um registro de alforria que atestasse o domínio da liberdade parece ter sido algo bem mais corriqueiro do que costumamos conjeturar. Partindo dessa impressão, sobressai a ideia de que a libertação lançada em livros de notas e testamentos restringia-se a uma parcela dos que saíram do cativeiro. Como informam os processos ajuizados por Antônio Rodrigues e Josefa Maria, alguns dos sujeitos “tidos, havidos e reputados” por libertos e coar­tados poderiam ficar longos períodos sem título de liberdade, e não é absurdo supor que muitos nunca obtiveram tal documento. Talvez esse tenha sido o destino do supracitado Manuel Rodrigues que, no lugar da alforria almejada, obteve um mandado de manutenção da liberdade. Usufruindo dessa condição, é possível que tenha desistido de reivindicar o reconhecimento do seu estatuto de forro. Para chegar a essa decisão, ele deve ter considerado os riscos que corria por não possuir carta ou escritura de alforria, bem como articulado estratégias para firmar seu lugar social de liberto e sobreviver sem precisar, por exemplo, se afastar do local onde era reconhecido como tal. Diante da novidade que nos traz tal percepção, importa aqui enfatizar que a obtenção de um mandado de manutenção de posse da liberdade em juízo mostrou-se uma alternativa viável para Manuel e até desejável por alguns de seus contemporâneos, como foi para Jacinta Vieira da Costa.

Por ratificar, de uma parte, a fragilidade dos acordos de libertação e, de outra, a possibilidade dos que se sentiam ameaçados de valer-se de um recurso legal a fim de continuar vivendo em liberdade sem título de alforria, esse caso também merece ser aqui examinado. Devo logo destacar que Jacinta já havia sido reescravizada, e foi para ser posta em liberdade que ela recorreu à justiça pela primeira vez. Em despacho, o juiz de fora proferiu que a crioula “não dev[ia], sem ser ordinariamente convencida, sofrer o cativeiro em poder” de Manuel Vieira da Costa. A soltura de Jacinta foi rapidamente ordenada em 4 de novembro, após o magistrado ter apreciado o conteúdo da súplica por ela encaminhada ao governador, com provas documentais anexas: um papel de corte e vários recibos das parcelas quitadas ao pai de Vieira da Costa (o qual havia concedido o corte), à sua viúva e ao sobredito filho e herdeiro. Por meio da intervenção do juiz encarregado - que recebeu a reclamação por parte do governador e averiguou a situação - Jacinta conseguiu voltar à liberdade. Poucos dias depois, em 14 de novembro de 1811, ela fez nova reivindicação em juízo. Desta vez, a crioula fiandeira reivindicou que fossem autuados aquele requerimento e mais papéis referentes ao episódio anterior, visando, com isso, obter um mandado de manutenção, porque “tem[ia] ser ainda perturbada na posse da sua liberdade”.11 11 AHCSM - 1º Ofício, Ações Cíveis, Códice 468, Auto 10374. Autuar o seu primeiro requerimento remetido ao governador, seu despacho, bem como o do juiz de fora do juízo de Mariana, seu papel de corte e recibos das parcelas quitadas significava reunir todos esses documentos e produzir uma peça circunstanciada e autêntica do ato judicial de sua soltura.

Vê-se claramente que a restituição da liberdade não significou para ela a garantia de sua manutenção nesse estado. Ciente do risco que continuava a correr, Jacinta não hesitou e logo reivindicou a emissão daquele mandado para que, junto a seus filhos (gerados depois de coartada), “se conserv[assem] em posse de suas liberdades sem mais perturbação alguma”. É provável que assim tenha agido por instrução de um advogado, mas também é possível que a crioula conhecesse o caráter e a serventia do mandado de manutenção por ter convivido com outros sujeitos que dele se valiam ou por ter notícia deles. Convencida de uma forma ou de outra, ela também quis e, de fato, pôde desfrutar dessa medida de segurança, enquanto a reescravização não fosse arbitrada em uma ação cível movida por Vieira da Costa. Sem a autuação e desfecho desse outro litígio, Jacinta e seus filhos teriam vivido em liberdade mesmo sem conseguir um título de alforria. Isso torna a história da crioula que escapou da reescravização ainda mais impressionante. Sua experiência e, supostamente, a de outros conhecidos lhe ensinaram sobre a importância dos documentos que trazia consigo - o escrito e recibos do seu corte -, bem como sobre a necessidade de produzir outros que lhe permitissem melhor resistir à ameaça de ser puxada de volta ao cativeiro - um mandado de manutenção.

