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Apresentação

Durante os séculos XVI e XVII, professores das universidades do “quadrilátero da luz”, conhecidas como Escola Ibérica da Paz, produziram uma tratadística, expressão de uma consciência crítica, ao colocarem em causa a legitimidade do processo de conquista e colonização das Américas, desafiando os poderes imperial e papal, bem como propugnando o direito de resistência ativa contra a tirania. Em travessia atlântica, na Universitas do aquém-mar, cumprindo seu papel de Alma Mater como promotora seminal de conhecimento, professores e investigadores respondem aos desafios atuais propondo a reescrita dessa história com o foco nas formas de resistência dos povos indígenas.

A Revista Brasileira de História atendeu, precisamente, ao imperativo de repensar esse “protagonismo indígena” ao colocar o agenciamento dos sujeitos individuais ou coletivos em múltiplos cenários e diferentes dinâmicas ao longo da história. Essas releituras historiográficas evocam a atuação dos povos indígenas como epicentro de análise para a compreensão, explicação e construção de outras narrativas que manifestam formas criativas de resistência, composição de novas identidades, campos de saberes nativos, ressignificação de práticas e discursos, constituição e organização de movimentos, entre outros tópicos que vicejam na América Latina. Abarcando um largo espectro temporal e geográfico, o corpus do Dossiê atendeu a um amplo cenário, desde tempos imemoriais plasmados nos vestígios de cultura material à luta contemporânea pelo direito à terra.

No artigo “A atuação dos indígenas na História do Brasil: revisões historiográficas”, Maria Regina Celestino de Almeida contextualiza o importante debate acadêmico dos anos 1990 que provocou uma renovação teórico-metodológica na tessitura entre as histórias dos índios, as histórias regionais e a história do Brasil. Recorrendo a um amplo conjunto documental, apresenta um percurso sobre temas de investigação, com o estabelecimento de acordos e negociações entre o domínio português e indígenas, assegurado no sentido da vassalagem ao rei, dentro da lógica da economia do dom do Antigo Regime, que foi apropriado pelos indígenas no Rio de Janeiro para alcançarem seus próprios objetivos.

“As cachoeiras como bolsões de histórias dos grupos indígenas das terras baixas sul-americanas”, escrito em coautoria por Fernando Ozorio de Almeida e Thiago Kater, traz um viés arqueológico, numa articulação criativa, densa e interdisciplinar com a história, sobre o entorno de cachoeiras das terras baixas sul-americanas, tomadas como lugares para realização de rituais, que se constituíram como locus privilegiado de memórias partilhadas e percebido como espaço ancestral, sendo, portanto, um marco cultural da paisagem. Nesse sentido, o protagonismo das sociedades indígenas também se perscruta no horizonte geográfico.

“‘De farinha, bendito seja Deus, estamos por agora muito bem’: uma história da mandioca em perspectiva atlântica”, de Jaime Rodrigues, trata de uma instigante e inédita abordagem sobre a produção nativa da mandioca e sua apropriação pelos europeus. O autor destaca que a domesticação, a produção e a disseminação desse conhecimento marcam a originalidade dos povos indígenas no estabelecimento desses saberes. Contraditoriamente, foi justamente o cultivo da mandioca que possibilitou o comércio atlântico e, por decorrência, a permanência no ultramar.

“A escrita política eo pensamento dos Guarani em tempos de autogoverno (c.1753)”, de Eduardo Santos Neumann e Capucine Boidin, propõe uma análise fecunda da dimensão política do protagonismo indígena no marco das discussões sobre a transmigração territorial das reduções jesuíticas que acabou por resultar na guerra guaranítica. Recorrendo a uma exegese minuciosa e crítica das fontes vertidas do original guarani, percebidas mediante o recurso à antropologia política e à análise semântica, os autores descortinam a frontalidade de algumas lideranças por meio da apropriação e instrumentalização da cultura escrita para defender os interesses de parte dos naturais, que se opunham às determinações de transmigração definidas pelo Tratado de Madri. Expressaram o grau de autonomia frente à ingerência jesuítica no sentido de resguardar o autogoverno guarani.