Quando era a liberdade que estava em jogo, valia toda e qualquer prevenção. Novamente destaco que na arena pública de embates existia a probabilidade de se obter um mandado de manutenção de posse da liberdade que parecia suscitar maior proteção se comparada ao mandado de citação. Enquanto esta determinação escrita do juiz garantia que certa pessoa fosse intimada pelo oficial de justiça para não causar constrangimentos ao indivíduo que a solicitou, o primeiro poderia ser apresentado sempre que necessário, com o objetivo específico de impedir, sob a pena cominada, as apreensões (entre outros meios de redução ao cativeiro). Tenho indícios de que a emissão deste último se sobrepôs àquele no início do século XIX. Entre os autos investigados, datam de 1806 os primeiros vereditos que determinaram a emissão do mandado de manutenção de posse da liberdade. Depois disso, tal medida passou a ser reivindicada pelos próprios autores dos processos, e não encontrei mais pedidos de produção dos mandados de citação. Dessa variação destacam-se as diferentes opções daqueles que não queriam ser reduzidos ao cativeiro.

Cá está um exemplo de que “o Direito proporciona aos sujeitos diversos instrumentos que podem ser por eles mobilizados em suas disputas materiais cotidianas” (Paes, 2016PAES, Mariana Armond D. O procedimento de manutenção de liberdade no Brasil Oitocentista. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.29, n.58, p.339-360, 2016., p.355). No período em análise, coube aos envolvidos nas ações que trataram da manutenção da liberdade (incluindo os advogados e magistrados) a escolha do instrumento que demandavam obter em sentença, mediante a avaliação da sua eficiência, das especificidades do caso, da receptividade do pleito por parte do juiz e das suas chances de vitória. A essa escolha aliava-se outra essencial: a interposição de diferentes tipos processuais. Embora fosse reconhecido que a posse da liberdade resultava em algum direito para os possuidores - mesmo quando não se provava o domínio -, sua defesa não constituía um procedimento jurídico específico, tal como ocorrerá mais tarde, a partir de 1840 (Paes, 2016, p.347). No tribunal marianense, de 1720 a 1819, essa matéria foi tratada em ações de justificação e notificação, a exemplo dos casos acima mencionados. Não obstante os ritos variados, enquanto ações sumárias, todas se distinguiam de uma praxe ordinária e, por isso, eram consideradas ações especiais, produzidas com o objetivo de debater casos que não precisavam ser meticulosamente averiguados ou que deviam obter uma rápida resolução, reduzindo-se também o seu custo.12 12 Comparativamente, a despesa somada ao final da ação ordinária movida por Ana Antônia (que será examinada adiante) foi de 19$167 réis, ao passo que a justificação de Francisco Ferreira da Costa custou 2$690 réis, e essa se destaca como a mais dispendiosa entre as ações sumárias aqui analisadas. O início de uma delas, em detrimento das demais, era deferido pelo juiz ao apreciar a razão alegada pelo autor, sua qualidade e o “estilo” daquele tribunal.13 13 De acordo com a explicação de HESPANHA (2006, p.21-24), o que se praticava num juízo assentava-se tanto em interpretações e apropriações de leis positivas quanto na elaboração de normas e procedimentos costumeiros. Tais eram os elementos que formatavam o “estilo” de determinado foro, o qual se distinguia dos demais, ainda que todos fizessem parte do Império português.

Sabendo disso, constituía importante estratégia jurídica a possibilidade de os autores (informados por seus defensores) optarem por mover um processo sumário qualquer, tendo a perspectiva de sua aceitação. E não por acaso a atuação de um rito especial para tratar da posse da liberdade no juízo marianense costumou passar, primeiro, pela aprovação e determinação do governador das Minas Gerais. Ao alegar a iminência da reescravização e a miséria em que se encontravam, libertos e coartados pediram a ajuda dessa autoridade e, com sua intervenção extraordinária, tais suplicantes conseguiam impor, a seu favor, a vontade de ter sua contenda julgada sumariamente. Dessa forma, pode-se dizer que eles não só usavam os instrumentos que tinham à disposição, como os manipulavam, ampliando o seu uso e transformando, aos poucos, a praxe jurídica antes que ela fosse estabelecida em obras de jurisconsultos ou determinada por lei. Ao menos em parte, as estratégias dos sujeitos envolvidos nesse tipo de disputa contribuíram para moldar uma forma processual que se tornou usual tempos depois, em um contexto histórico mais favorável - de crise da escravidão e de reforma do Direito brasileiro.

Ainda durante o período colonial, as ações interpostas pelos ameaçados de reescravização impactavam, em alguma medida, as relações entre egressos do cativeiro e ex-senhores. Conforme já aludido, ser “manutenido na posse de sua liberdade” significava ter preservado o direito de desfrutar dessa condição, apesar da incerteza sobre o seu domínio. O acionamento da justiça perante tentativas de redução ao cativeiro visava impedir que essa prática se desse à força e por ordem senhorial. E mais: objetivava deixar o ônus de disputar a definição do seu estatuto jurídico a seus perseguidores. Consequentemente, parte dos autores das ações cíveis de manutenção da liberdade renunciava à conquista de um documento que atestasse o seu domínio. Quais as implicações disso? Vivia-se em liberdade sem título e, o que é mais impressionante, contrariando a vontade senhorial. Se a privação de uma alforria aumentava o risco de reescravização para alguns - em especial, para os que foram coartados e libertos em arranjos domésticos -, sua inexistência não inviabilizava o usufruto da liberdade por outros, ainda mais quando se obtinha em juízo um mandado de citação ou de manutenção. Assim resguardados, seus beneficiados podiam fixar alguma distância de seus inimigos, ou até pressionar uma conciliação no âmbito privado. Por ora, em vista de todas as possibilidades, creio não haver exagero em afirmar que a vida de muitos egressos do cativeiro foi repleta de desafios e, por vezes, mais complexa do que poderia representar o conteúdo lançado no título de liberdade, caso houvesse um.

A DEFINIÇÃO DO ESTATUTO JURÍDICO PARA A MANUTENÇÃO DA LIBERDADE

A carta de alforria de Ana Antônia, por exemplo, não revela os detalhes da sua relação conflituosa com o pai patrono, da qual resultou a destruição do seu primeiro papel de libertação. Já o segundo título só foi alcançado depois que ela recorreu ao tribunal da cidade de Mariana. Vendo-se em apuros e temendo ser reescravizada, ela pediu que nessa instância pública fosse declarada liberta desde a idade de 8 anos. Para tanto, Ana Antônia promoveu uma ação de manutenção de posse da liberdade amparada no reconhecimento do seu domínio. Diferentemente dos casos examinados na seção anterior, em uma ação de praxe ordinária ela disputou a definição do seu estatuto jurídico para alcançar, por essa via, a alforria que lhe garantisse o direito de continuar desfrutando de tal condição.