Hal Langfur, com “Canibalismo e a legitimidade da guerra justa na época da Independência”, contribui com uma arguta percepção sobre a dinâmica dos Botocudo frente à implementação da política indigenista encetada por d. João, em 1808, que foi conduzida pelos indígenas entre confrontos, recuos e, sobretudo, comprometimento estratégico com os invasores combatentes, levando à dispersão do conflito e favorecendo visões defensoras de políticas brandas de pacificação e de incorporação dos povos indígenas à sociedade dominante.

“Os índios do Ceará na Confederação do Equador”, de João Paulo Peixoto Costa, apresenta uma versão instigante da decisiva participação dos indígenas do Ceará nesse evento de 1824, tendo em conta seus próprios interesses, marcadamente a garantia da liberdade e do domínio sobre suas terras. Para o autor, a atuação das lideranças, subsumida nos relatos da historiografia tradicional, demonstra a importância estratégica de sua inserção no movimento rebelde, atentando, no entanto, para o fato de que assumiram posições ambivalentes e particulares.

“Passo Ruim 1868: as estratégias dos Xokleng nas fronteiras de seus territórios do alto rio Itajaí”, de autoria de Lúcio Tadeu Mota, analisa criteriosamente, a partir de um ataque dos indígenas, no Paraná, o complexo contexto de relações socioculturais na dinâmica de desterritorialização dos indígenas e suas estratégias para lidar com os invasores e expedições de contato.

“Presente de branco: a perspectiva indígena dos brindes da civilização (Amazônia, século XIX)”, de Márcio Couto Henrique, aborda os múltiplos sentidos dos “presentes”, uma das tópicas mais recorrentes no processo de “mediação” de contato com os naturais. Articulando a discussão na interface entre história e antropologia, o autor desconstrói, de forma engenhosa e muito perspicaz, a ideia da mera sujeição às estratégias da política indigenista. Ele desloca o argumento em direção aos recursos performáticos, apresentando um estudo de caso dos Munduruku, na Amazônia do século XIX, em que os “brindes” foram interpretados de forma distinta ao atribuírem outros sentidos e usos aos objetos.

Henyo Trindade Barretto Filho encerra o dossiê com “‘Protagonismo’ como Vulnerabilização em Demarcação de Terras Indígenas: o caso do acordo judicial para demarcar a terra Tapeba”, um polêmico e complexo debate sobre os recentes procedimentos referentes à demarcação dessa terra no município de Caucaia, zona metropolitana de Fortaleza (CE). O desfecho do acordo sugere o protagonismo dos Tapeba, quando, de fato, tratou-se de expediente escuso das agências do poder público para forçá-los a aceitarem os termos propostos (mesmo que em condições desfavoráveis) como possível solução para contornar a morosidade e os entraves para a demarcação definitiva da TI. O alegado “protagonismo” encobria, efetivamente, um longo processo de “vulnerabilização” dos indígenas a partir da “manipulação dirigida” dos agentes.

Com este Dossiê, os autores constroem “outras” narrativas, que provocam (e exigem) a reescrita da nossa própria história, na qual a atuação dos povos indígenas é tomada na urdidura desse processo. Ao refletirem sobre o longo processo de conquista (ainda em pleno “curso”), atualizam a indagação incisiva e nada retórica de Domingo de Soto: “Com que direito retemos o império ultramarino?”. Hoje, bem sabemos! São tempos reeditados de violações dos direitos dos povos indígenas assegurados pela Constituição de 1988; da destruição da paisagem e do ecossistema, com a devastação de florestas e a ruína de rios pelas mineradoras e pelo agronegócio; criminalização de professores, historidores, antropólogos, missionários, lideranças indígenas, funcionários da Funai e do Incra, integrantes de ONGs; da expulsão covarde dos territórios, despejo compulsório e massacres bárbaros alimentados pela impunidade dos brutais agressores, entre outras expressões da “banilização do mal” assistida pelo Estado brasileiro - que espera-se seja responsabilizado em nome da devida e proporcional reparação (se é que possível) pelos sacrifícios inomináveis dos povos originários. Até esse porvir, lamentavelmente, o apelo atemporal de Francisco de Vitória ainda ecoará retumbante nestes tristes trópicos: “Não é lobo o homem para o homem, senão homem!”.

Maria Leônia Chaves de Resende

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017
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