Era muito jovem quando iniciou um libelo cível, em 27 de agosto de 1810.14 14 AHCSM - 2º Ofício, Justificações, Códice 145, Auto 3011. O libelo cível apresentava uma ordem processual ordinária. Morava na casa de um ex-vizinho, mas receava ser levada de volta ao domínio de seu pai patrono. Ana Antônia contou que sua mãe era uma escrava que ainda vivia em casa de Eusébio Rodrigues Tavares, mas ela, desde o seu nascimento, fora por ele reconhecida como sua filha. Tanto que “foi geralmente tida e havida por forra, vivendo na companhia [do pai], prestando-lhe serviços domésticos no interior da sua casa e, tendo mais de oito anos de idade, lhe mereceu que ele passasse sua carta de liberdade com testemunhas que com ele assinaram”. Feito isso, Rodrigues Tavares guardou em seu poder a alforria e continuou tratando Ana Antônia como sua filha e liberta, segundo ela, dedicando-lhe “muito afeto e distinção”. O cotidiano da menina só mudou quando tinha cerca de 12 anos: nessa ocasião, “o réu tomou ódio da autora, começou a tratá-la mal, obrando o excesso de dar-lhe pancadas”. Foi então que “seu pai e seu patrono” rasgou e queimou a carta de alforria. Em seguida, motivada pelos conselhos que recebera, ela o deixou e foi morar em outra residência para escapar da violência que sofria diariamente.

Rodrigues Tavares, ao responder o processo, negou a paternidade e a concessão da liberdade. Retorquiu o que considerou “imposturas falsas” afirmando que o nome “filha” era reflexo da “brandura” e “simplicidade” do seu coração, pois para “inchar os deveres de bom senhor”, costumava chamar todos os seus escravos menores por filhos, seguindo os ensinamentos da doutrina cristã. Quanto à libertação, esta não passou de uma promessa, pois ele somente havia emitido uma “clareza condicional de que lhe [daria] por sua morte a liberdade, se ela [Ana Antônia] procedesse bem, se vivesse honestamente com bom procedimento, vida regular, e servisse a [ele] com toda a fidelidade enquanto fosse vivo” e nada cumpriu a parda, acrescentou Rodrigues Tavares. Imprudente, ela se “desonestou” ao parir um filho e fugir de casa para continuar a viver “uma vida inteiramente estragada”. Por isso, “perdeu a clareza todo o seu vigor” e Rodrigues Tavares logo a destruiu “para não ficar por sua morte servindo de objeto de dúvidas e disputas”.

As versões opostas foram confirmadas pelas testemunhas. Da parte do réu afirmou-se ser costume entre os “pais de família” chamar e tratar por filhos as crias de seus escravos. Em todos os depoimentos foi mencionado que o senhor havia passado uma “clareza condicional” a sua escrava, Ana Antônia, e que ela havia faltado com tais condições ao viver desonestamente, parir um filho e se retirar da companhia do seu benfeitor. Por outro lado, as testemunhas da autora reafirmaram que ela foi tratada pelo pai patrono “com afeto e distinção de filha”, tanto que comia à mesa, com os filhos legítimos de Rodrigues Tavares, com os quais era muito semelhante sua fisionomia. Porém, informaram que a harmonia familiar foi quebrada por uma grande confusão: o “trato ilícito” entre Ana Antônia e seu cunhado, casado com uma de suas irmãs (filha legítima de Rodrigues Tavares), do qual nascera um menino. Assim, inesperadamente, o motivo dos maus-tratos sofridos pela parda ao entrar na puberdade foi revelado em três das quatro inquirições tomadas em seu favor.

É fácil imaginar que tais declarações causaram maior estardalhaço no âmbito doméstico dos litigantes, ampliando a intensidade com que eram sentidas as “desordens” decorrentes da relação entre a filha bastarda e o marido da irmã. Diante da exposição de tamanha mazela, restava ao patriarca impedir que a notícia de seu drama familiar se espalhasse pela sede de Mariana, para que ali o desgoverno da sua casa não se tornasse de conhecimento “público e notório”. Depois de publicadas as inquirições, ele desistiu de sustentar sua defesa. Pensando num modo rápido de pôr fim ao pleito, Rodrigues Tavares resolveu escrever uma nova carta de alforria na qual reconheceu a relação de parentesco e se calou sobre as descomposturas e desordens familiares, num possível esforço de mantê-las sob seu único e exclusivo controle. Meses depois, a alforria foi registrada em cartório, como forma de evitar sua destruição em caso de futuro desentendimento. É provável que a parda tenha percebido a fragilidade de uma carta particular de alforria e quisesse então ampliar sua margem de proteção. Mantendo tal intenção, em seguida ela solicitou e conseguiu que a alforria fosse anexada aos autos e ratificada pelo juiz de fora em sua sentença final.

Além da transcrição da carta lançada nas notas do tabelião público, Ana Antônia poderia se servir da cópia da sentença. Agora não lhe faltaria documento para comprovar seu estatuto jurídico de liberta e conservar tal “reputação”. Não obstante o êxito de sua empreitada, não poderia me furtar de destacar a alegação de seu curador de que bastava provar ser filha do seu senhor para que Ana Antônia vivesse em liberdade, não como alforriada, mas sim como livre. De acordo com o Dr. Joaquim José da Silva Brandão, “provada esta qualidade o é igualmente a de pessoa livre”. No entanto, o versado em leis admitiu que atestar a filiação era uma difícil tarefa e, de mais a mais, com sua experiência naquele tribunal, ele devia prever o quão custoso, se não impraticável seria sustentar, naquele tempo, uma ação de manutenção da liberdade com base nesse argumento. Ao avaliar as chances de sucesso e considerar o fato de Ana Antônia ser “tida, havida e reputada” por forra desde criança, tendo já desfrutado de uma carta de alforria, sua aposta foi confirmar tal forma de domínio a fim de preservar a posse da liberdade. Para Ana Antônia, talvez isso fosse o que mais valesse a pena, mas desse pensamento não compartilhava Sebastiana Josefa da Silva de Almeida, filha de Joana com o sargento-mor Luís de Barros Freyre.15 15 AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 284, Auto 6936.

Também fruto do concubinato entre uma escrava e seu senhor, ela fora reconhecida como filha ilegítima e mulher livre. Desde seu nascimento, em 5 de janeiro de 1717, Sebastiana Josefa não havia desempenhado atividade servil, nunca tinha ido “à fonte, nem ao mato, nem ao rio, nem [feito] outro algum serviço de escrava”. A ela e a suas irmãs, Maria Pedrosa de Freitas e Ana Thomásia, também filhas ilegítimas do sargento-mor Freyre com a escrava Joana, era dado “todo o bom tratamento”: com a esposa e as filhas legítimas dele, ficavam “cosendo no estrado”, iam à missa “ou a outra qualquer função, a que saíssem fora” da morada. Nessas ocasiões, Sebastiana Josefa usava “manto de seda, e os mais vestidos como outra qualquer filha” do sargento-mor.

Ricamente trajada e bem estimada, a parda viveu por mais de duas décadas na freguesia de Guarapiranga. Passado esse tempo, entretanto, sua experiência transformou-se bruscamente. Em 22 de maio de 1739, seu pai manifestou a intenção de vendê-la como escrava, pois adquirira “certa paixão” contra ela. Embora não haja nenhum indício que justifique a mudança de tratamento, é certo que para evitar sua redução ao cativeiro, a seu favor intercederam Rodrigo Gomes de Oliveira e Pedro Gomes de Azevedo, homens brancos, casados com aquelas suas irmãs, Maria Pedrosa e Ana Thomásia, respectivamente. Eles “se obrigaram a 275$000 réis como preço da sua liberdade”. Portanto, em troca do pagamento dessa quantia, a qual se comprometeram a quitar mediante emissão de dois créditos, obtiveram a carta de alforria de Sebastiana Josefa, outorgada pelo sargento-mor e por sua esposa. Nessa ocasião, a parda morava na casa de Ana Thomásia e, talvez por conta disso, só tenha sabido do acordo 2 anos depois.

Surpreendentemente, ao tomar conhecimento do ocorrido, ela logo se opôs à validade do seu título de liberdade. Em maio de 1741, Sebastiana Josefa iniciou um libelo cível e, nessa batalha jurídica, contou novamente com o apoio de seus cunhados e com as instruções de um advogado. O Doutor Reverendo José de Andrade e Moraes fez uma extensa intervenção nos autos do processo. Estava preocupado em esclarecer a razão que levou Sebastiana Josefa a questionar judicialmente a autoridade do sargento-mor Freyre. Alegou que a competência dessa ação se baseava no fato de ser a parda uma mulher livre, conforme sua condição de nascimento, em vista da qual rejeitava a liberdade que lhe fora concedida mais tarde, por meio de um papel de manumissão. Partindo da máxima de que o parto seguia o ventre, o advogado argumentou que “o réu andou concubinado com a dita mãe da autora dez ou doze anos, em cujo tempo a teve em sua casa, sendo já escrava do mesmo réu com estimação de sua concubina, e por tal tida e havida publicamente” e “conforme o direito, toda a escrava que dorme com seu senhor sendo sua concubina, fica liberta e forra, e como tal gera livres e ingênuos os filhos”. Por esse motivo, “livre e ingênua” nasceu Sebastiana Josefa, a quem o senhor prontamente reconheceu “por sua filha, e por tal a confessou muitas vezes publicamente”.

Relutante em aceitar a alforria, o que ela desejava era ser reconhecida judicialmente como antes havia sido aceita pela vizinhança e em seu núcleo familiar. Para tanto, seu defensor asseverou que “a dita [alforria] se dev[ia] julgar de nenhum efeito e validade como desnecessária para a liberdade que a autora já tinha, não pelo referido título, [mas sim pela] boa-fé, paciência e consenso dos réus e pela criação [que deram à] autora”. E nisso insistiu, declarando, enfaticamente, que Sebastiana Josefa “não quer[ia] usar da liberdade que [tinha] pela dita carta de alforria e sim pela legítima posse porque a gozou vinte e dois anos, quatro meses, e dezessete dias”. Tal escolha impressiona porque o documento que assegurava o domínio da liberdade foi preterido em prol da defesa da “legítima posse”. Ao preferir sustentar a posse como a origem do direito à liberdade, reconhecia-se que tal fundamento, naquela época, poderia lhe conferir algum benefício na luta pela restituição do estatuto de mulher livre.

Ainda sobre o caso de Sebastiana Josefa, cabe frisar que dele apreende-se uma clara distinção entre o fato de ela ser alforriada ou nascida de ventre livre - e é essa distinção que justifica seu litígio, visto que a parda não estava mais na iminência de ser reduzida ao cativeiro. Mesmo que o gozo da liberdade fosse facultado em ambas as situações, ser uma mulher liberta não era o mesmo que ser livre ou ingênua. A diferença que sobressai nas declarações registradas no processo é a relação que se estabelece com a escravidão: quando se é alforriada, não se pode desconsiderar a experiência passada em cativeiro; já uma mulher livre nunca nele esteve e, portanto, a dominação senhorial não constitui uma marca em sua trajetória de vida. Daí a importância de afirmar nunca ter feito serviço de escrava, de ressaltar o bom tratamento recebido dentro e fora da casa onde nasceu e foi criada, e a aparência requintada. Essa condição foi repetidamente mencionada nas intervenções do advogado da parda e parece ter influenciado sua existência em liberdade.

A impressão pôde ser confirmada com a afirmação do próprio Dr. Andrade e Moraes, que logo cuidou de ressaltar o que era esperado com a anulação da alforria: “sendo [julgada] inválida, e de nenhum efeito, também se deve[ria] julgar a autora isenta de toda a sujeição de liberta, e os réus sem o jus de patronos nela” (grifo meu). Portanto, da sentença favorável à legitimidade do estatuto de mulher livre decorreria o fim da relação de patronagem, ou seja, laço de dependência que mantinha um ex-escravo vinculado ao indivíduo que lhe concedera a alforria. Em resumo, o empenho em mover esse processo devia-se, em parte, à distinção de status entre ser liberta e ser livre de cor (ainda mais sendo parda e filha ilegítima de um senhor branco) e, de resto, à admissão de que essa diferença representava maior ou menor chance de se autogovernar e, consequentemente, maior ou menor probabilidade de ser reconduzia ao cativeiro. Em outras palavras, a vida em liberdade - numa e noutra situação - seria marcada por distintas expectativas e experiências e disso sabiam as personagens aqui apresentadas, e foi partindo dessa percepção, aliada ao conhecimento especializado dos seus defensores, que elas traçaram suas estratégias jurídicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em defesa da liberdade já usufruída, africanos e seus descendentes puderam recorrer à justiça no interior da América portuguesa. Dessa reação fica evidente não só a vulnerabilidade da liberdade, como também a possibilidade de se impor limites à vontade e autoridade patronal, ainda durante o período colonial. Na arena pública de embates, os litigantes esperavam restaurar e reafirmar o equilíbrio das hierarquias, definindo o lugar social ocupado por cada um, conforme a perspectiva dos que acionaram o tribunal da cidade de Mariana, ao longo do Setecentos e nas primeiras décadas do Oitocentos. Por parte dos forros, coartados e livres de cor, essa iniciativa serviu para conservar sua posse da liberdade. Com tal intenção, mais frequentemente repassaram aos adversários o ônus de disputar seu estatuto jurídico, isto é, de definir se aqueles tinham ou não o domínio da liberdade ou haviam perdido tal direito, devendo, por isso, voltar a servir como escravos. Vez ou outra, os próprios ameaçados de redução ao cativeiro quiseram ter seu estatuto jurídico firmado ou ratificado num instrumento produzido ao final dos autos, para sustentar, dessa maneira, a manutenção da liberdade.

Essas eram escolhas feitas em situações adversas e levadas a cabo ao avaliar o grau de intimidação sofrida e as chances de escapar. Percebe-se por meio delas que os autores dos litígios conheciam bem as diferenças entre uma carta de alforria, uma escritura registrada em cartório e outra resultante de um julgamento, assim como sabiam que um mandado de manutenção não servia de título de liberdade, mas garantia seu usufruto. Eles compreendiam também as diferenças de viver em liberdade por ter sido coartado, por ter sido alforriado ou recebido o tratamento de filha e mulher ingênua. Por conseguinte, suas experiências no pós-escravidão estavam associadas ao modo como desfrutavam da liberdade, e este aos documentos que já detinham ou queriam alcançar para continuar em estado livre. Aprenderam que um coartado que tinha a quitação do seu preço contestado, como era o caso de Manuel Rodrigues, poderia ter seu autogoverno preservado por uma determinação do juiz; estavam cientes de que numa situação menos vulnerável se encontrava, por exemplo, Francisco Ferreira da Costa, um liberto que possuía uma carta de alforria registrada em cartório e que queria, ainda assim, outro instrumento público capaz de reforçar tal domínio; entendiam o fato de Sebastiana Josefa refutar uma carta de alforria por pretender gozar de maior autonomia, rompendo os laços de patronagem, ao confirmar em juízo seu estatuto de mulher livre.

Se hoje tais diferenças parecem pequenas, elas eram muito significativas para os que se encontravam numa “zona nebulosa” de aproximação entre escravidão e liberdade, pois dela esperavam se afastar para viver com maior estabilidade. Dessa constatação também salta aos olhos, a esta altura com maior nitidez, a complexidade das apropriações das categorias sociais. Reagindo às limitações que lhes eram impostas, alguns apostaram na manutenção da condição de “tidos, havidos e reputados”, investiram na visibilidade de sua condição social, enquanto outros dela partiram para obter uma de­claração do estatuto jurídico em juízo. Em comum, todos esperavam, de uma forma ou outra, manter-se fora do cativeiro. Para eles, a justiça pareceu uma alternativa viável e, mesmo quando nela não encontravam a proteção desejada, é possível que dela tenham se utilizado como meio de pressionar a obtenção de uma solução no âmbito privado para que, enfim, não fossem mais perturbados.

REFERÊNCIAS

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  • RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
  • SCOTT, Rebecca; HÉBRARD, Jean. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Trad. Vera Joscelyne. Campinas: Ed. Unicamp, 2014.
  • 1
    A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento da Fapesp (processo 2008/50329-0).
  • 2
    A Vila do Ribeirão do Carmo foi fundada em 1711 e elevada à categoria de cidade em 1745, quando se tornou a sede do bispado.
  • 3
    Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana - 2º Ofício, Justificações, Códice 165, Auto 3907.
  • 4
    A redução ao cativeiro como consequência da revogação da alforria é o aspecto mais conhecido das experiências de reescravização. Essa possibilidade estava prevista nas Ordenações Filipinas, Livro 4, Título 63 - Das doações e alforria que se podem revogar por causa da ingratidão. Quanto à necessidade de ajuizar uma ação de redução ao cativeiro surgem muitas dúvidas, sendo sua obrigatoriedade firmada apenas na década de 1840.
  • 5
    Coartação é um acordo de liberdade que prevê o pagamento a prazo. Sua concessão e as condições do ajuste - o número de parcelas, o tempo para quitação, a autorização para sair da companhia do senhor, o território que o coartado poderia percorrer em busca de trabalho etc. - eram frequentemente registradas em um escrito particular, isto é, um papel de corte que costumava ficar em poder do coartado.
  • 6
    AHCSM - 2º Ofício, Justificação, Códice 142, Auto 2904.
  • 7
    AHCSM - 2º Ofício, Justificações, Códice 146, Auto 3088.
  • 8
    AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 611, Auto 23552.
  • 9
    AHCSM - 2º Ofício, Notificações, Códice 178, Auto 4409.
  • 10
    Isso é o que Rebecca Scott e Jean Hébrard demonstram a partir da experiência de Rosalie, uma africana da Senegâmbia que vivia em Saint-Domingue (depois Haiti) e migrou com sua família, em busca de refúgio, no início do século XIX. Mesmo sendo emancipada, ela fez questão de obter uma carta de alforria antes de chegar a Cuba e, estando nesse território onde o sistema escravista continuva pujante, esforçou-se para validar tal título de liberdade a fim de permanecer fora do cativeiro. Por diferentes razões, todos os documentos que alcançou eram frágeis em termos legais, mas foram por ela empenhados como “provas de liberdade”. Sobre essa história de conquista e defesa do estado livre, ver SCOTT; HÉBRARD, 2014SCOTT, Rebecca; HÉBRARD, Jean. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Trad. Vera Joscelyne. Campinas: Ed. Unicamp, 2014..
  • 11
    AHCSM - 1º Ofício, Ações Cíveis, Códice 468, Auto 10374. Autuar o seu primeiro requerimento remetido ao governador, seu despacho, bem como o do juiz de fora do juízo de Mariana, seu papel de corte e recibos das parcelas quitadas significava reunir todos esses documentos e produzir uma peça circunstanciada e autêntica do ato judicial de sua soltura.
  • 12
    Comparativamente, a despesa somada ao final da ação ordinária movida por Ana Antônia (que será examinada adiante) foi de 19$167 réis, ao passo que a justificação de Francisco Ferreira da Costa custou 2$690 réis, e essa se destaca como a mais dispendiosa entre as ações sumárias aqui analisadas.
  • 13
    De acordo com a explicação de HESPANHA (2006HESPANHA, António Manuel. Porque é que existe e em que consiste um Direito Colonial Brasileiro. In: PAIVA, Eduardo França (Org.) Brasil-Portugal: administração, sociedade e cotidiano: formas de integração. São Paulo: Annablume, 2006. p.21-41., p.21-24), o que se praticava num juízo assentava-se tanto em interpretações e apropriações de leis positivas quanto na elaboração de normas e procedimentos costumeiros. Tais eram os elementos que formatavam o “estilo” de determinado foro, o qual se distinguia dos demais, ainda que todos fizessem parte do Império português.
  • 14
    AHCSM - 2º Ofício, Justificações, Códice 145, Auto 3011. O libelo cível apresentava uma ordem processual ordinária.
  • 15
    AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 284, Auto 6936.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2018
  • Aceito
    28 Ago 2018
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